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O mundo sonhou

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Cinco por uma

Cinco por uma

Albino Baptista

baptistagv10@gmail.com Era uma sexta. Um início de fim de semana. Um dia diferente, pelo menos em símbolo de ilusão. Era uma sexta. As noites, nesse dia, tinham sabor diferente. O ar parecia mais gaiato, as ruas mais acriançadas, os parapeitos das casas quase históricas, mais alegres e as flores mais divertidas, parecendo fazer vénia aos transeuntes, que as olhavam de baixo para cima, parecendo dizer: é fim de semana! Vamos festejar! Vamos brincar! Adelgaçado, o Amadeu parecia numa maratona, como se nunca tivesse feito aquele trajeto, numa sexta feira, num início de fim de semana. Não andava: corria. Alice, mais pesada, melhor arranjada – às sextas ia ao cabeleireiro – ficava para trás, tranquilamente, ouvindo os berros do homem, enfurecido pelos 44 dos sapatos, que lhe apertavam um joanete. Em sentido contrário, a Prazeres e o Serafim, braço dado, amparando-se um ao outro – ai os meus ossinhos, gemia ela - toda aperaltada, porque era fim de semana, sexta feira, e trilhavam o alcatroado do costume, fizesse calor, chuva, vento ou frio. E ele, recordando as suas conquistas de novo, já que elas não olhavam para ele, olhava ele para elas, sorrindo ainda maroto, até o bigode bem grisalho se entontecer de entortado. Olha-me este! Quem andou já não tem para andar, menino!, zumbava a Praz , entre ciumenta e gozona. Outros pares se avizinhavam e faziam sinais na noite luarenta, ao longe, mais perto, mais ao lado, ao desembocar das esquinas, enquanto alguns vinham sós para entreterem a boca da noite e a velocidade do tempo.

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Era uma sexta.

Em casa, o casal Fernandes dava asas à responsabilidade e atropelava-se um ao outro. Ele, porque, nestas velocidades, não sabia onde estava o travão nem a embraiagem. Ela, porque com tanto ano de conhecimento, estava saturada dos esquecimentos e de ser ela o pião das nicas, quando o Leandro Fernandes entrava em órbita.

Viste onde pus o relatório de atividades para ser discutido daqui a um bocado, na sede? Raios, que desapareceu! Parece bruxedo… é sexta … Rosa, mancando pela casa fora, desesperava para apertar aquele soutien e para que ele a não visse assim, mas sentenciou: sempre a mesma coisa! Olha à tua frente, na mesinha de cabeceira! O que é isso? Ah! Já olhei tantas vezes…. Como raio veio aqui parar? Foram as moscas… Andam assanhadas, hoje! Depois, o Fernandes prontinho, mesmo à beira da porta, fechando tudo contra ladrões, à espera dela… Sempre atrasada. Teria de voltar a subir as escadas?! E os bicos de papagaio? Era o que mais lhe faltava. E para se levantar na cerimónia? Como haveria de ser?

Acotovelando-se um ao outro, rua acima até ao 16, o casal procurava endireitar-se bem e quanto mais cheiravam o número, parecia que acontecia como com Fernando Pessoa: quanto mais se aproximava da Igreja, mais o sino soava mais longe! Chegaram. Cumprimentos habituais, daqui um abraço, dali um beijo, dacolá um ajeitar melhor a gravata, de lá um centralizar melhor as pregas da saia. O habitual, nestes preliminares das sessões solenes, que Rosa odiava, principalmente quando o homem atropelava as palavras ou se engasgava com os nervos.

Uma noite. Habitualmente, após a telenovela, Rosa fazia as suas orações e obrigava Leandro a tomar parte no terço. Abrindo a boca como um leão, antes da sesta, ele cumpria e até esperava que a mulher limpasse alguma lágrima furtiva, quando se chocava, rezando, com alguma recordação mais maldosa… Naquela noite, este trabalho foi executado. Deram boa noite e abandonaram-se nos braços de Morfeu. Leandro, um aberto outro fechado, deu conta que se sentia farto, mas não conseguiu reconstituir o que havia degustado ao jantar, tal o soninho feroz que o atacou. E… Via-se num baile de gala, ainda solteiro, daqueles que nunca perdia, desse por onde desse… Altito e esguio bebia vinagre, um golinho, todos os dias para emagrecer- era conhecido pelos passes nos tangos e nas valsas. Elas, as debutantes, trocando as vistas ou olhando para baixo e revirando pra cima, só esperavam que ele as fosse buscar para sentirem aquelas mãos no seu corpo, segurando-as, quando o rodopio era mais intenso e brusco… Aqui, aliando a intenção às exigências da dança, ele apertava mais um pouco e deixava descair a mão direita até ao traseiro da donzela, que bem sentia e gostava, sonhando enlevada, antes de adormecer…

Era uma sexta, excecionalmente. Leandro nunca estivera tão ufano e tão leve… Não havia jantado… Andava de olho na Rosa do Antão, grande proprietário da região, tão grande como sovina, segundo a filha lhe contava, em segredo, através de papeizinhos, deixados no portão da casa, num local escolhido e escondido. Ambos tinham a estória bem sabida, decorada, devorada pelos neurónios. Tinha de dar certo. E Rosinha corava levemente, ao recordar. E Leandro apressava os 43, ao sentir, dali a horas, a donzela nos seus braços… E na cama dela… Mas que trabalho lhe dera organizar tudo aquilo, ponto por ponto, passado, depois, a pente fino! Ia começar o baile. Rapazes para um lado, donzelas para outro. Ao centro, Antão abria o baile, jaqueta de punhos de ouro a contrastar com o dente de prata, enrolado com a dama, a mulher Felismina. E - zás - lá ia ele mais o bigode assanhado ao encontro dos braços e peito da sua menina. O plano não pode falhar! lia-se nas pupilas azuis escuras, que aumentavam de volume… Dança, mais dança, mais dança. Quatro tangos e duas valsas. Pausa para uma bebida e verter águas.

Leandro Correia havia pensado que, após a reforma, tudo faria para organizar com colegas que quisessem, grupos de Cultura múltipla, Canto, Teatro, Dança, um Escrito onde ficassem registados os atos levados a cabo por eles, em prol da sua Terra, tentando dinamizar ou colmatar falhas de nível cultural que a sua cidade necessitasse, para, acima de tudo, a elevar ao lugar que merecia ter. A ideia cresceu, evoluiu, foi divulgada, aqui, ali, em conversas de fim de semana, sistematicamente, de molde a chegar ao momento e haver já algo em que “mexer” e iniciar o trabalho bairrista. Assim aconteceu. Rosa foi o braço direito dele nessa iniciativa, ajudando no que podia e integrando-se habilmente em dois grupos. De seguida, como acontece quase sempre, institucionalizaram-se e no momento próprio avançaram para eleições. E, desde aí, Leandro aguentou, aguentou, porque era sempre eleito…. Atualmente, sentia-se cansado, já sem idade para enfrentar as situações que se deparavam nem as diferentes normas, que cada vez mais, eram emanadas pelo governo. Mas... Continuava e Rosa bem fazia cruzeiros e maratonas para ele ser substituído, mas ninguém avançava… Acabaria aquele sonho? Cessaria o que o Mundo sonhou e aconteceu há vinte e cinco anos? O sonho comanda a vida! Mas as idades não perdoam… Rosa andava preocupada com a saúde do homem. Suspirava como quando Leandro, nos seus bons tempos, a penetrava e fazia sonhar mais que todo o mundo…

Recordam-se da pausa e do baile, em que Leandro voava para Rosa Antão, aguardando que o plano gizado se concretizasse? O anfitrião voltou ao meio do salão, dando início à “segunda parte” do baile dos debutantes. Rosa esmagavase em Leandro… O champanhe dá sempre efeito mais os docinhos… Ele esvoaçava no salão e nem sabia quem era nem onde estava. Suava muito e bebia à medida… Ela já bebia da tacinha dele, às escondidas, porque era mais baixa e se escondia no peito dele… Rosinha, está na hora, senão não vamos ter tempo… Não esqueças nada, não? Porta encostada para eu entrar. Abres a outra, a que dá para o interior, caso haja azar, para eu poder esgueirar-me… Descansa que vai dar tudo certo… No fim desta valsa, eu saio, mas vou falar à minha mãe. Sim, já me esquecia disso! Que Santo António nos ajude Rosinha querida. Tomara!

Escapuliu-se e espantou Leandro! Nem a viu! E, numa reviravolta, fingiu ir ao WC e seguiu o trajeto planificado. A porta estava encostada e o coração de Leandro parou… mal entrou, porque Rosinha já só tinha soutien e a saia levantada…. Leandro queria andar…, mas vinha para trás… foi ela que o foi buscar e tombaram na cama…

Oh Oh Que é isto? O que estás a fazer Leandro? Em cima de mim? Tu abafas-me! Acorda, homem! Estás a tremer! Vamos ao hospital? Ah Ah Ah O quê? O que foi? O que dizes? Ah Ah que te deu? O que aconteceu? Sai de cima de mim, Leandro! Cuidado com a minha perna! Ai as minhas costas, gritava Leandro, saindo a custo de cima de Rosa! Não sei o que se passou… diz Leandro, triste por ter sido apenas um sonho! Podia ter ido até ao fim! O Mundo Sonhou… E eu rejuvenesci …

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