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Terra, a nossa casa

Maria Eva Machado

luanegra.eva@gmail.com

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“Poucas divindades tiveram, como a terra, o direito e o poder de se tornarem tudo”. Mircea Eliade (1997)

É verdade que não faltam temas para pincelarmos algumas folhas com palavras, neste tempo estranho que a Terra, a nossa casa comum, tem vindo a viver. Um tempo de pandemia global que trouxe o medo, quantas vezes exagerado e manipulado, e empurrou populações inteiras, qual formigas aterrorizadas, para um confinamento sanitário obrigatório. As imagens que a imprensa falada e escrita nos apresentava eram quase apocalípticas. Entre o deserto e o silêncio sepulcral, que se instalou por todo o lado, o ser humano tornou-se quase invisível. Quase, porque metade do formigueiro nunca deixou de trabalhar para que a outra metade se confinasse nas suas casas. Instalou-se o pânico e a desconfiança. E, de um dia para o outro um profundo vazio físico, social e cultural, difícil de aceitar e entender, alterou o nosso relacionamento com o outro, e ainda não sabemos até quando perdurará. Durante este curtíssimo tempo, em que o ser humano parou, a Terra tentou harmonizar os seus quatro elementos – ar, terra, ar e fogo. As flores desabrocharam no meio do cimento, a água do mar e dos rios adquiriu a transparência do diamante, os leões passearam nas florestas de asfalto, as tartarugas nidificaram nas praias agora desertas, as águias-reais ocuparam as rotas aéreas. E a Terra… a terra respirou como no tempo em que era considerada uma divindade viva e nunca poderia ser ofendida. Eu revisitei esses mitos e lendas ancestrais que falam do seu simbolismo, de rituais, e da devoção que lhe dedicavam. A história da terra na sua dimensão mágico-religiosa, como divindade viva e mulher – deusa provedora de vida e alimento poderia começar assim1 …

1 Machado, Eva (2009). Enxerto do mito “Gaia deusa da abundância e fertilidade” publicado no jornal Povo de Guimarães.

Era uma vez uma deusa que concentrava em si todas as cores, todas as formas, todos os perfumes. Chamavam-lhe Gaia ou Geia, a deusa da Terra. A sua origem remonta ao início de tudo, quando no universo só existiam três elementos: o Caos, o Espaço e… Gaia. Nada, mas mesmo nada tinha vida para além de si. Ela era o elemento primordial do qual viriam a descender todas as raças divinas e toda a diversidade de vida. Transportava em si mesma o grande útero andrógino e berço de todas as coisas a desabrochar: animais, vegetais e minerais. O seu ventre era sagrado, a sua seiva preciosa. A terra era tudo e o todo estava contido em si. Os seus mistérios de eterna fertilidade e a sua condição divina levou os povos primevos a respeitá-la acima de todas as coisas, e a associá-la aos misteriosos ciclos da Lua e do corpo feminino. Mircea Eliade2 refere (1997:309-326) que a “Terra, para uma consciência «primitiva» é um dado imediato: a sua extensão, a sua solidez, a variedade do seu relevo e da vegetação que nela crescem constituem uma unidade cósmica, viva e activa”. Diz-nos ainda que se acredita normalmente que a agricultura seja uma descoberta feminina3. E neste sentido alguns povos conservavam rituais (1997:326) em que “ajudada pelo seu espírito de observação (…) e pelo facto de que era solidária com outros centros de fecundidade cósmica – a Terra, a Lua – a mulher adquiria o poder de influir na fertilidade e de poder distribui-la. É assim que se explica o papel preponderante desempenhado pela mulher nos começos da agricultura (…) papel que continua a desempenhar em certas civilizações”. Perdeu-se o simbolismo, os rituais, e o sagrado feminino e com eles se vai esbatendo o respeito pelo nosso Planeta Azul. Sabemos isso, basta olhar à nossa volta! O progresso do betão, do asfalto e do petróleo tem tingido de negro as cores de Gaia. Agrilhoada no seu próprio ventre sofre para dar à Luz. Estamos vivendo um aquecimento global nunca visto. Esta pandemia, que se espalhou como um rastilho, mostra que o desequilíbrio entre o ser humano e a natureza além das tragédias visíveis como furacões, tsunamis, degelo, a subida do nível do mar, a seca prolongada, a falta de água, os desalojados, os mortos do Mediterrâneo … também cria seres microscópicos virulentos que provocam danos no nosso organismo ou a morte. É preciso

2 Eliade, Mircea (1997), Tratado de história das Religiões. Porto. Edições Asa. 3 Alguns estudos, baseados na estatuária das “Vénus de…” defendem também a possibilidade de terem sido as mulheres as primeiras artistas a trabalhar a pedra.

agir. Não podemos continuar a passar pelas coisas sem as ver, como diz Eugénio de Andrade. Temos as ferramentas para fazer a mudança e essa depende da nossa vontade. Este é o século XXI dos avanços científicos, da tecnologia, da informática, do telemóvel, das notícias em tempo real, das catedrais de consumo… de tudo o que aparentemente facilita a vida e traz felicidade. Mas não é isso que vemos nos olhos dos outros. A miséria, a fome, o desemprego, a guerra e o biopoder crescem a um ritmo tão alucinante como o desaparecimento de florestas inteiras ou o surgimento de doenças estranhas. Sendo a Terra um organismo vivo tudo está ligado. A doença e a saúde. A paz e a guerra. A morte e a vida. O mundo deveria crescer em função da felicidade e do bem-estar do ser humano. Mas não é isso que tem acontecido. Ele tem crescido, pela mão “de vendilhões do templo”, cujo único deus é o dólar, o euro, o petróleo, as armas ou até a mais recente tecnologia. O ser humano transforma-se num número ou numa peça a ser vendida e comprada. Hoje a violação dos direitos humanos, tão maléfica como subtil, só pode ser combatida com a nossa vigilância e a solidariedade colectiva nas causas. Este tempo de pandemia global pôs a nu as fragilidades gritantes do serviço nacional de saúde, do desrespeito pela geração dos mais velhos, do ensino, da cultura e da saúde geral do planeta, resultado de políticas governativas cujo lema tem sido “mais privado e menos estado”. Mas este é também o tempo perigoso da biopolítica, da videovigilância, dos certificados de imunidade, das APP para detectar infectados, ferramentas de controlo, de totalitarismo, que conflituam com a democracia, as liberdades individuais e o próprio equilíbrio do planeta. São estas preocupações que nos devem impulsionar a tomar parte activa na vida social, política e associativa, lutando e sonhando um novo paradigma mais fraterno e igualitário para todos os povos. Mas isso não se consegue facilmente. A educação, em casa e na Escola, a cultura e o conhecimento são pilares insubstituíveis na formação de cidadãos e cidadãs conscientes e interventivos, capazes de reflectir e agir sobre estes desafios que o mundo, sempre em mudança, nos aporta. Recordo Stéphane Hessel4 (2011:26-27) quando apela à capacidade de nos indignarmos porque “neste mundo há coisas insuportáveis. Para o ver, é preciso olhar com atenção [porque] a pior das atitudes é a indiferença.” Viver sem ficar indiferente às injustiças começa por ser um desafio pessoal de indignação para depois se transformar num acto de resistência, muitas vezes global, capaz de mover montanhas. É por aí que

4 Hessel, Stephane (2011), Indignai-vos. Carnaxide. Editora Objectiva.

devemos ir. Só o caminho da solidariedade, da liberdade e da democracia poderá trazer paz e justiça ao mundo. Acredito nesses valores. Acredito que o ser humano voltará a cultuar a deusa Gaia que, suspensa na imensidão do Cosmos, espera poder voltar a desabrochar em toda a sua plenitude. Este é o tempo urgente de retomar aos rituais de respeito a esta mulher sagrada. O futuro pertence-lhe tal como lhe pertenceu o passado. Será ela, e somente ela, com o seu poder de gerar vida, a mensageira da Paz, da Fartura e do Amor de que tanto precisamos para… respirar!

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