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Jardins imperfeitos
from OsmusikéCadernos 1
by osmusike
Filomena Bento, JARDINS IMPERFEITOS, acrílico sobre tela 100x80 cm, 2020
Filomena Bento
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filenabsbento@gmail.com
Jardins imperfeitos
Quando o jardineiro acordou sentiu desejo de criar um jardim novo. E percebeu que tinha envelhecido.
Tentou desenhar, mas as pontas das linhas não se encontravam, os quadrados tornavam-se trapézios e os círculos continuavam-se em espirais. Pegou no seu desenho imperfeito, quase sem sentido, e avançou para o terreno abandonado onde já haviam nascido e morrido outros jardins talvez aí percebesse, talvez encontrasse no cheiro da terra a memória da criação.
O desenho foi passando para a terra –mas não era o plano imperfeito que traçara, porque as ideias encontravam pela frente a vontade do próprio espaço. Nasciam os canteiros, os caminhos, as fontes sem que nada fosse alinhado como ele imaginara;
não conseguia decidir as cores exatas para as flores nem as espécies de arbustos e de árvores, ou o percurso das águas. E assim plantou muitas flores, de muitas cores. Antigamente cresceriam belas e disciplinadas, ocupando cada espécie o seu lugar; mas agora disseminavam-se, misturadas, seguindo linhas imprevisíveis que davam origem a manchas novas, criando espaços que ultrapassavam a tirania do desenho.
O jardineiro via mal. As mãos tremiam-lhe. Deslumbrava-o o facto de, ao não controlar o seu corpo, a mente libertar formas das quais nunca tivera consciência que existissem.
Lá do alto, a rola que sobrevoava o jardim tinha uma perspetiva diferente, e o que ela via parecia-se muito com um desenho.
Agora o jardineiro estava completamente dentro do jardim, embrenhado nele, perdera a perspetiva. Valialhe a rola: - Mais verde à direita! Ali podes plantar uma alameda de magnólias. E deixa correr o ribeiro até ao grande lago!
Entusiasmava-se o jardineiro como se fosse jovem outra vez. Teve um sobressalto ao reparar como as ervas, que dantes eliminava, se vinham misturar com as flores. E viu como as ervas eram belas, robustas e fiéis. Quando ele morresse as flores e os canteiros iriam desaparecer se ninguém cuidasse delas, mas as ervas ocupariam o seu lugar e oferecer-lhe-iam abrigo para sempre.
E o jardineiro desejou morrer um dia à sombra dum carvalho.
Houve uma altura em que teve medo que a sua obra não viesse a ser entendida por ninguém, não sabia se aquilo era mesmo um jardim e se ele próprio era mesmo um jardineiro. A rola sobrevoou mais uma vez o grande espaço colorido e inacabado, mas não disse nada e retirou-se.
E o jardineiro ficou só.
Um dia entrou no labirinto, o que lhe despertou memórias do prazer de se perder. Há um imenso silêncio nos labirintos, mesmo quando estão cheios de gente. Aquele lugar havia-o ele construído muitos anos atrás – no entanto parecia não lhe pertencer, como se tivesse entrado, furtivo, em casa de outrem. Não sentia solidão, só um vago receio de se encontrar num outro mundo. Porque era de noite, ouvia o som de animais pequenos que não podia ver.
Luziam estrelas no céu e a rola dormia numa árvore. Não quis acordá-la.
“A simetria é para os preguiçosos” - disse um dia a rola, e passou a explicar: “Basta repetir, mas ao contrário, e o efeito é previsível. Mas tu entraste no labirinto e aí ninguém pode dizer o que está certo ou errado”. E o jardineiro sentiu alguma saudade do tempo em que desenhava círculos perfeitos que se interligavam nos pontos certos e descreviam fontes e canteiros; teve saudades das alamedas limpas e das sebes aparadas –mas apenas conseguia aperceber-se das forças contraditórias que o guiavam.
“Não estás perdido”, - disse-lhe a rola - “estás só a descobrir o caminho”.
Já era de manhã. Os altos muros vegetais alargavam-se, revelando novos espaços e passagens. O jardineiro renasceu com uma luz nova: “É esta a minha casa, pertenço aqui.” Flor a flor, cor a cor, espaço a espaço, som a som, foi criando novas harmonias. “E, no entanto, há muitos anos, já usei estas cores, plantei estas árvores, dei forma a estas sebes, planeei o cantar da água das fontes e o chilreio dos pássaros que aqui se instalariam; há muitos anos, sonhei o desdobrar das perspetivas ao caminhar nas alamedas.” Continuava ainda no labirinto e era como se as paredes se fechassem e os espaços se fossem estreitando. “Se eu desse a volta ao mundo”, - pensava o jardineiro - “viria sempre, por fim, ter aqui. Será por isso que nunca fui embora, nunca saí? Estarei fechado do lado de fora? No dia em que conhecer os limites do jardim, sei que irei morrer. Então é bom que este jardim não tenha muros.”
“Mas a rola pode voar, por isso sabe muitas coisas. O seu arrulhar guia-me os movimentos e o seu grasnido repentino faz-me criar rasgões nesta paisagem. A rola é a única que conhece por inteiro o meu desenho.”
O jardineiro escolhia arbustos novos: “Quero aquele verde claro, luminoso e alegre, para surgir por trás do escuro dos ciprestes - porque o sonho de todo o criador é transmitir o sopro da vida.” E não represou o pequeno ribeiro: “Corre ribeirinho, fresco e jovem, deixa que a tua água cante sobre as pedras! Os lagos não cantam”.
E ao vê-lo cansado, disse-lhe a rola: “Endireita as costas. Não transmitas ao jardim nem as dores nem o peso do teu corpo. Assim, ele emergirá leve dos sonhos e poderás fundir-te nele para sempre.” O jardineiro pensou que era fácil para a rola, que voava; mas tentou obedecer. E os seus passos não faziam ruído ao pisarem os caminhos saibrados; e as mãos trementes plantavam uma a uma cada árvore, lançavam à terra novas sementes, regavam os canteiros que haviam secado, construíam pequenos canais para dirigir a água. E disto só eram testemunhas o silêncio e a sombra dos ciprestes; porque a rola tinha saído dali - “vou tratar da minha vida” - dissera ela - “volto mais logo”.
E ele tinha-se sentido inseguro. “Quero aqui a força do vermelho. Um grito de alegria, não de guerra”. “Boa noite, rola! Vai dormir.” Ela não estava ali - o jardineiro falou só porque precisava de sentir que tudo estava no seu lugar. Ouviu grasnar ao longe. “Volta ao trabalho” - incitou a rola - “tudo no jardim deve acordar; tudo no jardim só existe quando o tocas e o fazes ser”. “Mas se ninguém vir o meu jardim, é como se ele não existisse, é como se eu não existisse.” “Não importa, continua. O jardim vai existir enquanto o construíres; depois... não sabemos: poderá ser submergido pelas marés ou simplesmente, de mansinho, ser ocupado pelas ervas.”
“Fica comigo” - pediu o jardineiro à rola. E nesse dia semeou as miosótis.
“Estou cansado”. E a rola sabia que sim. “Estou inseguro” - foi tudo o que o jardineiro disse ainda outra vez. A rola olhou para outro lado e não disse nada, porque sabia que ele tinha trabalhado muito.
E houve mais um dia. Faltava fazer tanto! O jardim rodopiava-lhe na mente, acendia-se e apagava-se conforme o trabalhava. “Sustenta-se do tempo e da minha alma!” - Ele parou mais uma vez para observar a sua obra, o pensamento procurando respostas para o que os olhos viam, o corpo absorvendo a essência dos sonhos.
Lá do alto, a rola era o freio e a dobadoura das ideias. Para que tudo batesse certo, para que os fios não se ensarilhassem, ela vigiava. Ao fim da tarde, o jardineiro viu que o que tinha feito era bom. E foi fazer o jantar.
No dia seguinte, caminhou até ao centro do jardim (havia muito tempo que já lá não ia – contornava o espaço, ordenava outros lugares). Descobriu, então, que as flores que outrora semeara explodiam em cores. E nessa manhã, e ao longo do dia, tudo que produziu fluía como uma dança há muito ensaiada em que tudo saía certo. “Boa noite, rola!”
Fevereiro/março de 2020