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Uma visão esclarecida e desalinhada

José Maria Gomes zemariagomes@gmail.com

Muitas vezes, ouvimos histórias de cidadãos anónimos que ficam perplexos com a sociedade de interesses e promíscua em que vivemos, infestada de gente sem valores, interesseira, parasita e corrupta. Histórias de gente humilde. Filhos da aldeia e do trabalho, com uma vida marcada pela aspereza e agruras do campo ou do monte, onde pouco mais havia que ocupação na vida agrícola ou pastorícia. Tudo servia para ocupar o tempo. Trabalhava-se para ganhar a vida a guardar gado, a exercer a pastorícia, a cuidar dos animais, a tirar areia do rio com cestos à cabeça ou a trabalhar nas obras... Histórias de crianças que se ocupavam dos trabalhos de casa, no campo, enquanto guardavam o gado e comiam no chão, com as mãos, pão de milho com pão de milho, feito em casa, pela mãe ou pela avó. Quantas vezes bebiam água do chão ou dos regatos sem qualquer tipo de incómodo ou pudor. Era assim que se ganhavam defesas...dizia-se! Crescia-se na aldeia, que pouco mais tinha que gente honesta e trabalhadora. Vivia-se em casas de pedra por onde, quantas vezes, o vento assobiava pelo aperto das fendas das pedras amontoadas umas em cima das outras, à luz da candeia ou do candeeiro a petróleo, sem água e sem conforto. Na aldeia era assim! Crescia-se rodeado de aldeias com casas sem conforto, sem saneamento básico, sem água, sem luz e sem estradas. Mas...ocupação não faltava! Muito trabalho duro, árduo e difícil. Crescia-se numa aldeia carregada de valores, no seio de famílias amigas e de saudável amizade, solidária, com gente de palavra e que se olhava nos olhos. Mas, nesta aldeia, também havia dualidade de comportamentos. Jovens que estudavam e outros que trabalhavam. Muitos que estudavam reclamavam de tudo. Até pelo facto de ficarem desempregados, depois do “canudo”, apesar das ajudas e apoios de várias instituições e da própria comunidade. Outros que trabalhavam e, sem grandes reclamações, seguiam a sua caminhada de contribuição para a produção nacional e prosperidade do país. Uns contribuíam para a sustentabilidade do estado, sem grandes contrapartidas. Outros recebiam sem nada produzir.

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Passamos, de repente, de um país em vias de desenvolvimento para uma nação próspera, onde afluíram camionetas carregadas de escudos e euros sem que muitos se dessem conta da nova realidade. Era assim! “Uns cresceram sem nada e outros com tudo”! Agora tudo parece diferente! O mesmo país com duas realidades mais vincadas! De um lado, a urbe grandiosa, desenvolvida, moderna, com tudo e onde se decide tudo a favor de uns sem respeito pelos outros. Numa capital de memórias com passado, com presente e com futuro. Do outro lado...o resto! Aquilo a que chamam província. Território do interior, com passado, mas sem presente e sem futuro. Um espaço - com gente que sente - cada vez mais esquecido, abandonado, despovoado e envelhecido. Sabe-se que nem todos conseguem ou querem, muitas vezes, intencionalmente, ver! Um país que se esqueceu dos valores, da sua história e das suas gentes, do seu território e do seu espaço, da dedicação e do empenho, do trabalho e da produção. Pelo contrário, valoriza-se um país de vícios, onde abundam doutores e comedores: fazem-se promessas para justificar e conseguir os lugares que se ocupam; abusa-se do apoio de gente de bem para se manterem no poder, no centro de decisão, para proveito próprio, dos seus e dos amigos mais chegados. Ao longo da caminhada da vida, muitos foram os que procuraram a vida associativa pela necessidade intrínseca de estar com o outro para realizar um bem comum. Hoje, pouco importa se as associações e/ou instituições, seja qual for a sua natureza, cumprem os ideais ou os objetivos para que foram criadas. Sente-se que existe uma apropriação indevida deste espaço de aprendizagem e de salutar convivialidade para, eventualmente, se iniciar uma apropriação indevida de bens públicos como, com relativa frequência, tem sido divulgado pela comunicação social e é do conhecimento de todos. Muitos parecem querer dizer: essa situação pouco importa, desde que os meus estejam lá e recebam os benefícios e as benesses devidas. Pouco importa se políticos tiveram um passado limpo de trabalho ou estudo, de experiência e responsabilidade ou se as autarquias e demais instituições públicas têm excedentes. O que interessa e o que importa é que os meus e os meus amigos estejam lá.

Pouco importa se vivemos num país sem justiça onde pedófilos são condenados e depois libertados, onde políticos são exaltados e juízes humilhados, onde assassinos são libertados depois de uns anos de bom comportamento, onde criminosos financeiros continuam a roubar, a escapar e o povo chamado a pagar, onde políticos desgovernam, enriquecem e emigram para viver à custa dos “amigos”. Hoje crescemos numa sociedade onde o povo vê, percebe, compreende, pede favores a toda a hora e momento, entra no esquema e no sistema e vai alimentando esta máquina demolidora que tando critica, que tanto questiona e que tanto chora! Crescemos numa sociedade de elevados níveis de exigência e sofisticação, mas, ao mesmo tempo, num país carente de regras, respostas e educação. Crescemos num país onde se pode bater nos professores, sem que estes possam estabelecer e implementar normas, regras e limites ou sequer levantar a voz. Crescemos num país onde todos entram nas universidades para cumprir estatísticas, onde os alunos mandam nos professores e onde, afinal, ser doutor passou a ser uma coisa normal e banal. Crescemos num país a perder a alma e a sua gente que, apesar de rico em clima e solo fértil, abandonou a pecuária, a agricultura, a pesca, a sua história e as suas tradições, que abandonou a sua riqueza e a sua produção endógena e que desvalorizou as suas potencialidades locais e regionais. Crescemos num país onde se valorizam sofisticados serviços, o trabalho dos computadores e dos doutores, onde se pisa quem produz e se destaca homens de gravata. Mais de oitocentos anos de história merecem um país com gente diferente! Com motivação, com alegria e com alma. Um país capaz de participar em novos ideais para continuar a usufruir e disfrutar do seu solo fértil, do seu ar e do seu mar, da sua terra, dos seus montes e do seu sol para que o futuro dos seus continue a prosperar, a sorrir e a brilhar!

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