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Monologando

Elvira Oliveira

aelvira.oliveira00@gmail.com

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CHIQUINHO

Recebi-te das mãos avaras pela pobreza, e pouco dada a ternuras, pela dureza da vida, da minha mãe. Fiquei em êxtase, como deves calcular. Eras rosadinho, gorducho e olhavas para mim com uns olhos que pareciam dois girassóis em dia de sol. Foi amor à primeira vista. A minha mãe fez-te um fato de chita em tons de vermelho, com mangas e pernas curtas, lembras-te? Ficaste um verdadeiro encanto! Assim, podia ver-te as perninhas roliças, os braços robustos e em dias frios embrulhar-te na minha própria camisola. E quando te metia na minha cama nos dias em que eu ficava doente? Penso que adoravas, pois o meu calor tornava-se o teu calor. Nunca me dizias nada, mas ficaste a ser o meu terno companheiro de todas as horas, o meu confidente, o irmão, que não tinha e desejava com fervor. Com a tua vinda, meu querido Chiquinho, era assim que te chamava tal como ouvia chamar ao meu pai, a solidão sentida na presença ausente da minha mãe, embrenhada no trabalho, deixou de ter importância. Embalei-te horas a fio, aqueci a tua carinha com beijos, dei-te de comer, pus-te a dormir. De vez em quando, se fazias asneiras, aquelas que eu inventava no meu maravilhoso infantil, também te castigava como a minha mãe me fazia e dava-te umas boas palmadas. Depois voltava a acariciar-te, o meu carinho por ti, querido amiguinho, era muito maior do que as zangas que cresciam entre nós… Durante semanas, meses, fizeste de mim a menina mais feliz do mundo! Havia só uma coisa que estava a falhar nos meus desvelos para contigo: começaste a ficar sujo. Eu queria muito dar-te um banhinho. Mas a minha mãe não deixava que eu brincasse com água, por causa da garganta, lembras-te? e da bronquite. Certo dia, porém, já não sei precisar quando, a minha tia apareceu lá em casa com um alguidar. Sim, um alguidar. Não uma bacia. Era um alguidarzinho pequeno, de barro vermelho, vidrado por dentro em cor amarela: “para fazeres de conta que dás banho ao Chiquinho!” Assim fiz, fui fazendo de conta que o teu banho acontecia. Tu é que limpo não ficavas e parecias cada vez mais sujo.

Numa certa manhã, a minha mãe deixou-me ir brincar para o quintal. Peguei em ti e no alguidarzinho, os meus bens mais preciosos, e fui. A manhã estava linda, o sol radioso! E a ideia subiu em mim como quem sobe uma escada, primeiro depressa, muito depressa, depois mais devagar, mas subiu, subiu, subiu... Cansada de te dar tanto banho seco e, como a minha mãe não estava por perto, deslizei até junto da fonte que havia num pequeno nicho lá no quintal e enchi o alguidar. - É agora - dizia-te eu baixinho - é agora que vais ficar limpinho outra vez. Despi-te com muito jeitinho e metite na água, enquanto continuava afalar-te: - Não tenhas medo, a água está fria, mas com este solzinho quentinho, vais aquecer depressa, vais ver. Esfreguei-te os pés e as pernas, eram a parte mais suja, bem como os dedinhos das mãos, as bochechinhas, as orelhas e o nariz. O resto do corpo não estava mal, o fatinho protegia. E aí aconteceu: começaste a amolecer, eu não conseguia manter-te de pé. Peguei em ti e corri direita a casa. “Meteste-o em água!” - ralhou a minha mãe com rispidez. Eu, envergonhada, a chorar, acenei afirmativamente com a cabeça. Tu, meu querido Chiquinho, eras de papelão. Eu não sabia e ninguém me tinha dito que o papelão não se podia molhar. Chorei. Muito. Não pelo castigo que a minha mãe me impôs, por ter-lhe desobedecido, mas porque a dor da tua perda era lancinante. Ainda hoje, querido Chiquinho, essa mágoa permanece na minha lembrança. Mais tarde tive outros bonecos e bonecas, de plástico, que abriam e fechavam os olhos, mas nenhum até hoje ocupou o teu lugar no meu coração. Enquanto criança, ajudaste-me a crescer, ensinaste-me a não desobedecer e, de forma genial, acabaste por preparar o meu futuro como mulher e mãe que hoje sou. Obrigada, Chiquinho!

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