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E foi assim que tudo começou Musiké: a experiência musical na arte de ensinar

E FOI ASSIM QUE COMEÇOU Musiké: a experiência musical na arte de ensinar

Óscar Ribeiro

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oscar.ribeiro@colcheia.pt

E foi assim que começou. Num tempo remoto que a história tratará de lembrar ou esquecer, esta ação de formação deu forma aos primeiros passos daquilo que hoje sobrevive. Vale o que vale e obviamente valerá de modo diferente para os que sofreram linearmente daquela febre estranha que nesses tempos teimou, em juntar numa mistura explosiva, educadores e professores na mesma sala. É que o ensino nem sempre foi o que é hoje e os agrupamentos ainda não se viam sequer no horizonte. Quantos estes se foram formando e afirmando, ainda como verticais ou horizontais, já “Osmusiké” laboravam arduamente em todas as direções e produziam conteúdos. Sem pejo algum digo-vos que era tudo gente maluca que parecia padecer de oscarite aguda impedindo-os de dizer “não” a certos devaneios. Estou-lhes grato! Na verdade, também pouco adiantava hesitarem ou tentarem negar porque a vontade de construção coletiva era tanta e sem filtros que o resultado final de qualquer prestação “artística” do grupo era digno de nota. Nunca houve enganos, aliás. Desenganem-se os leitores… nunca houve enganos que não fossem prontamente assumidos e revistos, ou repetidos em direto e a cores para que o público se divertisse… e nos ouvisse. E assim foi, quase sempre. E quando não ouviam à primeira… soltava-se um “Larai lai, lai, Lara la lai…” coletivo e do palco se saía e entrava repetidamente… e assim se desmontava o boneco do certinho e direitinho que nunca quisemos ser. Por vezes deu jeito até para completar o tempo de atuação que desta forma iniciava quando se entrava na sala e terminava apenas no último suspiro sonoro de algum elemento deixado para trás. Rapidamente começámos a excedê-lo, mas nunca fomos expulsos do palco. Era para o que desse. Estou crente que a comunidade ouvinte de então passou a ver a classe docente com outra “classe”. Pura diversão e processo criativo que brotava da partilha de experiências em contexto de sala de aula e da mais clara exploração das fragilidades musicais de cada um. Tanto que faltava a todos e tanto que sempre se fez! O primeiro contacto de muitos com instrumentos reais fazia com que um simples xilofone fosse desmembrado ao limite das lâminas necessárias para acompanhamento de um qualquer tema a três ou quatro notas. Paulatinamente lá retornavam os componentes não usados ao seu lugar de origem, ainda que

muitas vezes etiquetados com “não usar”, não fosse a emoção atraiçoar a performance. As guitarras sempre tiveram cordas a mais para alguns, mas a reunião terminava para o grande grupo e lá ficavam as “guitarristas” o tempo extra bastante até fixarem mais dois ou três acordes antes de correr para casa a tempo (ou não) de jantar. As flautas de bisel voltavam a assobiar teimosamente desafinadas ao ponto de algumas serem brindadas com fita cola nos orifícios que não podiam de modo algum ficar a descoberto. Os primeiros registos de grupo foram captados numa sala da escola da Quintã em formato cassete e também em gravador de CDs portátil com recurso a dois microfones over head manhosos. Foi tal o entusiasmo que depressa partimos para uma gravação “a sério” e em estúdio, deixando mesmo sem cabelo os técnicos de então e cujo resultado naif ficou eternizado em quinhentos CDs que rapidamente se esfumaram entre ofertas, troca de galhardetes e calendários das coletividades que nos acolhiam. Alguns foram trocados por notas pequenas, na verdade. Na segunda (boa) tentativa de colocar em cd o repertório original que se ia acumulando já o “Cantar Guimarães” se reproduziu em quatro vezes mais do que o “Musiké”, só na sua primeira edição. Creio que desapareceram também à troca por medalhas, bandeiras e provavelmente autocolantes. Consta que alguns foram também trocados por notas maiores. A segunda edição havia de ser em registo “ouro” sobre o negro numa alusão clara à sublime arte de ensinar com alegria e nobreza. Ou por outra razão qualquer que não vem agora ao caso. Certo é que desapareceram todos também. Era, pois, uma praga quase “pandémica” que habitava nessa tropa toda. Uns ávidos por fazer e outros ávidos por ouvir. A multidão sorria entusiasticamente e isso deixava-nos felizes… Mesmo que por vezes ouvíssemos “vocês são demais” ou “só mesmo vocês para nos provocarem isto” e ficasse a dúvida acerca dos contornos do elogio. Enfim… vicissitudes de ter muita gente bonita exposta no mesmo palco, com dotes invejáveis e com cachets avultados. Quero acreditar que era mesmo por isso. Certo é que havia muitos seguidores mesmo sem redes sociais… e até alguns “haters” que religiosamente nos fulminavam com seus olhares e rezavam baixinho, mas convictos para que nos enganássemos ou houvesse um corte de energia ou feedback. Por isso devíamos ser bons. Mais e mais fiéis se foram juntando e quase todos iam ficando “percorrendo as planícies e os montes”. Os palcos tiveram de passar a ser maiores e os repastos de agradecimento também. E por aí adiante. Nunca chegámos a ter uma “Ramona” transportadora, mas todos chegavam sempre ao lugar, mesmo que com atraso. Atrasava-se o regresso para compensar.

Houve quem ficasse rico e passasse a festejar em cima das colunas; quem tivesse vergonha e corasse em todas a atuações; quem tivesse que fazer contabilidade (vulgo escrita em dia) para poder comparecer a todos os encontros… houve também quem perdesse pessoas e bens e se encontrasse no grupo (e este é talvez um dos parêntesis mais importantes e esclarecedores do que foi tudo isto). Era uma tremenda responsabilidade brincar a cantar com a vida de todos nós. Para o bem e para quase tudo era uma família. Foi o primeiro palco para muitos. Fizeram-se descobertas de talentos, geriam-se egos e feitios… e fizeram-se amigos. Amigos loucos que se esqueciam das poses que os seus “cargos” educativos obrigavam… e naquelas curtíssimas/longas horas se divertiam como catraios. Seria redundante enumerar os tantos episódios dignos de nota, mas tremendamente injusto, até para os vindouros, não recordar alguns em jeito de confissão. Sim, fomos todos culpados. Pronto, está dito. Oh tempos áureos de tarefas hercúleas como aquelas incursões ruas fora a brindar transeuntes e taxistas com o espírito de natal e reis, simplesmente porque apetecia. Quantas idas virtuais ao outlet e três pancadas da praxe (vulgo bombadas) seguidas do aviso da pandeireta para iniciar… e nada. A enésima vez que se cantarolava “aquela” voz que para alguns era sempre (supostamente) nova a cada ensaio. Valiam os suplementos de injeções virtuais de motivação que faziam com que na "hora da verdade” a verdade fosse sempre a nossa e corresse tudo de feição. Fazia lembrar o espírito verbalizado mais tarde por uma outra seleção quando numa hora crucial o seu capitão indicava o penálti a um companheiro: “vai lá… tu bates bem. Se correr mal que…”. Na verdade, parecia que nunca “batíamos bem” … e era tão bom! Foi um grupo sem precedentes. Na ânsia de continuar a crescer e construir como sempre fez, deixou cair aqui e ali alguns dos seus. Mas também acolheu imensos outros, ligou o GPS para novos caminhos e vingou. Faz parte. E a maioridade tem também coisas fantásticas… sempre. E assim me calo que já falei (escrevi) demais. Pelo menos era o que me diziam em palco. Um caloroso abraço e “festas, festas muitas festas e um feliz ano novo” para todo esse povo.

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