O Círculo vol. 4

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Editorial Na sua quarta edição nossa revista vem enfrentando dificuldades. O número de colaboradores vem diminuindo e chegou a apenas 5.

O Círculo nasceu com o intuito de ser um incentivo e uma motivação para que os colaboradores

pudessem divulgar seus interesses, conhecimentos e opiniões. Que eles pudessem praticar a arte da argumentação e da escrita. Que pudessem buscar conhecer mais sobre assuntos que lhe interessam e que acreditam ser pertinentes. Que os colaboradores pudessem ler os textos uns dos outros, construindo assim uma comunidade de trocas e aprendizado. Escrever para o círculo deveria ser algo prazeroso, um projeto pessoal, que o colaborador faria porque ele acredita no ideal da revista.

Infelizmente, a vida entra no caminho. Todos temos ocupações e obrigações. Prioridades. Prazos. Precisamos cumprir e entregar. Produzir. É difícil que o tempo que sobre seja para esquentar a cabeça tentando organizar as ideias para criar um texto, isso é trabalhoso, e o que menos queremos é trabalho.

Esperamos que para o mês de março nossos colaboradores se lembrem que O Círculo não é somente mais uma obrigação, mas um projeto seu, em que você acredita, que é prazeroso e que vale a pena. Contamos com vocês.

Se o nosso projeto mexeu com você em algum sentido, deixe-nos a sua opinião, venha participar conosco. Para entrar em contato, envie um e-mail para: textos.ocirculo@gmail.com. Para enviar dúvidas, opiniões, sugestões, etc, com a possibilidade de se manter anônimo, utilize o endereço: www.mepergunte.com/ocirculo. Lá iremos manter um mural com os comentários enviados e nossas respostas.

Saudações,

O Círculo.

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Índice

ÍNDICE

04. Como queríamos demonstrar: Os sábios do rei (Sol) 06. Compondo um sentido: Acordes (Sol) 21. O método científico: Djalma e suas empregadinhas (W. N. Centauro)

28. O poder da ficção (Wild Child) 40. O Manifesto comentado (Wild Child)

47. Uma história possível (Wild Child) 52. Um evento explicativo da família explicita no dia a dia dessa grande chamada margem (Vitória) 53. O matador de dragões (Rorschach)

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- Sol ~

~Desafio DA EDICAO , 2 Os N prisioneiros podem estabelecer um mecanismo de contagem utilizando o interruptor contido na sala da seguinte maneira: o primeiro prisioneiro que for convocado a ir pra sala será o responsável pela contagem e deixará o interruptor em um determinado estado, digamos ligado. Quando um prisioneiro diferente chegar na sala, caso o interruptor esteja ligado, ele deverá mudar o interruptor para desligado, devendo ficar nesta posição até que o primeiro prisioneiro retorne a sala e constate que o interruptor se encontra desligado, ligando-o novamente. Dessa forma, cada prisioneiro que não seja o primeiro só deve desligar o interruptor caso ele esteja ligado e nunca o tenha desligado antes. De outra forma, o prisioneiro não deve alterar o estado do interruptor para não interferir na contagem. O mesmo ocorre com o primeiro prisioneiro, que não deve alterar o estado do interruptor caso este se encontre ligado. Assim, cada vez que o primeiro prisioneiro ligar o interruptor novamente ele estará garantindo que um prisioneiro diferente passou pela sala, de maneira que ao repetir este processo N vezes, será possível concluir que todos os prisioneiros passaram ao menos uma vez pela sala.

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´ OS SABIOS DO REI Um poderoso Rei teve a ideia de divulgar o conhecimento de seu povo para o mundo. Para

promover este evento, ele convocou os N sábios mais aclamados e reconhecidos de seu reino. Contudo, para ter certeza que não passaria vergonha e confirmar a sabedoria do grupo de sábios, o Rei decidiu testá-los: os sábios seriam colocados em uma fila, em posições aleatórias, e então seria dado a cada um deles um chapéu preto ou branco, também de forma aleatória, e de maneira que cada sábio desconheça a cor do próprio chapéu. Após esta organização, O Rei irá questionar a cada um dos sábios qual a cor de seu próprio chapéu, começando do último da fila e seguindo um por um até o primeiro. Caso a resposta esteja errada, o Rei fará com que todos os demais sábios tenham conhecimento do erro do companheiro através do som de sua lâmina,

característico do adiantamento do inevitável. Mas para deixar tudo mais justo, o bondoso Rei permitiu que todos os sábios pensassem e discutissem antes do início do teste, decidindo qual a melhor maneira de passar por ele. Após discutirem, os N sábios chegaram em uma solução otimizada para o problema, a qual garantia que N-1 sábios certamente iriam viver e apenas um deles teria 50% de chance de ser agraciado pelo golpe da foice do rei. Você consegue propor uma solução com esta mesma otimização?

OBS: Uma vez na fila, nenhum dos sábios podem se comunicar entre eles (eles só podem responder ‘branco’ ou ‘preto’).

OBS1: Nenhum sábio conhece a cor do próprio chapéu, mas pode ver a cor do chapéu de todos os demais sábios que se encontram em sua frente na fila.

OBS2: Se um sábio errar ou acertar a resposta, todos os demais sábios ficarão imediatamente

cientes disso.

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Compondo

um Sentido

- Sol

No último texto desta coluna, apresentei o conceito de intervalo entre duas notas musicais, bem como a classificação de todos os tipos possíveis. Como os intervalos estão diretamente

vinculados com a nossa percepção sonora, eles serão a nossa ferramenta de identificação de padrões na mistura de sons produzidos por diversas notas. Neste texto, apresento a classificação da maior parte dos conjuntos de notas tradicionalmente usados na música, os chamados acordes, onde sua definição e interpretação será desenvolvida com base nas ideias de intervalos. Caso você ainda não esteja familiarizado com o assunto, ou sinta muitas dificuldades com este texto, sugiro que releia o artigo da coluna anterior, fazendo os exercícios propostos e treinando a teoria em seu instrumento musical.

1. As Cifras Antes de explicar como se dá a formação dos acordes, vamos fazer este interlúdio para apresentar a estrutura básica da notação de cifras. A cifra é uma notação musical geralmente utilizada para representar acordes. Este sistema consiste em identificar os acordes das notas da escala natural com as letras de A a G, em sequência, começando pela nota Lá, exatamente como mostrado nesta figura:

Para representar os acidentes nas cifras, vamos utilizar os símbolos ‘#” para sustenido e ‘b’ para

bemol, exatamente como nos textos anteriores dessa coluna. As cifras carregam uma informação menos precisa do que àquela contida em uma partitura, pois um acorde é caracterizado apenas por um conjunto de notas específico, de maneira que sua execução pode assumir diversas interpretações diferentes. Na figura a seguir, apresento algumas formas do acorde de A (Lá), que é constituído pelas notas Lá, Dó# e Mi. Não se preocupe agora em reconhecer que essas notas são aquelas compõem o acorde de Lá, pois em breve irei definir todos estes acordes à partir do conceito de intervalos.

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Em alguns casos, ainda que a instrução em uma partitura indique que as notas não devem ser tocadas simultaneamente, pode ser útil reconhecê-las como pertencentes a um determinado acorde. Pensar na música em termos de acordes é uma boa maneira de se encontrar um padrão na melodia e assim facilitar o entendimento lógico da mesma. Logo, algumas músicas podem ser descritas através de cifras, dependendo apenas de como o leitor irá interpretar esta

informação em seu instrumento. Mas é importante ressaltar que as cifras não trazem nenhuma informação a respeito do caráter rítmico da música, sendo portanto impossível transcrever exatamente uma música apenas através de cifras. De qualquer maneira, as cifras vão adicionar grandes facilidades em muitos casos, e será uma excelente notação para estudarmos os acordes que trataremos neste texto. A ilustração a seguir mostra alguns exemplos de conjuntos de notas que podem ser totalmente identificados por um acorde.

Ainda serão necessários alguns outros símbolos para fechar a notação de cifras, mas deixarei para apresentá-los à medida que for necessário. Vamos agora para o que realmente interessa.

2. Acordes Tríades

Como já defini anteriormente, um acorde corresponde a um conjunto de notas, que podem ser tocadas simultaneamente. O objetivo deste texto corresponde a classificar todos (ou mais sinceramente, acredito eu, que a maior parte) os tipos de acordes e criar uma estrutura que permita a identificação de qualquer agrupamento de notas. 7


Para isso, é pertinente definir um determinado grupo de acordes que servirá como base para definir os demais, ou em outras palavras, precisamos definir os acordes com menor número de notas possível. Como já mencionado no texto anterior, grande parte de nossa experiência sensorial com a música provém da simetria contida nos intervalos entre duas notas. Uma nota tocada isoladamente provavelmente não constitui nada muito expressivo para que possamos manifestar uma opinião a respeito daquele som, mas um nota seguida de outra certamente! É o caso já mencionado anteriormente dos intervalos maiores e menores, no qual o primeiro geralmente transmite a sensação de ser mais alegre, forte enquanto o segundo costuma promover um ar mais melancólico, triste, sombrio. Dessa forma, é razoável pensar que um acorde para ser significativamente expressivo, deve ser construído para possuir no mínimo dois intervalos entre as notas, o que equivale a possuir um mínimo de três notas. Chamaremos todos os acordes que possuem somente três notas de tríades.

Para montarmos nossos acordes, precisamos de uma espécie de regra que gere acordes que consideramos em média harmoniosos, isto é, cujos intervalos combinados produzam um som aceitável para nossos ouvidos. Afinal, existe uma diferença entre um som desagradável (no sentido de proporcionar uma angústia ou um sentimento ruim) com um som desesperador (como um arranhar de unhas em um quadro negro). De qualquer forma, é importante que os intervalos se combinem para produzir uma determinada sensação. É bem difícil transmitir por texto todas essas impressões subjetivas, portanto ressalto mais uma vez que daqui em diante é altamente recomendável que a leitura dos textos desta coluna sejam acompanhadas de algum instrumento musical, de maneira que você possa sempre ouvir as sensações que descrevo, e tentar por si só identificar os padrões de acordo com a sua própria experiência sensorial. De qualquer forma, vou tentar deixar a nossa regra para formação dos acordes tríades o mais

natural possível. Primeiramente precisamos de uma nota que identifique o acorde, ou que seja a nota mais forte do acorde. Esta nota deverá ser a mais grave do conjunto (há exceções, mas trataremos delas no futuro) e recebe o nome de tônica. Agora devemos pensar em quais intervalos utilizar para espaçar as demais notas que compõem o acorde da nota tônica. Pensando na escala natural, o primeiro intervalo possível é o de segunda. Mas duas notas de frequências muito próximas não costumam soar de maneira muito agradável, devido a ocorrência de um fenômeno sonoro denominado batimento, ou ainda pelo fato destas notas combinadas produzirem o que chamamos de ‘interferência parcialmente destrutiva’, de

maneira que as notas não parecem ‘combinar’.

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O próximo intervalo possível é o de terça, e com este não há nada de errado: ele se encontra um pouco distante da tônica e produz um som que realmente parece combinar. Vamos portanto definir que a nossa segunda nota se encontra a um intervalo de terça da tônica. Podemos agora sugerir como consequência, que uma boa escolha para a terceira nota que compõe um acorde tríade corresponde à nota que se encontra a outro intervalo de terça da segunda nota do acorde (ou um intervalo de quinta com a tônica). Essa escolha parece razoável porque é a única maneira de garantir que as notas do acorde se encontrem espaçadas por intervalos do mesmo tipo (intervalos de terça). Qualquer outra escolha acarretaria em colocar a nota ou muito

próxima da segunda nota do acorde (causando um efeito de intervalo de segunda), ou muito próxima da tônica, uma oitava a frente. De qualquer forma, é necessário ter em mente que isso é apenas uma definição, e só estou tentando apresentar as motivações destas convenções.

Concluímos portanto que os acordes tríades serão aqueles compostos por dois intervalos de terça sucessivos, ou pelas notas tônica, terça e quinta. Como queremos uma definição que possa ser aplicada na escala cromática, devemos nos lembrar que os intervalos de terça são divididos em dois tipos, os intervalos de terça maior e os de terça menor. Assim, compondo estes dois

intervalos de todas as formas possíveis, teremos todos os quatro tipos de acordes tríades tradicionalmente conhecidos: maiores, menores, aumentados e diminutos. Vou apresentar cada um deles separadamente e dar alguns exemplos.

i. Tríade Maior

Estes acordes são gerados a partir da combinação de intervalos: terça maior + terça menor. Em relação a nota tônica, as notas que compõe este acorde são tônica, terça maior e quinta justa. A

figura a seguir exemplifica o processo com o acorde de Dó Maior, que é constituído pelas notas Dó (tônica do acorde), Mi (terça maior em relação a nota Dó) e Sol (quinta justa em relação ao Dó e terça menor em relação a nota Mi).

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Os acordes maiores são cifrados indicando apenas a letra da nota tônica correspondente. Dessa forma, o acorde de Dó Maior é cifrado como ‘C’ . Você pode agora voltar nas primeiras páginas do texto e conferir os acordes que escrevi enquanto explicava a notação de cifras, que são todos maiores. A seguir, apresento mais um exemplo agora com o acorde de A# (Lá sustenido maior).

ii. Tríade Menor A Tríade Menor é formada pela composição terça menor + terça maior. Note que a soma destes dois intervalos continua resultando em uma quinta justa em relação a tônica, contudo temos agora uma alteração na segunda nota do acorde, que passa agora a ser uma terça menor em relação a tônica. Os acordes menores são cifrados utilizando-se a letra ‘m’ logo seguida da letra maiúscula que indica a tônica do acorde. A figura a seguir ilustramos o acorde de Cm (Dó Menor), e com Bm (Si menor).

iii. Tríade Aumentada

Esta tríade é obtida a partir da combinação terça maior + terça maior. A soma de dois intervalos maiores resulta em um acorde com tônica, terça maior e quinta aumentada. Ciframos este acorde adicionando a notação ‘5+’ na cifra do acorde maior, para indicar que a quinta nota deste

acorde foi aumentada de meio tom. Como exemplos, veja a composição dos acordes C5+ e Eb5+:

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O símbolo que acompanha a nota Lá corresponde ao dobrado sustenido, que é o mesmo que o sustenido de uma nota sustenida. Como a quinta justa de Eb corresponde a nota Lá#, para se obter a quinta aumentada de Eb devemos aumentar a nota Lá# de um semitom, isto é Lá# sustenido. Para fins práticos, a frequência desta nota deve coincidir com a da nota Si. Outra coisa que é interessante chamar atenção aqui é que o intervalo de quinta aumentada é equivalente a um intervalo de sexta menor. Contudo, é conveniente pensarmos nos acordes em termos dos intervalos de terça e quinta, pois é a partir destes que foram

definidos. Dessa forma, as diferenças entre os acordes tríades serão analisadas sempre a partir das diferenças entre as terças e quintas em relação a tônica.

iv. Tríade menor diminuta Por fim, a última possibilidade consiste na combinação de intervalos terça menor + terça menor, cujas notas são tônica, terça menor e quinta diminuta. É por esse motivo, que este acorde é chamado de tríade menor diminuta. Esse acorde é cifrado colocando o símbolo ‘5-’ logo após

que a cifra do acorde menor considerado, que irá indicar que a quinta justa de um determinado acorde sofreu uma diminuição de um semitom. Veja os exemplos de Cm5- e Gm5-

Estes são os tipos fundamentais que usaremos para definir os demais acordes. Lembre-se que as cifras são somente uma notação e muitas vezes pode ocorrer de dois acordes cifrados de maneira distinta se referirem a um mesmo conjunto de notas (a essa altura, a ocorrência da mesma coisa ser apresentada com nomes diferentes já não deve incomodar mais). Vejamos um exemplo de alguns acordes ‘não apresentado’, como um acorde menor com quinta aumentada, digamos Cm5+. Observe a figura abaixo: 11


Notamos que este acorde possui as notas Dó, Mi b e Sol #. Mas se analisarmos os intervalos relativos entre as notas, uma terça aumentada é equivalente a uma quarta justa. Da mesma forma que uma quinta aumentada corresponde a uma sexta menor. Assim, se invertermos estes intervalos em relação a nota Sol#, obteremos respectivamente uma quinta justa e uma terça maior, que são os intervalos contidos no acorde de G#.

No entanto, esses acordes são diferentes no sentido de que a nota mais grave (tônica), que é muito característica, é diferente em cada um dos casos. Dessa forma, as nomenclaturas podem servir a propósitos diferentes: podemos escolher cifrar o acorde como Cm5+ caso este acorde se encontre em uma progressão de outros acordes todos com baixo (nota mais grave) na nota Dó, ou com baixo caminhando entre as notas. O mesmo é válido para a forma G#.

Agora que já conhecemos bem os acordes tríades, podemos estudar os demais acordes. No fundo o procedimento será o mesmo, mas vou abrir um novo título somente para deixar o texto mais organizado.

2. Acordes Tétrades Podemos agora classificar os acordes de quatro notas, usando os acordes tríades como base. Se

anteriormente definimos os intervalos tríades como sendo um acorde gerado por três notas espaçadas por dois intervalos de terça, nada mais natural de que definirmos um acorde tétrade como sendo um conjunto de quatro notas espaçadas por intervalos de terça. Note que se adicionarmos um intervalo de terça a um intervalo de quinta, obteremos um intervalo de sétima. Assim, um acorde tétrade possui quatro notas: tônica, terça, quinta e sétima. Exatamente como antes, podemos adicionar tanto uma sétima menor quanto uma sétima maior aos nossos acordes tríades. Dessa forma, cada um dos 4 tipos de acordes anterior (maior, menor, aumentado e diminuto), irão gerar mais dois tipos de acordes tétrades. Vejamos os

exemplos dos acordes C7 (Dó com sétima) e C7M (Dó com sétima maior):

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Estes acordes tétrades foram gerados a partir do já conhecido acorde de C, que é constituído pelas notas Dó, Mi e Sol, separadas por um intervalo de terça maior e por outro de terça menor. Os acordes tétrades foram obtidos adicionando-se mais um intervalo de terça à partir da nota Sol, adicionando as notas Si b e Si, as vão gerar respectivamente intervalos de sétima menor e sétima maior com a fundamental Dó, produzindo dois acordes tétrades distintos.

Para cifrar os acordes tétrades, basta indicar na cifra do acorde tríade o número ‘7’ quando

quiser se referir a um acorde com sétima menor e ‘7M’ quando se tratar de um acorde com sétima maior. A notação para cifrar tétrades é uma exceção, pois geralmente costuma-se adicionar símbolos para especificar um intervalo menor, e não um maior (como exemplo, o acorde tríade de Ré maior é cifrado como ‘D’ enquanto o Ré menor é cifrado como ‘Dm’). De qualquer forma, isso só ocorre quando adicionamos intervalos de sétima aos acordes.

Agora podemos compor qualquer um dos acordes tríades anteriores com uma sétima menor ou maior. Não será necessário apresentar todos os tipos, pois a partir de agora, a nomenclatura dos

acordes será intuitiva. No caso da adição de uma sétima em um acorde aumentado ou diminuto, vamos cifrar indicando a alteração na quinta em parênteses, no fim da cifra. Vejamos os exemplos dos acordes F#m7 (Fá sustenido menor com sétima) e D7M(5+) (Ré com sétima maior e quinta aumentada) e Bm7M(5-) (Si menor com sétima maior e quinta diminuta):

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É curioso notar que no acorde D7M(5+), o intervalo entre a quinta aumentada e a sétima maior corresponde a uma terça menor, isto é, mesmo o último intervalo sendo menor ele produz um acorde tétrade com sétima maior. Isso ocorre porque alteramos a quinta justa do acorde tradicional em um semitom, fazendo com que o intervalo que originalmente era de terça maior passe a ser um intervalo de terça menor. A maneira mais simples de construir esses acordes é pensarmos na composição tríade com a quinta justa, adicionar e avaliar a sétima e por fim alterar a quinta (aumentada ou diminuta). Por esse mesmo motivo a cifra destes acordes indica primeiro o acréscimo da sétima e só então a alteração na quinta.

Para exemplificar melhor esta questão, observamos o que ocorre com o acorde tétrade Bm7M(5) (Si menor com sétima maior e quinta diminuta):

Devido ao fato da quinta justa do acorde Bm7M ter sofrido a diminuição de um semitom no acorde de Bm7M(5-), temos que o intervalo entre a quinta e a sétima neste último será um semitom maior do que no primeiro, gerando uma terça aumentada. Mesmo com os intervalos entre a quinta e a sétima sendo distintos, ambos os acordes são classificados como possuindo sétima maior, pois a última nota, em ambos os casos, faz um intervalo de sétima maior com a fundamental. 14


Com os acordes tríades e tétrades como base, podemos agora identificar todos os acordes que as doze notas musicais podem nos oferecer em seus mais variados intervalos. Vamos fechar o texto falando sobre alguns acordes especiais, e que não necessariamente possuem alguma simetria bem definida em relação aos intervalos que o compõe.

3. Acordes com notas acrescentadas e Acordes Especiais Em suas composições criativas, você provavelmente não vai gostar de estar preso apenas à estrutura dos acordes tríades e tétrades. Muitos desses acordes vão soar mais condizentes em determinada composição quando acrescentamos alguma nota que não estava no roteiro, ou até

mesmo tirar uma que já estava. Dessa forma, você pode reconhecer qualquer acorde como um tríade ou tétrade com notas adicionadas. Para cifrar um acorde assim, basta indicar no final da cifra do acorde tríade ou tétrade original, o intervalo que a nota adicionada faz com a tônica do acorde (exatamente como nos casos de acordes tétrades com quinta aumentada ou diminuta). Caso o acorde possua mais de quatro notas, deve-se especificar as notas adicionadas dentro de um parênteses, separadas por ‘/’. Os intervalos menores ou diminutos devem ser indicados com o sinal ‘-’, enquanto os aumentados com ‘+’. Vejamos o exemplo do acorde C9- (Dó com nona menor):

Este acorde corresponde ao acorde tríade C com adição da nona menor de Dó. Como a nona é a oitava da segunda, temos que a nona de Dó corresponde a nota Ré, uma oitava acima. Naturalmente as notas Dó e Ré possuem frequências próximas quando se encontram dentro de uma mesma oitava, produzindo um som ‘desagradável’ quando tocadas juntas. Uma maneira de resolver este problema é enviar a nota Ré uma oitava adiante, impedindo o acorde de sofrer batimentos. A nona menor também não adiciona nenhuma simetria específica no padrão de intervalos do acorde, gerando uma quinta diminuta com a nota Sol. Contudo, me atrevo especular que a ‘boa sonoridade’ deste acorde (novamente insisto que é importante ouvir os acordes para melhor a compreensão de tudo que está sendo dito) se deve ao fato de que as notas Dó e Sol e Sol e Ré b compõe uma espécie de acorde tríade onde as notas estão separadas 15


por intervalos de quinta. Desta forma, a composição de uma quinta justa com uma quinta diminuta seria uma espécie de acorde maior para intervalos de quinta. Apesar desta hipótese parecer plausível, não tenho certeza sobre a questão. De qualquer forma, pense sobre a questão e me conte caso chegue em alguma conclusão a respeito. Devaneios a parte, vamos ver mais um exemplo de um acorde com nota acrescentada, o G7(9/13-):

Este é mais um acorde com notas acrescentadas, desta vez gerado a partir de um acorde tétrade com sétima menor, no qual se adicionou as notas Lá (nona maior em relação ao Sol) e Mi b (décima terceira menor, ou oitava da sexta menor). Novamente, não é evidente reconhecer uma simetria de intervalos neste acorde. Alguns acordes são especiais pois são tão conhecidos e utilizados que possuem até uma notação específica. Vou apresentar alguns deles:

i. Acordes Diminutos (°) Os acordes diminutos são acorde tétrades onde se acrescenta uma sétima diminuta em um acorde tríade diminuto. Como um intervalo de sétima pode ser maior ou menor, vamos ter que um intervalo de sétima diminuta corresponde a um intervalo de sétima menor subtraído de um semitom, o que vai equivaler a um intervalo de sexta maior. Vejamos o exemplo do Dº (Ré diminuto):

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A sonoridade deste acorde é muito peculiar, e sugiro que você passe um tempo brincando com os acordes diminutos. Além disso, pela figura podemos ver que a adição de uma sétima diminuta em um acorde tríade diminuto gera uma configuração completamente simétrica de intervalos de terça menor. Isso significa que os acordes diminutos são invariantes por intervalos de terça menor, de maneira que cada tétrade diminuta forma um ciclo de 4 acordes idênticos (no sentido de possuírem as mesmas notas) com tônicas diferentes. Observe como os acordes Fº e Abº são constituídos das mesmas notas que o acorde Dº:

Caso ainda não esteja convencido, fique a vontade para fazer o mesmo com o acorde de B°. É

devido a esta propriedade de fechamento que o símbolo deste acorde corresponde a um pequeno círculo ‘°’. Como estes acordes possuem 4 notas, e existem somente 12 notas distintas, concluímos que há apenas 3 ciclos de acordes diminutos possíveis. Você pode verificar os outros dois ciclos possíveis construindo os acordes de Cº e Gº.

ii. Acordes Suspensos (sus) Os acordes suspensos são acordes tríades maiores onde a terça maior é trocada por uma outra

nota, mais comumente a quarta justa, mas também podemos encontramos a troca com outras notas, como a segunda maior ou nona maior. A cifra destes acorde sem terça é indicada através do prefixo ‘sus’ em conjunto com o intervalo da nota trocada. Vejamos os exemplos dos acorde Csus4:

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O acorde é montado à partir da tríade C, no qual trocamos a nota Mi, que é a terça maior deste acorde pela nota Fá, que é a quarta justa da nota Dó. É por esta razão que costumamos chamar este acorde de suspenso, pois é como se a terça tivesse sido suspendida até chegar na quarta. Também é comum cifrar acordes suspensos apenas indicando a nota que substitui a terça maior, como C4 no caso do acorde Csus4.

Podemos naturalmente adicionar notas nestes acordes. Como por exemplo G4(7/9) (Sol com quarta suspensa, sétima e nona):

Assim, esse acorde é o tríade Gsus4 com adição das notas Fá# e Lá, que correspondem a sétima maior e nona maior.

iii. Power Chords (sem terça) Os Power Chords são acordes sem terça, isto é, são compostos somente pela tônica e pela quinta. Esse acorde é comumente utilizado em muitos estilos musicais como rock, punk rock e heavy metal. Sua cifra é representada pela letra que corresponde ao acorde tríade com a adição do número ‘5’. Esta notação poderia ser redundante porque todos os acordes tríades possuem por definição um intervalo de quinta com a tônica. Mas é como se esta notação quisesse indicar apenas as notas que devem ser tocadas. Por exemplo o C5, é o power chord da nota Dó, no qual devemos tocar somente a tônica e a quinta:

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Para pensar no Power Chord como uma espécie de acorde tríade, podemos repetir a nota fundamental do acorde uma oitava acima. Em ambos os casos, a cifra do acorde será a mesma. Naturalmente, todos estes acordes também podem ter notas acrescentadas, seguindo o modelo de adicionar os intervalos dentro dos parênteses.

iv. Acorde Invertidos Para finalizar, temos os acordes invertidos. Esses não constituem nenhum tipo de acorde diferente, e são somente uma peculiaridade dos acordes que aprendemos até então. Temos que os acordes tríades são formados por tônica, terça e quinta. O nome dos acordes é caracterizado

pela tônica, que é a nota mais grave. Chamaremos de acordes invertidos, aqueles acordes que possuem as mesmas notas de um acorde tríade, mas que ou a terça ou a quinta serão a nota mais grave do conjunto. Estes acordes são cifrados indicando a letra da tríade original e a letra que corresponde a nova tônica do acorde, separadas por uma barra ‘/’. Vejamos o exemplo de C/E (Dó com baixo em Mi ou Do com Mi):

Esta é uma inversão de primeira ordem, pois colocamos a terça maior do acorde de C como tônica do acorde. Veja que neste processo, os intervalos ficam bem distintos, e portanto a sensação sonora dos dois intervalos também será diferente. Podemos também fazer inversões de segunda ordem, colocando a quinta como tônica, como no acorde C/G:

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Nós já falamos de acordes invertidos aqui quando tratamos do Cm5+, que reconhecemos como possuindo as mesmas notas do acorde de G#. Contudo, esses acordes são diferentes por possuírem intervalos diferentes. Contudo, o acorde invertido G#/C soará exatamente como Cm5+, o que justifica mais uma vez o fato de não ser usual cifrar um acorde menor com quinta aumentada.

Também falamos de acordes invertidos quanto mostrei a propriedade dos acordes diminutos. Um acorde pode gerar todos os outros realizando apenas inversões de baixo. Isso somente será possível porque os intervalos entre as notas deste acorde são perfeitamente simétricos. Para checar isso, basta verificar algumas igualdades entre os acordes diminutos, como por exemplo

D°/F = F° , D°/Ab = Ab° e D°/B = B°.

Conclusão Neste texto apresentei como identificar a grande parte dos acordes utilizados em música de uma forma geral. A estrutura e a notação que estamos desenvolvendo aqui servirá como ferramenta para todo o estudo mais profundo de como compor harmonias mais elaboradas. Muito em breve, combinando todo este conhecimento, estaremos prontos para identificarmos a

música como uma espécie de linguagem, e sobre este paradigma a manipulação de toda a informação sonora se tornará mais fluída e lógica e finalmente intuitiva.

Também pensei sobre a questão de colocar exercícios sobre o assunto, mas no fim, identificar acordes de alguma forma é equivalente a ficar identificando intervalos entre notas, que corresponde exatamente aos exercícios do texto anterior. Para o treino deste assunto, sugiro principalmente que você pense em acordes aleatórios em sua cabeça, identifique as notas que o compõe, e toque elas em um instrumento musical, simultaneamente ou arpejadas (uma nota

depois da outra). É muito importante que você comece a brincar com as diferenças sonoras características de cada um dos tipos de acordes apresentados aqui, e comece a treinar seu ouvido para desfrutar de todas as experiências sensoriais que estes acordes podem oferecer.

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MÉTODO CIENTÍFICO W. N. Centauro

Eu sou W. N. Centauro, e você será julgado. Na crônica de hoje, daremos uma espiadela no íntimo de um matemático não tão famoso assim, mas muito respeitoso e elegante, que recentemente ganhou um módico reconhecimento em sua área e, por isso, ganhou seu espacinho aqui nesta coluna, para ser imortalizado tal qual o é, e não tal qual o publica. Hoje veremos um curioso caso, encontrado devidamente documentado em cartas e anotações pessoais deste matemático chamado Djalma Gonçalves da Costa. Não é certa a data em que

ocorreram estes fatos. Devo salientar que o texto que se segue não é o original, e isto é de meu perfeito conhecimento. Fui contatado pelos editores e pelo meu amigo pessoal, diretor da revista O Circulo, e fiquei ciente da notificação que a revista recebeu por minha culpa, e aprovei de bom grado as devidas modificações para que o texto seja menos explícito e menos desrespeitoso ao leitor mais apurado. Espero que a situação jurídica esteja devidamente sendo resolvida. O original foi queimado no quintal de minha casa, para que a humanidade não precise ler aqueles disparates vãos, supérfluos e promíscuos. Boa leitura a todos. E lembrem-se: Pela Ciência, Venceremos.

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Djalma e Suas Empregadinhas Djalma Gonçalves da Costa era, antes de tudo, um pedagogo. Um desses professores anciãos, que jorram conhecimento sobre seus alunos e desperta, senão, um mar de admiração ofuscada tão somente pela sua erudição que abrilhanta todo o universo, e até além dele – lugares aonde Deus tem medo de ir, Djalma foi e voltou. Djalma desafiou a vida, desafiou o conhecimento e desafiou Deus. E venceu. Como dizem, ele, vivo, venceu o universo.

E voltou.

Claro que um homem de tantos dotes intelectuais não pode ser resumido a um conjunto muito bem sustentado e coeso, tal qual poliedro platônico, de ideias e argumentos muito bem embasados. O Professor Djalma firmava residência com os requintes dignos de nobre que era, e como sempre tem sido, há tantas décadas. Desde que fora considerado superdotado pelo Governo, em uma famosa série de títulos concedida entre as décadas de 60 e 70 do século passado, em idos de abril de mil novecentos e sessenta e quatro, construíra sua fortaleza em meio ao nobre bairro dos jardins, ao centro da região metropolitana de Santa Teresa.

A casa, ou melhor, a fortaleza de Djalma era uma mansão com duas grandes colunas gregas ao frontão principal. Uma ele batizara Bunge; outra, Jordan. De um lado a filosofia, do outro, a matemática. Às colunas, arrebanhavam-se ramos espinhosos bem crescidos, que contornavam e se encontravam num grande roseiral ao topo da porta principal, com uma suntuosa rosa dourada ao centro. Entalhes dourados, de puro ouro, teavam grandes contornos de águias imponentes, ramos e galhos, como tivesse sido toda uma fauna tocada por um tipo ainda mais transcendental de híbrido entre Medusa e Midas. Os ramos da roseira de ouro seguiam, então,

contornando os grandes jardins da mansão de Djalma, com suas plantações exóticas, suas áreas de contemplação da natureza e, sobretudo, suas serventes.

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Os tempos eram socialmente asquerosos. Eram, no total contado, dezessete serventes mulheres, com idades que variavam de quinze a cinquenta e cinco anos, todas muito dispostas e bem acomodadas. O pagamento, mísero, mas aconchegar-se nas asas de tão nobre pensador já valia mais que todos os ordenados do mundo – ao menos era o que diziam os jornais e folhetins pagos com dinheiro público e privado, de ampla circulação municipal… As serventes, ou empregadinhas, como o Professor se referia a elas todas, inclusive durante suas aulas, eram muito preparadas a servir o café, o chá, o livro, o corpo ou o que quer que fosse necessário para progredir a maior de todas as riquezas que a humanidade já teve: a Ciência.

Era muito sabido por todos, assim como o é hoje, e inclusive nas palavras do próprio Djalma, que um físico tem como papel somente o cálculo decidido, cego e sistemático das equações que regem as leis e fazem girar as grandes rodas do mundo. Diz o mestre: “cala a boca e calcula”. Fazem-no não por serem presos ao próprio ego que acredita que em letras e números sem significado per se possam encontrar o triunfo (como Djalma e tantos outros encontraram, e, vislumbrados pela luz celestial do céu que existe acima do céu, nunca mais quiseram voltar), mas sim por terem a mais absoluta certeza de que este é um serviço para parcela ínfima, e,

portanto, mais valiosa de toda a civilização – aquela que faz a civilização existir, andar, rastejar e não sucumbir como os povos degradados que vivem tão próximos e não conseguem evoluir, sendo, para sempre, paupérrimos em intelecto.

Djalma tinha profunda aversão pelos povos analfabetos que não queriam, por medo dos significados, saber ler, e, portanto, dispunha de todo o tempo a estudar mais do que podia. Intercalava com suas típicas e órficas festas regadas a orgias e bebidas – Sodoma e Gomorra, afinal, se sucumbiram ao poder de um Deus bíblico, é porque não conheciam a Ciência de verdade. Se conhecessem, sucumbiriam muito mais tarde. A religião, Ele salientava sempre que oportuno, talvez em línguas estrangeiras mais elevadas que a própria de sua Mãe, era um tipo de câncer, e precisávamos – ainda segundo o Maestro – arrancar todos os membros antes que a previsível metástase alcançasse as parcelas civilizatórias que ainda almejavam um crescimento racional, a construção de um universo racionalista. Sempre que possível, Djalma tomava alguns dos minutos entre um operador e outro para levar a palavra dos gênios aos que buscavam iluminação.

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O bigode bem preto e espesso de Djalma contrastava com seu cabelo enrolado e bem aparado e suas camisas entreabertas, típicas de fluminense acostumando-se gradualmente ao clima estranho, árido e ácido do que, naquela época, era a Metrópole (antes das grandes mudanças que, felizmente, vieram em tempo, cavalgando em cavalos feitos de raio puro descidos das nuvens das mais distantes estrelas). Enquanto andava pelos retângulos e pelas fontes d’água e pelos labirintos de folhas e papel pardo, despertava admiração profunda de todas as serventes, que logo vinham paparicá-lo com as mais variadas regalias.

Vilma, numa ocasião, resolveu dá-lo a maior das regalias. Eram três da madrugada, quase quatro, de uma segunda feira qualquer em que Djalma não tinha obrigação alguma de ver seus

alunos – preferiria não vê-los, inclusive – e, portanto, andava pelos mesmos retângulos da Casa Grande pensando sobre os círculos que se escondiam por trás das armadilhas do Universo.

“Sou como Arquimedes”, pensava em voz alta e rouca; “ai de quem mexer em meus círculos”, murmurava para si, antes de cair em gargalhadas pela madrugada que reverberava em cada pedra, cada inseto, cada rato de seu templo. Não chegava a muito lugar, porque um cientista não deve chegar a lugar algum, mas sempre deve dizer como é tudo a todos os que tentam chegar, e portanto era feliz andando sem rumo nos corredores da vida que se esvaía pouco a

pouco mas ele não podia perceber porque estava ocupado demais pensando. A jornada vale mais que a chegada. A caça, mais que a recompensa.

Acompanhando, sedenta por conhecimento, os passos do grande mestre, Vilma chegou cada vez mais próxima e lentamente deslizou as mãos turvas de êxtase íntimo pelos ombros vividos, surrados e octagenários do Professor. Ele, em primeira instância, apenas ignorou-a (pois é o que se faz com os instintos que mais se aproximam dos povos analfabetos – ignora-se), mas em pouco tempo já estava prensado contra uma das colunas de madeira bem trabalhadas por

artistas barrocos já degradados pelo tempo há muitos séculos mas que ainda rendiam um certo lucro para o ego àqueles que observavam de longe e invejavam todas as conquistas de um gênio. 25


Prensado à madeira, como donzela pronta para ser currada por uma horda de operários que ficaram anos sem poder satisfazer suas perversões, Djalma sucumbiu e pôs-se a

observar o que a descerebrada servente iria fazer. Ela, no entanto, não avançou à carne do gênio, mas sim ao retângulo de madeira que jazia ao chão da residência, próxima às cadeiras do salão de congressos e ao bar, onde já não havia bebida alguma. Ela parou.

Inerte, deitada ao retângulo enquanto as flores cresciam ao redor dela, as roupas de Vilma se dissolveram lentamente e revelaram aquele corpo fértil como a terra úmida pronto para receber a redenção vinda do próprio filho de Satanás, que, sem saber sua essência, se disfarçava de sábio arrogante – como todo bom cientista deve ser. As flores circundavam as coxas de Vilma, que, derrotada pelo destino, apenas se deixava fluir pelas sensações dos espinhos 26 penetrando-a e as abelhas fecundando aquelas plantas. Em sua testa, uma colmeia nascia

rapidamente, e as abelhas entravam e saíam de sua cabeça, e babavam o mel em seus olhos, agora cegos… Mas não havia dor.

Djalma observava, também inerte, mas do alto de seu intelecto que sabia explicar muito bem tudo aquilo. Ele não via todas as flores, mas sentia o cheiro da fecundação e a textura do mel misturado com pólen e poeira. E o cheiro ficava cada vez mais intenso, até que percebeu que, do portão da sala do congresso, vinha mais uma de suas empregadinhas, Salete, a mais nova, livrando-se das próprias roupas enquanto andava. A cada passo, uma peça era jogada ao chão de madeira, e ela se aproximava do retângulo no qual o ritual aconteceria. As roupas se foram, e sobraram em suas mãos de inocente receptáculo dois espanadores verdes, e somente os dois espanadores verdes.

Salete ajoelhou-se por cima de Vilma, já tomada pela flora local, e carinhosamente lubrificou com sua própria saliva o espanador, e penetrou-o na experiente servente, enquanto esta, unida com a terra, também penetrou Salete com o outro espanador verde. As duas se esfregavam, e se sujavam, e gemiam, enquanto o Professor olhava do lado de fora do retângulo e ponderava – porque só sabia ponderar.

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As equações todas, as fórmulas, os teoremas, tudo isso era suficiente para Djalma. Tudo aquilo que se passava em sua frente era perfeitamente explicado e raciocinado, tudo estava completo. Ele abotoou a camisa branca, agora suja de terra, e contornou no sentido anti-horário, sete vezes inteiras, o retângulo fecundo da terra, de forma que o universo todo além daquilo era o lado de dentro, e aquilo que estava no retângulo era o lado de fora. Uma mera convenção, estranhada pelos analfabetos, mas perfeitamente trivial para os gênios.

Após deixar o retângulo todo para fora de si mesmo, Djalma prosseguiu à lareira acesa do

campo dos pensamentos. Sentou-se em sua poltrona, como fazia todas as noites, bebeu sua dose de chá de urina de crianças pobres, e novamente pôs-se a satirizar a própria morte, a política, e os pensamentos alheios. Desafiou, sozinho, todos os deuses, e não obteve resposta. Os deuses já pararam de ouvi-lo há eras, desde que se conformaram com sua suprema sabedoria científica. Nada ecoou no campo dos pensamentos, senão a risada de Djalma.

A casa estava em paz, e escura, na madrugada de Santa Teresa. Faltava, agora, muito pouco tempo.

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O poder da

Ficção

- Wild Child

É comum que nós, os desde cedo motivados por uma grande vontade de compreender o mundo que nos cerca, acabemos por encontrar conforto e crescimento na postura e no ambiente científicos. Normalmente aprendemos desde crianças a obedecer, acreditar e ter fé, a sermos religiosos e não questionar; então, adquirindo cada vez mais repulsa a essa forma passiva e superficial de tratar a rica diversidade de estímulos que a realidade nos oferece ao mesmo tempo que conhecemos outros aspectos da razão, somos seduzidos pela metodologia investigativa e cética propagada no ambiente científico, e conquistados pelo poder de realmente entender como as coisas são. Aprofundando na prática científica, vamos naturalmente adquirindo uma nova noção de verdade, e assim vamos nos restringindo a esta noção, abandonando as crenças infundadas, tratando como irracionais os conceitos e práticas sem fundamentação lógica ou empírica, sustentando a ideia de que essa postura é superior.

Faço aqui uma observação importante; quando falo de fundamentação lógica ou empírica e me refiro à ciência, quero que toda a noção usual de ciência (coletiva, social, política, tecnológica, etc.) seja abandonada, quero me prender apenas ao conceito individual de ciência. Ao me referir ao empirismo, penso nas coisas que você mesmo experimenta, nas evidências que te fazem criar a sua própria verdade, usando a sua lógica. No meio de toda a inocência do positivismo científico e a certa fé no método científico, quero capturar apenas a postura que os bons cientistas possuem e aplicam em suas vidas (e que não precisam ser cientistas como profissão,

me refiro aos cientistas de postura). Então quando digo que sustentamos a ideia de que tal postura é superior, estou me baseando em experiências do tipo: você se pergunta de onde vieram os seres humanos e então investiga sua origem, aprofundando-se em coisas incríveis como evolução biológica e matemática ao invés de acreditar no padre que fala sobre a bíblia ser factual e parar por aí. É com estes termos que construo essa noção de verdade e argumento no texto. Mas vamos lá, que noção de verdade é essa?

Nós nos enxergamos como agentes dotados de faculdades mentais dadas, uma caixa de ferramentas capaz de realizar tratamentos racionais a respeito da realidade que 28


está do outro lado de uma janela. Mais ou menos como se fossemos jogadores descobrindo pistas em um jogo, mas não somos parte do jogo. As coisas que consideramos verdades são aquelas que passam nos critérios da nossa razão, que estão de acordo com a nossa postura cética. Ao jogarmos o jogo, as verdades são as regras que conseguimos entender e ver acontecendo. Sempre que soltamos um objeto no ar, ele cai, e o tratamento científico domina esse fenômeno, toda a experiência que temos se submete a essa regra, a gravidade, e nós sabemos muito bem quando e como ela vale, até temos várias ideias a respeito do porquê a regra vale. Então tomamos a ação da gravidade como uma verdade. Por outro lado, não acreditamos que seja verdade a ideia de que podemos lançar raios com as mãos, tanto porque não conseguimos fazer isso, mas principalmente, porque empiricamente conhecemos o que é a nossa mão e o que é um raio, e sabemos que essa ideia é incabível. Por exemplo, ao ouvirmos a afirmação “podemos sim soltar raios pelas mãos, você nunca viu alguém conseguindo porque é muito difícil e

envolve altos níveis de concentração e conhecimentos alquímicos”, nós respondemos com uma postura cética motivada pela ideia que já temos a respeito do mundo; isso não é crível pois se opõe a outras experiências estabelecidas como verdades, nossa reação seria algo como “mas como isso seria possível? Que mecanismo fisiológico geraria as condições elétricas capazes de criar um raio diante das mãos? Não é assim que o corpo ou um raio funcionam”. Usamos regras conhecidas para estabelecer outras regras e também rejeitar regras, e assim todo um cenário de coerência a respeito da realidade do mundo vai sendo delineado

diante de nós, e esse cenário se torna o conjunto de nossas verdades.

Daí começamos a tomar um senso de que não vale a pena considerar coisas que até podem ser verdades, mas soam estranhas ou distantes desse cenário de coisas já verdadeiras. Não temos mais paciência para especulações, o escopo de verdades tem suas próprias trilhas naturais. Tudo isso é obtido graças a essa postura científica, então nos apegamos a ela. Dentro desse estilo de pensamento, existem as coisas que podem ser consideradas com sensatez e as que não podem. Por isso nos

afastamos, por exemplo, da preocupação a respeito de conhecimentos metafísicos; eles estão muito longes dessa trilha de verdades, não dá para colocá-los sob testes, sob a inspeção da razão enriquecida pelas regras que já conhecemos. É assim que nos restringimos ao que pode ser considerado, existem assuntos que são inférteis. Todo esse conhecimento de verdades nos dá poder, essa é a grande assimetria; jogando esse jogo, as regras que conhecemos nos fazem passar de fases, construir 29


armas que funcionam com muita confiabilidade. Se adotarmos uma regra falsa, ela pode estourar em nossas mãos ou, na melhor das hipóteses, não servir pra nada. Uma vez que entramos em contato com esse poder, nós rejeitamos com força outros meios de obter regras, pois vemos como eles podem nos desorientar e iludir. Nós sacrificamos a capacidade de ter armas que servem para determinados fins em troca de termos armas que funcionam bem.

Dentro desse paradigma, nos alinhamos a uma visão de mundo reduzida (o que é ruim) e robusta (o que é bom), compartilhada por toda uma comunidade de pessoas competentes. Vou explicar melhor o que quero dizer com reduzida e robusta: vamos supor que a existência de um ser superior criador do universo, um deus sério, fosse mais especulável; quem pudesse conhecer verdades a respeito disso poderia dar um salto muito grande em termos de conhecimento sobre o mundo, saber se esse deus existe e o que ele quer é muito importante, pode fazer

muita diferença na nossa vida, na nossa postura. Acontece que esse assunto não é muito especulável e seu tratamento se encontra muito distante desse paradigma, então nos reduzimos a não o considerar, por mais importante que seja. Quem se presta a considera-lo, está perdendo em robustez; o que essa pessoa vai considerar? Ela vai ter que abrir mão da coerência atual de suas regras, muito provavelmente não vai conseguir usar essas considerações como algo verdadeiro, são muitas possibilidades. E, se por alguma revelação empírica maravilhosa essa questão se aproximar sensivelmente da trilha diante de nosso sistema de verdades,

com certeza vamos mergulhar sobre ela. Parece uma postura realmente satisfatória, eficaz, digna de ser seguida à risca. Ou seja, tudo o que não consegue ganhar o status de verdade deve ser desprezado, e as ficções são meros objetos de entretenimento. Vou colocar aqui um exemplo para ser retomado mais tarde: qual a utilidade de eu inventar um anel de estamina, capaz de conceder a seu usuário maiores resistência e disposição? Seu efeito não é verdadeiro, eu só inventei isso. Então ele é só um anel, não existem regras ou verdades a meu favor ao usar o anel, eu estou simplesmente me iludindo.

Espero ter conseguido passar a ideia de que, uma vez adotando essa postura científica, entramos em um espaço de verdades/regras compartilhado que gera uma visão de mundo poderosa e restrita às trilhas que saem de suas margens. E essas verdades/regras são os resultados de uma postura investigativa esculpida com base em raciocínios que consideram a lógica e o empirismo para discriminar o 30


que faz e o que não faz sentido. Observo que, claro que essa postura pode levar a erros, mas não precisamos ser puristas, só queremos otimizar nossa eficiência, embarcando naquilo que soa o mais correto que conseguimos; pessoas honestas dentro desse paradigma possuem essa postura. Mas pretendo levantar um outro ponto muito mais relevante. Lembremos que a completude dessa postura se apoia no fato de sermos observadores externos, a nossa presença entra apenas no tratamento dessas regras. Claro que o corpo humano faz parte do objeto de estudos, mas não nossa mente, o que realmente consideramos como nós, lá no fundo. Nós temos a ideia enraizada de que somos jogadores e o resto faz parte do jogo. Isso fica claro quando fazemos careta diante de afirmações do tipo: se eu habilmente espetar um eletrodo no “seu cérebro”, eu serei capaz de te fazer lembrar de uma coisa específica, ou te fazer esquecer o seu nome, ou até mesmo modificar suas preferências ou te compelir a uma atitude. Isso é muito estranho, soa como “roubar” no jogo, não é assim que vemos quem nós somos. Nos

enxergamos como portadores de uma subjetividade intocável que somente avalia as regras, não é afetada por elas; nosso corpo é nosso corpo, nosso cérebro é nosso cérebro, não nós; nós estamos em outro lugar (?). Mesmo se soubermos que não é assim, não agimos de forma coerente com essa compreensão, essa subjetividade intocável parece central. Finalmente cheguei à principal ideia desse texto; ao enraizarmos a compreensão de que fazemos sim parte do jogo, podemos abandonar uma parcela da restrição dessa postura de verdades sem perder a robustez, levando as ficções ao status de verdades internas, regras que podem

funcionar para nós mesmos.

Toda a nossa estrutura foi criada por um processo de evolução, tanto como espécie, tendo cada um dos vários módulos e sistemas se originando em algum ponto da história evolutiva e se mantendo por servir a algum propósito adaptativo ou por pelo menos não prejudicar esse propósito, quanto como indivíduos com cada uma de suas partes surgindo desde o desenvolvimento embrionário que se inicia a partir de uma simples célula. Nossos estados mentais, nossa sensação de consciência,

surgiram gradativamente suportados pelo desenvolvimento de nosso sistema nervoso e nosso corpo. Sem esse suporte corporal, esses estados não estão presentes na realidade observável; os estados corporais alteram os estados mentais e os estados mentais alteram os estados corporais. Observamos que existe uma correspondência entre estados mentais conscientes e o funcionamento de regiões materiais evolutivamente recentes, principalmente do córtex cerebral, mas que 31


estão interligadas com muitas outras regiões e são afetadas pelo seu funcionamento. Umas das funções mais importantes dessas regiões, no sentido de adaptação e sobrevivência, envolvem o processamento de informações a respeito do mundo e dos estados internos e o planejamento e a manutenção de comportamentos (como ações, pensamentos e sentimentos). Assim, você recebe informações da realidade externa, por exemplo através dos sentidos, junta com informações que vêm do estado atual do seu funcionamento e da sua memória, reage com um comportamento, e então altera a realidade externa, sua memória e seus estados internos; toda essa alteração interna é mediada e promovida pelos mesmos sistemas que também promovem a construção da sua experiência subjetiva, de alguma forma. Nós possuímos diversos módulos pré-programados de reconhecimento da realidade, otimizados para interpretar ou realizar aspectos mais sólidos do ambiente ou do nosso funcionamento, basicamente imutáveis (por exemplo, módulos de reconhecimento e orientação a respeito da já mencionada

gravidade, os módulos de análise sensorial ou instintos fundamentais, como entender que precisamos de comida para sobreviver); esses módulos não são muito maleáveis, e isso é fundamental para se otimizar a adaptabilidade. Mas muitos outros módulos e arranjos funcionam para nos dotar de capacidades coringas para reconhecer características e padrões em um ambiente mutável e com uma grande diversidade de ingredientes diferentes; esses módulos são bem maleáveis, e isso é fundamental para se otimizar a adaptabilidade. Acontece que a nossa subjetividade consciente se apoia principalmente no funcionamento desses módulos para

reconhecimento de coisas mutáveis. Não ficamos por aí tendo noção de como a gravidade é fundamental, como montamos o objeto de nossa visão ou raciocinando a respeito da fome, mas ficamos por aí pensando a respeito de uma coisa aleatória que acabou de acontecer ou sobre o que acabamos de aprender sobre a refinada arte de escrever (que não precisava nem existir).

Estes módulos de interpretação de um ambiente variável geram em nós uma capacidade aberta para o aprendizado, e como precisamos nos comportar

adequadamente diante da realidade que interpretamos, este aprendizado precisa levar a esta modificação interna, uma espécie de reconfiguração do ambiente sináptico de diversas partes de nosso sistema, tanto para comportamentos de curto prazo quanto para os de longo prazo, e também do importante ambiente de auto regulação (que determina o que é considerado o estado natural das coisas dentro de nós). Para dar um exemplo concreto, pensemos no prazer. O mecanismo geral 32


que temos para direcionar o comportamento dizendo “isso aqui é bom, preciso de mais”, produzindo recompensas que são sentidas na realidade subjetiva, é o mecanismo de prazer, que tem como unidade básica de funcionamento um circuito de ação envolvendo o neurotransmissor dopamina em uma parte do cérebro que envia sinais para diversas outras. Muitas coisas prazerosas são um tanto arbitrárias em um ponto de vista evolutivo, e podemos encontrar pessoas capazes de sentir prazer com praticamente qualquer atividade. Nossas experiências (coisas vividas, sentidas, habituadas, etc) e fatores externos (como substâncias ingeridas) possuem um grande poder de provocar alterações nesse circuito de prazer e em suas consequências dentro de nós, provocar alterações em quem somos, tudo isso baseado na bagunça que está acontecendo dentro da cabeça.

Outro exemplo para ajudar a elucidar esse cenário; a nossa percepção e a nossa

reação às coisas dependem de construções detalhadas que temos que aprender a respeito da realidade. Pense em quando somos crianças e temos que aprender a andar; a princípio, a percepção motora e a noção espacial são pouco desenvolvidas, mas passamos a dominar todos os detalhes e processos envolvidos, em retrospecto nem paramos para pensar o quão complicada essa tarefa é e o quão ridiculamente fácil e natural ela parece atualmente. E não é como a linguagem, que temos módulos mentais já embutidos para estruturá-la com capacidades bastante refinadas; andar exige muito mais performance baseada no contexto em que se

encontra, basta ver os casos de crianças selvagens que são criadas por animais, que se locomovem como eles e com muita precisão e naturalidade. Para se tornar tão capaz, é preciso olhar para o mundo e se comportar sobre ele de uma forma bem específica, focada, em busca de resolver uma situação; com o tempo, a informação que você recebe vai se naturalizando em seu comportamento e se torna parte de você e de sua visão de mundo. Vemos exemplos dessa capacidade como um aprendizado desde pessoas que ficam cegas e precisam aprender a aguçar os outros sentidos (sem a ajuda de seu desenvolvimento infantil) até esportes e artes

de alta performance mental, como xadrez, esportes olímpicos, pintura, artes marciais, etc. Com esse exemplo enfatizo a questão do quão profundamente o aprendizado de longo prazo baseado em como prestamos atenção na realidade e como nos condicionamos nesse processo pode determinar quem somos, e o quão real esse aprendizado é; e todo esse processo se dá através de informações possivelmente arbitrárias que chegam até nós e como reagimos a elas, criando uma 33


realidade subjetiva diferente a partir de nossa atitude (que nada tem a ver com aquela ideia de verdade, inclusive; todas as regras de jogos e esportes, por exemplo, são ficções).

No geral, com essa discussão, concluo algo a respeito dessa construção que se relaciona com a ideia de verdade: as coisas que descobrimos serem verdades são muito úteis para nos dar regras a respeito do mundo externo e até mesmo de como podem funcionar as coisas do mundo interno que geram quem somos subjetivamente, mas as verdades não determinam por si algumas regras do nosso funcionamento, as regras que dependem das conclusões de nossas próprias rotinas de pensamento e sentimento em relação às verdades ou às ficções. Essas regras são ditadas por como nos relacionamos com as verdades e as ficções, elas dependem de nossas crenças, sejam elas reais ou não.

Agora uma observação: isso tudo pode até sugerir que a experiência subjetiva, o que faz você se sentir você, pode até não ter participação na elaboração do comportamento ou pode até ser uma espécie de autoengano; de alguma forma podemos pensar até em uma quebra de “livre arbítrio”. Mas isso não vem ao caso aqui, dentro da nossa suposta ilusão nós nos sentimos os chefes do pedaço, sentimos que podemos escolher nossas ações, e é isso que importa agora. Então, vamos pensar em alguns exemplos e veremos que não precisamos saber muita coisa a respeito do cérebro pra ter ideias sobre o que podemos ou não alterar com

nossas experiências. Imagine que você vai se deitar e, antes de dormir resolve ler um pouco. Se você vai ler uma história em um momento de ação alucinante, você pode se empolgar e perder totalmente o sono; mas partindo do mesmo estado, se você abre a história em uma cena maçante com longas descrições de um cenário estático, você pode ser acometido por um sono inescapável em poucos instantes. Outro exemplo, você está jogando cartas e vai sacar uma carta que pode definir o jogo; partindo do mesmo estado, você pode sacar a carta certa e se preencher de uma profunda satisfação ou sacar a pior carta e se preencher de uma profunda

raiva. O que acontece dentro de você nessas situações? Você recebe estímulos visuais, esses estímulos são interpretados e compostos com rotinas internas, que são acessadas segundo uma condição dependente de seu estado mental atual, e de alguma forma este conjunto de considerações resulta em reações de níveis emocionais, hormonais, atitudes físicas e de pensamento e do funcionamento e de ritmos dos sistemas internos, como por exemplo respiração e circulação. O que 34


causa toda essa cascata de reações é um conjunto de símbolos arbitrários, totalmente alheios ao funcionamento padrão do seu corpo. O relacionamento desses símbolos com você se dá a nível de sua experiência e isso pode ser tão instantâneo quanto podemos imaginar; no exemplo da carta, a ideia anterior ao jogo que você tem da carta que acabou puxando é neutra em relação ao que você sente quando a puxa (ela pode ser uma carta que você adora e te causa empolgação, mas naquele momento em especial ela era a última coisa que você precisava e vê-la te causou profunda irritação). Esses são exemplos de crenças fictícias ditando seu comportamento e sua regulação interna. São crenças fictícias no sentido de verdade que defendi no começo do texto, quando você olha para aquela carta ou aquela página de história, a verdade a respeito delas não inclui que são cartas ruins ou passagens desempolgantes da história, isso vai depender do seu estado no momento e de como você as está recebendo. Mas as verdades não devem depender disso, não se você for o jogador. Se você for parte do jogo, as

verdades a respeito das coisas envolvem o que estas coisas causam em você, na sua experiência subjetiva. Vamos voltar a pensar no anel de estamina; agora, é verdade que ele dota seu usuário de poderes energizantes? Pode ser! Depende de como o usuário se deixa afetar por ele. Esse é um ponto muito crucial, o usuário cético, que restringe a verdade às regras que ele observa como jogador, que se encontra imerso no poderoso paradigma científico como ele se apresenta, não se deixará afetar por ele. Para esta pessoa, o anel é uma grande besteira, pois não existem anéis que fazem isso, é a mesma reação que a apresentada no exemplo das mãos

que soltam raios. A diferença é que as mãos ainda não vão soltar raios, pois no caso do anel, não é realmente o anel que promove estamina, é o usuário; a verdade é que o anel é capaz de promover estamina, usando o usuário preparado como vetor.

Mas então por que usar o anel? Por que não simplesmente ativar estamina com o “poder da mente”? Você poderia, mas é muito mais difícil (com prática as coisas podem ser internalizadas e reduzidas a pensamentos). Isso se deve a como somos

capazes de manipular nossa realidade interna; vejamos. Esses módulos maleáveis que servem para interpretar a realidade inconstante, o aprendizado pela experiência, foram feitos para receberem as regras que encontramos através da observação de padrões nessa realidade eventual; eles estão de braços abertos para acolher nossas verdades, mas com expectativas em relação aos elementos que compõem essas verdades. Faz muita diferença interagirmos sensorialmente com as 35


coisas que existem, sermos condicionados através de experiências que se repetem associadas aos resultados para a fixação dos padrões, e considerarmos nosso relacionamento com os detalhes que compõem esses padrões, pois nosso corpo sabe que as verdades vêm de elementos existentes na realidade, nós sabemos. Um exemplo a respeito de condicionamento: mesmo que você saiba que uma sineta não significa comida, você consegue se fazer babar ao ouvir a sineta, caso tenha a associado adequadamente ao advento de um estímulo de comida; porém, é mais difícil se fazer babar ao simplesmente pensar na sineta tocando. Se formos forjar nossas próprias verdades, precisamos enriquecê-las com os elementos e a confiabilidade usuais das verdades do mundo. Muitas pessoas sabem dessas características e se aproveitam disso, desde as ridículas associações condicionantes da publicidade até os sinestésicos rituais religiosos.

Falando em religião, vamos considerar algumas coisas a respeito da fé. Pensamos

em fé como a capacidade de adotar verdades sem o estabelecimento de critérios para avaliá-las segundo a lógica e as experiências empíricas; é não ter que ver para crer. Dentro desta postura científica, a fé é corretamente abominável, pois além de promover crenças sem funcionalidade a respeito da realidade externa (ou seja, armas sem poder), o exercício da fé é um hábito conflitante com a postura cética (dentro de você, a coexistência destas duas posturas eventualmente causa confusão, descontrole). Mas depois de todas essas conclusões, nós poderíamos pensar que a fé é uma ferramenta muito boa para se sustentar ficções que

funcionam como verdades internas. Pode ser, até funciona bem, mas é uma coisa sem controle. Para começar, em um paradigma de fé, você não é tão capaz de atingir essa condição de controle interno por meio de argumentações como as presentes neste texto. Isso é importante para a ação pelo entendimento, ora, tirando o fato de a fé realmente ter algum poder nesse âmbito de verdades internas, ainda faltam todos os outros poderes que ela não possui lá fora; a liberdade de agir por tentativa e erro, com experimentação, a postura investigativa de encontrar e se convencer das condições em que tudo isso vale, a capacidade de

ajustar o envolvimento emocional que se tem com cada processo, etc. Resumindo, a fé tem sim certo poder para te ajudar a acreditar em ficções, mas é só isso; essa postura continua sendo ruim e condenável.

Agora, você poderia dizer: tudo bem, mas isso parece aquelas coisas que você precisa acreditar para serem verdade, mas como vou conseguir acreditar nisso em 36


primeiro lugar? Como faço um anel de estamina e acredito que ele vai me dar esse poder sem parecer estúpido? Então, eu não sei todos os caminhos para se promover essa manipulação dentro de si, mas como eu disse, diversas experiências podem auxiliar no desenvolvimento dessa nova dimensão mental dentro de nós; é basicamente todo um novo caminho de introspecção e formação de hábitos que podemos ativamente explorar, sem sair da postura científica que tanto nos faz bem. Acredito também que, uma vez que você tenha se convencido da funcionalidade dessas práticas, você não achará estúpido o ato de criar uma ritualística e trabalhar para promovê-la ao status de verdade interna, pois verá a prática com os mesmos olhos que já vê suas práticas normalmente científicas. Aproveite a fraqueza que sua mente tem em relação à ficção, aos mitos. Estas coisas são naturalmente encantadoras, isto está marcado em nós. É uma boa aventura imaginar que coisas extraordinárias são verdadeiras, como fazem todas as crianças; uma vez definidas corretamente as cercas que garantem que

continuaremos céticos, podemos liberar a boiada da imaginação; aproveite a suscetibilidade de seu circuito de prazer, adote arquétipos que ressonam com a sua subjetividade, utilize o material que você recebe em seus sonhos, etc. Minha visão pessoal é que a nossa própria experiência subjetiva, ou aquilo que chamamos de ego, é uma grande ficção gerada pelo mundo criado por nossa cabeça material; então, para mim, estamos em casa ao brincarmos com ficções.

Estas dificuldades de se acreditar também podem ser entendidas sob um ponto de

vista de conflitos entre crenças, por exemplo, se você não está convencido de que isso é algo pertinente, essa crença é conflitante com a crença que você quer criar. Outro exemplo comum de crenças conflitantes acontece quando desejamos procrastinar; nós simultaneamente acreditamos que temos aquele tempo pra perder e que precisamos aproveitar aquele tempo pra fazer nossa obrigação, gerando uma sensação de desconforto, de dissonância, em que sentimos que desejamos fazer as duas coisas (e é mais fácil da procrastinação ganhar, pois exige menos esforço e nos concede uma recompensa mais rápida). Este cenário de

conflito de crenças, ou ideias, se traduz no nível neurológico em termos de ativações simultâneas dos “caminhos” sinápticos que levam aos diferentes estados e, como resolução da bagunça mental, uma delas vai “ganhar” e tomar conta do comportamento. Isso acontece constantemente quando vamos decidir algo e ficamos em dúvida, ou quando estamos elaborando uma ação ou uma fala (nossa subjetividade é uma multidão). A força que estas ativações usam para ganhar é 37


medida em termos de forças sinápticas e de coligações mais robustas entre diferentes padrões sinápticos, e isso se traduz no nível do comportamento em quais delas que estão mais treinadas, habituadas, recentes ou detalhadas, e as coligações são associações entre os diferentes conceitos que elas representam. Aumentar cada um desses parâmetros são formas de se deixar uma crença mais sólida. Daí vem a composição ritualística e mitológica de uma crença que faz com que ela apareça mais e de forma mais vívida em sua experiência subjetiva.

E quais tipos de coisas podem ser mudadas? Seguindo a ideia de descobrirmos como mudar, também sugiro uma postura de exploração em relação ao que pode ser mudado, guiada pelo que já sabemos a respeito. Vale mencionar aqui a existência de efeitos de placebo, algo muito considerado na hora de condenarmos algumas práticas pseudocientíficas, mas não paramos para dar a devida atenção ao significado desse efeito. Ao tomarmos uma pílula de açúcar achando que estamos

tomando algo efetivo, verdadeiro, somos capazes de modificar nossa motivação, sensação de dor, ansiedade, ação de neurotransmissores (como a dopamina, do prazer), estimulação, depressão, sistema gastrointestinal, pressão sanguínea, batimentos cardíacos, regulação hormonal, mimicar a ação de substâncias (como nicotina), alterações no sistema imunológico (!), etc. E temos indicativos que efeitos de placebo funcionam melhor se tomamos uma pílula colorida, ou maior, ou tomamos uma injeção (e melhor ainda se for uma cirurgia placebo) e crianças são mais suscetíveis. E acredito que todas essas alterações possíveis com efeitos de

placebo podem ser exploradas com qualquer tipo de ficção que venhamos a criar para nós. Vemos também por experiência que podemos, com o que nos é acessível em nível consciente (crenças) ter muito controle sobre o nosso estado emocional, nosso estado de alerta, foco, nosso vigor e, a longo prazo, nossos hábitos, desejos, a homeostase e a nossa própria capacidade de aprendizado. As possibilidades são muitas e indicam muitas chances de termos mais saúde, física e mental.

Além de todas estas características, enfatizo que nós já temos uma grande

sensibilidade psicológica ao efeito de mitos e histórias fictícias que seguem certas estruturas arquetípicas. Montagens como o mito do herói ou os mitos religiosos possuem uma grande capacidade de nos provocar emoções e determinações, e ao longo de toda a história a que temos registros estas construções habitam o imaginário dos povos e enriquecem suas culturas, sendo potentes motivadores e escultores de comportamentos. Com o crescimento da tradição secular 38


fundamentada na prática científica e a consequente valorização da verdade como o motivador que direciona nossas escolhas e aspirações, a ficção fica cada vez mais reduzida ao puro entretenimento. É importante que possamos restituir seu papel, reinterpretado segundo essa nova perspectiva como mediador de verdades pessoais, com o sempre importante objetivo de controlar melhor quem somos e a realidade em que vivemos, criando uma experiência mais prazerosa e duradoura.

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O MANIFESTO COMENTADO - Wild Child Há mais ou menos dois anos e meio (na primeira metade de 2014), eu estava com muito interesse em compreender o que regia a interação social em grupos de pessoas. Acabei percebendo que muitos problemas, falhas de comunicação e sofrimentos, eram causados pela falta de franqueza e consideração das pessoas do grupo; de alguma forma, as pessoas acham que a melhor coisa a se fazer é esconder suas intenções. Uma conclusão paradoxal, uma vez que admitimos que a situação que desejamos obter é uma maior proximidade com os outros, mais

afeto, intimidade, amizade, etc. Além de muitas boas vivências não se realizarem, muito sofrimento é causado pelo simples desencontro entre esse objetivo de proximidade e o ato de se esconder. A ideia que construí gira em torno da constatação de que as interações de amizade e a busca por parceiros sexuais ou românticos não devem ser encaradas como um jogo; apesar de haverem objetivos a serem conquistados, uma vez que se quer algo, a interação não se trata de ganhar ou perder. Na época, escrevi um texto detalhando a minha proposta, que chamei de ‘O Manifesto”, e tentei incorporar suas conclusões na minha forma de agir socialmente. Considero que conquistei muito em postura e amizades, o que me leva a crer que há muito de positivo em

se considerar essa abordagem. As pessoas muitas vezes machucam e agem pelo próprio interesse de forma indiscriminada, e isso nos leva a corretamente erguer barreiras contra elas, mas muitas vezes esquecemos dos momentos em que não precisamos erguer essas barreiras, quebrá-las ou simplesmente sermos alguém confiável para habitar além das barreiras de nossos amigos (e claramente deixá-los cientes disso).

Tudo isso serviu originalmente para se aplicar em grupos de pessoas, mas é bom ter em mente que um casal é um grupo, e essa postura é muito efetiva dentro de um relacionamento a dois, seja romântico ou aplicado a cada amigo em específico; no fim, acabamos percebendo que cada relação dois a dois habita um espaço único que pode ser explorado cada vez mais e pertence só às duas pessoas envolvidas, muitas vezes sendo até ofuscado pelo convívio de grupo. Aqui, apresento o texto original comentado com um pouco das minhas ideias atuais a respeito e explicações do texto (que não é muito fácil de entender e meio esquesito, hoje acho engraçado o jeito que escolhi escrever o texto). O entendimento dos detalhes do texto é mais concreto quando pensado sobre as próprias informações que você têm a respeito de você, pergunte-se sempre: o que eu desejo viver com as pessoas? Quero me aproximar de quem? O quanto e para obter o que?

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O MANIFESTO 0. Nós nos percebemos como dotados de impulsos e desejos que podem ser desenvolvidos e entendidos por nós e podem ou não depender somente de nossa atuação direta para serem realizados. Cuidamos neste manifesto somente do estágio da atuação, deixando implícitas as etapas de desenvolvimento e entendimento, e também somente daqueles impulsos e desejos que necessitam da atuação direta de outras pessoas para se tornarem realidade.

-Essa introdução diz que desejos acontecem conosco; eu posso estar andando na rua, sem qualquer intenção, e de repente perceber que estou desejando algo. Há muito espaço para se investigar o que causa a ocorrência do desejo e como o identificamos em nós, mas aqui vamos tratar do que fazer com o desejo quando ele já está existindo e identificado. Os desejos podem ou não depender de outras pessoas para serem realizados, tanto diretamente (no caso da pessoa de alguma forma ser alvo do desejo) quanto, por exemplo, da ajuda de outras pessoas. O texto também se restringe a tratar dos desejos que dependem do envolvimento dos outros. Existem sutilezas em relação a como definimos esses impulsos e desejos, mas não faz mal tratarmos

essas palavras aqui querendo expressar o senso comum, uma classe geral de vontades de se ter ou viver algo.

1. A ineficiência do medo de agir Ao ponderar o efeito de nossas ações, pensamos em dois caminhos de falha: o fracasso em si e a ocorrência de julgamento ou humilhação. Já que tratamos de impulsos que trazem o fracasso já na ocorrência de inação, nossa ponderação se resume ao medo de julgamento ou humilhação. Devemos ignorar este medo e, por meio de inúmeras

pequenas ações, enfraquecê-lo, uma vez que essas são consequências que em verdade são ilusórias e nos afetam somente se estivermos dispostos. Seu efeito é sem dúvida menor do que a impossibilidade de nos satisfazer. Nesta esfera tratamos somente da consequência de ação relativa a nós, o efeito aos outros é de cuidado da responsabilidade já desenvolvida.

Quando vamos agir neste contexto social abordado, penso que esses dois fatores gerais são as duas formas de ser malsucedido: o “fracasso em si” e “julgamentos e humilhações”. O que eu chamei de fracasso em si é você realmente não conseguir viver o que quer (por exemplo, se pessoas a serem envolvidas não quiserem), e julgamentos e humilhações são condições em que 41


você perde algum status no grupo (alguém pode te achar bobo, rir da sua cara, etc). Se você buscar algo que quer nesse contexto, não há outra coisa a dar errado, você não vai se machucar fisicamente (nem aos outros), não vai perder um bem, etc. A ideia desse parágrafo é dizer que muitas vezes o medo de agir nos impede de ir atrás do que queremos, mas que esse medo não ajuda em nada, pois ele não alivia os fatores que podem dar errado. Tudo gira em torno da ideia de você considerar que danos de status são inofensivos; primeiro, esse status serve para que você aumente suas chances de conquistar seus objetivos sociais, e não faz sentido considerar que esse status seja mais precioso do que a busca em si. Segundo, ser julgado ou passar por um constrangimento não machuca de verdade, e um pouco de experiência social nos mostra que essas perdas são reversíveis, então na grande maioria das vezes não compensa em nada guardar esse status em detrimento da sua busca (na última linha esse parágrafo supõe que você já esteja agindo de acordo com o resto do texto, porque aí você não perderá o que se perde por causa de desrespeito ou por se fazer mal a alguém, você só estará seguindo seu caminho). Qualquer medo do fracasso ou dos julgamentos te impede de agir por causa dessa ideia de danos de status; não faz sentido deixar de tentar por medo de fracassar, a menos que você se preocupe com a exposição desse fracasso, para si e para os outros. Então, o parágrafo conclui que o medo de agir, que te impede de agir com sinceridade e buscar seus objetivos com mais naturalidade, é um medo mal posicionado que não ajuda. É melhor que treinemos para deixar de senti-lo, nos condicionando.

2.A liberdade mútua Uma vez em posição de agir além do medo, teremos outras pessoas envolvidas em nossa busca individual. Essas pessoas envolvidas fazem parte de nossa satisfação. Por dois motivos devemos, em paralelo à nossa satisfação, respeitar a satisfação dessas pessoas. Primeiro, porque a manutenção de pessoas satisfeitas e dispostas em nossa intimidade é essencial para que possamos com mais eficiência construir um espaço de obtenção de satisfação individual com essas pessoas, ou seja, a satisfação dessas pessoas é uma ferramenta da construção de nossa própria satisfação, simplesmente porque estas pessoas estarão mais dispostas a manter sua intimidade. É um processo que se alimenta. Segundo, porque este é o passo fundamental para a construção da liberdade mútua, que é o estado em que todas as partes se dispõem a mostrar seus desejos e entrarem em acordos para satisfazer aqueles que se tornarem possíveis. Se qualquer parte tentar satisfazer seu desejo sem um acordo, o espaço é quebrado. Neste

ponto,

qualquer

desejo

que

permanecer

sem

solução

também

é

responsabilidade do indivíduo, a construção do espaço ao menos tende a minimizar este número cada vez mais.

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Este parágrafo dá dois motivos para se considerar importante a satisfação das outras pessoas, mas não menciona o motivo mais empolgante, o de que essa satisfação por si irradia para nós, por gostarmos dessas pessoas. Isso é ter uma genuína consideração pelos outros, e é algo que eu particularmente acredito que deve ser cultivado por todos, mas não precisa ser argumentado. A ênfase do parágrafo é que existem dois motivos “estratégicos”, além de quaisquer outros de nível mais subjetivo. O primeiro diz respeito ao tipo de vantagem que vem de teoria dos jogos, de se adotar a melhor estratégia em uma situação em que todos querem adotar esta estratégia. É vital para a postura adotada que ela se dê bem consigo mesma, e isso envolve que ela seja “justa”, bem no sentido de fazer para os outros o que você quer para si, então lutar pela satisfação do outro é lutar pela sua nesse sentido. O segundo motivo é que essa preocupação mútua com a satisfação é fundamental para convivermos no que chamei de espaço de liberdade mútua. A ideia é que queremos um espaço para expressarmos o que desejamos e ouvirmos das pessoas o que elas querem, e com essa comunicação tentarmos construir juntos nossas satisfações. Esse espaço é um estado de confiança mútua que só pode ser atingido se uma parte sabe que a outra se preocupa com seu bem estar, da mesma forma que contar um segredo para alguém envolve a confiança que essa pessoa se importa com o segredo e o que faz aquilo ser um segredo. A última frase faz uma ressalva de que o que estamos construindo não garante satisfação de desejos, pois isso necessita de um acordo no fim das contas, mas garante que tudo isso serve como um meio de maximizar a satisfação. Se alguém tentar forçar seu desejo sobre os outros, o espaço se quebra justamente por essa pessoa não estar considerando a satisfação do outro, o outro perde liberdade com isso.

3. Sem intenções ocultas Uma vez construído o espaço de liberdade mútua, os desejos que permanecerem sem solução não se obrigam a ficar interiorizados, e caso não fiquem, devem ser manifestados com clareza. A ação de cada indivíduo deve ser livre de intenções ocultas e manipulações. Estas ações são um retrocesso de intimidade e liberdade mútua (que acabam por ser as nossas ferramentas finais), pois são criadoras de tensões. As tensões são conflitos de interesses implícitos, é fácil ver como estes impedem o avanço da intimidade. Em união com a esfera do medo, este comportamento também prevê que não se deve julgar ou humilhar alguém dentro de um espaço de liberdade mútua. Por isso, o manifesto claro de carências irresolvidas não deve resultar em prejuízo para o indivíduo. Também a própria atitude de mostrar os desejos na intenção de encontrar compatibilidade.

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Se um grupo de pessoas vive em liberdade mútua, todos são incentivados a compartilhar suas intenções e evitar manipulações ou danças de insinuações. No fim, as buscas se resumirão em acordos, que necessitam do entendimento mútuo. Não só a existência de intenções ocultas, mas a possibilidade dessa existência, é suficiente para impedir o avanço da intimidade; as tensões se manifestam em desconfianças, expectativas mal direcionadas, sensações de confusão, desconfortos, etc. que culminam em tentativas de proteção pelo afastamento, as pessoas se fecham em si, se perdem achando que não está dando certo. Acredito que as pessoas viveriam tantas coisas boas a mais e as relações seriam tão mais vívidas se as intenções fossem sempre claras. O maior motivo de pessoas guardarem suas intenções é o medo, então, argumento que em qualquer lugar é bom querer revelar intenções pelo parágrafo 1 (claro que estou desconsiderando ambientes hostis de verdade, em que relevar intenções pode até te matar; estou assumindo que entre amigos é sempre bom não ter medo e inclusive que revelar suas intenções catalisa a busca por verdadeiros amigos); mas principalmente em espaços de liberdade mútua já formados o medo de ser julgado não se aplica, pois as pessoas envolvidas devem estar trabalhando para entenderem umas às outras, sem repreender alguém por estar sendo sincero, seguindo seu caminho.

4. A construção da intimidade O objetivo permanente da construção de todos esses espaços, mesmo independente da satisfação de desejos, é a construção de um estado de intimidade com outros indivíduos. Este estado permite o acesso irrestrito à outra pessoa, permitindo o contato de conhecimento mútuo, a possibilidade de ajuda mútua e o aumento da complexidade de convívio. A complexidade se define pelo maior número de interações possíveis de ocorrer a partir de relações, importante para a maior transformação do potencial individual em realidade. A intimidade é durável e também alimenta a possibilidade de construção de mais espaços e com isso mais satisfação pessoal, pelas conexões que gera. Além disso, a construção de intimidade também pode ser um desejo por si, compartilhado por muitas pessoas, principalmente as que estão em buscas semelhantes (as buscas do tipo abordado).

Esse parágrafo está bem explicado e apresenta o maior objetivo do que é construído no manifesto, esse estado de intimidade que permite o acesso ao outro e o aumento da complexidade no convívio (esse potencial de interações sendo expresso e gerando ainda mais potencial de ação). A liberdade mútua, o interesse pelo desejo do outro, a eliminação de

intenções ocultas, etc., são todos elementos desse estado de intimidade que surge sendo maior que a soma das partes no sentido de promover uma sensação nova de cumplicidade e conforto 44


com a presença e a ação do outro. Às vezes, por você conhecer bem alguém ou por ser seu amigo por muito tempo, ter passado por muitos momentos com essa pessoa, pode te fazer sentir que tem esse espaço conquistado, mas isso não é suficiente. A experiência de todas as cores dessa intimidade construída se deve à execução consciente desses passos (por exemplo, são comuns essas histórias de pessoas não serem o que sempre pareceram, de pessoas acharem que só se conhece verdadeiramente alguém em certas situações específicas, etc.; meu ponto é que você consegue conhecer muito bem alguém, pode ser em pouco tempo, e fazer algo com isso se você exerce esse caminho que te leva à outra pessoa... é o mesmo que dizer que não basta crescer pra se tornar alguém experiente ou responsável ou que um jovem não pode ser isso, muitas rotinas de aprendizado e desafios devem ser vividas para que isto aconteça).

5. O efeito do costume Em uma ordem ainda maior, a prática destes ideais condiciona um costume comportamental que os reflete em cada atitude do indivíduo e também em sua consciência de identidade. Por fim, o ideal se torna parte do indivíduo, e toda a ação deste é uma manifestação daquele. Isto é importante por nos tornar cada vez mais eficientes e coerentes em nossa atuação.

Esse parágrafo enfatiza a ideia de que novos estados são gerados sobre os estados atuais, assim como ir subindo degraus em uma escada. Ao nos acostumarmos com os detalhes da execução consciente desses processos, viveremos situações e relações novas com as pessoas, alcançaremos uma maior riqueza de vivência. Inclusive, acredito que a própria execução das etapas argumentadas no manifesto depende de um mínimo de consciência que permite o respeito pela satisfação do outro, o domínio do medo, o entendimento de seus próprios desejos e a capacidade de comunicar o que se sente, certo nível de autoconhecimento, etc. Tudo isso se junta para construir espaços novos, como mais intimidade e liberdade mútua, e a ideia é que essas coisas se juntarão com outras e com o tempo se tornarão mais vivas em você e formarão outros espaços mentais e de relacionamentos; esse é um efeito da complexidade.

Os ideais considerados da forma que foram acima podem não parecer tão distantes de muito do que ocorre rotineiramente na sociedade, mas com pouca observação podemos ver como praticamente todas as práticas comuns contradizem pelo menos uma das partes, onde a mais ferida é a construção da liberdade mútua, desde duas pessoas até uma sociedade, pela comum necessidade de se mover esforços contrários

ao desejo de alguém, mesmo este não conflitando com a satisfação de outros. 45


Este final, além de enfatizar que exercer essas ideias não é algo óbvio, se apoia na aparente característica da natureza humana de muitas vezes realmente desejar a insatisfação dos outros ou não se importar com isso, seja por incapacidade de se importar ou por negligência. O manifesto é, além de uma força criadora de melhores estados de relacionamento, uma força contrária às práticas comuns que refletem essas características de oposição entre pessoas, independente de suas causas.

Anexo. Definição da Insatisfação. Para se julgar corretamente casos de conflitos de interesses, devemos saber eleger o que constitui a insatisfação do indivíduo, vista como um estado a ser evitado por outros. Postulemos que, se alguém se incomoda com uma ação que esteja sendo feita, este incômodo só se configura como insatisfação se for necessário que a ação cesse para que ocorra a interrupção do incômodo. Do contrário, o incômodo se configura como uma ação opressora à liberdade daquela ação e deve ser erradicado pelo próprio

indivíduo. Ou seja, só é possível estar insatisfeito com algo que seja inevitável para sua experiência.

- Este anexo é uma tentativa de especificar melhor o que devemos esperar como sendo alguém estar insatisfeito com algo. Esse problema é muito importante de ser resolvido, pois devemos sempre nos perguntar: estou causando insatisfação para alguém? O que eu devo fazer para causar apenas satisfação? Alguém está me causando insatisfação? O que preciso que essa pessoa faça ou deixe de fazer para parar de me prejudicar? Precisamos determinar o que realmente está

cercando a liberdade de alguém, pois se quisermos impedir uma ação com esse argumento, precisamos estar certos; do contrário nós é que estaremos cercando a liberdade de quem está agindo. A resposta do texto original é que algo que alguém faça te promove insatisfação se você precisar parar aquilo para voltar ao seu estado natural. Por exemplo, se alguém ficar gritando perto de você e você não quer isso, você pode simplesmente sair de perto ou pedir que a pessoa saia, isso não precisa gerar um conflito de interesses. Caso vocês dois precisem estar naquele lugar ou a pessoa te siga, ela está gerando uma insatisfação em você, e então não está tendo a devida consideração. Se você obrigar que ela não grite, de qualquer forma, você que não tem

consideração. Se a pessoa faz algo não contínuo, como por exemplo te dar um soco, também se aplica, pois seria necessário que ela não desse para que você não sentisse o incômodo (no caso do grito, a pessoa começar a gritar na sua frente pode se encaixar nessa forma de geração de insatisfação; mas tudo isso pode ser resolvido com bom senso e acordos, o importante é se preocupar com a satisfação do outro, quase sempre os acordos vão funcionar para proporcionar o equilíbrio em um conflito de interesses). 46


Uma historia possível

- Wild Child

A seguir apresenta-se uma história gerada automaticamente por um dispositivo existente em um dos possíveis universos, através de uma intrincada dinâmica. A história é apenas uma das 232356950330515550132681174922404579029361163092344871337674625759158144665487340379 173196273222374410745635238481 possíveis possuindo 11189 caracteres sem espaço, sendo 23 letras e 5 símbolos sem considerar acentos e maiúsculas. É interessante notarmos que esta se encontra em um particular e diminuto subconjunto de histórias perfeitamente legíveis por seres que habitam o mesmo universo, é fascinante:

O espaço é muito vasto e inúmeros átomos se organizam em uma refinada estrutura, que não tem gosto de nada. Aqui coisas do nosso interesse não costumam acontecer, então vamos nos afastar um tanto. Os espaços entre os pontos da rede vão se aglutinando até que de repente estamos diante de um doce cristal de açúcar. Assim como nós, uma faminta formiga observa a valiosa estrutura e se aproxima como um míssil teleguiado. A formiga não tem nome nem documento, mas é um indivíduo com objetivos, em sua história coleciona vários sucessos que mantiveram sua barriguinha cheia. Mas eis que esta expedição fracassa fatalmente, pois enquanto falamos de sua história, a formiguinha foi pulverizada por uma estrutura titânica, o punho do general Smith, que com um único golpe silenciou o inseto. O punho ergue-se da superfície, que é uma mesa, e o acompanhamos.

O general Smith está em seu gabinete, prestes a tomar uma decisão muito difícil. Tomando seus suspiros com bastante atenção, aprecia a garrafa de sua mais fina aguardente, elaborada com técnicas acumuladas em séculos de obstinação de diversas gerações de artesãos de aguardentes. Alisando a garrafa, levando a mão até a tampa, para retirá-la, pensa no quanto é incrível que qualquer técnica possa ser assim tão refinada, gerando depois de muito labor resultados tão fascinantes. Com a bebida já no copo, ele ajeita sua farda para poder apreciá-la em seu mais alto tom. Cada gole concede à sua subjetividade um deleite paralizante, fazendo-o sentir-se presente, sobrecarregando sua percepção. Encorajado por seu novo estado de consciência, o general presta continência às moléculas do ar ao seu redor e sente-se preparado para a execução da temida tarefa. Ele direciona seu fino e enrugado dedo indicador ao enorme botão vermelho enquanto pensa em sua esposa, seus dois filhos maduros, sua querida nação e sua vocação. O dedo chega e o alarme soa. O ataque é declarado e a guerra começa. 47


À medida que nos afastamos do gabinete, ouvimos com maior nitidez o som do alarme e a sinfonia das botas ecoando pelas escadas e plataformas metálicas. A visão é de muitos agentes militares formigando por todo o complexo de inteligência bélica da nação. Afastamos um pouco mais a ponto de ver todo o perímetro do lugar, com todos os seus prédios robustos e cinzas, e ouvir apenas o alarme tocando lá dentro. Nos adiantamos aos campos enquanto ouvimos o

alarme com intensidade cada vez menor, dando lugar ao leve som da brisa do campo, dando vida ao farfalhar das folhas. Fazemos uma viagem longa atravessando muitos campos, algumas cidades, um imenso oceano, tudo bem rápido, mas não tão rápido quanto o comando de ataque. Ao chegarmos do outro lado do planeta, a tropa já se encontra posicionada para o ataque estratégico que irá desencadear um intenso conflito que provavelmente durará anos. Aqui é noite e o céu está limpo, sem nuvens. Um extravagante comandante dá a largada gritando à frente e levantando sua pistola: Uhuull, vamos lá, galera!

As botas, agora na lama e na grama, batem com vigor em direção à base inimiga. Um festival de tiros surge em uma dinâmica que enche os olhos. O alarme inimigo começa a tocar, com um som diferente do alarme da base do general Smith. Esse alarme tem um toque mais frenético e ao mesmo tempo apreciável, a melodia foi projetada por um rapazinho ansioso, funcionário da fábrica de alarmes, que gosta de música. Vamos para o interior da base inimiga e vemos que dentro do refeitório encontra-se um inimigo que até agora há pouco estava apreciando um macarrão instantâneo sabor feijão. Ele preferia o de galinha, mas tinha só mais um, e estava guardando para o ato final, pois iria parar com isso. Por fazer mal à saúde. O nome desse

inimigo é Lin. Enquanto falávamos a respeito de seu macarrão, Lin saiu às pressas, deixando a tigela pela metade na mesa. Aqui dentro agora está vazio, podemos ouvir a folia lá de fora e o incessante alarme. Vamos voltar para a batalha. Em uma vista panorâmica, vemos um monte de cabecinhas ondulando, às vezes caindo ao chão. A defesa inimiga já começa seu contra ataque. Lá está Lin, no meio dos soldados inimigos que começam a levar as botas para bater na lama e na grama, vamos até ele.

Lin está ofegante, com medo, meio estranho, tendo que carregar aquele macarrão fresco dentro de si. Mas ele sabe o que fazer, ajeita a arma corretamente, puxa de um lado, bate do outro e está pronto para matar. Ele começa a atirar, ele é muito bom, sempre teve em mente que ser bom aumentaria suas chances de sobreviver e ganhar. Lin começa a pontuar, vendo os indivíduos sob sua mira transformarem-se em cadáveres. Mas não deu certo, uma bala aparece e entra em Lin, ela dilacera seu peito e vai rasgando seus tecidos internos. Lin agora cai com os 48


olhos arregalados, não precisa mais se importar com aquele jogo. Não precisa mais se importar com nada, na verdade. Mas não tem como. Caído na lama e na grama, com seus amigos cuidadosamente evitando pisoteá-lo, Lin percebe-se olhando para o céu cheio de estrelas. Lin pensa, que estrutura incrível, o céu. Nem se lembra quando foi a última vez que levou sua existência em consideração. Acompanhando a percepção de Lin, notamos que para ele a barulheira da batalha foi silenciada e o céu está realmente nítido. Lin não sente mais seu corpo e fascina-se com aquela sensação. Nunca havia parado para refletir a respeito da existência, nunca se interessou por religião ou filosofia, a todo instante tinha que se preocupar com diversos afazeres práticos. Então, naquele momento sublime, a um único passo da indeterminada inexistência, Lin focou-se nessa única questão. Ao longo de seu último suspiro, descendo à toda pela mais alta colina da montanha-russa mental, suas pupilas dilataram-se ao máximo e ele pôde ver uma infinidade de maravilhas antes ocultas no céu. Sob o majestoso monumento que surgiu de repente, seu último sopro consciente lançou a questão, sem esperar por resposta, ao dobrar a curva para o nada: o que é essa realidade?

Atravessamos agora uma quantidade de espaço assustadoramente grande, repleta de dinâmicas assombrosas compostas por sistemas inimaginavelmente colossais. Preciso manter a coerência, então me abstenho de tentar transmitir os horrores que os sentidos não captam, no bom sentido da palavra. A limitação perceptiva dos seres humanos e seus aparatos é vital para a manutenção da sua sanidade, esse cenário demonstra muito bem isso. Lin estava no auge de sua pertinência ao não esperar pela resposta. Bom, enquanto me distraí, acabamos chegando à fronteira desse grandioso lugar, uma região difusa, nem mesmo eu consigo visualizar o que ocorre nessa região do espaço, também tenho minhas limitações. Mas como consigo atravessála, continuo. Vamos subindo, subindo, as ordens de magnitude até visualizar um lugar muitíssimo diferente, é bom isolar os sentidos agora e prestar atenção somente nas minhas palavras. Estamos em um lugar literalmente inimaginável a um humano. Felizmente, a informação se mantém a mesma aqui, os sinais mediadores de relações, mas só. Vou traduzir os acontecimentos em termos compreensíveis, veremos que, apesar de totalmente diferente em aparência, o núcleo das relações é praticamente o mesmo do que move a formiga, Smith, Lin e

os seres tornádicos, e isso é crucial. A tradução será imperfeita, é assim com os conceitos, e para avançar uma única ordem de aproximação eu teria que adicionar uma quantidade imensa de texto, mas sigo em frente sabendo que será bem aproveitável.

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Podemos distinguir indivíduos, normalmente. Ao sairmos do vasto universo, percebemos estar em um laboratório, eles estão ali tentando responder a pergunta de Lin, sem saber. Utilizandose de técnicas avançadas, aqueles seres conseguiram dominar a capacidade de simular pequenas instâncias de universos como o deles, mas com os parâmetros fundamentais ajustados para diferentes valores. Descobriram teoricamente que a estabilidade dos universos para cada conjunto de valores ocorre em escalas espaciais diferentes, ou seja, diferentes universos são possíveis em diferentes tamanhos. Eles acabam de conseguir ajustar os parâmetros corretos para a geração de um universo estável na escala laboratorial que utilizaram, o pequeno universo pisca por um momento no aparato e eles coletam uma enorme quantidade de dados para interpretar. De lá que acabamos de sair. A respeito dos seres, a complexidade de dimensões de suas mentes é inacessível à compreensão de um ser humano, seria muito mais fácil que um peixe entendesse os problemas dos humanos do que um humano os problemas de um deles. Escalas maiores são privilegiadas em complexidade.

Mas, pensemos, isso diz que os seres humanos, ou melhor, até seres mais complexos existentes no mesmo lugar, em seus planetas contidos no universo que piscou, são impossibilitados de entender causas em um universo em escala superior. Ou melhor, foram impossibilitados enquanto podiam existir. Mas seu próprio universo só poderia vir a existir por meio de um evento ocorrido em escalas acima. Para os seres daquele planeta, a resposta para a pergunta de Lin é essencialmente inalcançável. Mas quanto mais acima, compreende-se mais o quão interessantes podem ser as variações mais cabíveis dessa pergunta. Por isso fascinam-se em a orbitar e fantasiar. Eu sei a resposta, mas não adiantaria tentar explicar, eu sinto muito. Os seres humanos e qualquer outro ser dali não possuíram a complexidade suficiente nem para entender a natureza de sua própria senciência, o que é uma pena, pois esta é excitante, o entendimento disso é um ponto de ruptura entre os universos que o possuem e os que não. Mas pontos como este existem vários, por exemplo, uns bem acima, pelo entendimento da natureza do tempo ou do espaço. O entendimento é uma chave para o que posso vagamente chamar de apreciação, mas não é bom tentar pensar que é como a apreciação que você sente.

Porém, seguindo a vertente otimista desta questão, preciso fomentar um raciocínio saudável. Os seres humanos poderiam ter conseguido dominar a técnica de criar universos estáveis e interpretá-los, espero que tenham conseguido. Apesar das limitações, este é o caminho possível para mais, como disse, apreciação. Dentro das possibilidades essa é a maneira de se entender as coisas mais complexas. Uma brincadeira saudável é, sabendo que estes universos são menos 50


complexos que o seu e talvez vocês pudessem compreender coisas que poderiam existir ali, você arriscaria imaginar o que encontraria? Do que você precisa para conseguir? Espero que sobreviva à guerra que acabou de começar em sua experiência, não insista que eu conte o que irá acontecer com você, saber isso pioraria suas escolhas. E lembre-se do pequeno asteroide. Eu sou um indivíduo que, de certo modo, conserta falhas na existência, e é por isso que te mostrei o que mostrei, do jeito que mostrei. Sinta-se privilegiado ou responsabilizado. Muito bem, vou indo, e você terá que voltar agora.

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Um evento explicativo da família explicita no dia a dia dessa grande chamada margem. -Vitória

Na minha família a gente aprende o NÃO desde muito cedo. Aprende até mesmo antes do EU TE AMO, afinal, vai que na verdade você não ama a pessoa. Antes mesmo de aprender que tudo pode ser reconstruído, que tudo pode ser remodelado, que tudo pode ser perdoado.

PERDÃO, outra palavra que não usamos muito. Pois, perdão é pra erros, e por que diabos você erraria? Já não aprendeu que não é não? O leite derramado não volta pro copo...QUE LEITE?

Mais ausente que Perdão está apenas o termo NÃO CONSIGO. Que está lá, páreo páreo com TENTAR. Você não tenta, se você já acha que tenta nunca vai conseguir, e não conseguir não é uma opção.

Nada é uma opção, tudo, obrigação, dever, necessidade, até porque pra quem não tinha comida em casa, a única opção é SOBREVIVER.

E que fique bem claro sobreviver não é tentar, perdoar, não conseguir, muito menos AMAR. Amar é supérfluo, fica ali do lado do corredor de bolachas, aquele mesmo que você nem sabe onde fica, não se preocupa, que um dia acha, só tomara que a bolacha não tenha se esfarelado como o amor da nossa sociedade...ops, FAMÍLIA.

Família, a mesma que te coloca no mundo criticando a filha que cria a sua cria com qualidade de vida. A mesma qualidade de vida que não se encaixa na telinha da rede globo. “Mas ué monamur? A Globo não fala só dos colarinho blue?”

Não, não minha amiga, o role é mais em baixo, quer dizer, mais em cima, lá em cima, na favela, a mesma que é filmada como quadra de futebol, maconha e muita baderna. MEEEU AMOOOR, baderna é pouco pro que aquele povo vive...morre, nas mãos de tantos sob os olhos de poucos, com gritos de ninguém e luto...coletivo, assim como aquele que pegamos a 3,80 pra poder ir

limpar privada de madame.

E não é fácil, mas desde pequeno aprendi que NÃO seria que amor nesse momento só cabia na sacola debaixo da cama, na esperança de ano que vem ganhar mais. TENTAR não é pros fracos, porque fracos não TENTAM, fracos sobrevivem, todos os dias, e só perdoam quando quem derrama paga o leite. 52


Matador de dragões -Rorschach Mal o filme acabou e Nicolas já saiu correndo do sofá. Ele lembrava que tinha uma espada guardada em algum lugar de seu quarto, e ele precisava de uma agora que ia ser herói. O mocinho do filme não era príncipe, ele era um homem comum que decidiu que as pessoas precisavam ser ajudadas, e então ele ajudava. Nicolas gostou e agora ia ser igual a ele, assim que encontrasse sua espada. Ele passou muito tempo procurando, muito mais do que teria passado por qualquer outra coisa, mas agora que tinha visto essa possibilidade de aventuras e glórias, ele tinha que ser herói. Encontrou a espada no fundo de um cesto que até alguns segundos atrás estava cheio de brinquedos velhos. Deixou o quarto caótico para trás e, muito feliz, saiu em busca de sua primeira vítima, alguém que precisasse ser ajudado. À sua frente, um corredor cheio de portas para muitas oportunidades. Entrou na primeira, o banheiro. Tentou imaginar que as toalhas penduradas eram bandidos com quem tinha que lutar, mas logo derrotou todas. Não era suficiente, ele precisava de algo real. De volta ao corredor, próxima porta. Chegou na sala da casa e encontrou Tobias deitado no sofá, parecendo muito confortável. A mãe já tinha falado milhares de vezes para o Tobias que ele não podia entrar em casa, e ele ainda tinha a audácia de deitar no sofá. Criminoso. Nicolas se aproximou e deu uma espadada com toda sua força nas costas do meliante, que acordou num susto. O cachorro, como sempre fazia, achou muito divertido e entrou na brincadeira. Os dois correram por todos os cantos, ninguém sabia quem perseguindo quem. Foi uma batalha épica. Por cima do sofá, passando por baixo da mesa, pulando os cacos do vaso que estava em cima da mesa, pela cozinha. Em um momento, Tobias roubou a espada e saiu correndo. Nicolas ficou bravo, isso não valia. Recuperou sua espada e foi embora, deixou o cachorro para trás. Voltou para o corredor, ainda tinha algumas possibilidades. Abriu a porta do quarto da irmã, ela estava chorando. Perfeito, uma mocinha em apuros. Ela começou a gritar. “Sai do meu quarto, Nicolas! Eu já te falei mil vezes, a porta está fechada, não é pra entrar”. Ele tentou falar que queria ajudar, queria ser herói. Ela se levantou, o jogou pra fora e bateu a porta. Ele não sabia o que pensar, todas as mocinhas do filme queriam ajuda. O que ele fazia com uma que batia no herói? Ele estava ali, no corredor, confuso, quando escutou “MAS O QUE É ISSO?”. Correu pra sala,

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sua mãe estava em casa, ele queria contar pra ela sobre suas novas aventuras. Ela, com as mãos na cabeça, olhava para o cenário da grande batalha que ocorrera há pouco. “Cadê sua irmã?”. Ela passou pelo corredor, direto para o quarto da filha. “Ana Julia, o que aconteceu aqui? Eu falei que era pra você cuidar da casa. O Tobias entrou, a sala está destruída.” “MÃE, sai daqui! Eu não quero saber disso, minha vida não vale nada mesmo” “O que é isso, Ana Julia?” A irmã começa a lamentar sobre um menino que estava saindo com uma menina e agora a vida dela não fazia mais sentido. “Por favor, Ana Julia, toma jeito...” “MÃE, você não entende! SAI DAQUI!”

Nicolas escutou a porta batendo de novo. A mãe parecia cansada, mas sua indignação voltou quando viu a situação em que estava o quarto do menino. Ele tinha que arrumar tudo naquele instante e estava de castigo, sem ver filmes por uma semana. Nicolas caiu na cama e começou a chorar enquanto a mãe saia, ainda com raiva. Pouco tempo depois ela voltou, já mais calma, para conversar com o filho sobre o que tinha acontecido. Ele, ainda entre lágrimas, contou sobre o filme, sobre como queria ser um herói, como achou sua espada, como lutou com Tobias, como tentou ajudar uma mocinha que não queria ajuda, e como no final tudo o que ele queria era encontrar um dragão para derrotar. A

mãe ouviu aquele relato com o coração apertado. Ela pensou em tudo o que estava enfrentando. Na filha adolescente com quem não conseguia mais conversar. No emprego que não suportava mais. Nas audiências intermináveis, como aquela de hoje, a que tinha que se submeter para que o pai desses coitados a ajudasse em alguma coisa. Nas toalhas caídas no chão molhado do banheiro, no sofá sujo de terra e no resto da bagunça que teria que limpar. Bem que queria um herói que a ajudasse. Torcia para que o filho nunca precisasse enfrentar dragões tão reais. Ao terminar seu relato, o menino viu a mãe com um sorriso fraco e uma lágrima no canto do olho. Não entendeu. “Você já é meu herói, Nicolas” Ela se inclinou e deu um beijo na testa do

filho. “Agora, vem, me ajuda a arrumar essa bagunça”.

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