O círculo vol 7

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Editorial O Círculo se mantém.

Começando um novo semestre de existência, muitos autores e muitos textos já passaram por

essa revista. Contos bonitinhos, contos macabros, contos horripilantes, contos indefiníveis, divulgação científica, divulgação de conhecimento, muita reflexão sobre a vida e sobre a existência. Qualquer coisa pode passar pelo círculo, desde que te motive a escrever.

No círculo, os autores não têm nome, têm pseudônimos. Você pode criar o seu, ser quem quiser quando escreve, ser um em cada texto, você escolhe. Ficou interessado? Envie seu texto com pseudônimo e o símbolo que será sua assinatura para nosso email:

textos.ocirculo@gmail.com

Para enviar dúvidas, opiniões, sugestões, etc, com a possibilidade de se manter anônimo, utilize o endereço:

www.mepergunte.com/ocirculo

Lá mantemos um mural com os comentários enviados e nossas respostas.

Boa leitura,

O Círculo.

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ÍNDICE

Índice

04. Compondo um sentido especial: acordes de violão (Sol) 14. O método científico: Capítulo VI – Um dia na vida do palhaço castelinho (W. N. Centauro) 21. O Mundo das Frutas: Capítulo II (Wild Child)

41. Fluxo de pensamento (Selfish Light) 42. Eu sou uma sonhadora (Wild Child) 48. Nihil Letter (Wild Child)

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Compondo

um Sentido Especial

Acordes de Violão - Sol

Movido pela vontade de fazer mais um texto para essa coluna, decidi escrever sobre um tema um pouco diferente dos anteriores, algo de caráter prático. Neste texto, apresentarei um pouco do funcionamento do violão, bem como algumas mecanismos para aprendermos a construir todos os acordes já abordados durante outros textos. Para compreensão deste texto, recomendo que você já tenha lidos os artigos sobre Intervalos e Formação de Acordes desta mesma coluna. Como este texto é voltado para o entendimento de um instrumento musical específico, e não para a música teórica de maneira geral, decidi dar este subtítulo de Especial.

O Violão O objetivo deste texto é apresentar de forma bem objetiva e intuitiva como encontramos as notas musicais em um violão e a partir disso, desenvolver um método rápido para identificarmos acordes e criarmos formas padrões para suas digitações (isto é, em quais espaços do instrumento devemos pressionar cada uma das cordas para produzir cada acorde).

É muito comum vermos que uma pessoa consegue tocar uma determinada harmonia no violão sem necessariamente conhecer teoria musical. Tudo que geralmente se sabe é que ao pressionarmos as cordas em determinadas posições do violão estaremos produzindo um acorde X ou Y, mas sem de fato entender porque os acordes são estes. Isto é completamente inviável, uma vez que é necessário decorar todas as posições possíveis para cada um dos acordes, pois deste ponto de vista, os acordes representam posições no violão completamente descorrelacionadas. No entanto, compreender o funcionamento teórico do instrumento permitirá montar um mesmo acorde de um grande número de maneiras diferentes.

Para isso, devemos primeiramente aprender a identificar as notas no instrumento. Uma boa maneira de se compreender o violão é imaginá-lo como a junção de 6 monocórdios: cada corda por si só é um instrumento independente e capaz de gerar todas as notas musicais quando reduzimos o seu comprimento. Para criarmos um violão, basta compormos 6 monocórdios diferentes, cuja cada uma das cordas possui uma ‘grossura’ (na verdade, uma densidade) e uma tensão diferente. Uma corda quando 4


tocada sem pressionar nenhuma das casas (que diremos ser o som da ‘corda solta’) produzirá uma nota, a qual pode ser escolhida ajustando a tensão da corda, o que pode ser feito girandose o que chamamos de tarraxas. Podemos escolher qualquer conjunto de 6 notas para compor a afinação de nosso instrumento, no entanto existe uma afinação padrão que é aquela que geralmente é utilizada pela maior parte dos violonistas. Evidentemente cada músico irá escolher a afinação que achar mais conveniente, contudo, afinações diferentes da padrão geralmente consistem em alterar a frequência de apenas uma das cordas, ou mesmo fazer um deslocamento de frequência em todas as notas da afinação padrão (como por exemplo deslocá-las de um semitom). Representando cada uma das cordas com números de 1 a 6, da mais aguda para a mais grave (que é equivalente da corda mais fina para a mais grossa), temos que as notas na afinação padrão podem ser identificadas como na figura a seguir:

A identificação numérica das cordas deve ser a mesma para o caso de um violonista canhoto, pois este pode simplesmente inverter a posição das cordas, de maneira que a mais grave seja a sexta corda e a mais aguda a primeira:

Cada uma das colunas que separam as cordas são chamadas de ‘casas’. Quando pressionadas, elas diminuem o comprimento da corda de maneira a adicionar um semitom na nota da corda solta correspondente. Dessa forma, pressionando a primeira casa da corda 6 obteríamos a nota Mi# (Fá), a segunda casa a nota Fá# e assim por diante. Na figura a seguir, apresento algumas notas no braço do violão a partir da afinação padrão mostrada acima.

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Uma simetria interessante desta afinação é que a quinta casa de cada corda corresponde à nota da corda solta que se encontra logo abaixo, com exceção da terceira corda, na qual a nota Si se encontra na quarta casa. É por este mesmo motivo que geralmente os músicos precisam somente de uma corda afinada para conseguir afinar todas as outras, pois ele conhece a correspondência das notas em cada uma das cordas. A tablatura é um sistema simples de representar as notas no violão. Nela identificamos as cordas no braço do violão através de linhas, como se este estivesse deitado sobre o nosso colo:

Para representar as notas, indicamos qual o número da casa que devemos pressionar em cada corda, e realizando uma leitura da esquerda para direita, podemos obter a sequência de notas que devem ser tocadas. Para exemplificar, uma possível digitação da escala de Dó Maior está na figura a seguir:

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Evidentemente esta forma de escrita não é tão precisa como uma partitura, pois não informa nada sobre a natureza rítmica da melodia. Agora que conhecemos como identificar todas as notas no braço do violão, podemos simplesmente escolher qualquer combinação das casas nas cordas para obtermos os acordes desejados. Apresentarei a seguir algumas formas (ler fôrmas) que nos possibilitará montar um grande número de acordes de maneira rápida e intuitiva.

O Sistema CAGED O sistema CAGED constitui em um grupo de 5 acordes maiores (C, A, G, E e D ) que servem como referência para localizar qualquer outro acorde em qualquer região do braço do violão.

Basta identificarmos estes acordes na região mais grave do violão, e deslocar as

posições obtidas para as regiões mais agudas até atingir a tonalidade desejada. Por simplicidade, farei a abordagem principal usando os acordes tríades como referência. Os diagramas que usarei para apresentar os acordes são mecanismos muito utilizados por violonistas. Neles identificamos os dedos da mão que pressionará as casas com números de 1 a 4, através da seguinte correspondência: 1- indicador, 2 - médio, 3 - anelar e 4 - mindinho. Assim, colocaremos os números nas casas correspondentes a nota desejada, sugerindo imediatamente uma maneira de posicionar sua mão para fazer o acorde. Evidentemente isto não é uma regra, e você poderá fazer o acorde usando outros dedos sem ser aqueles indicados pelo diagrama. Esta descrição está representada na figura a seguir.

O acorde ao lado pode ser cifrado como um D#° , pois possui as notas Ré#, Fá#, Lá e Dó, sendo pressionadas respectivamente pelos dedos 1, 4, 3 e 2. Embaixo do diagrama, indicamos quais cordas devem ser tocadas com uma circunferência e quais não devem com um ‘x’. A circunferência preenchida indica qual é a nota tônica do acorde. Tendo apresentado esta notação, acredito que ganhei a sua permissão para utilizá-la na explicação do sistema

CAGED. Vamos começar pela primeiro acorde, que é o de Dó Maior (C):

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O acorde ao lado corresponde à tríade de Dó Maior, onde as notas Dó, Mi e Sol, estão sendo tocadas pelas cordas 5, 4 e 3. As cordas 2 e 1 estão repetindo as notas Dó e Mi, preservando a identidade do acorde. Através da simetria do violão, podemos deslocar essa forma que estaremos adicionando um semitom a medida que avançarmos uma casa na direção aguda das notas e assim poderemos obter todos os acordes maiores através desta mesma forma. É importante lembrar que para obter os outros acordes, todas as notas devem sofrer a mesma adição de frequência. Assim, as cordas soltas 3 e 1 também devem ser deslocadas. Dessa forma podemos obter, por exemplo, os acordes de Dó#, Ré e Ré# através da forma de C como é mostrado na figura a seguir:

Nestes acordes, apenas deslocamos toda a forma para o sentido agudo do violão. No primeiro caso, adicionamos um semitom a todas as notas, obtendo o acorde de C#. O mesmo foi feito nos outros dois casos, contudo adicionando 2 e 3 semitons respectivamente. A barra perpendicular às cordas do violão na figura é o que chamamos de ‘pestana’. Este símbolo indica que o dedo indicador deve pressionar várias cordas simultaneamente, o que no caso da figura corresponde à pressionar cordas 3, 2 e 1 ao mesmo tempo. A pestana foi necessária para adicionar semitons às cordas soltas 3 e 1 do acorde C. Os números que se encontram à esquerda da casa onde reside a pestana (nos acordes de D e D# ) indicam em qual casa do violão o acorde deve começar. Deslocando esta mesma forma ao longo de todo o braço do violão, até o seu limite, podemos continuar obtendo outros acordes maiores.

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Isto é o sistema CAGED: cada um dos acordes de seu nome irá originar uma forma para produzir outros acordes. Continuando na sequência, temos a forma de Lá maior (A):

A partir daqui não irei falar nota por nota dos acorde. É um bom treino verificar quais notas são pressionadas em cada casa e em quais casas se encontram a terça e a quinta nota do acorde. Como feito anteriormente, podemos obter outros acordes com esta forma, simplesmente deslocando ela ao longo do braço do violão através do uso de uma pestana:

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A terceira forma ĂŠ derivada do acorde de Sol Maior (G):

A seguir temos a forma de Mi Maior (E):

E por fim a forma de RĂŠ (D):

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Com este conjunto de formas, podemos gerar todos os acordes apresentados nos textos anteriores. Os acordes menores podem ser obtidos simplesmente identificando qual casa que possui a terça maior do acorde e voltando-a de uma casa, gerando assim uma terça menor. Nas figuras a seguir, exemplifico o processo identificando em vermelho a casa que contém a terça maior de cada acorde:

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Estes acordes menores podem ser usados como formas, e assim podemos deslocá-los ao longo de todo o braço do violão com o uso de pestanas para obter os demais acordes menores, exatamente como explicado com os acordes maiores. Por fim, temos que assim como os acordes menores, os acordes tétrades podem ser obtidos a

partir das formas do CAGED simplesmente adicionando uma sétima maior ou menor nos acordes. Nos acordes tríades geralmente uma corda é responsável por repetir a nota tônica. Assim, basta voltar dois semitons na nota tônica para obter uma sétima menor (ou um semitom para uma sétima maior), o que equivale corresponde a voltar duas casas no violão. A seguir exemplifico alguns acordes com sétima, que também podem ser usados como formas e deslocados ao longo de todo o braço. É interessante compará-los com os acordes tríades para verificar o que foi alterado em cada um deles.

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Conclusão Este é um texto bem simples que teve como introduzir alguns aspectos práticos do violão, como o funcionamento teórico do instrumento e mecanismos para montagem dos acordes mais simples, já apresentados nos textos anteriores.

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MÉTODO CIENTÍFICO W. N. Centauro

Eu sou W. N. Centauro, e você será julgado.

Na crônica de hoje, o relato de um dia na vida de um personagem muito querido pelas crianças das nossas Atenas do mundo. Alguém que perambula, e, como sapo, pula de uma praça a outra, gritando com os céus e com a terra, defendendo as formas geométricas e as relações matemáticas. Ele um dia foi alguém com nome, sobrenome, beleza e medo. Mas hoje em dia é um personagem, um absurdo transmutado em gente, um conjunto de asquerosidades selecionadas. Algo que não existe, mas existe. Alguns trechos tiveram de ser modificados ou cortados. Mesmo aqui algumas coisas tem limite. Senhoras e Senhores, este é um dia na vida do Palhaço Castelinho, aquele que “saiu da história para cair na vida”.

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Capítulo VI: Um Dia na Vida do Palhaço Castelinho A seguinte sequência de fatos só foi por mim observada à distância, como um desavergonhado, porém cauteloso,

observador,

tão

analítico quanto qualquer cientista deve ser. Eu sou bem vivo, enquanto a Academia é bem morta; talvez eu também devesse

morrer, mas respirar é um vício. Os vícios eventualmente também matam, e, portanto, como a frase A termodinâmica é uma das áreas mais magníficas da ciência moderna. Calca-se pelos estudos sistemáticos a respeito das propriedades térmicas dos sistemas físicos. Seu uso estende-se desde o entendimento do porquê do quente ser quente, até sobre a composição de galáxias distantes.

latina no final do teorema, é bem provável que de fato eu pereça, como queremos demonstrar.

…Mas não hoje, e nem ontem. Pois precisamente ontem passei o dia a observar os fragmentos da vida deste personagem muito curioso. Seu nome verdadeiro não existe, nunca existiu nem nunca existirá. Nós, os pedestres, conhecemos-no como O Palhaço Castelinho.

O Palhaço Castelinho é um desses pobres diabos desprovidos de toda e qualquer dignidade. O mundo e a ciência foram muito, demasiadamente crueis com aquele homem. Ele mora em

qualquer sarjeta, e dorme entre as vigas enferrujadas dos prédios que ainda não começaram a existir. Suas roupas são as mesmas há 36 anos, data na qual surgiram os primeiros relatos de sua folclórica e lamentável existência, e estão, agora, inacreditavelmente sujas, com lamas que viram guerras, quedas e ascenções das mesmas coisas e não foram esquecidas pela água limpa de uma lavadora de roupas, muito menos pela anistia solidária da política social inconsciente. Um dia, talvez, ele tivesse sido alguém. Mas esse dia passou, e o dia após esse dia passou, e assim foram os meses desde então.

Ele acorda quase todo dia, e, após blasfemar, beberica um gole d’água de qualquer poça. Come um punhadinho de terra, pedra, lixo, às vezes restos de comida, e vai à Praça dos Pensadores, aquela que, defronte à Universidade, traz uma monumental estátua de Galileo e dois obeliscos em pomposa homenagem aos herois da humanidade, que, através da ciência e da boa vontade, 15


associadas ao trabalho livre de interesses, deram novas esperanças a esta espécie suja que somos, curvados à grandiosidade dos gênios. Fosse a hagiografia uma obra arquitetônica, poucas no

mundo

seriam

tão

ilustrativas quanto aquela simples Praça.

Castelinho, longe de ser gênio, autodeclamava-se como um, e assumia todos os trejeitos de um personagem patético que devia agir como age um gênio, nenhuma vírgula a menos. E seu ritual de geniosidade é o mesmo há 36 anos: ele vai à praça e ensina, com muitas brincadeiras lúdicas, sobre os segredos do Universo às pessoas que passam, que quase nunca tem preocupações sobre essas grandes

obras – mas precisam saber, de qualquer forma.

Uma menininha e sua mãe aguardam o ônibus circular. Castelinho aproxima-se por meio das duas, sorrateiramente, com sua boca desdentada e com restos de saliva, cachaça, café, terra, cimento e insetos, seu odor de cadáver centenário, e sussurra às duas sobre o calor do Sol e a vida das plantas. Percebendo o horror e a mãe tentando esconder sob a saia a menina de 7 anos, Castelinho acalenta os demônios e explica a Segunda Lei da Termodinâmica, e mostra a equivalência dos enunciados de Clausius e Kelvin.

Agora a filha já não se esconde, e a mãe até acha graça. A maquiagem de Castelinho, feita com tão somente sujeira, e não outra tinta, desperta os riscos no pedaço sem pai daquela família pacata. A mãe pergunta se a desigualdade de Clausius tem relação com a entropia, e ele dá a ela uma flor morta, uma orquídea arrancada do bolso, com a qual dormira abraçado em núpcia podre na noite anterior, imaginando as pétalas como se fossem a pele macia da apresentadora de telejornal. A mãe, desorientada sobre o contexto jornalístico da flor, agradece e fica enrubescida.

“Vê, minha filha, isso seu pai nunca me fez.” 16


Castelinho, então, senta-se ao banco com as duas e prossegue sua aula. Faz um agrado na menininha, que, com uma inocência bíblica, constata o quanto gosta dos palhaços.

“Ah, papai do céu me disse que gosta

das

criancinhas”,

diz

Castelinho e entrega à criança um saquinho cheio de areia. “O mais precioso dos elementos, aquele que não

pode

ser

comprado

nem

vendido: a verdadeira amizade é como a areia do deserto”, sublinha o pesquisador.

Enquanto a criança se diverte com o saquinho de areia, a mãe fica cada vez mais desconsertada enquanto o Palhaço roça a perna em sua coxa exposta. Um estranho, além disso um mendigo. Um mendigo, além disso um cientista. Um cientista, mesmo assim sujo. A quantidade de informações absurdas dentro de seu peito, implorando para explodirem e colapsarem num mar de hemorragia de ideias, paralisa a boa senhora, e ela não resiste nem quando a língua de Castelinho lambia seus lábios limpos de mãe solteira.

“Não é nada, filhinha, é apenas uma brincadeira, o Palhaço e eu estamos brincando de marido e mulher, de rei e rainha recém casados numa bela cerimônia”, diz a mãe, como pôde, enquanto sentia o gosto azedo do esgoto que escorria do nariz e da boca de Castelinho e entrava na sua. A filha não entendia, e não podia entender. Assim é com todas as ciências, e Castelinho é um cientista.

O ônibus circular finalmente chegou, e mãe e filha se despediram carinhosamente do Palhaço Castelinho, jurando não contarem o Segredo do Universo para mais ninguém, e prometendo visitá-lo no edifício em construção da Rua Antônia em breve, quando ele menos esperasse, para que todos voltassem a brincar felizes e juntos, como uma família completa. Castelinho, como

recompensa, ganhara duas coxinhas e um suco de limão muito gostoso e encorpado, sem nenhum açúcar. Era hora do almoço.

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Os (poucos) cabelos brancos da experiência não conseguiam esconder o suor causado pelo Sol do meio dia, e a pele derretia como fosse maquiagem de um pierrô derrotado, e pedaço do olho vinha ao nariz, e parte do nariz já era testa esfregada, e rugas eram lagos habitados pelas mais diversas criaturas de um ecossistema insalubre e tóxico. Castelinho, para refrescar-se, e tirar o cheiro da mãe e da filha, pula na fonte que fica em frente ao obelisco. A água, parada há mais de meses, verde, podre, contaminada, provavelmente estava envenenada. Mas todo cientista sabe que água, mesmo suja, ainda é água. E, por ser água, também é vida. E a vida, mesmo suja, é limpa se pedirmos perdão ao Criador de Todas as Ciências, o Grande Arquiteto que construiu com exatidão as leis que moldam o mundo.

Enquanto lambia os beiços depois de, já banhado pela água verde, almoçar o final de sua comida do dia, Castelinho ponderava sobre os alicerces da realidade. Talvez, segundo sua consciência, ele fosse um maluco. Talvez sua razão não fosse suficiente para chegar perto de Deus. Talvez sua existência fosse uma ilusão, e talvez os pedestres, que para ele eram seus alunos, fossem nada mais que pedestres, meras marionetes de um sistema injusto e cheio de desigualdade, que, autoconsistente e tradicional, não conseguiria solucionar seus reveses por meio de manobras ou atos simples, e estivesse fadado a se retroalimentar até que chegasse num ponto de tensão tão intensa que o colapso seria a única alternativa. Talvez ele fizesse parte da

escória do mundo, só queria se forçar a acreditar que não. Talvez suas vitórias fossem uma piada. Talvez o circo já tivesse ido embora… Mas ele nunca iria saber.

Saindo do reboco ao qual recostara para almoçar, e após comer mais um punhadinho de terra e beber um bom gole de água suja, Castelinho abandonou a filosofia e voltou ao mundo, e voltou a se esquecer daquilo que não existe, abriu os braços, em alegria e gratidão por mais um dia, e retomou seu discurso sobre o Sol, os Planetas e a Segunda Lei de Termodinâmica.

Durante o resto do dia, Castelinho não perdeu a chance de juntar pedras em temperaturas diferentes, e criar trabalho antes do Universo implodir. Fez de seus ovos um saboroso omelete vivo, enquanto brincava com qualquer um que passava naquela praça tão inspiradora. Castelinho, sábio, intrigava os moços novos, dava razão à vida dos senhores velhos, conquistava as crianças e seduzia as mulheres. Conhecimento é poder, e Castelinho sabia disso. Ele sabia de muitas coisas, havia viajado por todos os mundos, havia sido julgado por gente muito mais rude do que ele era com ele mesmo. Ele já havia vivido todos os pesadelos, e acordou de todos eles para um mundo muito mais cheio de cores, sons, cheiros e texturas.

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A noite se aprochegava depois de um glorioso luscofusco; o Sol, dono de toda a vida, ia lentamente embora pelo horizonte e deixava no céu uma mancha avermelhada, como aquela que escorreu das suas pernas há tantas décadas quando sentiu nascer dentro de si o Palhaço. O Sol se esvaía, e ironicamente, lembrava Castelinho do início. O fim sempre o lembrava do início. E assim seria amanhã, e no fim, e depois.

Era chegada a hora de deixar sua sala de aula e partir para sua casa da noite. Consigo, recordações calorosas de um dia de muito Sol e muito conhecimento. Pessoas, tantas pessoas, que haviam atravessado sua existência, e, num mesmo instante, desapareceram como a organização das coisas, que até ontem eram certas, e agora tão estranhas, desordenadas,

corrompidas, vazias… Ele talvez nunca mais veria aqueles pedestres, e eles estariam trancafiados para sempre dentro de suas memórias mais íntimas.

Chegando ao que, um dia, será o estacionamento do prédio, Castelinho encontra aquela que sempre deu alegria à sua existência.

“E hoje já cheguei em casa, meu amor… E tudo parece igual, mas o Universo não é mais o mesmo… E então, minha querida esposa… Hoje é você Jesus? Ou é Maria?”

E Castelinho deu um longo beijo em sua esposa. Uma mulher, ou o que restou dela. Uma das moças que encontrara na praça, num dia desses, e que quis saber os segredos do Universo, e que tinha peculiares arrepios na nuca quando ouvia a palavra “Clausius”. Após uma longa noite de estudos, ela acabou desacordada, amarrada numa cruz de madeira, enfaixada e recoberta pelas fezes de Castelinho. Seus olhos, vendados, a privavam de sujar suas memórias com a sujeira do mundo. Seus hematomas deixavam sua linda pele verdadeira protegida de todo o mal. Sua tremedeira a livrara do frio, seus ouvidos vazados a faziam escutar apenas a verdade que vinha da Ciência. A esposa de Castelinho já estava amarrada há quase dois meses no estacionamento, e sua vida fora do edifício nunca havia existido. Seus pais não notaram sua falta, seu esposo já havia a substituído por três belas loiras que conhecera numa festa, seu cão de estimação, tão leal, já fora enveneado pelo vizinho incomodado pelos uivos tristes desde que ela nunca mais voltara pra casa… Agora o direito dela ter um corpo também se fora, e Deus era um natimorto. Tudo era blásfemo, mas a ciência haveria de salvá-la.

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Brincaram. Os vômitos, o sangue, a urina e as fezes dos dois se abraçaram no concreto do estacionamento. O orgasmo foi a prece de boa noite. E eu tudo vi, e nada fiz.

Amanhã, é tudo igual, e nunca seremos livres, senão pela ciência. O mundo nunca será o mesmo, e mesmo assim, será nada além de um eco da criação.

Bons estudos.

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´ Mundo das frutas – capitulo iI - Wild Child II. O Círculo A sala suspensa na elevada torre sustentava um ar simples, portando um ambiente estritamente funcional, com uma grande mesa redonda no centro, o número exato de cadeiras e pouca iluminação. Preto e branco, nenhuma decoração e uma estática congelante. Tudo em perfeitas condições de evocar decisões destituídas dos ruídos emocionais, de evocar a lembrança de que estes ficaram aos pés da grande torre. A pequena porta se abriu e os maracujás entraram em silêncio, um a um em direção

aos seus lugares. Mais uma reunião se iniciava e os membros do Círculo buscavam a concentração necessária para estarem ali. Em instantes, sem cerimônias, começaram as falas:

- Senhores, a reunião de hoje é extraoficial e será rápida, estamos aqui apenas para nos assegurar de que teremos sucesso no advento de mais uma passagem e iniciar a discussão de algumas questões recentes. Vamos ao primeiro tópico.

Os maracujás consultaram folhas sobre a mesa com a programação da reunião. Um deles, notando o primeiro assunto, proferiu em um tom sem emoções:

- O conjunto de recompensas divinas para o próximo período já está preparado e conseguimos incluir todas as descobertas científicas que visam ao aprimoramento da vida na sociedade. O possível atraso devido à inclusão de última hora de um fármaco para a casca já foi contido e o conjunto sairá em conformidade com a tradição, já no primeiro dia.

- Ah sim, os sacerdotes aguardam esta confirmação, excelente.

- Dito isto, há ainda algum imprevisto a ser considerado relativo aos eventos da passagem?

Os maracujás se olharam. 21


- Muito bem, então. Isto nos leva à próxima questão. Pela análise do histórico de estatísticas de comportamento das Drosophilas, devemos esperar a possibilidade de que a carga de bananas deste período aumente. Quais são as medidas tomadas pelos departamentos competentes?

- Quanto a isso não temos razão para nos preocupar, tudo está sendo feito em acordo com as estatísticas. Os sacerdotes convocaram um grupo extra de bananas, entendidas como substitutas em caso de alguma eventualidade. Este possível acréscimo será visto com positividade e as bananas extras já estarão preparadas.

- As notas dizem que na época do último acréscimo foi suscitada uma comoção de questionamentos na população.

- Sim, mas a doutrina atual permite que isto seja encarado de forma positiva, é uma doutrina diferente daquela época, correto?

- Claro. Acho que não temos problema com isso mesmo. Estamos diante de uma

simples e esperada manutenção no nosso sistema.

- Próxima questão. - Proclamou um deles depois de um instante, sem abalar a coloração única da discussão - É interessante que discutamos o quanto antes esta próxima pauta, se me permitem. Na universidade o debate em relação aos avanços para além da fronteira está se acalorando. Acredito que a posição do Círculo é claramente a de expandir o progresso e colocar a nossa sociedade em uma fundação científica que seja a que possibilita um maior domínio da nossa realidade. Portanto, é hora de interferirmos nesta discussão.

- Pode colocar todos nós a par dos acontecimentos, professor?

- Naturalmente. Um grupo de novos cientistas está ávido por explorar o mundo, do outro lado da fronteira, interagir com os selvagens e promover o que estão chamando de projeto de abertura científica. Esta posição é arriscada do ponto de vista da contenção do conhecimento, promover pesquisa científica fora dos muros da universidade é algo muito depreciado pelo corpo docente mais... ortodoxo. 22


- Claramente este movimento representa uma aproximação entre a ciência e o outro lado da sociedade. Você tem razão, não podemos impedir o progresso científico por um receio, mas é preciso muito cuidado, não foi por um mero receio que não fizemos isso antes.

- Mas estamos em uma situação muito sólida, eu mesmo sinto que está na hora de tomar passos como estes.

- Seu sentimento nos serve de nada, professor.

- Evidentemente, eu entendo. Eu penso que conseguiremos promover uma expansão absolutamente controlada, sugiro que façamos um teste para investigar com o que estaremos lidando.

- Muito bem. Se isso funcionasse, sem dúvidas nos traria bons benefícios.

- Exatamente, mas primeiro precisamos abrir o caminho da nova geração através

dos velhos cientistas e suas inclinações dogmáticas.

- Qual é a sua sugestão, professor?

- Podemos promover um projeto de pesquisa envolvendo o estudo dos silvestres. Tenho equipes muito interessadas em realizar estudos e aprender com eles e acredito que esta seria uma forma segura de testar esta nova frente. Peço ao Círculo um projeto de intervenção na universidade para criar este projeto.

- Então você tem um grupo e uma pesquisa em mente?

- Sim, eu tenho um projeto elaborado.

- Mas acredito que um estudo dos silvestres iria causar uma comoção ainda maior na universidade. Isso não seria um problema? – Interferiu outro maracujá, preocupado.

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- Seria a melhor forma de promover um teste mais seguro, no entanto. O debate na universidade é o menor dos problemas, neste caso.

O maracujá pensou por um instante. Então disse:

- Por que é mais seguro, professor?

O professor hesitou brevemente.

- Hm... das possibilidades com grande potencial de novas descobertas, eles estão mais próximos e nos parecem menos obscuros, sabemos mais com o que estaremos lidando, além do fato de que eles próprios já sejam conhecidos de toda a população.

- Muito bem, permita-me mais uma objeção, professor. Este é um passo importante que finalmente começaria a ser dado por nós, sem deixar de promover mudanças em processos que envolvem a sociedade, de alguma forma. Então eu naturalmente pergunto, você inclui no seu planejamento uma sólida prevenção da quebra do

tabu?

- Naturalmente, sim.

- Certo... muito bem, consideremos o pedido.

Os maracujás se olharam em silêncio, à espera de objeções. Então, continuaram:

- A abertura do projeto será discutida, professor. Traga seu planejamento para a próxima reunião, para que haja uma discussão detalhada entre todos nós.

- Ótimo. - Disse um deles enquanto fazia um sinal para um maracujá que, durante todo esse tempo, de forma quase imperceptível, fazia registros da reunião. – Cobrimos os tópicos marcados para esta reunião. Algo a acrescentar?

Mais uma pausa se sucedeu.

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- Muito bem, senhores. Tivemos uma reunião breve, hoje é o próprio dia da passagem e temos vários processos para supervisionar. Agora serão distribuídas as pastas com as determinações pertinentes a cada um de nós, tudo nos conformes de discussões anteriores. E que continuemos com o bom trabalho. Lembrem-se, o Círculo é um paradigma de progresso, evolução máxima da ciência e da sociedade.

- Ao progresso. - Repetiram alguns deles.

Pastas pretas foram distribuídas e todos eles saíram em silêncio, da mesma forma que entraram. A sala voltou ao ponto inicial.

Conforme combinado, Malus se reuniu com Kadia na manhã do dia da passagem. Encontravam-se no gabinete da comandante, um lugar convidativo, com decoração rústica, espelhando sua fascinação pela cultura dos morangos, os silvestres. Em um

dos cantos, destacava-se um entalhe de madeira que mostrava uma forma muito semelhante às Drosophilas, uma mosca de aspecto monstruoso, com os olhos pintados em um tom forte de amarelo. Os dois discutiam sobre assuntos profissionais:

- Fique tranquilo, tenho certeza que você fará um ótimo trabalho, por tudo que tenho visto de você. E sempre que precisar, tem livre acesso a mim, tudo bem? – Ela assegurava sua amizade pela jovem maçã.

- Obrigado, Kádia, eu me sinto muito honrado pela confiança.

- Ora, claro! Mas agora, querido, vamos logo ao ponto que me preocupa, porque hoje o dia é longo – Kadia disse em tom mais sério. – Como estávamos investigando, os morangos intensificaram os novos rituais em uma taxa crescente. Nos elementos desses rituais há algo em comum com a nossa cultura que, você sabe, é o dia de hoje. Agora, sabemos que este é um assunto delicado, muitos poderiam nos ridicularizar por levantar hipóteses com esta espécie, de fato. 25


- Sim, eu tentei comentar com alguns amigos e eles não foram muito receptivos.

- Justamente. A última observação, de ontem, foi muito curiosa. Os riscos amarelos que os morangos diariamente fazem, circulando a grande árvore; ontem eles traçaram um risco vermelho, depois disso realizaram os rituais de sempre, mas com outras danças. À noite, eu mesma pude ver de uma das torres de patrulha.

- Nossa! Estava aqui à noite, trabalhando com isto? Poderia ter me chamado. – Disse Malus, espantado.

- Foi algo circunstancial, Malus, por acaso estávamos fazendo reparos em algumas das lunetas de observação na fronteira. Mas o ponto é outro. Estou com a intuição de que deveríamos nos atentar a produzir alguma espécie de prevenção. Isso pode significar que eles estejam prevendo que algo diferente vá acontecer nesta passagem. Nunca vimos esta mudança ritualística neste dia.

- Mas você realmente acredita que seja possível prever o futuro?

- Sim, Malus, com todos esses anos de fascínio pela cultura dos morangos, tenho visto que ingenuidade é uma característica que eles não possuem, eles sabem que sua ritualística remete a algo forte. Sem dúvidas seus rituais estão ligados à divinação e, no dia da passagem, direcionam suas atenções à presença das Drosophilas, que é entendida por nós, maçãs principalmente, como um fato que requer muito cuidado.

- Sim. Por mais que a população entenda como um espetáculo positivo, as Drosophilas são letais. – Completou Malus, pensativo. Alcançando uma estante próxima, Kadia pegou um livro grande e enfeitado, finalizando seu argumento:

- Nossa crença entende as Drosophilas como os grandes soldados divinos, que descem dos céus ao final de um período para recolher algumas das almas inferiores para sua evolução. Mas se estiverem descontentes com o nosso comportamento, podem servir para nos castigar. Se isso ocorrer, as maçãs devem ser convocadas 26


para defender a população em combate, provando na batalha nossa capacidade de purificação. Eu nunca vi isso acontecer, Malus, mas a escritura diz e, você vê como está o comportamento da sociedade nos últimos tempos – Enquanto Kadia falava, Malus foi ficando cada vez mais apreensivo.

- Uau... e você acha que os morangos estejam prevendo um castigo das Drosophilas hoje?

- Não sei, só estou dizendo que devemos estar preparados para o pior. Não posso

trazer o assunto à tona nas reuniões de comando, nem você, principalmente agora na circunstância de nossa promoção. Eu também gostaria muito que fosse um equívoco, na verdade. Enfim, estou falando com você na expectativa de que possa me ajudar a motivar um melhor preparo dos oficiais.

- Kadia, conforme a tradição, sempre devemos estar em posição na presença das Drosophilas. E, sinceramente, não sei o que seria suficiente para resistir em combate – Respondeu Malus, incrédulo.

- Sim. Estive preparando uma medida de evacuação da população presente no festival. Vamos evitar que qualquer problema se torne um conflito civil. Caso algo ruim aconteça, resistiremos com manobras de evasão. Se nada acontecer, é como se esta preparação não houvesse existido. Então quero que você me ajude com a execução e coordenação de algumas das estratégias, certo?

- Sim, claro. Pode contar comigo – Malus confirmou e então parou por um instante. – Kadia, você me deixou bastante preocupado. Honestamente, tudo o que estamos fazendo se baseia apenas no comportamento dos silvestres, eles realmente possuem essa competência?

- Eu acredito que sim. Admito que o seu testemunho seja pequeno, Malus. Gostaria de poder lhe mostrar as coisas incríveis que tenho visto, sei que só contar não é suficiente.

- É que... Se é assim, porque viveriam de forma tão primitiva? E como podem cultuar crenças erradas?

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- Não sei – Kadia suspirou, tendo consciência de sua limitação. – Não entendo seus mecanismos ou suas motivações. Eles parecem preferir o próprio jeito, ignorando completamente nossa existência. Gostaria de poder conhecê-los cada vez mais de perto, na verdade... – Fez uma pausa olhando fixamente para frente e, então, deu um salto na expressão, concentrando-se novamente. – Mas agora, voltemos ao nosso trabalho.

Malus assentiu. Deixaram de lado as divagações, sem mais nada a acrescentar e, então, partiram para os detalhes estratégicos do posicionamento preventivo de

Kadia. Havia pouco tempo para o início das festividades.

O dia da passagem mantinha no ar o seu aspecto sombrio, sustentando no céu a constante tonalidade de um dia eclipsado. A estrela de fogo atravessava escondida pelo grande arco, deixando à mostra apenas pequenas linhas nas extremidades. Em contraste, a maior praça da metrópole, a Praça da Passagem, um amplo círculo no

centro da metrópole e rodeado por arquibancadas, já estava toda enfeitada com luzes coloridas e bonecos das Drosophilas, de todas as cores e tamanhos. Uvas corriam pela rua, espalhando pedaços de papéis brilhantes. Frutas começavam a se agrupar nas avenidas que levavam à praça, ansiosas pelo grande festival.

O calendário do festival estendia-se através de uma grande celebração religiosa, ministrada pelos mais altos sacerdotes maracujás, replicada nas quatro catedrais gêmeas, em cada uma das quatro grandes avenidas que terminavam na praça, seguida pela procissão até o fim das avenidas, onde a população se aglomerava para presenciar a chegada das Drosophilas, o maior evento da noite. Dentro das imensas catedrais, a celebração já estava prestes a começar. Gamel e Malus estavam à porta de uma delas. O festival excitava Malus, que conversava eufórico, à espera da passagem.

- Espero que as festividades e os novos ares do próximo período façam a constância de sua alegria, Gamel. - Disse Malus enquanto observava as uvas correndo na calçada. 28


- Com um milagre eles seriam suficientes, sim - Preparava em sua mão um cigarro. Não gosto de parecer pessimista, mas sou capaz até de prever o próximo período, em termos gerais.

- Façamos algo diferente, então! Você pode ter para seu desejo deste período a vontade de fazer com que ele seja completamente imprevisível.

Frutas atravessavam os dois em direção à celebração prestes a começar.

- Este é o ponto que venho falando, caro Malus. Olho para a nossa volta e não tenho a menor perspectiva do que fazer para mudar, as inadequações são rígidas – Parou por um tempo para tragar. - Mas sim, este é o meu desejo para este período. Que venha a mim a surpresa! Haha.

Os dois se animaram, Malus ficou contente ao perceber que ao menos minimamente a atmosfera do festival havia alimentado os bons sentimentos do amigo. Neste momento, dentro da catedral, a linha de sacerdotes se fazia e uma canção em coro

começava. Gamel apagou o cigarro e os dois foram entrando. Gamel perguntou:

- E você, Malus, o que espera do próximo período?

- Não sei o que pensar... Quero me dedicar ainda mais à minha carreira.

- Sabe de uma coisa? Eu vejo em você um pouco da inadequação que eu sinto, embora você sempre diga que é realizado. – Disse Gamel, enquanto percebia a aflição que Malus fez transparecer.

A catedral era clara e vasta, com o teto elevado, repleto de pinturas que contavam visualmente a crença das frutas. Nas laterais, vitrais coloridos que durante o dia concediam ao seu interior uma iluminação confortável e reflexiva. No dia da passagem, a intensa luz se mantinha no interior através de inúmeras velas e candelabros com grandes níveis de sofisticação e eficiência. Era um edifício imenso, capaz de conter em seu interior uma grande quantidade de frutas e, ainda assim, no dia da passagem, todas as catedrais se preenchiam completamente. 29


Com os cantos iniciais finalizados, as frutas se posicionaram e estava tudo pronto para o início formal. O sacerdote que iria ministrar a celebração proferiu as primeiras palavras:

- Desejo boa noite e boa passagem a todos os fiéis que aqui estão, ansiosos e contentes com mais um grandioso festival de passagem, que antes de ser uma festa, lembro a vocês, é um importante rito de auto avaliação. Lembramos que a passagem simboliza a existência de um fim, de um começo e da permanente conexão dos dois. O dia de hoje é de uma esperada exultação para todas as frutas, desde a mais baixa

banana, que tem a chance de se elevar aos céus em prosseguimento de seu caminho evolutivo, até o mais alto maracujá e as outras vocações, que sentem este momento como a oportunidade de olhar para dentro de si e reavaliar o quão corretos estiveram em seu caminho vocacional. Começaremos a celebração desta noite, após o próximo hino de louvor preparado com carinho pelo coral de uvas da paróquia, com a leitura de um trecho das escrituras bem conhecido e perfeitamente cabível ao momento em que vivemos.

Neste momento subiram ao altar as uvinhas do coral e as frutas voluntárias da banda, de vários tipos; começaram uma melodia simples, básica. Malus, que se encontrava perto da saída, recebeu o recado de um oficial. Kadia já o esperava para começar a organização de suas estratégias. Imediatamente se dirigiu ao seu encontro, enquanto praticamente toda a população da metrópole abarrotava as quatro catedrais gêmeas. As uvinhas cantavam o refrão de sua canção: ‘O amor aos meus deuses é a intenção do que eu disser, atinjo a verdade por meio da fé’. Gamel optou por permanecer até o final da leitura das escrituras.

Após a canção, um maracujá bem vestido se dirigiu ao microfone, no altar, e à sua frente abriu as escrituras para iniciar sua leitura:

- Leitura das sagradas escrituras, livro das vocações, segunda parte, versos de um a doze. As laranjas vizinhas. Em tempo de semeadura, havia duas laranjas que trabalhavam em suas plantações de grãos, lado a lado. A primeira laranja era conhecida por respeitar o valor do trabalho, não deixava que nada atrapalhasse seus deveres de laranja. A segunda, por mais que realizasse o trabalho com a mesma 30


vontade, dividia seu comprometimento com vários assuntos de seu próprio interesse, de modo que se diferenciava das outras laranjas. Durante os dias que se passavam, a primeira laranja realizava seu trabalho e não se satisfazia com o mínimo, estava sempre se propondo a complementar e aprimorar seu feitio. Enquanto isso, a segunda laranja dava por terminado o seu trabalho e logo se distraia, preocupando-se com assuntos diversos. Parecia mais feliz que a primeira laranja, mas de uma felicidade superficial e imediata, e não conhecia o sentimento interno de realização plena da primeira laranja. Certo dia, com as mudas já brotadas e ainda frágeis, caiu sem anúncio uma tempestade sobre as plantações. A primeira

laranja, que não abandonava da mente a criação de sua vocação, estava de prontidão para cobrir sua plantação. A segunda laranja, por estar se divertindo de costas para sua plantação, teve seu trabalho devastado pela tempestade, sem tempo de se prevenir. Então, por falta de seguir sua vocação com retidão, aquela laranja passou por um período de dificuldades, ainda que tenha trabalhado. A outra laranja, além de recompensada, serviu como exemplo por mostrar sua atitude eficiente a quem pudesse ver, de forma a espalhar uma cadeia de boa conduta para os próximos períodos. Seu sucesso a trouxe grande felicidade, pois sua alegria

residia no sentimento de pertencimento à grande obra social à qual todas as vocações se voltam. Enquanto isso, a vaidade da laranja distraída com seu individualismo a levou a um fracasso sentido por todos que dependiam do resultado de seu trabalho. Palavras das escrituras.

Depois da leitura, todos ficaram em silêncio enquanto o maracujá fechava o grande livro e o beijava. Depois de um tempo, uma nova canção começava. Gamel estava um pouco confuso, cutucou uma laranja ao lado e disse:

- Com licença, eu acho que nunca entendi essa história. O destino dessas laranjas me pareceu um pouco aleatório. E essa não é a única variável da vida.

- Ora, sabemos que o espírito vocacional nos satisfaz em todas as áreas da vida e nos une em sociedade. Além disso, como você pode atribuir aleatoriedade aos desígnios atribuídos pelos deuses a nossas vidas?

- Hmm... Por que os gostos pessoais estão em oposição à vocação? Eu não entendo 31


porque o fracasso da laranja se deve a ela se preocupar também com outras coisas, só me pareceu irresponsabilidade. Não acha?

- Olha só, se a história não tivesse valor, estaria presente nas sagradas escrituras? Ou seria proferida em tamanha celebração? Falta a você sensibilidade para reconhecêla. É fácil para os incultos viver somente de críticas, tome cuidado com essa conduta, irmão.

Gamel se irritou com aquela laranja e aproveitou o momento para se retirar, já que

esperavam pelo seu serviço. Deixou-a falando sozinha:

- Vejam, e ainda não vai ficar para a fala do sacerdote?

Enquanto saía, Gamel pensava. Estava frustrado por se sentir um revoltado e não ter em mente o que fazer com esta revolta ou mesmo ter o entendimento de suas reações. Temia estar fadado a uma vida repleta de um obscuro isolamento. Temia se afastar das raízes religiosas enquanto percebia que não conseguia mais sentir a

mesma admiração pela crença. Não sabia mais se sua tristeza vinha da confusão ou a causava, apenas suspirou profundamente e ritmou os passos com rapidez, dirigindo-se já à grande praça.

O tempo corria e as maçãs de Kadia trabalhavam em uma operação cronometrada. Enquanto isso, toda a metrópole integrava a procissão em quatro vias, aproximando-se em sincronia ao palco do grande evento. A euforia se transmitia em canções e orações e era sentida como uma sagrada corrente de sensações pela população que se via compondo um bloco de tradição, ali poderosa e inabalável, que afirmava fisiologicamente suas crenças.

Gamel coordenava a demarcação de áreas específicas nas arquibancadas para a formação de túneis de evacuação rápida. Malus mostrava para companheiros as rotas de fuga até galpões subterrâneos e locais com alta segurança que, naquela noite, poderiam ser usados para comportar a população se houvesse um conflito. 32


O plano de evacuação de Kadia envolvia retirar o mais rápido possível os civis da zona primária de conflito, mantendo as Drosophilas dentro da praça, com a população de fora. Então, durante o enfrentamento, as frutas seriam direcionadas aos locais de proteção para que lá ficassem até a completa contenção da ameaça. As maçãs haviam sido preparadas para manter o controle de suas linhas de ação mesmo diante de um acidente imprevisto. A intenção era, sabendo da superioridade física das Drosophilas, minimizar as baixas e trabalhar para a expulsão da ameaça, caso algum ataque ocorresse.

Com o planejamento ensaiado e montado, Kadia olhou para a multidão se aproximando por todos os lados. Pensou na população em festa e, por um instante, sentiu-se paranoica. Nunca viu nada dar errado na passagem. Essa preocupação de Kadia surgia da estranha sensação de que é mais distante da realidade aquilo que não é compartilhado. Ela não sabia que a mente de muitas frutas era socialmente projetada para valorizar mais a aceitação coletiva do que a justificativa, uma das hipóteses básicas do plano de controle científico do Círculo, inserido na educação das frutas. Mas tinha a consciência de que havia no mínimo melhorado a eficiência

do trabalho de sua casta, e isto fazia com que se sentisse competente. Juntou-se a Malus e, em agradecimento, colocou a mão sobre seu ombro:

- Agora basta esperarmos por uma noite de festa, certo?

- Vai dar tudo certo pra nós, porque estamos juntos... E, mesmo que tenhamos que entrar em combate com elas, o que é improvável, esse é o plano divino para nós. É o suficiente para manter a minha satisfação. – Malus respondeu com confiança.

- Sua inspiração me contagia. Obrigada, Malus.

Os dois olharam para os sacerdotes que já entravam na praça. O barulho ritmado da multidão inundava seus corpos cada vez mais.

- Todo ano, neste instante, sinto um arrepio pulsando pelo meu corpo. – Malus contemplava a cena enquanto discretamente pegou a foto de seu pai. Uma lágrima escorreu por seu rosto. 33


As frutas já preenchiam o contorno da praça. Kadia olhou para o céu escuro, um foco de luz surgiu diante de seus olhos:

- Começou.

Em um enorme espetáculo, todas as frutas da metrópole preenchiam a Praça da Passagem. As bananas ficavam aos fundos das arquibancadas, algumas se enfiavam

por baixo na tentativa de ver com mais nitidez. Mas também havia alguns recrutas maçãs na tarefa de vigiar seu comportamento. A população festejava, a música tocava alto enquanto os maracujás sacerdotes faziam preces no centro da praça. Uma arquibancada especial, ornamentada com joias, ostentava as mangas, com suas bochechas pintadas e roupas caríssimas. A todo instante que se viam, as mangas estavam cochichando entre si em meio a risadas. Um grupo de bananas surgiu, escoltado por maracujás, aplaudido pelos presentes. As bananas pareciam contentes, com sua expressão denotando uma alegria torta, que nunca haviam

aprendido a usar. Guardavam em si a ansiedade de alguém que se encontra diante do único acontecimento que dará sentido à sua existência. Os sacerdotes fizeram o sinal. As músicas cessaram e o silêncio invadiu a praça. Essa era a parte preferida de Gamel, que à base da arquibancada, imaginou a intensidade da presença real de todos aqueles seres à sua volta enquanto, de olhos fechados, ignorava por completo sua presença sensorial.

Todos voltaram seus olhos para o céu, com o foco de luz iluminando o centro da praça. Os maracujás tocaram um imenso sino. As badaladas percorriam a praça e subiam. Ao fim da última delas, um zumbido intenso irrompeu na noite. Os olhinhos das uvas, arregalados e brilhantes, mantinham-se fixos ao alto. As laranjas da fronteira retiraram seus chapéus de palha em reverência e o zumbido se intensificava à medida que as imensas criaturas surgiam no céu. As Drosohpilas desciam voando e zumbindo sobre a praça, com seus grandes olhos amarelos e corpos negros, articulados. Os sacerdotes abriram o espaço para comportá-las e, uma a uma, elas foram pousando. As frutas olhavam maravilhadas para os imponentes anjos. 34


Depois de quatro Drosophilas pousarem, uma última desceu vagarosamente e pousou ao lado das outras, causando em todas as frutas uma surpresa curiosa. Kadia, estando próxima, sentiu seu corpo gelar. A última Drosophila era ligeiramente

menor

e

movimentava

rapidamente

a

cabeça,

olhando

compulsoriamente para todos os lados com seus imensos olhos vermelhos. Um dos maracujás, que se encontrava junto com os sacerdotes e o grupo de bananas, diante das Drosophilas, espantou-se a ponto de perder o fôlego. Pegou sua pasta preta e começou a folheá-la, ali mesmo.

Depois de um instante, a que se encontrava no centro delas arrastou para frente com suas patas uma espécie de recipiente com tiras para suspensão, que trazia consigo. Os maracujás, mesmo em meio à insegurança da novidade, entenderam o sinal. Começaram a encaminhar as bananas para dentro do recipiente. Havia cinco delas. No momento em que a quarta banana entrou, a Drosophila fez sinal para que a quinta parasse. Elas haviam rejeitado a banana adicional. As quatro Drosophilas olharam para aquela de olhos vermelhos, que avançou sobre os maracujás que estavam à sua frente. Analisou de perto as frutas e delicadamente arrastou um

maracujá na direção do recipiente. Uma onda de murmúrios desencadeou entre todas as frutas e as maçãs se colocaram em posição ofensiva. As Drosophilas se agitaram e começaram a olhar em volta. A última insistiu em arrastar o maracujá, que deixava escapar um desespero descomunal. Preenchido de pânico, tentou correr, se afastando. Deixou a pasta cair ao se virar. Neste momento, a Drosophila iniciou o voo e o agarrou, subindo com ele no ar. Imediatamente as outras começaram a subir com o recipiente cheio de bananas. As frutas sentiam o desespero se iniciar e as maçãs se prepararam para a execução do plano de Kadia. Porém, ao tomarem consciência, viram que as Drosophilas subiam de volta aos céus, levando consigo as bananas e o maracujá agarrado pela Drosophila de olhos vermelhos. Simples assim, o espetáculo havia acabado.

O céu escuro engoliu as criaturas e sua luz se apagou. Abaixo, havia uma grande confusão entre os habitantes da metrópole, então amontoados na Praça da Passagem. Os maracujás esperavam que as Drosophilas fossem exigir a entrega da 35


banana extra e agradecê-los, de acordo com o aparente combinado, até então inviolado. A presença da Drosophila diferente foi uma surpresa à parte, ficando, no entanto, evidente que estava diretamente relacionada à terrível mudança de atitude.

Um maracujá ser levado é impensável, mas um maracujá do Círculo ser levado é uma calamidade que também exige uma alteração imediata de planos. Aquele maracujá era um indivíduo de alta inteligência, com uma responsabilidade política ímpar, para eles incomparável com uma banana serviçal.

Um pronunciamento emergencial foi rapidamente providenciado na praça, com a população ainda imóvel, ao dispor de uma boa explicação. Um velho maracujá, baixinho, dirigiu-se ao centro da praça. Era um cientista aposentado, amplamente conhecido na metrópole. Tossiu levemente, retirando sua pasta preta debaixo do braço. Aproximou sua boca do cano acústico, um grande dispositivo mecânico capaz de ampliar e difundir sua voz à extensão da praça, e começou seu discurso:

- Queridos colegas, tenho certeza que todos ficaram surpresos com o que se passou

hoje em nossas festividades. É com pesar que venho informá-los que, em minha simplicidade, eu havia previsto este ocorrido, mas não confiei em minha pertinência a ponto de me levar a sério. Em um sonho me foram reveladas as cenas que se passaram. E acredito que foram os deuses que tentaram nos prevenir do choque por seus desígnios. Eu pergunto a vocês, colegas, quais de vocês tiveram este mesmo privilégio? – Sua voz ecoava pela praça e pelo céu escuro.

O maracujá aguardou pacientemente e algumas frutas se manifestaram. Logo, várias frutas, de diferentes vocações, diziam também ter previsto estes acontecimentos em sonhos e pressentimentos. Ele prosseguiu:

- Que sirva de lição para que estejamos mais atentos às mensagens que recebemos dos deuses. – Fez uma pausa. Observou a multidão que o envolvia por completo, nas arquibancadas. Todos completamente atentos à sua fala. – Os sacerdotes me concederam o espaço para este pronunciamento, pois compartilho com alguns de vocês neste momento a dada sensibilidade para esta profecia, mas também por que sou muito amigo do querido evangelista Lidoff, que nesta noite foi levado pelos 36


anjos, as Drosophilas. É de grande comoção o fato de um espírito tão evoluído ser levado aos céus ao lado das bananas. Mas vocês devem ter visto que ele na verdade foi escolhido pela belíssima Drosophila de olhos vermelhos, que com certeza é um anjo que vem até nós na sagrada missão de escolher um representante dos bons cidadãos. Não é mesmo? Sabemos que os deuses também recompensam os espíritos elevados com desígnios ainda mais nobres. Estou aqui para dizer o quanto me emocionei com a euforia de Lidoff, de perto eu podia ver a emoção de sua expressão ao pular de alegria em nossa direção, compartilhando conosco a confirmação de sua elevação especial – Bons ouvidos poderiam notar o leve nervosismo que se

apoderava de sua voz. – Agradeço pela atenção de todos vocês e termino dizendo que para mim foi uma honra ter sido agraciado em primeira mão com a mensagem de alegria e recompensa de nossos deuses, dizendo que a partir de hoje temos uma nova era de maiores possibilidades de elevação espiritual até para os mais nobres de nós. Agora, com a confiança restaurada em nossos deuses, estou imensamente feliz pela oportunidade de fazer parte desta noite iluminada, esta noite de grande festa. Espero que todos vocês tenham um novo período de prosperidade e fé, já ansioso para o próximo lindo festival da Passagem.

Ao se afastar do centro da praça, o maracujá era intensamente aplaudido por todos os presentes, que sentiam o choque se transformar suavemente em conforto e esperança. Frutas de diferentes vocações podiam fechar os olhos e lembrar os sagrados acontecimentos daquela noite e festejaram sublimados com a nova perspectiva. O festival da passagem estava mais uma vez sendo um sucesso. Em seu caminho, o maracujá lembrou-se de agachar e recolher a pasta caída no chão.

O horário da passagem para o novo período havia ficado para trás, durante o discurso emergencial. Não houve contagem regressiva, nem música e folia. A passagem se mostrou às frutas da metrópole como qualquer outro momento na confusão, sem nada de especial, não como deveria ser. Mas depois disso começaram as músicas e a população ficou na praça, estavam todos agitados com as novidades e falavam da nova, linda, Drosophila. A festa continuou e o que aconteceu foi celebrado, estavam todos muito alegres com a nova manifestação dos deuses. Malus e Gamel foram dispensados da guarda e estavam entre barracas no festival. Malus estava animado, o resultado de sua preocupação se revelou algo positivo, lindo: 37


- Não posso acreditar, chegamos a nos preparar para um ataque. Essa foi a melhor passagem que eu já presenciei, apesar da confusão.

- É, fiquei aliviado que deu tudo certo... – Disse Gamel, olhando pensativo para o céu, com as mãos nos bolsos de suas vestes.

Malus se deteve por um momento, olhando para o semblante do amigo, pensou em como achava engraçadas essas poses pensativas. Comentou, com um sorriso:

- Está desconfiado de que agora?

- Ah, nada. Só estou cansado, preciso muito de um banho. – Gamel suspirou enquanto tirava outro cigarro.

- Claro, você está muito sujo mesmo. – Malus sorriu mais, reparando no amigo.

- Eu me sinto sujo...

Em frente a uma rua movimentada, os dois perceberam um tumulto se formando subitamente. Eles se aproximaram depressa e então viram uma banana de baixa estatura cercada por diversas frutas com expressão de ódio em seus rostos. Uma maçã policial apitou ao longe quando Gamel pôde ver a banana; estava com o corpo arqueado e com os antebraços protegendo o rosto, as mãos apertavam a cabeça, tentando protegê-la. Diversas frutas a sua volta, bem vestidas e limpas, revezavam xingando a banana e dando murros em seu corpo. Elas gritavam ‘Tem que matar!’, ‘Ladrão! Agora paga, seu nojentinho!’, e também várias palavras monossilábicas depreciativas. Malus veio logo atrás, ouvindo um jovem maracujá que respondia ao seu amigo:

- Esse lixo de rua achou que ia conseguir roubar de uma senhora! Agora nós, cidadãos, vamos mostrar o que ele merece!

Gamel ficou horrorizado com a violência exibida por eles. Existe uma lei na metrópole que permite aos cidadãos descartarem bananas sob a verificação de 38


algumas condições que atestam que as mesmas são inaptas a trabalhar. Devido a problemas políticos de estruturação urbana, muitas destas bananas eram deixadas a viver pelas ruas, sendo comumente afugentadas para becos distantes de moradores, nos distritos industriais. A cidade gastava uma quantidade considerável de recursos com a procura e retirada de corpos de bananas falecidas em vielas e com a manutenção da segurança das outras frutas. Mesmo as vielas eram monitoradas pelos maracujás. Uma dessas bananas surgiu no evento e tentou agarrar a comida de boa fragrância segurada por uma senhora rica.

O policial abriu passagem entre a multidão agitada e logo se aproximou da banana, cada vez mais assolada por agressões de todos os lados. Uma laranja jovem, alta, vendo-o quase os alcançando, apertou as mãos e enfiou um soco na boca da banana, tão forte que alguns dentes voaram, batendo no chão. A laranja se virou e saiu sorrateira pelo aglomerado de frutas, que vibrou, exaltando-a. A maçã policial alcançou a banana que exibia uma expressão de desespero e dor, visivelmente confusa; uma confusão sofrida e antiga. Tentou algemá-la enquanto continha as frutas, que ansiavam por espancá-la. Gamel paralisou, e sem saber o que entender

daquela manifestação, sentiu uma tristeza incontrolável. Voltava para si enquanto a polícia levava a banana, amassada e enegrecida, com o grosso suco escorrendo de seu rosto. E os outros gritavam ‘bem feito’ e ‘justiça’. Logo as frutas se dispersaram e a festa continuou até a alta madrugada, com todos comentando sobre as maravilhas que aconteceram.

Ao final, enquanto as maçãs organizavam a desmontagem da estrutura de segurança, Kadia encontrou com Malus. Estava aliviada, pois na verdade a previsão era de fato real, mas ao contrário de suas expectativas, era muito boa. Sua empolgação foi imediata, compartilhou com o seu discípulo a intenção de se aprofundar na mística divina dos silvestres.

A certa distância, Gamel fumava sentado, confuso por achar que, de onde estava, teria visto uma reação de horror partir dos olhos do reverendo Lidoff. E aquela história com a banana de rua permeava seus pensamentos, assombrando-o com uma desesperança indefinida. Ele achava certo que prendessem alguém que cometesse um crime, independente de quem, tinha que ser assim, pensava, mas não 39


compreendia a violência natural a eles, mesmo que direcionada a bananas. As bananas o intrigavam, elas tinham mesmo uma grande propensão a cometer crimes, pareciam preferir a sujeira das ruas a exercer sua vocação; muitos as consideravam preguiçosas e moralmente deficientes, mas Gamel apenas as não compreendia, independente de como tentasse considerar a questão. Começou a sentir-se culpado por seu estado de confusão, por ser diferente dos demais. Por fim, sentiu a curiosidade ingênua de ser uma daquelas bananas elevadas aos céus, prestes a viver algo diferente, para ele inimaginável. Mas tremeu com o conteúdo de seu pensamento, reconhecendo que na verdade se comparava a elas em um sentido

mais amplo; fez uma expressão de desgosto e vergonha.

Malus estava feliz, este fora um dia muito especial para ele. Sem saber das recentes confusões de Gamel, sentia até uma esperança renovada de que este período fosse trazer muita felicidade para os dois.

Durante aquela madrugada, no alto da grande torre, as luzes se acenderam mais uma vez, por uma razão extraordinária. Tudo permanecia igual, a menos de uma cadeira, que havia sido removida.

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Fluxo de pensamento -Selfish light Começo esse pensamento confirmando a minha existência pois se penso logo existo mas existo pra que por que com que finalidade sou só mais um no meio de muitos por que eu faço a diferença pra alguém qual é o meu propósito eu não sei mas sigo vivendo e vou experimentando coisas novas coisas velhas sensações boas e ruins que vão mudando de acordo com o lugar as pessoas a época o contexto pessoas as pessoas são curiosas dentro da mente de cada uma existem mil possibilidades ou se não infinitas possibilidades como entender uma pessoa e a complexidade que é ser humano ser humano humano característica de ser pensante pensar o que nos difere dos outros animais bípedes ao invés de quadrúpedes evoluímos mas até que ponto evolução é uma mutação que nos torna diferente dos demais mas por que excluímos os que são diferentes de nós por que somos a imagem e semelhança de Deus Deus criou o homem o mundo ou não não dá pra saber só cogitar o que nos leva de volta a questionar sobre o propósito de existência será que existe vida em outros planetas e se existe como ela é será mais evoluída será livre de crenças preconceitos ideais as pessoas buscam muito explicar as coisas quando às vezes tudo o que se deve fazer é sentir aproveitar o momento e sua magia mas todos estão constantemente em busca de afirmação de se reconhecer nos outros e com os outros fazer com que te reconheçam seja reconhecido vangloriado idolatrado fama fama que corrompe muita gente deixam de lado seus ideais seus princípios de humanidade mais básicos em busca de poder mas e o autoconhecimento ele é a maior virtude que uma pessoa pode ter porque quanto mais perto de se conhecer mais facil de tentar entender o outro é claro que nunca vamos conseguir entender o que se

passa na cabeça do outro mas quanto mais perto conseguirmos nos projetar no lugar do outros mais próximos estaremos de entender a si e os outros o que leva uma pessoa a ter dó de uma criança que tropeça e cai no chão e não ter dó de um mendigo existem cenas inconcebíveis que tomamos como normais como rotina o que não deveria rotina rotina é a decadência do homem a repetição de acontecimentos um ciclo vicioso vicioso e cômodo sair da rotina quebrar a rotina romper com aquilo que se chamava de ideal ideal que com o tempo acaba ficando natural banal irreal mas o que é real real sao os sentimentos os prazeres da vida vida o que nos leva a questionar seu sentido novamente rotina ciclo de volta à estaca

zero. Fim do fluxo.

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Eu sou uma sonhadora

- Wild Child

Eu acredito que sou uma garota complicada. Na verdade, não acredito, as coisas que me fazem acreditar. E na maioria do tempo eu não concordo com as coisas. Acho então que o certo seria começar dizendo que eu acredito que não sou uma garota complicada... É estranho me chamar de garota, acho que eu já passei da idade, mas o que eu escrevo então? Que eu não acho que sou uma mulher complicada? É mais estranho ainda. Será que eu tenho que ir me acostumando? Ou existe uma idade em que você já não é garota mais ainda não é adulta? É, aí que eu estou, na transição.

Eu fiquei muito tempo pensando em um título para as minhas reflexões, viajei muito longe, mas não encontrei um que eu queira. Foi assim que fiquei com a ideia de que sou complicada, mas foi momentâneo, eu gosto de mim, e ser eu mesma não é difícil nem cansativo, as coisas que me cansam às vezes. Nem sei onde isso vai dar, mas resolvi ir escrevendo, depois volto a pensar no título, nem é tão importante assim. Só achei que daí eu teria um tema mais definido, pareceu mais fácil achar um título do que um tema. Bom, vou escrever o que for vindo na cabeça, sem nem me preocupar em fazer muito sentido; é só pra mim, mesmo. Essa liberdade é gostosa.

Eu cresci tendo problemas pra dormir. Eu não tenho irmãos. Um dia, eu me dei conta de que dormia sozinha. A minha cabeça enchia de coisas e eu pensava que tinha medo. Mas eu não acreditava em nada medonho, não fazia sentido eu não me sentir segura. Eu tentava afastar os pensamentos, eventualmente eu dormia. Mas eu era sempre cansada, as pessoas sempre me achavam distraída e dorminhoca. Talvez eu fosse distraída mesmo, mas eu dormia pouco. Mais tarde eu comecei a pensar que fosse meu corpo, e que minha cabeça enchia de coisas por que eu não estava conseguindo dormir mesmo, apesar de cansada. Eu quis ir a um médico. Daí meus pais iriam comprar remédios pra mim.

Então aconteceu uma coisa engraçada, é realmente divertido pensar que foi assim. Eu estava vendo tv, entediada, passando os canais. Daí apareceu um guru, bem doido, que falava que os remédios nos aprisionam, que os nossos problemas são causados por nós e precisamos nos conhecer melhor. Ele mexia com astrologia, tinha uns livros, etc. Ele dizia, balançando as mãos pra tela, “olhe para o espelho, acostume-se com o espelho, mergulhe no espelho”. O nome do 42


livro tinha alguma coisa com espelho, não lembro. Assim, não que eu tenha acreditado naquela figura, mas aquilo me deixou intrigada. Não sei se foi por orgulho, mas eu quis ver se eu mesma conseguiria resolver meu problema.

Eu tinha vergonha de olhar no espelho, aquilo me tocou. Eu disse pros meus pais que de repente eu tinha melhorado e que se eu piorasse de novo eu pediria os remédios. Daí eu, bobona, ficava um tempão me olhando no espelho, tentando me acostumar comigo. Era uma pressão bem grande. Eu ficava me perguntando “o que tem de errado comigo? O que tem de errado com você?”. Eu via muita coisa errada, em cada canto de mim. O mais importante, além de prestar mais atenção em mim, é que assim eu aprendi a me colocar de fora de mim. Ai era mais confortável. E realmente foi me ajudando a dormir um pouco melhor. Eu comecei a pensar a respeito das coisas que enchiam a minha cabeça à noite. Desse lugar eu percebi que eram

preocupações minhas, medos. Mas medos relacionados a coisas da vida, coisas que iam acontecer no dia seguinte, ou coisas que não iam acontecer, ou que tinham acontecido. Muitas preocupações. Assim que eu descobri que eu era muito ansiosa; e a ansiedade se amplificava no silêncio da noite, surgia com força ocupando o espaço que eu tentava esvaziar para poder dormir. Eu tinha que entender essa ansiedade pra conseguir me sentir mais calma, eu queria sentir conforto também dentro de mim mesma, e dormir em paz.

Porque eu me preocupava tanto com as coisas? Eu fui percebendo que a minha ansiedade era

uma vontade de que as coisas fossem diferentes e que eu fosse diferente. Eu não podia me acalmar e descansar enquanto ainda tinha tanta coisa fora do lugar. E isso era infinito, porque eu não sabia qual era o lugar das coisas. À medida em que fui tentando descobrir, fui entendendo o quão apaixonada eu na verdade era pelas possibilidades da vida. Não foi simples assim, mas fui percebendo que a minha necessidade de ver as coisas no lugar vinha dessa paixão, do impulso de viver as coisas no lugar. E eu sofria pela realidade não corresponder à minha expectativa apaixonada. Eu não sabia que postura tomar pra gostar mais de mim e de como as coisas são, e viver em harmonia com essa ansiedade.

Eu lembro de uma conversa que eu tive com uma amiga minha que eu gosto muito; ela dança. Eu sempre achei muito lindo o que ela conseguia fazer e expressar com a dança. Sua dança estava no lugar certo, eu me encantava. Um dia, ela estava muito estressada, se preparando para uma apresentação. Eu estava tentando acalmá-la, dizendo que ela só tinha razões pra se alegrar com aquele dom. Em um momento eu confessei me sentir mal por não ser boa em nada. 43


Ela me disse que não se sentia com dom nenhum, que desde sempre ela treinava muito e tudo na dança era uma questão de percorrer um longo caminho de técnicas e prática. E que, por mais que as pessoas tivessem mais ou menos dificuldades para atravessar as etapas, todos sofrem tentando e todos são capazes de conseguir. No fim, aquela era uma conversa valiosa pra vida. Eu entendi que podemos alcançar coisas lindas e incríveis uma vez que descobrimos um caminho e o trilhamos. A preocupação poderia dar lugar à dedicação dentro de mim, me inflamando com o vislumbre de criar as coisas lindas que minha paixão poderia abraçar.

Eu sempre admirei todo tipo de arte e então comecei a pensar em como tudo aquilo tinha sido feito pelas pessoas. Comecei a olhar para a vida e querer que ela se parecesse mais com a arte, ao invés de simplesmente me incomodar e querer um algo diferente que eu não sei o que. Eu olhei no espelho e decidi que queria ser uma artista e uma obra de arte. Fiquei feliz quando me

vi tão empolgada e pensei que essa história começou em mim quando tentei resolver meu problema pra dormir. E falando nisso, quanto mais eu via pra onde ir, mais a minha paixão encontrava lugares pra habitar e eu conseguia dominar melhor as coisas que enchiam a minha cabeça, daí menos dificuldade eu tinha pra dormir.

Então eu tive um professor novo de artes e eu gostei muito dele, ele nos mostrava coisas lindas e interessantes. Um dia tive coragem de falar com ele depois da aula. Eu queria que ele me ajudasse a escolher algo pra fazer. Eu preciso dizer que de alguma forma minhas preocupações

iam e vinham; à medida em que eu fui crescendo e aprendendo melhor a lidar com as minhas expectativas, mais o mundo parecia exigir de mim. As coisas ficavam mais difíceis. As pessoas à minha volta, os meus colegas, nunca pareciam estar no lugar certo. Eu já tinha aprendido a gostar mais de mim, desde a época do espelho, eu já não me culpava pelo que eu sentia, eu gostava de ter essa busca e essa paixão dentro de mim. Eu sempre seguia a ideia da prática e da arte em relação a me conhecer melhor e me aceitar. Mas eu reclamava da vida ao meu redor e isso às vezes me colocava em conflitos internos. Enfim, me acalmei em relação a viver a arte à toda a minha volta e percebi que já era hora de me dedicar a algo.

Por dentro, eu me considerei pronta. Meu professor me perguntou o que eu gostava de fazer, eu disse que gostava de pensar e imaginar o quão belas as coisas poderiam ser e que eu queria aprender a fazer algo que me ajudasse a viver mais o que eu imaginava. Eu cheguei a pensar em dançar, como a minha amiga, mas eu não me empolguei com a ideia de estar dançando. Eu queria saber o que havia de mais interessante pra mim. Meu professor perguntou se eu gostava 44


de ler. Eu disse que, sinceramente, não muito. Eu lia algumas coisas, mas eram sempre histórias bem sem graça. Depois de tanto elaborar minhas paixões, eu tinha sede pela beleza de grandes estruturas. Hoje eu sei que na época eu não conhecia quase nada e que os meus pais controlavam muito o que eu podia conhecer. Eu me encantava com vários filmes, mas livros não. Eram sempre personagens simples fazendo coisas bobas. E, principalmente, eu não me identificava com nada ali. Meu professor me convenceu a conhecer alguns livros diferentes. Eu não gostei muito, pois não foi isso que eu pedi. Mas eu confiei nas indicações dele, talvez ali

estivesse algo que fosse me ajudar. E era isso! Eu lia aqueles livros e atravessava aquelas histórias e mentes como se estivesse doente e aquilo fosse a minha cura. Eu finalmente havia descoberto as melhores técnicas pra aprimorar a minha arte da paixão.

O primeiro livro que ele me indicou foi o morro dos ventos uivantes, da Emily Brontë, e até hoje é o meu favorito junto com os sofrimentos do jovem Werther, do Goethe. Eu mergulhei muito fundo na compreensão de como a realidade conflita com as nossas paixões e não nos deixa dormir. Eu aprendi sobre desejo, morte e obsessão e emergi decidida a usar tudo isso como ferramenta pra de fato me tornar a artista e a arte que eu queria. Eu precisava conhecer e me tornar íntima de cada aspecto do desejo, cada receio da morte; e me tornar uma com a obsessão. Nesses tempos eu nem me importava em não dormir, não havia cansaço que me parasse.

Vou contar uma história engraçada que aconteceu comigo, que agora lembrei. Foi nessa época e é um bom exemplo dessa falta de correspondência que eu tanto falo. Eu passava os intervalos da escola sentada em um canto, lendo meus livros. Tinha um garoto um ano mais velho que eu, do último ano, que eu percebi que ficava me olhando. Um dia eu vi que ele estava tentando ver qual livro eu estava lendo. Levantei a capa pra ajudar, discretamente. Aí vi ele anotando, foi engraçado. Os dias foram passando e ele sempre dava um jeito de ficar por perto, passou a ficar por ali com sua rodinha de amigos, sempre olhando pro meu lado. Eu continuei ali lendo meus livros, mas achei que ele estava gostando de me ver, e isso era bom, eu me sentia bem. Teve um dia em que ele não foi na escola e eu me peguei ansiosa pra ele aparecer por perto. Eu sempre tinha experiências desagradáveis com os garotos, porque eles estavam sempre em outras frequências, fora do lugar, isso me incomodava. Dessa vez realmente parecia divertido, não sei se era meu estado mental ou o jeito dele. É interessante que eu passei a me importar mais com a minha postura enquanto eu lia, eu ficava imaginando como eu estava, tentando me ver por fora, eu queria que ele gostasse. Um dia, de repente, ele veio muito determinado. Ele tinha

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decidido falar comigo, e aquilo parecia muito difícil pra ele, eu achei fofo. Ele perguntou se podia sentar ao meu lado, claro que podia. Eu imaginei o quanto ele devia ter ensaiado pra falar, ele disse que viu que eu gostava muito de ler. Nós trocamos frases constrangidas, ele perguntou sobre o que eu estava lendo e disse que gostava de ler também. Daí eu perguntei o que ele já tinha lido. Ele disse que gostava de Dostoievski. Eu também, já tinha lido várias coisas dele e, curiosamente, o livro que ele havia anotado era a senhoria. Eu perguntei qual a história que ele gostava mais e ele respondeu justamente a senhoria. Perguntou se eu tinha lido.

Eu disse “ai, esse ainda não, qual o segundo?”. Ele ficou pálido. Eu comecei a rir e disse que não precisava daquilo, propus que falássemos sobre o livro, que é muito intenso e louco, por sinal. Resumindo, ele não tinha nada pra falar, ele só sabia adjetivar e descrever partes da história, sem nem demonstrar um sentimento sincero em relação ao que acontece lá. Eu não queria ser chata e achei o esforço dele legal, mas fiquei com pena por ele ter se metido nessa. Eu mudei a conversa para os valores que extrai da história, escolhi falar da obsessão, que era o que eu mais sabia. Fiquei curiosa, eu queria saber o que ele achava da obsessão e das minhas ideias a respeito. Eu me empolguei e quando me dei conta eu estava discursando sobre paixões, desejo, sofrimento, dominação, sobre os males da realidade e sobre como ela é incapaz de sustentar nossos maiores anseios. Eu fiquei sem fôlego, eu senti vergonha, achei que tinha me excedido, mas estava orgulhosa pela profundidade e pela sinceridade das coisas que eu falei. Eu estava comovida, e na frente dele, de repente eu congelei. Eu queria muito saber o que ele tinha achado do que eu disse, se ele concordava, e se sim, eu queria conhecer ele mais e mais. Ele estava com a boca aberta, um tanto arrebatado. Ele só disse “eu quero muito te beijar agora”. E ele veio chegando perto devagar. Eu não podia acreditar naquilo. Ele não se conectou comigo, na hora eu entendi tudo, ele só estava fazendo o que fosse preciso pra satisfazer o desejo pobre dele, e não conseguiu se segurar depois da minha exibição. Ele não tinha nenhum desejo verdadeiro, ele não sabia nada sobre o desejo que eu tinha, não tinha relacionamento nenhum com a arte do desejo, não sabia até onde poderia chegar a beleza da conexão entre as pessoas. Ele só queria me beijar, ele era como tudo, ele estava na realidade. Eu saí de perto, não queria me frustrar mais.

Aquilo foi um ponto de virada, decidi que eu precisava criar a realidade que eu queria viver, sem mais esperar receber muito valor do que vinha até mim na minha rotina. Eu entendi a minha arte, eu ia viver as minhas histórias. Eu já estava sentindo que não valia a pena ficar me frustrando com a realidade, eu queria me manter aberta às raras surpresas, mas precisava abandonar a passividade de vez, e ainda precisava conseguir dormir bem, completamente bem. 46


Meu trabalho foi usar tudo que eu tinha aprendido pra entender as coisas que enchiam a minha cabeça como minhas amigas, como a minha própria atividade. Com o tempo, elas foram me deixando dormir e vinham comigo e meu sono. Eu passei a sonhar histórias incríveis, percebi que minhas ansiedades eram minhas histórias reclamando por estarem fora do lugar, na realidade errada, onde não poderiam ser, só estarem latentes. Sonhando, eu me descobri de forma mais total, eu consigo ser quem eu gosto de ser em um lugar em que eu gosto de estar. Eu não me preocupei em estar fugindo da realidade, pelo contrário, sonhando eu aprendi a

abraçar a realidade, a deixar de culpá-la pelo sofrimento. Agora eu sou uma sonhadora, essa é a minha arte, assim que eu vivo a beleza do desejo que eu tão obsessivamente nutri em meu caminho pra tentar dormir. Tudo que, durante o dia, me diminui e me frustra, todo o sofrimento que existe no mundo, as desconexões, as coisas pobres e feias das pessoas, agora são mais motivos para que eu retribua com o oposto durante a noite.

No fundo, eu sofro porque as pessoas, os outros corações, estão na realidade, não nos meus sonhos. Eu acredito que a beleza deveria ser para todos; a minha esperança para o futuro é que a arte acabe inundando todos os corações, e que um dia as pessoas possam sonhar muitos sonhos compartilhados, não apenas raros. Eu decidi fazer a minha parte aprendendo a escrever, a me comunicar, tentar transmitir a minha arte e entrar em contato com as pessoas assim. Eu estou surpresa, emocionada e feliz com o que esse texto acabou se tornando. Eu comecei com a ambição de contar qualquer coisa pra simplesmente praticar meu relacionamento com a escrita. No fim, essa experiência me deixou muito feliz com quem eu sou, estou ansiosa pra me sentir assim muitas vezes e aprender mais, ansiosa pelo futuro.

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We all seek purpose in our lives. Many of us may think they can grasp the meaning of existence in the context of life on Earth, as it is. Be it by some kind of religion, art or spirituality, or by any agenda of our dynamical society, hidden behind people, power, money or status. But it is only believable that, inside any brain, somehow, humans flirt with the illusion of purpose, being oblivious of the infinite truths and horrors that may lie beyond the curtains of their capacity in this vast and strange universe. More accurately, humans are all just fractured points in space and time, emerged from the dust they step over, hopelessly trying to make and to find sense and ultimately achieving comfort in delusions or inexistence itself. Yes, inexistence, the only end of all journeys and source of that everlasting fear setting their rhythms. There is no escape. And even at the shadows of this dark scenario, equipped with our incoherent selves, we can convulse, we can try, and we do. We join this absurd spectacle and embrace the misery of our condition by being the clowns we deserve to be, by showing our yellow teeth wide and playing our little games while we can. So welcome to the nihil letter and play the game of purpose catching!

Object In the position of climbing the mental ladder towards the purpose of your existence, you fatally end up facing some common places of despair that lurk behind the steps, ready to consume you. All the traps and the very lives of your peers, stumbling upon you, can’t be enough to destroy the fevered flame inside you that is keeping yourself from putting an end to your own embarrassment. Your only chance is to move on, to strive, hoping for not being smashed by the bad luck inherent to every path you can take in life. At the end of the road, you win by being the closest one to The Purpose. Good luck at that, and don’t get frustrated.

Components The game consists of 16 cards, each representing those realizations you shall have in your way to The Purpose. The cards are composed by their names, illustrations, rules and flavor texts and their meaning values. 48


The Game Shuffle all the cards and put them all in a face-down pile in the center of the table. Remove the top card face-down, without looking. Then, if it’s a two player game, remove the next three cards face-up, for you both to see. These cards will not be used during this round. Then, each player gets one card from the pile; you can see only your card. The most depressive player starts the first round. In your turn, draw the top card of the pile, then play one of the cards in your hand, discarding it in a face-up pile at the center. Then, you must follow the effects of that card. Your turn ends, and the next player, at your left, repeats these actions. The discarded cards remain visible, maintaining the order of discard, for counting cards and remembering the round’s history. Whenever a player goes to the Void of Inexistence, he or she is no longer in possession of a sentience or a body, due to a lack of fortune of any kind. That player is dead for the round and is no more an agent in pursuit of something. His or her cards are discarded with no effects. It is possible, but not allowed, to cheat during the course of the game while you are holding private information about your cards. If you have such an impulse, the misery of your existence surpasses the maximum permitted for you to understand even the purpose of a game, stop trying to seek anything in real life, for your own preservation. The round ends when the center pile of cards gets empty, at the end of the same turn. Then, all the living players show their hands, and the winner is the one holding the card with the highest meaning, the one closest to The Purpose. If there is only one player alive during the round, he or she also wins for just that. The winner actually achieves nothing, but can pretend to be closer to a clear understanding of The Purpose, so he or she may count the victory. If the game has 2 players, count 7 victories for you to be the overall winner. For 3 players, count 5 and, for 4 players, count 4.

The CARDS 1. Life:

You start out by having a life, and even it being a strange position, it’s lucky enough

that you could get it. Congratulations for that, you born possibility. Anyway, most people stay just in the life level. The one who plays life chooses another card and another player; if that player has the named card, he or she has to quit this journey, murdered by the player who discarded a life.

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1. Life:

You start out by having a life, and even it being a strange position, it’s lucky enough

that you could get it. Congratulations for that, you born possibility. Anyway, most people stay just in the life level. The one who plays life chooses another card and another player; if that player has the named card, he or she has to quit this journey, murdered by the player who discarded a life.

2. Isolation:

The first occurrence of a quest for understanding is being understood. You

want so badly just to be comprehensible, to have meaning in your own thoughts, until you see that before any progress it’s you that can’t assure any understanding of others. There is always something out of place, then you see yourself isolated in your disgrace, alone in your own pit. When you play the isolation, you get to see another player’s hand, without revealing to others.

3. The Absurd:

Once you start to seriously consider thoughts about the reality that

surrounds you, that’s when the absurdity of life can strike you on the nose. You see yourself in the middle of a comedy play, where the truths that you always relied upon are just some of the

jokes. And they are not for you to laugh at, you are just part of it. You understand that you shall die in discomfort and may start to play with the idea of your own abortion. Put yourself at ease, for there is joy in the endless rolling of rocks humanity is trapped in. Try to find it. By conjuring the absurd, you choose another player to immediately confront reality with you. You both compare hands without showing your cards to other players, then the one with the card of lesser meaning jumps into non-being.

4. Flee from Reality: Here are some of the perks of being a bunch of organized matter. We can play with matter to consciously warp our minds, those rooted in this chaos. Drugs can be used for presence and for absence, and there is good use for both. If you feel pressured enough, don’t collapse, flee; you are allowed to sever the chains that are binding you to yourself, sometimes. Whatever it is you consider to be you, anyway. When you flee from reality, you can’t be affected or chosen by other plays until your next turn.

5. Insanity:

This feature is remarkable, because you should not fear it. You will never be

insane, only others will; whenever they can’t hold it, as you can see. It is the opposite of awareness in a beautiful way. Insanity is only observable from the outside while awareness is only observable from the inside. For all we can see, though, it seems also to be a natural resolution for all (other) tired minds struggling up to this far. Always remember to be 50


considerate to the insane, that’s because, ultimately, you can never know… Insanity lets you choose any living player to discard the card in hand without effects and draw a new card. If the center pile already has no cards, that player draws the removed hidden card instead. If all other players are fleeing from reality, you must choose yourself.

6. Feebleness:

The mind isn’t constrained to destroy itself. Once the job is fairly done inside

the house, despair spreads over the entire body. The dice of death roll both directions, sucking a bit of your strength at every step. Once you are here, it’s not so surprising, and your move is to

try to overcome your disease. At the edge of your feebleness, you pray. The real surprise is that you can only hope to succeed in your quest despite it, and this one is hard to absorb. You probably never get to truly accept it, for illness consumes the whole of you first. By playing feebleness you choose another living player to trade hands with you. Feebleness only does nothing if everybody else is fleeing from reality.

7. Motivation: Ironically, this is the closest you can be of any purpose, although motivation is a state you can achieve at every stage of your path. The trick is that, the further you go, the more meaningful and precious motivation is to you. And the harder it is to grasp. The only effect of motivation is being lost, whether by Insanity or by feebleness. If you happen to have one of these cards and motivation in your hand, you must discard the latter. You can also lose your motivation by your own will.

8. The Purpose: You go all the way to the end of the game, then you see it’s another joke. Of course the purpose is unreachable, what do you think you are? It actually is way beyond your

most wild dream, if it happens to be somewhere. But since you do have wild dreams, here is a bit of wisdom; conceive this path as a circle that goes back to the stage of life, where everybody lies. Yes, you smashed yourself during the journey, but now you are in position to rearrange the pieces to really build a purpose that belongs to you. It is of the most value to know that this purpose has nothing to do with the reality around you, only to the reality of you. This is a position you can only understand after completing the circle. It’s still miserable, as you are, but it dignifies the insides of your world, and that’s the most you can create for you. If you discard the purpose, you are giving your backs to the whole search for meaning, you are abandoning life itself.

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Credits This is a custom made flavor variant of the very known game Love Letter, designed by Seiji Kanai, from Alderac Entertainment Group. There are lots of variants of Love Letter, the original game is about delivering a love letter to a princess, and the cards are the members of the court able to do the task (the rules of the game and cards are unchanged). If you like the game, please buy the original and support its creators. The illustrations portrayed in the cards were taken from the internet and I will credit the ones I know the source: Pink Floyd – The wall (1982); Francis Bacon (the artist); Jean Frederic Bazille; Tiziano Vecellio; RenÊ Magritte; Caspar David Friedrich.

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