O círculo vol 6

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Editorial Saudações, companheiros de Círculo.

Depois de seis meses, temos nossa existência consolidada. Já é revigorante olhar para trás e

visualizar o conteúdo que já se encontra em nossa trilha. Recebemos comentários de possíveis autores interessados em se tornarem pilares do Círculo, mas receosos de não terem algo de relevante para apresentar. Todos tivemos estas dúvidas no início, e vejam o que estamos conseguindo produzir. Todos são capazes, e faz parte do nosso trabalho nos tornarmos cada vez mais capazes. Entrem nessa espiral ascendente, sem medo!

O Círculo é uma revista de conteúdo independente, um lugar em que qualquer escritor

interessado pode divulgar e desenvolver seu trabalho, além de ter a possibilidade de se tornar uma outra pessoa, viajar em outro self enquanto constrói o que tem a dizer. Mandem seus textos, símbolos e pseudônimos, aos moldes do que observam na própria revista, para o nosso e-mail:

textos.ocirculo@gmail.com

Para enviar dúvidas, opiniões, sugestões, etc, com a possibilidade de se manter anônimo, utilize o endereço:

www.mepergunte.com/ocirculo

Lá mantemos um mural com os comentários enviados e nossas respostas.

Não há exigências, exercite sua liberdade de ser e se desenvolver com o Círculo. Boa leitura!

Saudações,

O Círculo. 2


Índice

ÍNDICE

04. O ladrão de galinhas (Wild Child) 10. Fluxo sobre ser de esquerda, o momento presente, conceitos e psicoanarquismo (Mononoke) 13. Qual o tamanho do seu azar? (Selfish Light) 16. Transição (Wild Child)

20. O Mundo das Frutas: Capítulo I (Wild Child) 37. Compondo um sentido: Campo Harmônico (Sol) 50. O método científico: Capítulo V: Eletroímã (W. N. Centauro)

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O ladrão de galinhas - Wild Child Depois de mais de cinquenta anos resolvi relatar estes fatos com uma miserável intenção de fazer justiça a memórias que me caem agora como um pesado fardo. Pode parecer exagero, mas a consequência desta história foi o tormento contínuo que do fundo de minha mente manipulou e sustentou uma passividade que norteou a minha atitude e a minha existência nesta terra.

Antes do ocorrido, permita-me divagar em uma pequena e saudosa introdução ao ambiente e às pessoas daquele tempo. Eu tinha por volta de quinze anos e morava com meus pais em um condomínio de chácaras e casas na zona rural. Depois da escola e do almoço era sempre igual, a infância composta de molecada, brincadeiras levianas e muita sujeira. Na vizinhança, além de algumas chácaras das quais raramente víamos os moradores, conhecíamos bem quem se expunha à rotina das ruas de terra. De frente à minha casa morava o velho Senhor Chagas, um homem sério e respeitado, não era de muita cordialidade e trabalhava em sua terra com muita eficiência. Morava sozinho, eu nunca soube se tinha alguma família. Era um homem com um sistema de moral rígido e por algum motivo gostava da minha postura e se dispunha a me ensinar “as coisas que um homem de verdade deve saber fazer”; lembro-me de quando dizia, com a mão no chapéu, “a gente nasce moleque, ser homem é coisa que se conquista”. Ele tinha amizade com o meu pai e eu passava algum tempo em sua chácara todos os dias, ajudando e aprendendo. A certa distância morava uma viúva que chamávamos de Dona Cinha,

responsável por mais da metade da molecada da rua. Era uma mulher de caráter simples, só vivia para trabalhar e educava a dúzia de filhos à sua maneira simples, todos os dias, o dia todo, fazendo comida e desencardindo roupas, além dos rotineiros gritos de repressão. Hoje consigo ver que os amava, muito, com todas as ferramentas que a vida lhe deu, e a admiro por tudo. Por fim, em uma casa bem distante, pra lá do café, morava um rapaz de uns vinte e poucos anos, era difícil saber, com sua pobre mãe. Trazer à luz sua memória me causa um desespero sufocante, a qualquer momento, ainda maior depois de todos esses anos. Pois bem,

este rapaz era chamado de Dunha por nós, embora eu ache que uma vez tenha visto sua mãe o chamar apenas de Du; acredito que brincávamos com a forma que ele próprio se apresentava, arrastando o final da palavra. Dunha possuía algum tipo de transtorno mental, vivia pela rua com a mente em uma dimensão própria, involuntariamente assustando as crianças mais novas. Lembro que sua aparência um tanto característica costumava nos apavorar. Ele sempre tentava brincar e jogar com os outros na rua, mas era sempre evitado, inclusive por mim. Se eu estivesse sozinho quando ele surgia, eu sempre fugia. Bem, como quaisquer dessas crianças faziam.

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Mas, feito isso, dando enfim início à narrativa. Tudo aconteceu rapidamente, é a memória que tenho. Nesse tempo, um dos filhos de Dona Cinha chamado Popó, por circunstâncias que, por si, necessitam de certa avaliação, a fim de evitar julgamento errado, começou a se envolver com o tráfico e o consumo de drogas. Era mais velho que eu; em minha memória o tenho como uma pessoa impulsiva e orgulhosa, estava sempre disposto a financiar um desentendimento, de modo que parecia até um hobby. Orgulhava-se de suas amizades externas ao nosso mundinho, começou a nos desprezar por isso quando chegou nesta idade em que se destacava por ser mais velho.

O desfecho deste envolvimento foi o ponto que deu existência a esta história que, repito, ilimitadamente moldou meu caráter ao longo destes anos de existência. Em seu vício crescente, Popó começou a se endividar e só fez aumentar sua impulsividade e seu orgulho. Sem condições de se submeter a um trabalho ou a qualquer forma de aprendizado profissional, mas em condições de ressaltar suas notáveis características, começou a cometer pequenos furtos na cidade. Dessas coisas ficávamos sabendo por boatos, inclusive sobre como foi humilhado e espancado por policiais, no dia em que foi colocada a última rocha da fundação de seu caráter; assim como aconteceria comigo em pouco tempo. Diante desta trajetória e o ininterrupto consumo de drogas, Popó se tornou uma pessoa desestruturada, parecendo irremediavelmente revoltado.

Vagando entre nós, não havia parado com suas práticas. Começou a roubar a vizinhança, completando a miséria de Dona Cinha, que tanto parecia prezar por uma postura de dignidade e trabalho honesto. Hoje tento compreender isto também através da perspectiva desta velha senhora. Tendo criado tantos filhos trabalhadores, um único “desviado” foi capaz de acabar com sua saúde. Popó às vezes invadia propriedades na vizinhança e roubava alguns objetos e principalmente animais. Um dia roubou galinhas de meus pais e deste tempo me lembro com extrema clareza, para meu contínuo pesar.

Era uma manhã de sábado, já se comentava que quem estava roubando na região era Popó e meu pai imediatamente atribuiu a ele o sumiço de nossas galinhas. A primeira reação dele foi pensar em repreender o suposto ladrão, já que conhecia sua mãe e ele mesmo desde bebê. Minha mãe o convenceu que aquele garoto já não existia e o que ele se tornou era capaz de qualquer reação. Uma coisa pequena, mas me lembro do suspiro de impotência de meu pai, que era um homem orgulhoso. Depois desta discussão, saí para a rua e fiquei brincando com as outras crianças. Neste dia jogamos bola na terra. Em um momento, Dunha apareceu, agitado. 5


Ele estava sempre inventando histórias e falava sozinho. Vinha ficando cada vez mais inquieto e expressava medos cada vez maiores. Em paranoia crescente, já havia se perdido mais de uma vez nos últimos tempos. Lembro-me de quando as pessoas se juntaram em sua procura e o acharam a quilômetros de distância.

Muito bem, naquele sábado ele veio chegando devagar, meio agachado próximo ao muro, sem falar nada. Um garoto jogou uma pedra em sua direção, para provocá-lo. Ao ser quase atingido, Dunha se jogou no chão e ali ficou enquanto olhávamos, assustados. Seu corpo tremia. Foi auxiliado por minha mãe que, ao vê-lo de longe, correu em sua direção. Eu me aproximei dos dois e, enquanto ela o levantava e o limpava, ele olhou fixamente para mim e disse as seguintes palavras: “tá achando isso piada, né? Aqueles agentes de preto tão aí, eu vi. Eles sabe que eu sei, vão matar eu”. Daí se virou para minha mãe e pediu ajuda. Ela disse que estava tudo bem e o abraçou. Eu fiquei aterrorizado, olhei para o rosto dele e vi que ele estava chorando. Nós o levamos para sua casa e na volta perguntei o que havia com ele. Minha mãe disse que o problema que ele tinha o fazia acreditar em coisas que não existem. Senti um grande pavor nessa hora, nunca havia me dado conta disso e nem mesmo dele, tratávamos Dunha como uma criatura e só neste momento senti compaixão por ele. Pensei no que poderia significar um transtorno que altera quem somos, como nos comportamos, mas em qual medida não podemos nós mesmos sermos assim, sem saber? Dunha nunca concordou que o que ele pensava era ilusório, ficava muito irritado com esta ideia. Na época o chamávamos de doente; hoje penso se o fato de chamar sua condição de doença não somente revelava a pequenez da nossa perspectiva. Provavelmente sim, não sei.

Enfim, foi naquele momento a primeira vez que olhei para Dunha como um semelhante, não pelo que disse em específico, pois coisas assim ele dizia por aí, mas pela forma com que os fatos se encadearam e como eu mesmo estava me sentindo naquele dia. De volta, no portão de casa encontramos meu pai conversando com o Sr. Chagas. Contava sua indignação ao homem, “sua impunidade é inadmissível”, dizia. Como se já não estivesse sendo punido, hoje penso. E o velho retrucava com voz firme: “gente como ele não para, não aprende. Se trata na bala. Sorte não ter me incomodado ainda”. “O ocorrido já não se basta para te incomodar, ora essa?” Esbravejou meu pobre pai, inflamado pelo orgulho, incentivando um homem daquele. O Sr. Chagas cuspiu de lado e assentiu. De cabeça baixa, somente disse para que eu fosse com ele às terras de um homem, estrada abaixo, depois que almoçasse; precisava de um braço pra carregar umas tralhas. Dito isto, despediu-se. 6


Tendo ido, e o sol a pino, na volta, eu com os braços já trêmulos, caminhava. Passamos em frente à casa de Dona Cinha. Popó estava sentado à porta, com uma péssima expressão em seu rosto. O velho parou e ficou encarando o garoto. “Parece até um saco de lixo aí no chão, murcho. Vá viver como um homem, moleque”, ele disse. Popó, irritado, jogou-lhe um fluxo de pragas e fechou com um: “vá morrer no teu canto, velho frouxo”. Sr. Chagas cerrou os olhos, somente. Olhando fixamente, balançou a cabeça dizendo, com frieza: “tá bom, tudo bem então, foi um conselho só”. Na mesma hora, gritou pela Dona Cinha e a ela passou um recado: “Cinha, vou para a cidade amanhã à noite e volto pela manhã, precisa de algo de lá?”. Na hora me perguntei, porque revelar desta forma que não estará em casa? Não era difícil invadir os currais do Sr. Chagas sem sua vigilância. Ele também disse ao meu pai que eu iria junto, pela manhã eu já deveria estar pronto para ir até lá e ajudá-lo em uns serviços e à tarde iríamos direto para a cidade fazer negócios. Naturalmente.

Naquele dia dormi pensativo, tive pesadelos, por toda aquela história com o Dunha. Sonhei que estava amarrado, preso em um quarto escuro, mas ao mesmo tempo me esquecia disso e vivia normalmente, interagindo com as pessoas que conheço. Os dois ambientes se alternavam enquanto eu me movimentava bruscamente. Dentro de mim brotava um pânico angustiante, tal que, após me olhar no espelho e ver a face de Dunha, acordei em um salto, tendo dificuldades até mesmo para conter a respiração ofegante, enquanto tentava reconhecer meu quarto e meu corpo. Penso que, se ao menos este sonho não tivesse ocorrido, naquele dia, tudo teria sido diferente; talvez houvesse a coragem que me faltou, ou o equilíbrio mental, não sei.

Pela manhã eu estava transtornado e indisposto. Lembro-me de entrar na casa do Sr. Chagas e ele, sem pronunciar uma palavra sentou-se à minha frente e por vários minutos me encarou com uma expressão fechada, enquanto fumava. De repente pareceu decidido, retirou uma espingarda e colocou sobre a mesa. Com a mente turva em consequência da noite turbulenta, senti-me estranhamente assustado. Então ouvimos gritos vindos da rua.

Interrompendo a sessão, fomos os dois para fora. Lá encontramos crianças desesperadas em um

canto vendo Dunha caído no meio da rua com as mãos ensanguentadas se contorcendo e esfregando com toda a força as unhas na terra. Seus gritos sufocados ecoavam, fazendo o horror preceder a visão de sua luta. O Sr. Chagas ficou olhando e não parecia ter a menor compaixão por ele.

Meus pais apareceram para ajudá-lo enquanto sua mãe trazia de longe o próprio corpo que exalava infelicidade e penúria. Dunha gritava que precisava se esconder, precisava de ajuda, 7


pois aqueles homens o caçavam. Ele foi acalmado e meus pais argumentaram que ele deveria ser tratado naquele momento de crise. Sua mãe, de forma entristecida, disse que pegava o transporte do município para levá-lo em tratamento toda segunda-feira, mas que a cada dia as medicações pareciam ajudar menos. A alternativa foi olhar por seu descanso até a próxima manhã, então foram os quatro na direção da casa de Dunha. O Sr. Chagas me chamou novamente para dentro, eu sentia ainda mais uma estranha angústia, quebrado pela ressonância daquela manhã com o meu pesadelo mais recente.

Na volta, ele foi bem direto. Disse que estava na hora de eu passar por experiências que me colocariam em contato com a realidade crua, pois já estava passando do tempo de eu deixar de ser mais um moleque iludido pelo paraíso vendido pela igreja da terra; uma conversa estranha. “Hoje que você bate no peito e toma consciência do que ele realmente é feito. Você vai aprender o que é que importa nessa vida. Hoje a gente vai matar aquele moleque, Dona Cinha que me perdoe. Se não for hoje, vai ser logo”. Minhas reações eram insignificantes. Sem saber o que tudo isso significava fui acompanhando, como se estivesse em um trem-fantasma, um espectador de uma continuidade de horrores.

Durante o dia ficou me dizendo várias coisas que eu deveria aprender. Usamos a espingarda, cavamos uma cova no fundo do terreno, paramos pra comer enquanto me contava causos, como se tudo aquilo fosse natural. Eu mesmo não tinha noção formada do que é uma vida perdida, de certa forma encarava aquilo como uma investida moralmente honrada, o preparo de um castigo merecido. O Sr. Chagas era uma pessoa séria e respeitável, me disse que Popó não tinha conserto, eu sempre confiei nele; e não era o que meu pai queria? Não cogitei contestar.

No fim da tarde simplesmente pegamos o carro e saímos, de forma bastante visível. Paramos a certa distância, no canto da estrada, e esperamos a noite. Já no escuro, voltamos, e cautelosamente nos posicionamos escondidos entre os currais, onde já estava tudo preparado. Mesmo depois de acostumado, eu enfrentava dificuldades para enxergar naquele escuro, só via formas. Eu sentia medo e enquanto isso o Sr. Chagas fumava tranquilamente ao meu lado, com a arma na mão. De certo modo isso me dava o mínimo conforto para permanecer quieto naquele lugar.

Sem a menor ideia de quanto tempo depois, ouvimos barulhos no mato adiante. Uma sucessão frenética de sons se aproximava. “Lá vem o drogado de merda”. Percebemos uma forma 8


atravessando devagar a certa distância e então ouvi o estrondo seco cortando o ar. A forma negra caiu. Ouvimos um grito abafado. O Sr. Chagas ligou a lanterna e correu em sua direção. Para nossa surpresa, o rosto de Dunha foi iluminado. Com o peito sangrando, em agonia, ele me reconheceu. Pude ver a expressão em seus olhos. Horrorizado e com medo, disse com dificuldade: “você tá aqui! Vai, tá vendo que não é mentira? Ajuda eu a fugir”. Mas de repente começou a se desesperar e gritar. “Vamos, ajuda! Eles vão pegar eu, por favor não deixa, olha, eles me machucaram!”. Com seus gritos, cachorros começaram a latir, ouvi o Sr. Chagas praguejando com raiva e, tão logo a barulheira começou, a lanterna caiu; outro tiro. Senti a consciência terminando de se desgrudar de mim. Ele me pegou e levou para dentro, percebeu que me deitar era meu conforto; com os olhos arregalados, eu não podia me movimentar.

A forte memória destes momentos é a de que eu me encontrava em delírios intermináveis, por toda a noite. Apenas com o olhar estático. O Sr. Chagas jogou o corpo de Dunha na cova, e debaixo daquela porção de terra a existência de uma pessoa foi selada. Dunha foi dado como desaparecido, mas nenhuma vida a mais alterou negativamente o seu curso no nível da realidade objetiva. Até mesmo sua mãe, no interior de sua mente, com o tempo sentiu alívio, pois agora sua vida lhe pertencia novamente. O Sr. Chagas advertiu naquela mesma manhã, mas apenas o meu estado era suficiente para me emudecer, para sempre. A retenção daquela noite em pouco tempo se tornou um parasita em minha consciência. Nunca mais falei com o Sr. Chagas, que simplesmente abandonou a ideia; sei que Popó de fato encontrou a morte, alguns anos depois. Desde aquele dia meu comportamento se modificou solidamente e a minha introspecção angustiada apenas cresceu. Não houve justificativa, não houve qualquer ato de consideração ao ser humano que foi aleatoriamente extirpado naquela noite, apenas para reinar em minha memória. Foi assim, de repente, que a minha sanidade se deparou com um obstáculo intransponível. Eu o absorvi, e naquela cova se encontra o mero receptáculo de uma maldição. Dunha sempre foi louco, mas morreu são, fazendo o que deveria fazer, deixando para mim como herança tudo o que possuía, além do fardo de carregar na memória o último instante dos seus olhos agitados.

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F l u x o s o b r e s e r d e e s q u e r d a ,, o m o m e n t o p r e s e n t e ,, c o n c e i t o s e psicoanarquismo

-Mononoke

Tento sustentar a postura cética que me deixa desconfiado de qualquer reivindicação de esquerda presumivelmente assumida de tabela ou puxada por outras do mesmo modo como fico automaticamente desconfiado de qualquer reivindicação de direita. Ainda assim, é honesto e coerente que eu defina meus pensamentos sobre o mundo como de esquerda e reconheça que uma posição de avaliação neutra seja inconcebível dentro do nosso paradigma espectral de pensamento. E ainda que haja uma inexpressiva disputa dentro do anarquismo que defende a localização do mesmo fora do espectro político direito-esquerda, eu acredito que essa defesa é falaciosa e que sim, o anarquismo se localiza na extrema esquerda do espectro. Ainda assim, me considero de esquerda como a soma final das minhas crenças e julgamentos sobre a sociedade e a vida de um modo geral. Qual a novidade? Aparentemente nenhuma, visto que a maioria assume exatamente isso sobre o seu posicionamento de esquerda. Mas existe uma diferença sutil entre esse tipo de esquerdismo, eu diria mais raro, e o esquerdismo como identidade, eu diria mais abundante. Para sublinhar essa diferença, é preciso antes de tudo se adiantar à comum invalidação de que isso que está prestes a ser discutido é uma distinção meramente semântica. De fato é semântica. Mas o problema está na miséria atribuída à semântica, no ‘meramente’. Um complexo de ideias - dado que ideias são replicadores e replicadores são egoístas, isto é, só se interessam na própria replicação -, tende a selecionar sempre peças que já se encaixam ao complexo já construído, para que tudo se expanda mas nada fundamentalmente mude, um processo contínuo de acúmulo do comum com pequenas variações que implicam em sua estabilização cada vez mais rígida e sofisticada. É sempre importante selecionar peças novas, mas que não provoquem assimetrias nem desestabilize a estrutura mesma que as

possibilita. Uma representação semântica, como a definição de anarquismo, por exemplo, é uma unidade de ideia ou célula de ideias constituintes do complexo, que exercem domínio inconsciente sobre a maneira de avaliar a nós mesmos, uma vez que sempre avaliamos tudo em luz dos conceitos que portamos. Melhor dizendo, representações semânticas são maneiras de sintetizar as projeções do ego por entre seus diferentes ângulos: o presente contemplativo, o presente preocupativo (alternativo), o presente paralelo (alternativo), o passado contemplativo 10


,

(nostalgia), o passado preocupativo (alternativo), o passado paralelo (alternativo), o futuro contemplativo (alternativo), o futuro preocupativo (alternativo), o futuro paralelo (alternativo)

,

e, para aqueles que possuem esse ângulo desobstruído, o futuro (ou indeterminação temporal) metafísica (ou transcendental). Mas uma representação semântica pode ser radical, tão radical que quase escapa à percepção consciente por não se encaixar em um complexo consolidado. Ser de esquerda é estar constantemente capturado por todos os ângulos de projeção do ego - e nem todas essas dimensões projetivas são facilmente investigáveis pela mente em autoanálise. Já

constatar-se de esquerda é fazer uso de representações radicais para julgar o estado presente de seu sistema. Quando alguém consegue se achar numa afirmação como “me considero de esquerda como a soma final das minhas crenças e julgamentos sobre a sociedade e a vida de um modo geral”, nem sempre se está livre de ideias de esquerda que não sejam aprioristicamente nutridas pelas muitas janelas do ego ainda inacessíveis aos conceitos disponíveis em sua mente. Constatar-se de esquerda, ao contrário, é chegar a uma conclusão ex-post facto ou a posteriori de que esquerda, numa ordem conceitual, é um termo apropriado para identificação. Só que tal constatação começa e termina no mesmo momento, porque uma vez que há identificação, há impulso de replicação - em minha opinião, alguma espécie de patologia. A partir do momento em que há patologia, há ideias que querem se replicar por elas mesmas. Outro problema é que toda construção de conhecimento se dá na dinâmica dessa espécie de patologia, primeiro se construindo as bases de um complexo de ideias para que uma segunda base de ideias se estabeleça por cima para que uma terceira base de ideias se estabeleça e assim por diante - o interesse nesse sistema está na manutenção da estrutura. São raros os conceitos que atravessam as bases mais fundamentais do complexo e os desestabilizam. Mas alguns têm essa potência. Então qualquer discussão semântica pode não ser (ainda que às vezes seja) uma mera semântica em debate. O intuito de criar conceitos porque conceitos supostamente libertam é o trabalho mais fundamental da filosofia. Mas cá eu penso que libertar é o conceito errado, porque conceitos não libertam, só te aprisionam de uma maneira diferente e temporariamente mais satisfatória. Todo o regime da linguagem - seja ela oral, tátil, visual ou o mentalês - nos aprisiona a um solipsismo infernal. Mas existe, pelo menos, a expectativa de zonas temporárias autônomas dentro da própria mente - zonas que estariam no ponto cego de todas essas projeções do ego. Numa espécie de psicoanarquismo em prática, deveria se estabelecer pontos de resistência instalados através da criação ou conhecimento de conceitos e parábolas semelhantes a um koan zen-budista. São as parábolas e os koans no contexto religioso, afinal de contas, as responsáveis por momentos de breve elevação sublime, de suspensão do ego e iluminação. Momentos, eu diria, de instalações de zonas autônomas temporárias na própria 11


,

mente, por onde se pensa de um ponto independente mas curto, muito curto, instável e criticamente sensível ao holofote do ego, à patologia que é a identidade. Pode-se dizer que o

,

melhor posicionamento cético é o posicionamento que age transversalmente nos complexos de ideias já formados (seja esse complexo o complexo esquerda, o complexo direita, o complexo cristão, o complexo budista), e que somente no desenvolvimento de certa agilidade mental é que podemos evitar a sedução demasiada pelos conceitos e aprender a promover à consciência aqueles conceitos descartados pelos complexos já estáveis em sua mente. Assim, investigar as

frestas não alcançadas pelo ego permitiria ao psicoanarquista descobrir (criar) conceitos ou solidificar conceitos rarefeitos a fim de minar agrupamentos de ideias direto nas suas bases, e atualizar suas constatações sem se deixar capturar pela sedução da identidade, pela irresistível atração provocada por um mecanismo patológico de apego ao conhecimento estável. A postura cética por excelência só pode ser a postura do não-saber, do não-conhecimento. A constatação de que sou de esquerda se converte em investigação se sou de esquerda no idêntico momento. Na verdade, a constatação de que sou de esquerda desaparece no mesmo momento em que constato. E é assim que, por um momento, devo ser capaz de constatar que sou de esquerda e no seguinte momento esquecer dessa constatação. A atenção deve estar sempre voltada ao momento que acontece para que a alavanca esteja sempre posicionada no tempo do presente contemplativo, que é o único tempo livre de conceitos. Ainda que o presente seja também uma ilusão conceitual, o próprio computador cérebro está submetido ao tempo e portanto tem um tempo de ação nítido, e tudo que fica aquém desse tempo não pode ser capturado em conceito, não é sensível à cognição. Esse tempo de ação, obviamente não um presente de fato, podemos conceitualizar como presente contemplativo na expectativa de radicalizar alguns complexos estabelecidos na construção de conhecimento e identidade, na constituição do ego. A ancoragem num presente contemplativo é certamente um ponto de resistência que pode se tornar zona autônoma temporária ou - cuidando zelosamente pra que não vire outra cilada do ego, outra patologia - uma zona autônoma permanente.

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Qual o tamanho do seu azar? -Selfish light A maioria das pessoas se acha azarado ou sem sorte. Eu por muito tempo me considerei bastante azarado. Mas sabe qual é o problema disso ? Nós. Nós somos a nossa grande fonte de azar. E por que nos vitimizamos tanto? O que acontece na nossa mente pra maioria se achar azarada?

O que acontece é um mecanismo natural na nossa intuição chamado de correlação ilusória, que nada mais é do que uma pequena falha na nossa intuição, em que as vezes não temos a informação, ou tempo suficiente pra analisar uma determinada situação, ou quando não sabemos lidar muito bem com essa situação e ficamos comparando ela com coisas que não tem muito a ver. Ficou um pouco complicado ne? Um exemplo bem comum nas nossas vidas são as filas. Seja fila de supermercado, fila de transito, de banco, fila do que você quiser. Aí você ta la na sua filazinha, e percebe que sempre a fila do lado anda mais rápido. E vem o pensamento: “Caramba, eu sempre pego a fila mais lenta. Por que sempre comigo? ” Isso acontece justamente por conta da correlação ilusória, porque quando você está na fila e ela esta andando, você não foca em quem esta parado ou no fato de você estar parado, você foca pra onde você esta andando, pra onde você esta indo, então você só presta atenção nisso. Quando você para, o seu foco muda. Você começa a perceber as coisas importantes a sua volta. O que são as coisas importantes a sua volta? São as filas alheias, que de repente estão

andando, e você também foca em si mesmo: “Pera, porque a fila dele esta andando e a minha não?” Percebe o problema? Você se distrai quando esta andando e não repara que talvez as outras filas não estejam andando também. E nessa hora que a intuição começa a gritar e te faz pensar que você é o azarado da historia. Bizarro ne?

Mas então como explicar as pessoas que se dizem sortudas? Elas simplesmente são sortudas. Só isso (mais ou menos) Mas você também pode se tornar sortudo assim como elas. Primeiro

vamos falar do que não funciona: Superstições. Essa coisa de mandinga, dar três pulinhos, pé de coelho, trevo de quatro folhas, nada disso funciona. É tudo uma questão de perspectiva. Por exemplo, aqui no Brasil, se um gato preto passa por você, isso é considerado um sinal de azar. Mas saiba que em muitos outros lugares isso é considerado justamente o contrario, um sinal de sorte. Então você pode ver que essas coisas não tem muita lógica. Mas então como se tornar uma pessoa mais sortuda? São necessários apenas quatro princípios básicos: 13


Maximize oportunidades, escute sua intuição, saber lidar com a má sorte e por ultimo, espere boa sorte. Lembrando que isso não é nenhuma autoajuda ou algo do tipo. Isso é ciência. Então o poder fica na sua mente, em como você consegue adaptar essas coisas.

Maximizando suas oportunidades: Foi realizado um experimento com mais de 400 pessoas que se diziam ou muito azaradas ou muito sortudas, onde elas recebiam um jornal e elas tinham de contar quantas fotos tinha nesse jornal. A maioria dos azarados demorava cerca de

dois minutos pra responder. E os sortudos demoravam apenas alguns segundos. O porquê disso é que na segunda página do jornal estava escrito bem grande: “Pare de contar, tem 43 fotos nesse jornal”. Isso mostra que as pessoas “azaradas” tendem a ser muito ansiosas e focar em apenas um objetivo e consequentemente isso te faz perder várias oportunidades que estão a sua volta. E maximizar suas oportunidades não é somente observar as oportunidades a sua volta, é também criar novas oportunidades. Isso é simplesmente quebra de rotina. As pessoas mais “azaradas” tendem a seguir as rotinas mais básicas e seguras enquanto que as

pessoas mais “sortudas” tendem a quebrar mais suas rotinas. Se você acha que a situação está perdida, tente loucuras. Isso pode fazer a diferença entre o sucesso e o fracasso daquilo que você está tentando.

Escute sua intuição: Pessoas azaradas tendem a confiar muito pouco na sua intuição e a não ter muita coragem na hora de tomar uma decisão que ela julgue arriscada ou desconfortável. E com os “sortudos” é justamente o contrário. Elas costumam ter mais confiança de si, de acreditar mais na sua intuição. E não só acreditar, mas refletir o porquê ela teve essa intuição. Elas também tendem a limpar sua mente, pra limpar a sua consciência o melhor possível, por exemplo através da meditação. Enquanto que os “azarados” tem a mente mais fechada e tendem a pensar negativamente. Obviamente que nem sempre a sua intuição vai estar certa. É ai que entra a parte da reflexão. Tente limpar a sua mente e perceber o que o seu cérebro está querendo te dizer.

Lidando com a má sorte: imagine a seguinte situação: Você está indo ao banco quando de repente acontece um assalto, começam a atirar e você toma um tiro no braço. O que você acha sobre isso? Os “azarados” tendem a culpar o seu azar, porque sair de casa e tomar um tiro não é nada legal. Já os “sortudos” tendem a pensar que esse foi o menor dos males porque o tiro poderia ter acertado na cabeça e te matado. Ou seja, elas tendem a se comparar com as piores situações e isso levanta sua própria moral e isso é bom pra você pensar e agir melhor. 14


Espere boa sorte: Obviamente, quando eu digo esperar boa sorte, não quer dizer sempre jogar contra as probabilidades. A questão é bem parecida com o lance de criar oportunidades. É você manter o aspecto positivo de que você ainda tem uma chance de fazer a coisa acontecer de algum jeito. Porque se você tem sempre a atitude negativa, de pensar que nunca vai dar certo, as suas atitudes e a sua maneira de pensar consequentemente serão piores. Você acha que pensa melhor quando esta frustrado? Eu duvido.

Basicamente é isso. E só lembrando, isso é ciência e não qualquer outra coisa.

Até a próxima.

Referencias: http://www.richardwiseman.com/resources/The_Luck_Factor.pdf http://www.bbc.com/future/story/20130827-why-other-queues-move-faster

https://pt.scribd.com/doc/95697242/Richard-Wiseman-Luck-Factor

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TRANSIÇÃO - Wild Child O dia estava bastante colorido, o sol confortável e ameno trazia às ruas um clima leve e convidativo. A manhã seguia tranquilamente, e da penitenciária W. C. respirava profundamente, sentindo cada detalhe de seu funcionamento. Esse era o dia de sua execução pelo grave crime de traição contra a humanidade. Após preso por vinte e cinco anos, longo tempo em que refletiu a respeito de sua vida, encontrava-se diante de sua inexistência. Como último desejo, solicitou um púlpito e meia hora na sala de sua execução, para fazer um discurso a quem estivesse presente. Não preparou nada, pensou em falar o que viesse à mente.

Chegada a hora, frente aos funcionários que procederiam com a rotina de sua execução e três pessoas sentadas nas cadeirinhas, W. C. dirigiu-se calmamente ao seu púlpito, encarou seu leito final por uns instantes e, olhando para o nada, começou:

- Eu tentei buscar propósito na existência... No fim, eu me pergunto: o que eu sou? O que vocês são? Eu consigo ter consciência de que aparento ser uma entidade invisível, imaterial, uma mente abstrata que está inserida e de alguma forma comanda um corpo que faz parte de uma realidade material, mas que faz parte de uma rotina bem insignificante dessa realidade. Essa realidade que vai me matar. Eu sou um ser privado, que não está em nenhum lugar no mundo, mas que consegue observar e refletir a respeito desse mundo. Ao mesmo tempo, eu sou um corpo material, público e sujeito a danos, um corpo muito frágil que evoluiu segundo leis específicas dentro de um sistema que faz suas coisas em uma porção de tempo e espaço assustadoramente

pequenas

dentro

de

um

lugar

com

fronteiras

absolutamente

desconhecidas. Eu sinto o dualismo do meu ser, mas ao mesmo tempo acredito que existe uma única realidade, e mesmo que outros mundos possam existir, com outras leis, eles estão nessa realidade. Eu vejo que a realidade mental das pessoas segue o passo de conservação da realidade material, ela se deteriora à mesma maneira e está sujeita a danos e fragilidades correspondentes. À parte do que eu sinto, as duas realidades se misturam. Eu só consigo concluir que o que sinto se forma como um autoengano inerente da minha construção. E, olhando para fora, o universo como um todo é tão estranho, tão vasto e desconhecido, nós temos tão poucas respostas. Qual a esperança de descobrir o que realmente está por trás das cortinas? O absurdo da vida é sentir-se com a capacidade suficiente para entender o que está acontecendo, sabendo que esse entendimento jamais será alcançado dentro da existência que sabemos que temos. Existem respostas importantes totalmente fora do alcance de todos os 16


seres humanos; em nossa busca por propósito temos que lidar com essa frustração que vem

pra ficar. O propósito da existência, e, por consequência, qualquer possibilidade de propósito mais fundamental pra minha própria vida, não será descoberto por mim. O que fazer diante do reconhecimento do absurdo da minha própria existência? Eu não posso esperar por algum propósito. Depois de pensar muito a respeito, consigo sentir duas coisas; uma imensa curiosidade para saber a mensagem e todo o roteiro dessa grande peça em que eu pareço ser um pequeno figurante presente em uma única cena, mas uma curiosidade que motiva a especular e a criar, e isso seria gostoso, se não fosse à beira do precipício; e também uma

estranha sensação de liberdade, por sentir que então eu mesmo vou acabar sendo a maior autoridade na busca pelo propósito da minha vida, qualquer coisa serve, desde que seja importante pra mim. É uma sensação estranha porque eu bem que queria estar por dentro “do esquema”, mas também o esquema poderia ser um que me obrigasse a sofrer em virtude de uma troca por algo maior que eu mesmo; nunca se sabe, não é? – E nessa hora W. C. olhou para o padre, que dormia. - Assim, mesmo a existência sendo injusta, caótica e pateticamente frágil, eu estruturo a minha dignidade em volta da concepção de que a minha pode ser

realmente minha. Não quero ser mal-entendido, eu senti uma sufocante aflição por ser perdido e por ter que deixar de existir pra sempre daqui a pouco, todos os dias antes de pegar no sono eu tenho me lembrado disso. Essas duas coisas positivas que sinto vêm após o “pensar muito a respeito”, são uma conquista funcional, um contra movimento diante da inércia do desespero. Mas eu não me atrasei, porque pelo menos cheguei a esse estado em vida. Eu sempre separei o autoconhecimento em duas partes: o aprendizado e o domínio dos fatos sobre nós; e o desbravamento e a criação do que temos o potencial de ser e viver

livremente. As duas partes devem ir se construindo ao longo de toda a vida, em um processo em que usamos o nosso estado atual como promotor da próxima subida em capacidade e entendimento. E o que o mundo é senão o que atravessa a nossa própria janela? O que não é autoconhecimento? Eu usei o que tenho com a segunda parte pra me debater e tentar ir atrás desse sentido, por vinte e cinco anos. E agora eu cheguei nessa conclusão, isso é o que eu chamo de produtividade de última hora. Eu nunca terei verdades, eu nunca me terei por completo, eu só tenho acesso às ficções e é com elas que eu escrevo meu propósito. E eu passei a minha vida xingando os limitados cães e tentando entender as pessoas, mas hoje, sem medo de qualquer consequência, digo que finalmente compreendi que as pessoas são o que eu sempre chamei de cães e que eu teria conseguido entender o que eu precisava com eles. Arrogância! Agora não dá mais tempo de saber o que viria a seguir. Eu estive sempre mudando muito, e sempre reconsiderando minhas crenças, tentando refinar o que achei ser certo. Tanto que passei a reconhecer o quanto a busca por estar certo poderia estar me 17


fazendo mal. Optei por me aprimorar cada vez mais em traduzir as ideias que tenho em

sonhos, podendo representar todas as partes, podendo não chegar em conclusões, tendo o objetivo principal de relacionar com as ideias, e não as selecionar. E sonhar ficou tão bom, tão melhor que a realidade nua, cheia de fatos constrangidos. Quero me afastar cada vez mais do fardo da verdade, do conhecimento, da opinião. Nos sonhos, continuo com a minha postura, lutando por cenários que considero melhores, praticando conhecimentos que refletem o que eu vivo, tentando permanecer nos domínios de validade e ser justo. Mas quero que meu estado de repouso seja desarmado de certezas, quero não maquiar minhas impressões para

que elas se pareçam mais com uma autoridade. No curso do tempo, eu aprendi tantas coisas, vi tantas coisas acontecerem, e a soma de tudo é o meu reconhecimento de que só há como se considerar certo, afirmar coisas, dentro de um estado de grande ousadia, exercitando pequenos saltos de fé dentro de um quadro de aparente sofisticação intelectual. Não quero pregar o preciosismo nem o relativismo, quero pregar a honestidade. Lá fora, verdades existem e promovem uma realidade inconfundível, mas bem lá fora; quando temos que ir à luta, vamos à luta com o que temos. Acho que é muito fácil se perder no caminho, passar a

ser a luta, e é esse delírio que faz mal. ME faz mal, não sei o que faz aos cães. E daí, pra que serve uma opinião? Um fato? Pra ser tão categórico em relação a alguma coisa é preciso uma confiança que eu sei que não posso ter. Eu percebi que sou um explorador, não quero ditar regras. O mundo é estranho e as pessoas são estranhas. Mas que desgraça, o mundo é estranho no sentido de desconhecido, as pessoas são estranhas no sentido de esquisitas mesmo, não dá pra se identificar. Olhem que situação engraçada, essa aqui. A dúvida me faz bem, caminhar me faz bem, não posso buscar me aquietar nas respostas, sonhar me faz bem,

contar histórias. Existem muitas técnicas que usamos para sermos convincentes, devemos passar credibilidade, autoridade, etc. Mas quero sair desse jogo, assim como tantos outros que venho considerando irrelevantes. Alguém aqui enxerga credibilidade na minha expressão? De tudo, credibilidade? Eu não quero ser tão definido, não quero definir as coisas, quero descobrir, e o descobrimento tem vários sentidos. Não tenho visto propósito em “produzir” nada, nem tanto em me importar com minha utilidade no mundo. Nós somos ficções e eu quero abraçar isso, quero ser todos os arquétipos. Eu já ouvi dizer que o último segundo é o mais longo de todos, que há impérios dentro dele, e é isso que eu espero viver lá, daqui a pouco, daqui a bem pouco. Não quero que chegue o momento e eu vacile, e então eu venha a sentir o maior horror concebível, a soma de todos os horrores que eu senti na vida à espera deste momento e mais. Eu quero fixar a solidez do meu estado de desapego nesses últimos passos que me faltam, quero consumar o meu estado de viajante durante a minha última viagem. Vocês serão testemunhas da destruição de mundos, mas eu não vou ser 18


destruído, eu me recuso a ser destruído. Não aceitarei essa doutrina, eu finalmente

compreendi o que é não ter nada, é libertador. A posse faz parte da ilusão, a grande ilusão da factualidade. Se eu tivesse o poder pra aconselhar qualquer coisa aos seres vivos, eu diria: continuem tentando manipular a realidade com bastante perícia para aumentar o conforto e a diversão, sempre funcionou, mas subjuguem a ciência, venerem as histórias, a si mesmos, que são a única fonte de propósito acessível nesse lugar frio e escuro. Como eu posso passar a vida inteira me preparando para esse grande encontro, indo em direção a ele, e não gostar do que ele tem a me oferecer? Minha correção demorou vinte e cinco anos, e quase não foi

suficiente. Não deixem pra depois. Eu tenho tanta coisa pra dizer, mas só me interessam as histórias. A realidade atual não é um lugar muito adequado. Vocês conseguem me entender? Alguém tenta me entender? O tempo havia acabado, os guardas vieram arrastar W. C. para o seu leito. Mas ele se calou, fechou os olhos, e espontaneamente dirigiu-se ao seu lugar. Eles tentaram empurrá-lo, mas todo o esforço era vão, o corpo de W. C. não se afastou de sua rota. Deitado, esperou a ordem e, sentindo a mudança, teve em seu cérebro uma explosão colossal de ativações materiais,

suas últimas.

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´ Mundo das frutas – capitulo i - Wild Child Estou com cada vez mais vontade de trabalhar em minhas histórias grandes. Depois que o círculo começou eu não toquei mais em nada, então vou começar a postá-las aqui e com isso me comprometer a terminá-las. Essa história foi pensada para dez capítulos, vou colocar um a cada mês e espero estar com o décimo daqui a dez meses. Curiosamente, o nome O Círculo é uma organização dentro desta história, sem relação com a revista. O mundo das frutas conta os eventos que se passam na metrópole das frutas no momento em que um ponto de pressão nas movimentações científicas e sociais abre espaço para a revolução.

I. Malus Malus andava apressado, não admitiria chegar atrasado a um jantar na casa do senador Gumba, seu padrinho, uma manga muito respeitada naquele distrito. Na

verdade, para manter sua reputação de uma maçã virtuosa e eliminar a possibilidade de causar incômodos, só admitiria chegar na hora combinada, exatamente. As ruas estavam agitadas, a noite iluminada. Na clara abóbada celeste sobre a metrópole podia ser visto o grande arco de pedra, atravessando a noite de uma ponta à outra.

Ao virar na última esquina, com o casarão já à vista, Malus se surpreendeu com duas pequenas uvas agarradas, brigando e gritando no meio da rua.

- Vou ser mais forte, é óbvio. – Disse uma delas enquanto desviava do ataque da outra uvinha.

- Você não vai ser nem maçã, seu banana! – Gritou a uvinha raivosa.

Malus se aproximou das duas, com ar sério. Separou-as e agachou ao mesmo nível de seus olhos, dizendo em um tom assertivo:

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- Escutem crianças, nenhuma maçã possui esse comportamento agressivo e desrespeitoso com seus semelhantes. Isso é muito sério. Alguém com essa mentalidade jamais se torna maçã. Uma verdadeira maçã valoriza a ordem e a proteção do próximo; não exalta a guerra, mas a atravessa em busca da paz. Nunca se esqueçam da função de uma maçã. Então, olhem um para o outro e repitam: estou aqui para garantir a sua liberdade de estar aqui.

As uvinhas ficaram chocadas. Sem jeito, repetiram, olhando-se; mas rapidamente desviando o olhar para baixo. Malus as cumprimentou cordialmente e elas retribuíram. Ainda sério, se despediu:

- Agora vão brincar juntos, garotos. Vou estar de olho em vocês.

Sentiu-se muito orgulhoso de si e ergueu-se com leveza. Respirou fundo e olhou

para o relógio, que pedia um pouco de pressa. Correu em direção ao casarão e tocou a campainha, alisando a roupa em seguida no seu corpo redondo. Depois de um instante, um mordomo banana o atendeu com uma pompa artificial. Logo atrás vinha o senador, com os braços abertos e suas grandes bochechas levantadas em sinal de satisfação por ver seu querido Malus. Disse de imediato, praticamente gritando:

- Alô, alô, rapaz! Entre aqui, chegue perto, venha me dar um abraço!

Malus, como sempre, ficou um pouco desconcertado com a recepção, mas se aproximou com vontade; também amava seu padrinho. Gumba o tratava com muito apreço, sempre ficava animado com suas visitas, que traziam novamente àquela casa o espírito da jovialidade. Era uma enorme adição à solitária vida de Gumba e sua esposa. Eles tinham um filho que amavam com todas as suas forças, mas, no passado, havia sido vítima de um raríssimo desgosto para todas as frutas das famílias tradicionais. Em seu crescimento, o filho do senador havia se tornado uma banana. Uvas, quando chegam à adolescência, transformam-se na fruta com a vocação que é expressada por ela enquanto cresce; essa característica não é hereditária.

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Um filho de outras frutas se tornar banana ao crescer é um acontecimento considerado pelos maracujás sacerdotes como um presságio de grande revés para a família e para o jovem; então é realizado um ritual de purificação por meio do seu sacrifício. A cerimônia é conduzida com um pesar saudoso em relação à nova banana, que em seus últimos dias recebe presentes dos familiares e é levada a encarar tudo com coragem e a convicção de que está em comunhão com as leis da natureza, leis consideradas acima da pequenez de uma consciência em formação.

- Vamos entrando, o jantar já está quase pronto. Sente-se, sabe que pode ficar à vontade, não é? Vou preparando uma pequena dose para nós, para abrir o apetite! – Gumba gesticulava, dava pequenas batidas nas costas de Malus e falava alto.

Malus só acenava com a cabeça e resmungava agradecimentos. Realmente se sentou em busca de se sentir mais à vontade, embora apreciasse a alegre recepção. Gumba,

entre altas risadas, servia pequenos copos de uísque a si e a Malus enquanto sentava-se à sua frente; os dois em uma ampla e rica sala de estar. O senador já foi puxando conversa.

- Você, Malus, tornando-se este homem maravilhoso, hahaha... – Gumba procurou em volta com os olhos indo de um lado para o outro e abaixou um pouco a voz. Diga-me, como estão as jovens mulheres desta cidade?

Malus corou e abaixou a cabeça, sentiu uma onda de desconforto que gerou gotas de suor em sua testa. Já com a garganta seca, agitou a bebida.

- Ora, padrinho... Estou muito ocupado ultimamente, sem tempo para romances.

- Ah, claro, claro! Um oficial extremamente responsável, hahaha. Mas olhe lá que são os melhores partidos para elas, foi o que andei ouvindo por aí. Ah, inclusive, é isso o que tenho pra te falar hoje, haha!

- Que foi? – Surpreendeu-se Malus, preocupando-se mais, com o coração já bem saltado. Gumba se levantou e ergueu seu copo, dizendo com alegria: 22


- Me desculpe, não posso me conter. Você, meu filho, vai ser promovido a comandante antes mesmo do festival de passagem; e eu juro que não tenho nada a ver com isso, hahaha!

- O que? Mas você tem certeza disso? – Seus olhos arregalaram, se dilataram, em excitação.

- Ora, é claro! Acho que você também, não é? Hahaha, qual dos seus colegas é mais competente que você, hein?

- Não, por favor. Não é assim que funciona, padrinho...

Malus respondeu automaticamente, sua mente já estava embriagada com a ideia da promoção, além de todo o abalo emocional pelo teor dessa conversa peculiar. Tinha

trabalhado muito e no fundo de seus desejos almejava ser comandante já no próximo festival de passagem, mesmo sabendo que era ainda muito jovem. Depois da surpresa, restou uma ponta de preocupação em pensar que Gumba pudesse ter influenciado a decisão, mas sabia que a estrutura de comando das maçãs era bem rígida em relação a influências externas. Pensou que deve ter usado sua influência apenas para saber o resultado das promoções de antemão. No dia anterior ao festival de passagem, todos os oficiais se reuniam para as cerimônias de promoção que determinariam as estruturas hierárquicas militares para o próximo período. A primeira tarefa das maçãs depois da cerimônia, já em seguida, era montar os esquadrões para conduzir as atividades do festival de passagem, cada um gerenciado por um comandante. No próximo período, estes mesmos esquadrões cuidariam das rondas em diferentes distritos e da patrulha de fronteira da metrópole. O comandante de esquadrão era considerado um posto de alto prestígio e alta responsabilidade para as maçãs. Acima dos comandantes havia apenas o triunvirato, o núcleo de comando militar da metrópole; os três mais competentes comandantes vivos, que deixam seus postos para serem as únicas maçãs a participarem do planejamento político e coordenarem a ação dos comandantes.

O festival de passagem era o conjunto de rituais e festas que simbolizavam o fim de um período e o início de outro. Para as frutas, o período era uma medida de tempo 23


que, juntamente com os dias, compunha seu calendário. Os períodos e os dias eram medidos de acordo com padrões no movimento da estrela de fogo e cada período durava duzentos e setenta e quatro dias. A passagem acontecia no dia mais escuro do ano, exatamente quando a estrela de fogo atravessava ao longo da linha do arco celeste, uma ponte de rocha que cortava o céu ao alto. No momento em que Malus visitava seu padrinho, a cidade já se encontrava no fim dos preparativos do festival de passagem que aconteceria em dois dias, do amanhecer ao anoitecer do dia da

passagem.

Depois da grande notícia, Malus ficou ainda mais ansioso pelo dia seguinte e o festival. Mais empolgado, conversou com seu padrinho sobre detalhes da informação.

Um tempo depois, o jantar já estava na mesa e Malus já havia se encontrado com Olia, a esposa de seu padrinho, uma manga quieta, de personalidade leve. Os dois se cumprimentaram e trocaram algumas palavras enquanto Gumba se ausentou por um instante:

- Você vê, Malus, Gumba passou o dia cuidando dos preparativos para sua visita. Esqueceu-se de todo o trabalho que tinha para hoje. – Disse Olia, até satisfeita com a irresponsabilidade carinhosa de seu marido.

- Você ainda o auxilia com seus deveres? – Perguntou Malus.

- Ah, sim. Sabe, ele nunca mais foi o mesmo, nunca se recuperou completamente.

- Já faz uns dez períodos, não é? E... você não sente pela sua própria carreira?

Olia soltou um pequeno suspiro.

- Sim... mas aprendi a apreciar o que fazemos juntos, de qualquer forma estamos sempre próximos e nos auxiliando... Enquanto o tempo passa. – Olia abaixou a cabeça, saudosa. 24


Malus pensou por um instante e ia dizer algo, mas o senador de repente surgiu.

- Hoje fiz questão de solicitar à nossa banana cozinheira que fizesse os filés de pônei do modo que sabemos que você adora. – Ele disse a Malus, sorrindo, enquanto gesticulava em convite para que se dirigisse à mesa.

Os pôneis eram criaturas domesticadas, muito úteis para o consumo das frutas,

normalmente criadas por laranjas pecuaristas em grandes pastos nas bordas da metrópole. Eles supriam basicamente toda a demanda de carnes e laticínios das frutas.

Quando todos se sentaram, com o senador tagarelando suas histórias, as bananas serviram a comida em recipientes de requinte. Eles nem olhavam para as bananas, então elas se retiravam e os deixavam em sua privacidade para a refeição.

- Estão deliciosos como sempre. Olia, agradeço muito pelo apreço de vocês. – Disse Malus, sentindo-se novamente lisonjeado com a recepção. E Gumba gritou:

- Ora, nós é que temos que agradecer a você pela excelente maçã que se tornou. Um brinde, por favor, hahaha! – disse enquanto mastigava filés de pônei e erguia o copo em direção aos outros dois.

O jantar continuou a ocorrer enquanto eles conversavam sobre coisas banais, Gumba gesticulava e não parava de falar, com a boca cheia de comida. Em dado momento ele comentou, rindo:

- Essas bananas até que acertam a mão na culiária, não é mesmo? – E, dando um pulinho enquanto olhou para os lados, continuou em um sussurro, inclinando-se para frente – E falando nisso, você viu, Malus, este caso da banana insandecida? Está dando o que falar. Em uma casa do distrito nove, o mordomo banana saiu correndo pela rua, fugindo, pelado, hehe. Quando a polícia encurralou o biruta, imagina essa, rapaz... a banana se matou com uma faca, desenhando na parede com seu próprio suco antes de cair, aquela pasta grossa que é o suco delas, né?. Macabro! Hahaha, mas essas bananas são tão perdidas, e olha bem, mal agradecidas!... Não é? 25


Ao terminar de dizer, balançava a cabeça devagar, com os olhos saltados e a boca apertada em uma tentativa de expressão séria. Olia resmungou:

- Ah, Gumba, não comece com essas histórias em pleno jantar.

- Ora, só quero saber o que o garoto tem de informações internas, hehe. – A este ponto, Malus terminava de mastigar o filé.

- Este não é o meu departamento, padrinho, mas eu ouvi falar sim; alguém comentou que durante a investigação foi descoberto que esta banana havia aprendido a ler de alguma forma e guardava alguns jornais de notícias roubados em seu quartinho, talvez os tenha tentado ler e algo a tenha influenciado.

Ainda por cima das últimas palavras de Malus, o senador produziu uma

exclamação muda e disse, como que confidenciando um segredo:

- A cabeça dessas bananas é simples, não aguentam essas coisas difíceis de leitura, tem que tomar cuidado com isso, hein. Olia, vc não deixa seus livros por aí não, né?

Olia olhava com uma cara descontente enquanto Malus concordou de forma vaga, lembrando-se de seu amigo do quartel discutindo com outras maçãs sobre este caso, inflamado de repúdio pela cobertura da mídia. Mais um pouco de conversa fluiu até que, no final, quando já degustavam docinhos de sobremesa, Gumba lembrou-se de algo importante:

- Malus! Tenho uma coisa pra entregar a você... Sabe, seu pai estaria muito orgulhoso de tudo o que você conquistou. Inclusive, naquela época ele já tinha certeza que um dia você seria um comandante, você acredita? Um homem muito inteligente, ele era. Vou te mostrar...

Então, pediu licença e saiu da mesa, dirigindo-se ao seu escritório. Malus se sensibilizou ao se lembrar da figura de seu pai, tão distante e ausente há tanto tempo. 26


As bananas recolhiam os pratos enquanto eles esperavam Gumba voltar. Olia virouse e disse:

- Você é uma memória viva de seu pai, Malus. Eu me impressiono com a forma que você herdou suas virtudes e vive a continuidade de suas convicções, você também deve se orgulhar disso. Ele era um homem de muito caráter.

Malus sustentava a postura firme, demonstrando sua sensibilidade apenas através da umidade de seus olhos. Estava se emocionando com as lembranças dos padrinhos, que preenchaim a estranha lacuna em sua memória; Malus praticamente não se lembrava de seu pai. Seu padrinho voltava com um embrulho nas mãos, dizendo:

- Seu pai me fez prometer que esperaria até este momento para entregar isto a

você... Ele a mantinha sempre consigo, até que em seus últimos dias a retirou do bolso, escreveu estas linhas e me entregou.

Estendeu o embrulho e o entregou a Malus, que o abriu. Era uma velha foto que mostrava um oficial ao lado de uma pequena uva, ambos batendo continência para a câmera. Atrás havia uma mensagem de seu pai: “Filho, aposto que agora você nem mais se lembra do seu velho pai com frequência, por isso faço questão de me fazer presente neste momento. Eu te parabenizo, Malus. Eu sempre soube que este dia chegaria”.

Essa mensagem o atingiu com força, algumas lágrimas escorreram de seu rosto. Malus até então não possuía uma foto junto com seu pai, aquela imagem representava um passado de sentimentos distantes que ele não conseguia isolar e processar em sua consciência. Conseguia apenas sentir seus golpes e se emocionar passivamente. Ficou parado, somente olhando para a foto. Pensava em como ele poderia ter previsto este momento. Gumba e Olia o abraçaram.

Os três ficaram juntos por mais um tempo em meio às memórias, Gumba contou algumas de suas histórias enquanto gesticulava e repetia o bordão:

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- Éramos melhores amigos, eu e seu pai, aquele figurão!

Malus ficou muito comovido em saber mais sobre seu pai e gostou daquele momento. Depois de um tempo lembrou-se que acordaria muito cedo e seria melhor já voltar para casa. Despediu-se calorosamente de Gumba e Olia, com os olhos ainda molhados e, voltando, andava apressado.

Acordou bem cedo, levantou-se e encarou a foto ao lado da cama. A imagem se conectava aos seus sonhos; olhando-a, tentou processar suas lembranças. Tudo era muito etéreo, mas sonhar lhe fez bem. Pensou na sua graduação, no dia por acontecer, então sentiu uma excitação percorrer o corpo. Em pouco tempo já estava pronto, impecável em seu uniforme.

A manhã estava fria e pálida e o vento gelado o envolvia, e ao caminhar com confiança, se animava diante do clima perfeito para um dia tão solene. Mal se deu conta e já estava entrando pelos corredores da grande fortaleza, a base do comando militar da metrópole. Uma estrutura colossal de concreto que abrigava os centros de treinamento e controle de operações das maçãs.

Estava adiantado em algumas horas para o início das atividades e então se dirigiu ao espaço de vivência dos campos de treinamento, onde os oficiais tinham o costume de descansar e se socializar. Por coincidência, lá estava seu grande amigo Gamel, pensativo, recostado a uma cadeira. Gamel era uma maçã clara com pintinhas pretas no corpo e olhos fundos. Com um cigarro no canto da boca, saudou Malus:

- Ei, Malus, caiu da cama?

- Estou ansioso demais, Gamel! E você, como está? – Malus se aproximou e colocou o braço sobre os ombros do amigo, esperando uma boa resposta.

- Estou tentando descobrir como estou. – Respondeu com os olhos distantes, enquanto apreciava seu cigarro. 28


Malus puxou uma cadeira e se sentou ao lado de Gamel. Encarou-o e, após um breve instante, continuou a perguntar:

- Ora, que se passa, meu caro?

- Você não quer ouvir os meus lamentos. Hoje é um grande dia, afinal.

- Haha, eu gosto dos seus lamentos, muitas vezes aprendo com a profundidade dos seus conflitos. – Dizendo isso, Malus intensificou levemente o tom vermelho de sua face. Então, olhou para baixo.

- É, não sei... Tenho me sentido preso a uma rotina pobre. A nossa vida é nosso trabalho e as pessoas parecem tão distantes... Sinto falta de algo, não consigo definir o que. Um contato diferente, uma espécie de coloração... Sinto que a nossa vida é

estéril em algum sentido. Pensativo, Malus recobrou a postura e desenvolveu seu raciocínio:

- Não entendo seu pessimismo. Pense em nossa função, proteger e garantir a segurança, a ordem da sociedade é algo que me preenche com satisfação, é uma rotina necessária a nós, que nos faz bem! Não é? Eu sempre gostei disso. A nossa vida é nosso trabalho, e isso é bom, isso é seguir nossa vocação.

Gamel puxou a fumaça do cigarro, esperou um instante e então a soltou.

- Malus, a nossa função nos limita. Nós não podemos mudar, não podemos nos comportar de forma diferente.

- Mas não queremos. Queremos? Não consigo entender, Gamel.

- Não! Nós somos tão limitados a esse propósito que é quase impossível variar a rotina, viver uma troca com frutas diferentes, escolher como ser visto ou classificado. Desse jeito você é uma maçã antes de ser um indivíduo, isso faz com que a sociedade defina o seu comportamento independentemente da sua individualidade. Você representa uma classe. É isso que todos esperam que 29


façamos, mas é isso que queremos? No fundo? Por isso que nunca gostei da escola, quem determinou que aquelas coisas são a verdade? Eu sempre tive problemas com isso.

Na metrópole, as uvas frequentavam escolas de formação pessoal, com professores maracujás que tinham por objetivo ensinar o caminho da vocação e os valores corretos da sociedade. Malus sentiu-se confuso diante das críticas do amigo. O

coração acelerou. Encarou-o como se estivesse perdido no espaço, balançando um pouco a cabeça:

- Mas... Mas eu tenho orgulho de ser uma maçã, ser assim não me cansa... Você está questionando as leis da nossa religião?

- ...não, não, Malus, Isso deveria vir depois de você. – Gamel interrompeu - Antes

disso você é Malus. Os modos da sociedade diluem nossa identidade em castas. Religião não tem nada a ver com isso. A questão é que nós não escolhemos essa vida.

Malus se sentiu tocado por essa última frase, de repente achou que Gamel estava sendo injusto com ele e saiu de sua confusão com um desabafo.

- Gamel, porque isso é um problema? Por que você se importa? Isso não muda o fato de que sou realizado e não quero alterar a vida que levo. Da mesma forma, porque o que você diz seria uma verdade maior? Eu não consigo enxergar o propósito dessa individualidade. – Levantou-se enquanto terminava de falar e respirou fundo.

Gamel apagou o cigarro enquanto suspirou desapontado.

- Exatamente. – Disse em desalento. – Isso é um problema só meu, não é? Não quero que associem valores à minha postura de maçã. Sou treinado como qualquer maçã, gosto disso, mas os valores são meus. É um julgamento errado. – Podia-se ver suas pupilas dilatando enquanto intensificava seu tom. - Também não quero restringir meus sonhos a sonhos de maçã, e como eu disse, sinto um vazio indefinido... Como 30


se algo faltasse – Agitou as mãos em garra diante de si, com as palmas voltadas para dentro. Sua voz cada vez mais inflamada. - Tenho a sensação que sou um cego que sente falta da visão, mas não sabe o que é enxergar, só sabe que lhe falta um sentido para interagir com o mundo. Não sou um infeliz, não é isso. Mas às vezes me pego em uma aflição descontrolada, tenho até que me valer desse maldito vício. – Terminou apontando para as cinzas ao lado, com uma expressão que demonstrava desesperança, mas que de alguma forma parecia incendiada, obsessiva.

Malus ficou em silêncio por um tempo, não tinha mais o que dizer. Pensou em fazer algo para animar Gamel, mas definitivamente não dar continuidade à possibilidade do amigo piorar seu humor ao permear seus argumentos depressivos. Estava se sentindo constrangido, aquilo para ele parecia ter sido uma espécie de briga. Também tinha na ponta da língua a intenção de mostrar sua preocupação com a saúde de Gamel, queria implorar para que ele parasse com esse vício. Mas não, não

tinha nada a ver com isso, acabou se forçando a pensar. Vendo que um grupo de oficiais chegava ao salão, encerrou o assunto:

- Não era minha intenção te contrariar, Gamel, só quero entender você... Depois você poderia me explicar melhor tudo isso... Mas talvez você precise mesmo de um casamento, ter alguém pra compartilhar a vida, haha. – Então se matou em pensamento, tentando achar a razão de ter feito essa brincadeira. Ficou com o rosto mais vermelho. Colocou as mãos no rosto, esfregando-as, fingindo estar com frio enquanto ria, constrangido.

- É, talvez, talvez... – Gamel se limitou a concordar ainda olhando para o nada. Já avistava a proximidade dos amigos e foi logo alcançando sua mala, enquanto reconstruía sua expressão.

- Aí está você, Gamel. Trate de vir tomar aquela que te prometi. – Gritou, de repente, um dos oficiais.

Gamel então recobrou a atividade, retirou da mala um baralho de cartas e cutucou Malus:

- Vamos levar a dignidade destes cavalheiros ao chão, que tal? 31


- Haha! Uma excelente ideia, eu admito. – Malus respondeu sorridente, enquanto se levantava para se juntar ao resto do grupo.

Logo estavam eles e outros dois em volta de uma mesa, todos concentrados no jogo de cartas. Os oficiais iam chegando e se colocando como espectadores da partida. O jogo rumava a um ponto que causava ardência emocional em Gamel, que sentia

seus efeitos fisiológicos como se mastigasse uma pimenta, e aquilo descarregava um prazer compulsório através de seu corpo. Malus mantinha o controle, tentando alcançar os recursos necessários à vitória. Enquanto isso, a outra dupla de oficiais demonstrava um jogo sincronizado, com as ações de um combinando com as do outro, como se houvessem ensaiado. A plateia ia acumulando, a aflição do jogo incerto se refletia no rosto dos espectadores. Alguns saiam de lado para comentar, eufóricos. Por fim, Malus, em sua jogada, preparou o caminho para Gamel desferir a

cartada final, que dependia de sua sorte em puxar uma carta do monte. Todos apreensivos:

- Termino abrindo a segunda coluna para você preencher, Gamel. O que você nos mostra? – Disse Malus, concedendo a passagem para seu amigo.

- Vamos, minhas queridas, vamos. Sincronia, eu desejo. Ah, como arde! – Gamel repetia, quase fora de si, enquanto estendia sua mão trêmula ao centro da mesa. Seus olhos faiscavam, girando, abarcando todos os presentes. Sua expressão, um espetáculo em si. Por fim, o monte de cartas.

Os adversários se entreolharam, a tensão se revelava nas têmporas. Malus aguardava de braços cruzados. Gamel puxou, olhou para a carta e suas pupilas explodiram:

- À segunda coluna, Malus, à frente! – Ele deu um salto enquanto gritava e bateu as cartas na mesa com as duas mãos. Então olhou para os outros dois, com olhos travados, soltou um pequeno riso, forçando um pouco para segurar e, logo, desatou a gargalhar. Seu rosto transmutou o medo da incerteza em um orgulho prazeroso – Vocês, olhem! Olhem o que aconteceu aqui! Hahaha, continuem assim e não terei de comprar cigarros novamente. 32


- Como você tem coragem de dizer? Estamos aqui vendo que foi um golpe de sorte – Protestou o oficial, irritado com a reação de Gamel.

- O que? Sorte? Diga a ele Malus, porque isso nada tem a ver com sorte.

Malus ia reunindo as cartas e nem desviou o olhar para falar:

- Amigos, isso é o planejamento. A sorte está aí, no centro da mesa. Nós só podemos construir um bom caminho para que ela escoe até nós. Se tivéssemos mais recursos que vocês, seria ridículo comparar, mas no jogo começamos no mesmo ponto. Nós planejamos melhor.

- E essa é a vida que temos, não é? – Completou Gamel, sem parar de rir.

- Besteira! Se eu tivesse puxado esta mesma carta antes de você, eu ganharia da mesma forma.

- Ganharia? Não tenho a mesma opinião. Você deixaria isso acontecer, Malus? Hahaha, mas não se preocupem, talvez venham a ganhar algumas partidas de nós, com a sorte é assim. Malus, diga a eles!

- Uma em cada dez, talvez? – Disse Malus, fazendo seu amigo se perder em gargalhada. Eles guardaram o baralho enquanto os adversários engoliam a fúria.

Enquanto isso, a plateia se divertia com as provocações do final. Para eles, ali, esta cena fazia parte do jogo, da interação social que simulava circunstâncias inacessíveis à vida comum, que os ajudava a tomar contato com suas identidades. Identidades que manifestavam na pluralidade das ações, solidificando-se como árvores que se diferenciam e se especializam na diversidade de suas folhas e frutos. Era o recurso de alguns para variar a rígida rotina de repetições. Gamel era particularmente sensível a tudo isso.

Depois de o cenário ter-se dissipado, Gamel envolvia os ombros do companheiro com um braço, como em agradecimento. Ainda ria um pouco: 33


- Dividimos os espólios? Talvez você os venda a alguém, ou a mim. – Disse enquanto mostrava os cigarros na mão aberta.

- Você os apostou, são seus. Estou satisfeito com a sensação. – Malus até sentiu um impulso de pegá-los, para evitar que o amigo os fumasse. Mas estava bem com a virada de humor de Gamel.

- Sensações nunca satisfazem, elas mais adoecem do que curam, é o que eu digo. E é isso que você precisa entender, Malus. Viva a doença! O que há de errado nesta vida que precisamos simular para viver a ardência, a cor vermelha do caos colorindo as nossas veias? - Enquanto falava, Gamel não conseguia conter a crescente excitação de sua voz, nem se atentava.

Ao terminar o discurso, Gamel pausou com a ponta de um sorriso no canto da boca.

Então jogou um pacote de cigarros no colo de seu amigo.

- Ah, Gamel, onde está o seu senso de preservação? – Malus disse arrepiado, ao pegar o pacote no susto.

- Ora, aí é que está! Aí é que está!

A sirene de chamada anunciou que as atividades do dia iriam começar. Os oficiais foram se posicionando na extensão do pátio, onde os superiores já aguardavam em posição. A cena, ocorrida uma vez por período, sempre nas preparações da passagem, era nostálgica pela época de formação dos oficiais, situação em que isso acontecia sempre no final de cada dia. Desta vez estavam todos ansiosos pela graduação de um novo comandante para integrar o triunvirato, pois ao longo deste período seu membro mais velho e mais prestigiado, responsável por relações externas e política, havia falecido, por ocorrência de sua idade avançada. Desde que Malus ingressou no treinamento de oficiais, o triunvirato havia permanecido o mesmo, então esta era uma mudança inédita para ele e para todas as novas gerações de oficiais. Logo após as solenidades de início do conclave, os dois outros membros do triunvirato presidiram homenagens ao companheiro, produzindo um momento 34


de genuína comoção entre os oficiais, que o tinham como um grande exemplo de carisma e competência. Em sequência, todos já se posicionaram para a cerimônia de promoção de um dos atuais comandantes para recompor o triunvirato. Os dois membros estavam de frente para a fileira de comandantes e logo adiante se formava o batalhão de oficiais. Estes estavam eufóricos para saber a decisão. Quando chegou o momento, eles anunciaram a promoção da comandante de fronteira Kadia e, neste momento, os órgãos de Malus vibraram.

Kadia era a mentora de Malus, desde que ele escolheu especializar seu treinamento na guarda de fronteira e ela, pessoalmente, acompanhou e moldou o aprendizado do jovem oficial. Malus sempre a considerou uma pessoa de imensa capacidade profissional e responsabilidade, que havia estudado minuciosamente os elementos da guarda de fronteira, desde a divisão de extensão até os hábitos dos morangos silvestres. Com sua promoção ela deveria ter indicado alguém para assumir seu

posto atual, pensou Malus, e ela possuía esta boa ligação com ele. Por fim, o grande evento estava se materializando em seu corpo e ele podia agora sentir a inundação de ansiedade que preenchia seu interior.

Kadia caminhou para compor o triunvirato e, no caminho, lançou o olhar ao seu querido pupilo, sorrindo. De certo já sabia da surpresa de Malus, que seria ainda mais estonteante se não fosse por Gumba, seu intrometido padrinho. Em sequência, deram a palavra à própria Kadia para que anunciasse o oficial seu sucessor, no comando da fronteira. Sem hesitar, lançou ao batalhão o nome de Malus, seguido por um grande elogio à sua determinação e sua maturidade precoce. Gamel, que estava ao lado, deu um forte tapa nas costas do amigo, genuinamente celebrando a incrível surpresa.

E adiante ia Malus, o mais jovem comandante da divisão atual, em direção ao seu novo posto na cerimônia. No caminho, foi saudado pelos atuais comandantes, algumas maçãs mais velhas e experientes que o respeitavam pelo trajeto virtuoso que o levara a esta nova fase. O jovem sentia-se leve, mais do que jamais se lembrava, diante da pressão de tantos olhos a o julgarem positivamente naquele mesmo instante. Olhava para o batalhão de oficiais e podia sentir, como sentia um golpe material, a admiração de seus colegas. E isso lhe era caríssimo, mesmo que não o admitisse para si. 35


Mais à frente, na cerimônia, anunciaram o afastamento de um velho comandante, que optou por se retirar por tempo de serviço, para então promover mais um oficial ao posto. No entanto, um oficial consideravelmente mais velho que Malus, fato que também foi por ele sentido com agrado.

Ao final do conclave, Kadia veio parabenizar Malus, que retribuiu a intenção. Então ela o pediu que a procurasse na próxima manhã, antes do início do festival da

passagem. O restante das atividades do dia se resumiu nos últimos repasses para o dia seguinte, que haveria de ser grande para o novo comandante de fronteira.

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Compondo

um Sentido

ô - Sol

No último Compondo um Sentido, apresentei algumas das principais escalas utilizadas na música. O texto deste mês traz um conceito extremamente útil, o de Campo Harmônico. O objetivo é que após a leitura deste artigo, você se sinta suficientemente preparado para se aventurar no universo da música de uma maneira mais lúcida, tanto para criar suas composições como para interpretar as diversas existentes. Lembrando que para compreender bem este texto, é muito importante que você tenha lido todos os anteriores, principalmente os que tratam sobre Intervalos, Acordes e Escalas.

Este texto também encerra nosso curso teórico introdutório de música. A partir de agora os assuntos ficarão muito avançados ou então serão visões mais aprofundadas sobre os temas que já tratamos aqui. Evidentemente isso não significa que essa coluna será extinta: eventualmente trarei outros textos que podem se referir a diversos outros assuntos, como um estudo específico dos temas já abordados para um instrumento musical específico, análise de gêneros ou composições entre outros. Espero que você tenha aprendido com esta coluna, e principalmente que tenha se inspirado a ponto de incorporar completamente a música em sua vida.

O Campo Harmônico da Escala Maior Natural (Tríades) O Campo Harmônico é uma das possíveis formas de se estruturar e entender como as melodias se relacionam com as harmonias. Talvez você já tenha ouvido essas palavras algumas vezes, mas agora é relevante fazer uma distinção mais precisa destes dois termos. Uma melodia é um som que podemos isolar, como uma nota musical, uma voz ou um solo. Já uma harmonia refere-se a

um conjunto de sons, como acordes, sinfonias entre outros. Evidentemente, quando ouvimos duas melodias simultâneas estamos escutando uma harmonia. Assim, o campo harmônico é uma ferramenta lógica para se compreender como é possível combinar os sons de forma que estes pareçam se encaixar (harmonizar). Conhecer estas ferramentas é muito útil na composição e interpretação musical, além de ser um conceito essencial para o músico que deseja aprender a improvisar e compor. Um campo harmônico é uma progressão de acordes que só possuem notas que se encontram

dentro de uma mesma escala, como se fosse uma espécie de ‘escala de acordes’. Para isso, basta 37


construir os acordes tomando a primeira, a terceira e a quinta nota da escala, de maneira a gerar 7 acordes diferentes, uma para cada nota da escala como tônica. Neste texto, irei abordar somente as ideias referentes ao campo harmônico da escala maior natural. Os demais campos harmônicos podem ser obtidos pelo mesmo processo que apresentarei aqui, mas tomando outras escalas como referência. Para simplificar a apresentação dos conceitos, vou introduzir o campo harmônico através da escala que estamos mais familiarizados: a Escala de Dó Maior. Vou representar os 7 graus (notas) da escala com algarismos romanos, exatamente como na figura a seguir.

Vamos montar primeiramente o campo harmônico com acordes tríades. O primeiro acorde (ou primeiro grau) do campo harmônico de Dó Maior corresponde àquele onde tomamos o primeira nota da escala como nota tônica do acorde. Assim, seguindo o padrão dos acordes tríades, devemos construir o acorde com a terceira e quinta notas da escala, partindo da tônica, isto é, as notas Dó, Mi e Sol. Como já vimos, esta sequência forma o acorde de Dó Maior, que será primeiro grau deste campo harmônico. O processo está ilustrado na figura a seguir:

O segundo grau do Campo Harmônico de Dó Maior deve ser obtido da mesma forma, porém tomando-se a nota Ré como tônica. Pegando a terceira e quinta nota da escala a partir da nota Ré, obtemos o acorde de Ré menor. 38


Devemos repetir este processo para todas as 7 notas da escala, obtendo assim os 7 acordes que compõem o Campo Harmônico de Dó Maior. Farei a construção dos 5 restantes porque acredito que estas passagens devem ser muito bem entendidas. Além disso, estes acordes irão produzir um padrão que facilitará o processo de memorização de todos os campos harmônicos da escala maior natural. O terceiro grau deste campo harmônico deve corresponder ao acorde com as notas Mi, Sol e Si, que equivale a um Mi menor:

No quarto grau temos um Fá Maior:

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No quinto grau, encontramos o acorde de Sol Maior. Naturalmente, aqui é necessário montar o acorde usando notas que se encontram a mais de uma oitava de distância da tônica da escala:

Prosseguindo da mesma forma, obtemos o sexto grau, que é um Lá menor:

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E por fim, no sétimo grau, obteremos um acorde de Si menor com quinta diminuta:

Este grau do campo é chamado de sensível, pois a nota Si dista de apenas meio tom da nota tônica da escala, que é naturalmente a mais ‘forte’. Assim, ao ouvirmos a nota Si no contexto da escala de Dó Maior, experienciamos uma sensação de expectativa, pois somos levados a interpretar que falta muito pouco para escala chegar no fim. Para compreender melhor esta explicação, você provavelmente precisará ouvir uma escala maior algumas vezes, prestando muita atenção na sonoridade resultante da progressão da escala até sua sétima nota e comparando esta com a sensação de encerramento produzida pela oitava nota tocada em sequência.

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Naturalmente, essas características da nota sensível devem ser transmitidas de alguma forma para o sétimo grau do campo harmônico desta escala, fazendo com que sua constituição seja naturalmente diferente dos graus anteriores: ele deve é o único acorde diminuto em um campo harmônico maior tríade. Com o sétimo grau concluímos o campo harmônico de Dó Maior. Podemos resumir este campo simplesmente especificando os acordes de cada um dos graus:

Como todos os acordes foram gerados de uma mesma escala, temos que qualquer nota da escala harmoniza muito bem com qualquer um destes acordes. Futuramente, ainda neste mesmo texto, irei discutir as sensações sonoras produzidas por cada um dos graus do campo harmônico maior. Apesar de termos feito o procedimento com a escala de Dó Maior, podemos obter todos os outros 11 campos harmônicos da escala maior natural através de uma simples abstração: como a escala maior é definida através de uma mesma sequência de intervalos em relação à tônica (em tom (T) e semitom (ST) é T-T-ST-T-T-T-ST), temos que os acordes do campo harmônico das demais notas devem seguir o mesmo padrão de acordes que o campo harmônico da escala de Dó Maior. Basta notar que no campo harmônico de uma escala maior, os acordes dos graus I, IV e V são maiores, o dos graus II, III e VI são menores e o VII é um menor com quinta diminuta. Consideremos então a escala maior de alguma outra nota, como Fá# por exemplo:

Para montar o campo harmônico desta escala basta considerar os acordes gerados com cada uma das notas como tônica. Mas já sabemos da análise do campo harmônico de Dó quais destes graus devem corresponder a acordes maiores, quais devem ser acordes menores, e qual deve ser um acorde menor com quinta diminuta. Seguindo este padrão, concluímos que o campo harmônico de Fá# é: 42


Agora é possível formar facilmente o campo harmônico de acordes tríades de todas as 12 escalas maiores. Ao invés de deixar uma tabela sem significado com todos os campos harmônicos das 12 escalas, sugiro que você mesmo derive os 10 restantes (ou quantos julgar necessário) como exercício, para ficar mais familiarizado com esta estrutura. Antes de falar mais sobre os efeitos de cada um dos graus do campo harmônico em uma composição, vamos construir o campo harmônico para acordes tétrades.

O Campo Harmônico da Escala Maior Natural (Tétrades) O princípio é o mesmo, porém agora vamos considerar a inclusão da sétima nota da escala em cada um dos acordes anteriores. Vamos continuar com a escala de Dó Maior, pois poderemos tirar uma regra geral após a construção detalhada deste campo, exatamente como fizemos com os acordes tríades. No primeiro grau, temos o acorde de Dó com sétima maior, pois a sétima nota da escala faz um intervalo de sétima maior com a nota Dó:

O segundo grau e terceiro grau possuem uma sétima menor, formando assim as tétrades de Ré menor com sétima e Mi menor com sétima.

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No quarto grau voltamos com uma sétima maior, gerando o acorde de Fá com sétima maior:

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Até aqui o padrão permanece exatamente o mesmo do campo harmônico tríade. Mas o acorde do quinto grau possui uma pequena peculiaridade que o faz ser um pouco. No grau V temos um Sol com sétima:

Este acorde difere dos demais pois será o único acorde maior com sétima menor no campo harmônico tétrade. Isso faz que este acorde possua um trítono entre as notas Si e Fá, e por isso seja um acorde um pouco dissonante dos demais. Podemos pensar que dentro do campo harmônico, o acorde de G7 possui as notas Si e Fá da escala, que são notas que se encontram a

exatamente um semitom de distância das notas Dó e Mi da mesma escala. Assim podemos dizer que a nota Fá é sensível de um modo parecido com a nota Si: a nota Si cria a tensão de se aproximar da nota Dó enquanto a nota Fá cria a tensão de se aproximar da nota Mi. Em breve veremos que esta estrutura do acorde está correlacionada a uma função bem específica dentro do campo harmônico que chamamos de dominante. Continuando, temos o Lá menor com sétima, no sexto grau:

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E por fim o Si menor com sétima e quinta diminuta:

Durante minha pesquisa para a produção deste texto, vi que muitos autores diziam que o

acorde tétrade do sétimo grau de um campo harmônico da escala maior natural consistia em um Si diminuto (B°). Como já destacado no texto sobre acordes, uma tétrade diminuta é gerada a partir de três intervalos de terça menor, e consequentemente possui uma sétima diminuta. Assim, o acorde Bm7(5-) do sétimo grau do campo harmônico de Dó é diferente do acorde B°, pois possui uma sétima menor, e portanto não deve ser confundido.

Como feito anteriormente, podemos seguir o mesmo padrão para produzir o campo harmônico tétrade de todas as demais notas, bastando observar que os graus I e IV possuem intervalo de sétima maior, enquanto todos os demais possuem sétima menor. Assim, basta formar o campo tríade e acrescentar em cada grau a informação da sétima nota. Outro detalhe interessante é que não é necessário apresentar o campo harmônico da escala menor natural, pois podemos derivá-lo usando o campo harmônico da escala maior. Para isso

basta lembrar que cada escala maior possui sua relativa menor. Como a escala relativa menor de Dó maior é a escala de Lá menor, temos que ambos os campos gerados por essas escalas possuem os mesmos acordes, mudando apenas as notas de cada grau. Seguindo este raciocínio, devemos ter que o campo harmônico tríade da escala de Lá menor deve ser:

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E com isso podemos escrever um padrão dos acordes para os graus dessa escala, exatamente como feito para a escala maior. Sinta-se a vontade para derivar os outros campos harmônicos menores. O campo harmônico é uma ferramenta para facilitar o casamento entre as melodias. Assim, podemos escolher compor uma música em uma ou mais escalas, e para cada uma delas conhecemos um grupo de acordes que podem ser responsáveis pela harmonização das notas utilizadas. Ainda que o compositor não fique preso a somente estes acordes, estudar uma música pelos olhos de um campo harmônico nos possibilita compreender qual o efeito de cada nota ou acorde na melodia. Por isso que é muito comum especificarmos a tonalidade em que uma música foi escrita. Você provavelmente já deve ter ouvido que determinada melodia foi composta em D (Ré), ou que o tom da música é D. Isto quer dizer que esta música foi composta com base no campo harmônico de Ré, e somente esta informação é suficiente para identificarmos toda a estrutura harmônica mesma. É por este mesmo motivo que a armadura de clave é tão significativa em uma partitura:

reconhecendo o número de ascendentes que uma música possui (bemóis ou sustenidos), temos condição de identificar qual a escala a música foi escrita, e por consequência, sua tonalidade. Anteriormente, disse que a nota tônica é aquela que tem o poder de introduzir um ponto final às frases musicais. No entanto temos que cada grau de um campo harmônico possui uma espécie de ‘identidade sensorial’ associada. Quero dizer com isso que dentro de um campo harmônico, cada grau desempenha um papel específico na música, e a alternância destes papéis que produz a dinâmica da mesma. Esta alternância e produção de frases musicais é o que

chamamos de cadência.

Cadência Em teoria musical, chamamos de Cadência uma sequência de acordes que irão desenvolver uma frase musical. Em outras palavras, a cadência busca formalizar essas sensações produzidas pelos acordes, usando como base o campo harmônico de uma tonalidade. Dentro de um campo harmônico, temos que cada grau é responsável por uma função harmônica dentro de uma

música, e combinando estas funções podemos produzir uma cadência. 47


Dividimos estas funções em três principais: Tônica, dominante e subdominante.

• Tônica Já descrevi esta função em outros momentos do texto: os acordes com a função de tônica tem como característica trazer uma sensação de estabilidade e repouso para a música. É por esta razão que grande parte das canções são finalizadas com um acorde tônico. No campo harmônico da escala maior, esta função é desempenhada principalmente pelo grau I da escala. No entanto, devido a grande proximidade, temos que a relativa menor da tônica também pode desempenhar este papel, fazendo com isso que o acorde de grau VI também possua a função de tônica.

• Dominante Acordes com função de dominante são responsáveis por produzirem a sensação de expectativa. Por isso costumamos dizer que um acorde dominante exige uma resolução, isto é, um acorde para aliviar a tensão gerada por ele. Acordes com a função tônica conseguem colocar um

fim na tensão gerada por esta função. Na escala maior, temos que este acorde corresponde ao acorde tétrade de grau V, que no caso do campo harmônico de Dó Maior, corresponde ao acorde G7, exatamente como já havia mencionado. Outro acorde que pode desempenhar esta função é o de grau VII. Novamente no caso do campo harmônico de Dó, o acorde deste último grau é o Bm7(5-), que é bem parecido com o acorde G7, diferindo apenas por uma nota.

• Subdominante A função subdominante é de certa forma oposta a função dominante, pois ela possui a característica de sugerir uma sensação de afastamento ou ampliação. É como se esta função introduzisse a ideia de que a canção pode seguir para qualquer direção. O grau IV de um campo harmônico maior é o principal responsável por esta função, que também pode ser atendida de pelo acorde de grau II.

É possível notar que não atribui uma função harmônica ao grau III do campo harmônico.

Enquanto estudava sobre o tema, notei que muitos autores não atribuem nenhuma função a este acorde, enquanto outros entendem que ele possui a função de tônica. Não consegui chegar a nenhuma interpretação sobre estas definições, por tanto, deixarei esta função como indefinida. Caso você conheça uma forma razoável de se interpretar este grau, não deixe de me avisar!

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Resumindo então as funções harmônicas da escala de Dó Maior temos:

lembrando que usei os acordes tríades por simplicidade. Você pode ficar a vontade para usar/misturar os campos com acordes tríades ou tétrades e misturá-los como bem entender. O caso mais simples de cadência pode ser gerado seguindo a sequência subdominantedominante-tônica, usando qualquer grau que desempenhe as funções correspondentes. Essas funções também são úteis para identificarmos a tonalidade de uma música, pois se reconhecermos um acorde que produz um dos efeitos previstos, podemos facilmente descobrir qual a tonalidade da canção. É interessante ressaltar que uma música não precisa ficar presa a uma mesma tonalidade, de maneira que podemos usar alguns acordes de passagem (ou outro recurso, depende da criatividade) para mudar a estrutura harmônica no meio da música.

Conclusão Com este texto encerro esta coluna. Acredito que no futuro posso voltar a escrever para ela, mas precisarei aprender muito mais pra trazer textos de assuntos mais avançados. O interessante agora é que se você acompanhou todos os textos, você está pronto para começar a aprender por conta própria, pois agora tem uma fluência mínima nestas linguagem. Além de treinar derivando alguns campos harmônicos, o mais importante agora é que você procure uma forma de treinar a sua percepção musical, seja testando e ouvindo diversas combinações das

funções apresentadas anteriormente, tocando escalas, ou ouvindo uma música e verificando em sua cifra ou partitura a sua estrutura harmônica. Espero que de alguma forma esta coluna tenha sido útil para qualquer indivíduo que tenha decidido se aventurar por ela. Muito obrigado!

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MÉTODO CIENTÍFICO W. N. Centauro

Eu sou W. N. Centauro, e você será julgado. Em que são convertidas as ideias, depois que apodrecem em pedacos rotos de papel mofado dentro de um gaveteiro que jamais foi aberto de novo? Para onde vão as contas que não são terminadas? Aonde dão os corredores, com todas suas portas fechadas, em meio à madrugada da nossa civilização? No bestiário de hoje, cuidadosamente selecionado, dois cientistas que viveram às margens da própria ciência, e, depois da morte, continuaram vivos. Espécimes de uma espécie rara, obscura e amaldiçoada pelos ritos antigos e aceitos. A descoberta, os túneis, a loucura e o breve momento de perfeita sanidade. O abismo dentro do abismo, o grande laboratório abandonado, com uma curiosa máquina que, longe de ter algum valor científico, era considerada uma relíquia qualquer. Eles vivem.

Este relato é dedicado como oferenda deste lado ao outro, ao irmão russo Y. P., ao Sr. Queiroz e a todos que aqui foram descritos, sem os quais nenhuma ciência seria possível em nossos tempos.

1


Método Científico: Capítulo V - Eletroímã O dia é catorze, o ano é antes dos anos do que hoje convencionamos chamar por Instituto. Havia ali um rascunho de instituição, não mais que isso, embrenhado em departamentos alheios a si mesmos. Rabiscos de ideias sobre um futuro incerto devido à força da pólvora e do chumbo e do coturno e da ferradura que esmagava o crânio até mesmo dos mais geniais dos infelizes. Nada podia ser final, tampouco inicial. O que acontecia entre o inicio do paragrafo e o final da interjeição era nebuloso como um amanhecer industrial e morto por definição. Mesmo assim, havia quem se desapegasse do conforto e pensasse sobre o que haveria de ser – mesmo que a incerteza dominasse até mesmo as teorias sobre as quais escreviam. Algo vivo respirava e pulsava, e precisava ser calculado.

Protoinstituto - Onde a ciência começa.

Eram comutadores a pesquisa de Dr. Chrystian Botafogo. Pesquisa teórica, pois era o que podia ser feito sem o auxílio de nada – e, eventualmente, com o revés de todo o resto. Ele conservava, ainda, sua sala no prédio que, anos mais tarde, fora consumido pela necessidade de uma reformulação do Instituto para padronizar-se de acordo com as normas internacionais, anos depois da oficialização dos departamentos e da independência institucional conferida àquele antro de conhecimento. Não havia, devido ao corte de gastos, porteiro, nem guarda, nem água encanada, nem luz elétrica. Era um lugar cinza, às vezes marrom, avermelhado e escuro, iluminação fraca como o pulso Dr. Chrystian Botafogo, físico teórico.

daquele país decrépito antes mesmo de ter rastejado até a meia idade. Os encanamentos de ferro que, devido às contrações e

expansões da alta madrugada, cantavam uma sinfonia tétrica e melancólica, ecoavam por dentro da mente brilhante do Dr. Botafogo enquanto ele calculava placidamente as relações de comutação entre os operadores, em busca de uma ou outra simetria. Naquele pesadelo, sem qualquer um para quem pudesse correr e consolar-se depois de mais um dia jogado no esgoto, até o barulho dos restos de metal semienferrujado e dos carismáticos roedores que habitavam por baixo do piso eram um sinal de próspera amizade no que se convinha chamar de ciência moderna.

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Assim viveu este físico por meses incontáveis. Recebia o fundo para sua pesquisa, que mal dava para comprar um prato de feijão – que ele fazia questão de dividir com os outros físicos, ainda menos afortunados, que encontrava pelos corredores enquanto pensava nos parênteses, nos colchetes e nos espaços duais. Da sua pesquisa nada de relevante nasceu, mas houve certa repercussão sobre seu artigo das simetrias degeneradas, numa famosa revista alemã para a qual pôde enviar o trabalho por meio de cartas cifradas. Além disso, nada. E não havia perspectiva, bem como não havia perspectiva para todos os outros dali. Os teóricos da escuridão sentavam-se à meia luz, três da manhã, dividindo um resto de café aguado com o que sobrara dos experimentais. Estes já não tinham mais o que fazer mesmo, pois nenhum equipamento podia funcionar. Lá permaneciam por amor à causa, mesmo que a causa em si fosse infundada. Havia algo que os chamava ali, e eles atendiam ao chamado. Eram cientistas. Eram marginais. Eram repulsivos. Se não eles, então ninguém. Aquilo, a ciência, bufava em contenção silenciosa e dramática, prestes a romper suas correntes imundas e consumir em fogo e desespero o ar e a realidade; ecoava seu odor pelas paredes rachadas e pelas tabelas rasgadas, ostensivamente expostas aos frontões dos laboratórios. Alguém precisava alimentá-la. Esse alguém era, naturalmente, o cientista.

Vez em quando, recebiam na calada da noite a visita do Orestes Ensenada. Orestes era um ex-técnico, venezuelano

de

compulsoriamente

origem,

aposentado

depois

de

ser

perseguido por alguns membros do governo. Ia dali ao Rio de Janeiro, numa longa cavalgada, e abocanhava com seus dentes

de

burocrata

alguns

artigos

publicados nos periódicos europeus. Mais A grama baixa, horizonte distante; no infinito, nada chegava perto.

importante, conhecia um conhecido de

outro conhecido que, também da ciência, embrenhava-se por encontros, reuniões e congressos no útero da física moderna, ao norte do Velho Mundo. Anotava rapidamente o que se dizia nos corredores,

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O Tempo e o Espaço; Os dois Cientistas; O Um que divide.

e já encaminhava a Orestes. Orestes, que não entendia os meandros daquele linguajar arcano, levava as anotações para que os físicos da noite eterna entendessem o que a Mãe Natureza poderia estar dizendo, e contestassem, e provassem o contrário, e descobrissem o Novo – mesmo que nada disso fosse para alguém de perto saber um dia. Naquelas reuniões secretas sob a luz de uma tímida vela, no alto do mais elevado dos departamentos, ao fim do segundo andar, em volta de uma lousa sem apagador e uma garrafa de café, desenvolveu-se a bela amizade entre o Dr. Chrystian Botafogo e o físico experimental recém titulado Magno Abrahão, conhecido vulgarmente por seus colegas como O Magneton, parte menor devida ao seu nome, parte maior devida à sua perícia com o grande eletroímã que jazia, agora defunto, na quinta sala do último andar subterrâneo do instituto, o qual, para muitos, era apenas uma lenda, e, para os mais razoáveis, era uma relíquia histórica sem qualquer valor de pesquisa. Essa amizade entre os dois não figura nas páginas dos grandes vanguardistas, assim como não figuram os nomes de todos os outros que se reuniam ali naquelas madrugadas para lerem cartas e fazer ciência alimentados por esperança e bravura. Nem poderiam figurar. Aqueles nomes foram amaldiçoados. Eles criaram os pilares e as pedras brutas para tudo o que se viu depois como Instituto, mas seriam referidos como marginais. Não poderiam ser lembrados. Alguns deles definharam, em seus leitos de morte, sabendo a resposta para todas as perguntas correntes – mas ninguém iria perguntá-los. Em todo o mundo, em todos os tempos, nossa ciência precisou consumir vidas para continuar vivendo. As vidas provinham vontade e conhecimento que nem sempre retornavam como alimento aos criadores. A glória para os que pisam.

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A amizade entre Botafogo e Magneton era vívida, e reluzia, fazendo-se uma iluminação a mais do que aquelas velas improvisadas durante os encontros dos físicos do protoinstituto. O que um calculava, outro cancelava. O que um propunha, outro derrubava. O que um completava, outro quebrava. Eram como função e inversa. Conta-se que as primeiras comunicações que surgiram a respeito das novas mecânicas, entre o fim do século XIX e começo do século XX, foram analisadas poucos dias depois de serem proferidas, e eles consertaram e lapidaram toda a teoria até o que se conheceria cinquenta anos depois, cobrindo todos os

becos-sem-saída,

tampando

todos

os

buracos,

remendando todas as falhas. Mas a física teve de esperar, pois quem podia falar não podia saber, e quem podia saber Magno "Magneton" Abrahão, recém titulado, em demonstração para seus colegas.

não podia falar. E assim o mundo seguiu, em busca de um méson que nunca viria. Pouco a pouco, com o passar das semanas e o

encrudescimento daquele regime que pisoteava as liberdades e transformava ouro em floresta desmatada, menos cientistas passaram a comparecer às reuniões ocultas. O Garcia, doutorando da área de polímeros, sumiu, e ninguém poderia procurá-lo sem também desaparecer. Joaquim, da física de baixas temperaturas, mudou-se para uma cidade do mais interior que aquela, e numa carta revelou estar morando embaixo de uma casa, escondido. Ignês e Júlia, as irmãs que eram a grande esperança para a cinética química das substâncias orgânicas autóctones, migraram para a bela França para satisfazer o pedido de morte de seu pai, o outrora famoso químico analítico Dr. Johannes Fersbach Lumiere da Conceição, e nunca mais se soube delas. Restaram, até o fim daqueles dias, o Queiroz, que trabalhava com minerais e religiosamente anotava seus pensamentos e suas reflexões num caderno deveras usado; o Augusto Terra, eletricista de formação e teórico de campos por vocação; e a jovem Ivone, que começara a analisar o que se fazia no mundo a respeito dos cristais, e em tempos futuros, quando o Instituto oficialmente passasse a existir independente das engenharias, ergueria um verdadeiro império silencioso naquelas fazendas de gado... Mas isso é conto para outra confissão.

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Pois o que aconteceu no último setembro daquela era foi de um ruído tão assombroso e intenso que, como na explosão de uma bomba ao lado, deixa surdo e catatônico todo ser que vive, que se convence, em milissegundos, de que nada aconteceu, pois nada deveria acontecer, e seria muito bom que nada tivesse acontecido. Tudo estava normal. No dia onze, Botafogo apreciava a sinfonia dos ratos e fitava os campos estéreis da fazenda na qual o instituto morava de favor. Lua minguante, prata serena sobre mato inerte, vento calmo em um ou outro cipreste enfadonho e tão cansado do horizonte quanto o próprio horizonte poderia estar. Orestes partia para o Rio, bem longe ao fim da vista, como silhueta no deserto, e nada mais. Sol, só amanhã. - se não chovesse - mas iria chover. Vinte e três. A porta não fora anunciada, mas abriu-se. Era Magneton. O Experimental não conseguia coordenar seu léxico, e precisava dizer muito. Queria dizer da relação de completeza, queria falar da lei de Ohm, queria dizer que as válvulas eram perfeitas, queria água, o chumbo seria necessário, todo mundo precisava ver, porque nunca mais, porque sempre, porque talvez, porque sim, porque não, porque não importava, porque ali estava o Início... E nada fazia qualquer sentido naquele absurdo de verbos que, como fumaças que sobem do incenso, desprendiam-se das teias dos significados concretos e existiam somente como turbulência e fuligem de ideias. Botafogo acudiu seu amigo com um abraço que só os verdadeiros técnicos podem oferecer, e deu-lhe uma água quente que chamou de chá de camomila. Todas as ervas daquela fazenda eram venenosas, mesmo para as mentes mais destemidas; por isso, costumavam beber água quente e fingir que eram chás de especiarias. Um gole e estavam na Índia. Outro, e estavam na Provença. Meia hora depois, sem perder o fluxo da fala, Magneton voltou à carne e conseguiu conectar um ou outro pensamento. Dizia ter descoberto um modo de puxar o cabo de força da engenharia elétrica (que não havia parado, pois era importante para o governo) para seu laboratório, e assim conseguiria realizar um experimento audacioso idealizado com Botafogo num dos encontros. Mas faltavam alguns

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detalhes. As válvulas ele havia roubado de uma sala, já que ninguém estava usando nem dando sinais de usar, num domingo qualquer. O Hélio líquido era pouco, mas devia bastar para arrefecer a carga de prova. Os circuitos estavam revistos minuciosamente, recém soldados com o melhor estanho. O Mercúrio era puro e corria. O Fósforo estava condensado, pronto para brilhar. O Enxofre já refinado e purificado. Havia material para as câmaras de bolhas. Havia chapas de raio-X. Faltava chumbo, e, no que cernia a Botafogo, faltava o fechamento da conta, pois algo definitivamente não estava certo com a matemática. Ali mesmo, sob as ondas do vapor da água quente e à luz da lua minguante daquele tempo, Botafogo compreendeu e derivou tudo o que fosse preciso. Números transformavam-se em matrizes, matrizes transmutavam em diagramas, diagramas dilaceravam integrais, integrandos aniquilavam núcleos duros, séries truncavam a sequência após as doze casas decimais, as unidades eram 1, operadores moravam numa esfera, esfera em hiperplano, sólidos líquidos e gasosos como um só, a temperatura era crítica e todos os vetores eram ortonormais. Explosão, buraco, brilho. Às duas, estava pronto: Seriam necessários 50 Teslas de campo, e algumas dezenas de teravolts de tensão. Bobinas suficientes; o experimento deveria ser feito naquela mesma madrugada. Ele só poderia ser feito naquela madrugada. Havia uma brecha no que se conhecia de teoria eletromagnética contemporânea, e anos mais tarde essa brecha foi corrigida por um físico teórico dos Estados Unidos da América, de forma que ninguém mais precisaria preocupar-se com aquele erro que envolvia infinitos e más interpretações acerca da radiação. Mas havia outro caminho, que não fora tomado pela alta sociedade científica do mundo, e esse caminho foi o explorado pelos físicos da sombra do instituto. E tudo estava claro como cristal, e todas as pontas estavam unidas na esfera das simetrias. O procedimento experimental revelaria um fenômeno que não podia ser completamente

entendido,

que

causava

resultados

matematicamente estranhos, e que, no entanto, não eram fruto de erro de cálculo nem de desuso de condições de teoremas. Aquilo deveria ser algo esquisito, algo sem precedentes, algo novo, embora ninguém soubesse explicar que tipo de coisa seria aquela. Sem prazos a cumprir nem relatórios a entregar, Magneton e Botafogo precisavam saber, pois a arte era longa, e a vida era breve.

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Longos foram os passos à luz das velas e da lua minguante. Uma escadaria em espiral no sentido anti-horário tinha janelas pequenas que davam para o horizonte morto da fazenda. As mãos de Botafogo ocupadas: à esquerda a vela acesa, à direita a conta feita e as especificações e os diagramas, enrolados no simbólico pedaço de estopa, que sempre carregava consigo, com o qual ele sempre limpava o que devia ser limpo, e não deixava que se sujasse tão cedo - café caído, água manchada, sangue infectado... O que pudesse minimamente degradar a vida higiênica de um pensador, a estopa limpava. Magneton conduzia à frente com outra vela, e o copo de água quente em sua mão direita. Desciam, e desciam, e desciam... Até o fim do mundo. No terceiro andar do subsolo, os corredores desdobravam até um lugar que não era mais do instituto, mas também não era a engenharia; em verdade, aquilo era o fruto de um prédio mal projetado e de uma cultura de burocratas que faziam mais alarde por provarem que são donos do que atuavam sendo donos em si, então aquela região cinzenta não pertencia a nenhum departamento, nem a ninguém. As salas eram espalhadas, e cada um se organizava como achasse melhor. Era terra erma, mas cuidadosamente decorada com obras nacionais da arte pósbarroca. Após o lounge (uma mesa, um armário e um fogão, basicamente), uma entrada, que parecia dar a um banheiro, dava a outra escada, e a escada descia mais e mais, depois de dividirDesciam, e desciam, e desciam... Até o fim do mundo.

se entre cima e baixo. O cheiro de barro, impregnado em cada molécula que se respirava, era oriundo dos fornos que os

pesquisadores de cerâmicas e vidros usavam de vez em quando. Para ir à esquerda, devia-se virar à direita. Para andar para cima, às vezes se subia, às vezes descia, às vezes andava reto - tudo era confuso como um labirinto. Ficava abafado, e mais escuro, como se a luz fosse sugada por aqueles degraus. Já eram quarenta minutos de caminhada, e não pareciam estar perto. Um subsolo abaixo do último subsolo. Um corredor estreito levava a um conjunto de três ou quatro salas com portas de madeira podre, caindo aos pedaços. Nas paredes, vultos de insetos asquerosos; no chão, manchas. Na segunda à esquerda, mais uma escadaria – a última antes do eletroímã. À vista, não houvesse vela, haveria uma sugestão de carmesim moribundo, e tão somente a sugestão. Com as velas acesas, o carmesim ainda era roto, mas grunhia, como se tentasse, desesperadamente, dizer

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suas últimas palavras a quem quer que estivesse em seu quarto – mas sem conseguir pronunciar sequer meia letra. Descendo até a raíz mais enterrada daquele prédio, lá estava a sala das salas. O eletroímã que mudaria a vida de todos os que viviam ali, e de todos os que um dia viveriam. Não era grandioso. Alguém despreocupado veria aquilo apenas como o último reduto de equipamento, uma sala abandonada para armazenar velharias que não poderiam ser descartadas sem que houvesse grande comoção e duras represálias por parte do Regime. Mas a casca não era o núcleo: aquele eletroímã estava ali por uma razão, e não era a vaidade daqueles cientistas. Ele fora comprado de uma indústria da Prússia, muito tempo antes. Mas passara por inúmeras modificações, por parte do professor do professor de Magneton, o Prof. Zamenoff de Mauá-Wahnsinn. Em seu tempo, queria saber as reais possibilidades das bobinas de Tesla (que, em seu tempo, chamavam-se apenas de bobinas amplificadoras de tensão, ou BATs) para aumentar a tensão convencional, e, com isso, através de um engenhoso sistema de válvulas, gerar campos magnéticos sem precedentes na História da humanidade – muito maior que os campos mais intensos registrados nos confins do universo. Enquanto os relatos mais modestos apontavam para dez ou quinze Teslas de campo, aquele equipamento poderia dobrar, triplicar este valor. Mas tudo isso era uma ideia, e as ideias não foram concretizadas por Zamenoff, que morreu invisível, nem por seu pupilo, orientador de Magneton. Cabia a Magneton terminar a obra, e, mais, fazer uso dela para algo realmente novo que não apenas o registro de recordes. A sala era tosca; os recursos, rudimentares. Tudo muito sujo pela falta de uso nos últimos anos, e nem a mágica estopa de Botafogo parecia surtir algum efeito. Mesa desorganizada, na qual foram postas as velas, como num ritual macabro. Os

cabos

deixavam

que

vinham

passar

vento

das

paredes

quente

pelos

buracos, e todo o prédio, desde o alto da campana pela qual os físicos observavam Orestes indo e vindo com cartas, até os mais profundos rincões da árvore acadêmica, passando por todos os banheiros e todos os laboratórios, tudo aquilo funcionava

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O Prédio Murmurava em Angústia

como uma grande caixa de ressonância acústica e produzia um som estarrecedor, sinistro, de baixa frequência, como se o concreto fosse um organismo vivo, como se clamasse por uma eutanásia depois de tanto sofrer. O barulho, dizia Magneton, estava lá desde sempre, e a exposição de qualquer pessoa sã por mais de vinte minutos poderia levar a uma loucura irrecuperável. Eles estavam lá há uma hora, conectando os cabos, enrolando o cobre, protegendo os metais e colocando chumbo onde necessário. Não estavam loucos. Estavam perfeitamente cientes. Nunca estiveram tão cientes em todas as suas vidas. A escuridão agravou-se quando uma das velas chegou ao fim. Agora era uma única vela, e pouco tempo, e o prédio parecia grunhir com maior angústia – mas isso era apenas uma impressão. O que aconteceria se mais essa vela apagasse, nesse lugar em que a luz tem medo de chegar? Como sairiam? Ficariam à mercê de alguém que, perdido, fosse parar naquele lugar improvável, onde até os aparelhos mais modernos da física vão para morrer? Que esperança tem um pássaro, quando enterrado sob a árvore na qual faz seu

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ninho, num mundo claustrofóbico em que a única possibilidade de salvação são os vermes que rastejam cegos embaixo da terra? Estava pronto para ser ligado. Magneton queria ficar e ver, enquanto Botafogo acionaria a alavanca do lado de fora, adaptada junto ao quadro de disjuntores. O que é combinado não sai caro, e assim foi feito. Botafogo apertou as mãos de seu querido amigo, entregou-lhe a caneta e o papel para que anotasse tudo quanto fosse necessário, mas ficou com a estopa no bolso. Chapas de solução de prata foram dispostas ao redor para registrar possíveis partículas. Câmaras de bolhas foram posicionadas. Medidores de temperatura e cintilações estavam cuidadosamente distribuídos nas regiões em que o campo seria mais intenso. Botafogo saiu da sala, e, embora não pudesse saber, nunca mais veria o seu amigo. A alavanca, por tratar-se de um disjuntor que ligaria um circuito extremamente poderoso, era dura e tinha o tamanho de um braço esticado de um rei, incrustrada na parede de pedra, pendurada por correntes. Com esforço, Botafogo desceu e fechou o circuito. Um ruído seco de confirmação foi ouvido, mas nada além disso. Após alguns segundos, o grunhido do prédio pareceu vibrar até o figado de Botafogo, que, assustado e sem luz, começou a trajetória de retorno à sala do eletroímã, na qual Magneton estava em plena escuridão. O ruído aumentava. O prédio rugia como fosse o uivo de todos os cientistas que foram esquecidos pela história do mundo, misturados com o ranger de todos os equipamentos que foram desligados para nunca mais serem ligados e, de repente, sem lubrificação nem combustível, tremelicavam numa tentativa última de funcionar em harmonia. O uivo aumentava, como se uma hoste de demônios racionais berrasse no apocalipse do conhecimento científico. Antes que pudesse abrir a porta da sala, Botafogo foi arremessado contra a parede, devido a uma alta descarga elétrica vinda da maçaneta. Tão violentamente fora arremessado contra a parede de pedra, seus órgãos internos sofreram um impacto mortal, e por dentro aquele cientista agora não tinha ordem, apenas sangue e fluido que começava a apodrecer. Seus olhos eram vermelhos, e suas lágrimas eram sangue de vasos rompidos. Suas mãos, tremulas, tentavam buscar a estopa para limpar o rosto, mas sem encontrá-la. A vela caída sobre sua face queimava os cabelos, e pingava cera quente em seu lábio. Num último esforço de sua alma, quando já via as luzes negras que viriam buscá-lo para viver o tempo sem tempo, murmurou pelo seu amigo, e por todos os outros que não puderam estar ali, e pelos cientistas que viriam depois. E prometeu que não iria muito longe, que pela ciência todos venceriam, que estariam em pé

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sobre o chão do último andar, observando o Sol nascente sobre a grama verde, e não precisariam esconder seus nomes e rostos, nunca mais, depois daquela madrugada... Aos poucos, o gosto da cera ficou doce, e Botafogo era morto. [Figura: Magneton Braço, Legenda: O eletroímã funciona.] Dentro da sala, o aparelho funcionava. Agora era um céu azul, cintilante, um clarão que tomava aquela realidade enclausurada. Magneton paralisado pelo esplendor e pelo medo. Estava surdo, pois o ruído dos uivos era demasiadamente intenso e estourara seus tímpanos sem qualquer dificuldade. Estava ficando cego, pois o clarão era magnífico e ele queria olhar, como estivesse de O eletroímã funciona.

frente para o Sol e quisesse ver de muito perto.

Estava mudo, pois não tinha com quem falar. Papel e caneta caídos ao chão. Tentando alcançar o centro daquele brilho que circundava o eletroímã, viu o início e o fim na mesma imagem, e as engrenagens, e os cavaleiros, e os pistões e as roldanas e as correntes que faziam as galáxias girarem, os pilotos sônicos, os deuses e as deusas, e tudo isso não passou de algumas bilhões de transições do átomo de Césio. Era tudo claro, mas antes de poder racionalizar ele se tornou um com toda aquela estrutura, e rompeu-se em um brilho como o brilho daquele sol, que era como o brilho do começo do mundo, o brilho que cria e destrói o espaço e o tempo, que era ofuscante como o ponto final de uma grande narrativa que deixa perguntas em aberto que nunca serão respondidas, e incoerências e inconsistências que, ao mesmo tempo em que não parecem ser do acaso, também não parecem bem estruturadas. Ele e o ímã eram um, e os dois eram um com o prédio, e tudo era uma coisa só. O prédio, que agora era vivo por um instante, e tinha a consciência de Magneton aderida em cada um de seus tijolos, deu seu último suspiro, e absorveu a sala, e o ímã, e Magneton, e a caneta que não anotou, no papel que não foi anotado, e a água quente que não terminou de ser bebida, e os cabos de alimentação que derreteram, e as portas insalubres. A sala ruiu. O prédio ruiu. A sobrecarga nos cabos criou um incêndio que consumiu o que restava da sala, e o corredor, por onde Botafogo, morto, rastejava tentando alcançar a escada. Tudo consumido por chamas. A vida abreviada depois de tudo vislumbrar. Eutanásia de um colosso institucional de incontáveis toneladas de cimento, madeira e arrependimento.

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O incêndio foi controlado pela estrutura arcaica e mal planejada do prédio. O incêndio foi intenso, e acabou com tudo o que havia ali no corredor, mas na escadaria os destroços impediram que as chamas se alimentassem ainda mais, pois o oxigênio era pouco. A queda da escadaria e da porta mesclou-se ao que já havia nos andares superiores, de forma que, quando o prédio voltou a ser habitado, anos depois, parecia ser só uma bobagem aleatória, um espaço de entulho, que seria reformado, assim como todo o resto, e devidamente concretado.

Para sempre o Coração de Magneton ficou preso à estrutura do prédio, e o prédio ficou preso ao Coração de Magneton. E assim ele viveu, e vive, e viverá.

Progresso e Ciência para Todos

Os anos passaram, um segundo por segundo. Os papeis foram assinados. As declarações foram registradas. Os devidos trâmites legais e os ritos específicos foram respeitados à risca. Após o fim do Regime do governo, aquele amálgama de departamentos e protoinstitutos foi oficializado. Ivone, agora já mais experiente, e a única que poderia dizer algo e que teve alguma relação

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com o círculo dos malditos, ficou encarregada por começar o que de fato seria conhecido como o Instituto, que agora era independente das engenharias, e possuía um prédio próprio, e suas próprias leis e regimentos. O local em que os físicos das sombras se reuniram durante aqueles anos passados agora era um hall que dava para os escritórios dos mais eminentes cientistas que o país poderia produzir. A sala que outrora fora de Botafogo transformou-se numa copa, com geladeira, fogão e xícaras brancas nas quais eram servidas doses e mais doses de café espresso para os pós-graduandos e para os professores. O subsolo que abrigou os acontecimentos do eletroímã foi concretado, assim como o subsolo acima dele, para que ali fosse instalado, na superfície, um estacionamento de uso comum. Ninguém sentiu falta dos equipamentos e documentos que ficaram soterrados, pois os registros destes também estavam soterrados - então não existia nada lá embaixo.

Modernizado, agora o Instituto não depende das Engenharias, e é um organismo internacional em si.

Os registros sobre aqueles dias ficariam perdidos, se não fosse pela memória de Queiroz e seu estranho hábito de revirar entulho quando sentia que algo poderia estar escondido no caos. Ele encontrou pedaços de anotações, e reconheceu as letras de Botafogo e Magneton, mas não tinha para quem contar, pois ele mesmo já era um desconhecido até mesmo por parte de sua examiga Ivone, que negou três vezes conhecer qualquer um dos envolvidos com aquelas reuniões, quando diante do novo presidente. Qualquer relato seria tomado como delírio, e nenhuma palavra valeria de algo. Para os fins legais, Queiroz não estava menos

Ivone, que foi para a Luz.

defunto que os outros todos.

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Nas décadas posteriores, o Instituto, sob comando de Ivone e seus alunos, ergeu-se como referência mundial, e muitos vieram, passaram e foram. Uns com mérito, outros com descobertas, outros com dúvidas, outros com raiva. Curiosamente, de tempos em tempos, quando a lua é minguante e a vaidade inunda os corredores da ciência, relatos insólitos e doentios voltam a surgir, desde os alunos mais inocentes até os mais arranhados pelas garras da vida cotidiana. Eles parecem ficar momentaneamente desprovidos de razão ou razoabilidade; esses lapsos, ainda que muito curtos, destroem toda a capacidade de raciocínio, por todos os anos subsequentes, e criam traumas estranhos, que não conseguem ser, até o dia corrente, bem explicados pela psiquatria moderna. Quase cinquenta anos depois do caso do eletroímã, numa época em que Queiroz já era morto de facto, um notável grupo de alunos teve de se retirar do Instituto por causar tumulto devido ao que eles chamavam

de

Cabeça

de

Estopa.

Uma

criatura,

considerada pelos colegiados do Instituto como um chiste sem graça de veteranos, e que tomou significado como um deus mitológico que supostamente andava pelos corredores da universidade, de madrugada, principalmente nas épocas em que os ingressantes Estopas são um dos instrumentos indispensáveis a qualquer cientistas; Além de limpar graxa, elas garantem a higienização de todo o ambiente de trabalho, e previnem contaminações.

chegam para a matrícula; roupas elegantes, terno, gravata e um corpo deformado, como fosse estopa suja de sangue e óleo e queimada de vela, buscando gente para consumir.

O Cabeça de Estopa andava, diziam eles, espalhado pelo chão; quando alguém se aproximava, quando alguém pensava demais sobre ciência, quando alguém chegava muito próximo de uma revelação, Ele levantava seus braços, prendendo o tolo pelos pés que tentavam correr e não conseguiam, agarrava e girava o corpo de sua vítima até que os órgãos explodissem em força centrífuga e fossem espalhados por todo canto. O Cabeça de Estopa vivia, diziam eles, em busca do cientista ideal, para que o convencesse de que suas ideias eram orgânicas como suas vísceras, e que a razão e o experimento tinham um claro Método que governava suas leis, e essas eram as mesmas leis do universo que permitiam calcular em que canto do jardim seria arremessado o fígado, o intestino, a traqueia, quando Ele chegasse. Alguns dos alunos, mais tarde, disseram que, além de girar o corpo da vítima, o Estopa vertia água quente sobre a garganta dos que tinham maior dom de comunicação, de forma a obliterar os músculos

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vocais de quem gostava de falar demais. Ele fora visto em toda a fazenda, que agora era um campus universitário digno de coberturas em todos os jornais do país; alunos novos e velhos afirmavam ter presenciado aquela sombra em forma de estopa, aquele cientista deformado bem vestido, aquela coisa que aparecia e fazia até o mais valente ser um covarde. O Cabeça de Estopa vive, gritavam eles, antes de entregarem-se completamente à insanidade e serem afastados.

Tudo é feito de luz

Mais ou menos naquela época, também começaram a ser observados comportamentos anômalos de grupos de alunos, principalmente os mais dedicados à pesquisa acadêmica desde os primeiros anos de curso. Alguns, mais estudiosos, passaram a não conseguir mais sair do ambiente do Instituto, mesmo que fosse alta madrugada e eles precisassem dormir. Havia algo que os deixava com vontade de não sair mais, de ficar por lá, de beber aquela água, de estudar aqueles estudos, de ler aqueles livros e respirar aquele ar, e beber daquele café ruim. O Espaço de Vivência, famoso por funcionar dia e noite, vinte e quatro horas, todos os dias, passou a ser apelidado por alguns de Espaço de Vivência Prof. Dr. Cabeça de Magneton, em tom de zombaria devido à grande ênfase que se havia naquela época das pesquisas a respeito do campo magnético interagente com os spins do quasicristal de Lítio (que, de maneira sensacionalista, era anunciada como a área de pesquisa que daria o primeiro Prêmio Nobel à ciência brasileira). Alguns bons alunos relataram, com o passar dos anos, ouvir murmúrios pelos corredores que os convenciam, sem dizer palavras, de que o certo era ficar mais lá e menos lá fora. Que o Instituto era a verdadeira casa, e apenas pelo estudo contínuo encontrariam a salvação que tanto buscavam. Nos dias da era corrente, nenhum desses relatos é oficial, e todas as descrições foram descartadas como trotes ou brincadeiras de quem não tem mais o que fazer ou que não possui uma memorável média

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ponderada em seu curso. A memória de Queiroz, guardada e transcrita, é considerada como um registro de alguém que tentou ser um cientista mas que padeceu em meio ao vício do álcool sem ter nada realizado. O nome de Queiroz não consta nos autos do Insituto. Ivone não é mais diretora, mas é considerada, simbolicamente, uma eterna comandante. Ela vaga pelos corredores em busca de algo, mas ninguém nunca poderá saber de quê, exatamente. O Instituto é reconhecido mundialmente pelo alto grau de suas pesquisas. Muitos passam a vida toda dedicada à ciência naqueles mesmos corredores, agora reformados, que alojaram talvez um dos grandes momentos da nossa civilização. Muitas patentes estrangeiras são oriundas de pesquisas nos equipamentos dali. Seja qual for sua área de pesquisa, provavelmente você terá o que fazer no Instituto, se souber como procurar. Os alunos refletem a excelência do passado, e jorram uma luz potente para o futuro. Um exemplo, um caso de glória, um mundo dentro de um prédio. Isto é o Instituto, hoje. E, em frente à biblioteca, é isso que mostra a estátua que marca a Fundação: os dois que são um. Pois, mesmo que os que contam histórias nunca saibam das histórias que rastejam embaixo de cada corredor e de cada estacionamento, Queiroz é claro em suas últimas palavras escritas, ao final do caderno XI:

Martelo do tempo estilhaça vidro; Verdades florescem flores de cacos; Queima Fogo que limpa, gira Magneto n’água lúcia.

Rei busca Rainha no horizonte labirinto; ela, cega, Vênus e Mercúrio iguais. Vivem dois: terra abortada, sala fecunda.

Nada morto se séries convergentes. Aquilo que vive lá, volta na sombra. Um é o patrono; mas dois são os governadores.

Eis eles que vivem, e não podem morrer.

O Cabeça de Estopa vive. O Magneton vive. E deles é o Reino.

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Cabeça de Estopa e Cabeça de Magneton vivem, e deles é o Reino.

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