O círculo vol 5

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Editorial A revista 'O Círculo' continua. Nascemos com o intuito de divulgar conteúdo produzido independemente, e ser uma terra fértil para serem jogadas as sementes de conhecimentos que, muitas vezes, são escondidos, abafados, temidos e abandonados. Todos nós às vezes temos um ímpeto de escrever, produzir, cantar, dançar, desenhar, dissertar, fazer uma apologia, e é comum encontrarmos “bons motivos” para deixar isso tudo de lado e seguir com a vida de sempre. Mas não precisa ser assim. Não precisamos abandonar nossa Arte em prol de algo “sério” como a vida. A vida passa, a arte fica. Queremos, com este espaço e este trabalho, formarmos um círculo ativo de troca de ideias e experiências entre os colaboradores, para que essa roda de inspirações continue sempre a girar, mesmo quando encontrar os obstáculos e os atritos das obrigações e prazos burocráticos e as contas a pagar que permeiam todo o resto das vidas comuns que levamos. Para que todos possam se sentir à vontade, os materiais são publicados em pseudônimos, e você pode inclusive mandar suas produções por meio de um e-mail que não seja o seu (ou um manuscrito feito com uma letra que não seja sua, ou uma carta feita com recortes de revistas) – nós não perguntaremos nem exigiremos explicações. E você não será apontado na rua. Assim, você não é sua máscara cotidiana, sua roupa surrada ou sua voz esquisita e desafinada. Você é sua ideia. E, assim, o círculo nasce, cresce, e, quem sabe, um dia talvez morra. Mas não é este o momento de morrer. Temos recebido menos materiais do que nas primeiras edições, e compreendemos. Não é exigido que os autores tenham uma constância ou sintam-se colados no Círculo como fosse mais uma das obrigações do dia-a-dia. Claro que não. Mas seria muito, muito legal se mais gente se sentisse à vontade para participar dessa ideia! Assim, a roda giraria com muito mais potência, e seria lindo ver mais cores. Caso você, que está lendo este monte de dados de orientação magnética gerados nesse aparelho em sua frente (ou esse monte de curvas matematicamente geradas por um dispositivo impressor), quiser ou conhecer alguém que queira expor suas artes aqui, diga para entrar em contato! O e-mail para envio de material (e, além disso, para que você possa explicitar suas opiniões e visões sobre o nosso projeto) é textos.ocirculo@gmail.com. Junto com o texto, basta enviar seu pseudônimo, uma imagem para ser usada como assinatura, e, se for o caso, mais imagens relacionadas ao que você quer publicar aqui. Geralmente fechamos a edição no fim do mês, pra ser publicado no início do próximo. Sinta-se à vontade para enviar suas obras quando quiser! Para enviar dúvidas, opiniões, sugestões, etc, com a possibilidade de se manter anônimo, utilize o endereço: www.mepergunte.com/ocirculo. Lá iremos manter um mural com os comentários enviados e nossas respostas. Saudações,

O Círculo. 2


Índice

ÍNDICE

04. Compondo um sentido: Escalas (Sol) 18. Zé Droguinha: Como funcionam as drogas (Rorschach) 24. O método científico: Capítulo IV: Ao Gostinho do Catarro (Texto Especial de Carnaval) (W. N. Centauro)

34. Hora da Historinha! (Wild Child) 42. Carta de um amigo (Wild Child) 48. Filhos (Wild Child) 53. Vamos saltar juntos (Melancolírico) 55. A criação de adão (Bromélia)

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Compondo

um Sentido

Escalas

- Sol

No Compondo um Sentido deste mês, irei apresentar o conceito de escalas

musicais. Este assunto é particularmente interessante para quem estiver interessado em compreender como é possível construir melodias através de improvisações, além de ser ferramenta base para entendimento da estruturação lógica de uma composição harmônica, tema que será abordado em textos futuros. Geralmente, o estudo das escalas se dá em conjunto com um instrumento musical, pois tocar e ouvir as escalas em um instrumento é um excelente exercício para se aprimorar aspectos de natureza técnica e dessa forma aumentar a intimidade com o mesmo.

Dessa forma, este texto será relativamente curto, pois apresentar as escalas teoricamente basicamente consiste em apresentar suas definições. Além disso, como meu objetivo consiste em apresentar aspectos de natureza geral de teoria musical, não é viável apresentar como se executa as escalas em cada instrumento, uma vez que a disposição das notas diferem muito de um para o outro. Talvez no futuro eu venha a redigir algum texto especial trazendo alguma informação de natureza prática, mas até lá, seria interessante que você mesmo buscasse formas de se executar as escalas

que apresentarei aqui em seu instrumento.

Boa fritação!

Escalas Musicais Uma escala musical é uma sequência de notas musicais, da mais grave para a mais aguda, espaçadas por um determinado conjunto específico de intervalos. A grande maior parte das composições podem ser completamente traduzidas utilizando-se somente notas de

uma única escala. Dessa forma, as escalas constituem uma ferramenta fundamental para se interpretar e compor músicas, além de serem frequentemente utilizadas para se identificar uma melodia de ouvido ou na improvisação musical. Neste breve texto apresentarei algumas das escalas musicais mais conhecidas, além de tentar trazer alguma intuição sobre suas definições. Essas escalas serão muito úteis para o desenvolvimento das ideias de campo harmônico, que discutirei em um texto futuro.

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1. Escalas Diatônica e Cromática Se você se lembrar bem, o primeiro texto desta coluna já apresentou uma escala, a qual identificamos como a ‘Escala Pitagórica’ ou ‘Escala diatônica’ . Esta escala possui 7 notas, as quais se encontram separadas por um intervalo de tom ou semitom, e serviu de exemplo motivacional para explicar como obter um conjunto de notas fundamentais através de divisões no comprimento de uma corda. Definindo o ‘semitom’ como o intervalo mínimo de frequência entre duas notas, conseguimos identificar 5 notas intermediárias além das 7 notas da escala diatônica (as notas sustenidas e/ou bemóis). Estas 12 notas igualmente separadas por um semitom estabelecem o conjunto de notas musicais fundamentais atualmente utilizado, e a sequência destas define o que chamamos de Escala Cromática.

Estas duas escalas funcionam como uma espécie de alfabeto musical. Para maiores informações sobre a construção e fundamentação destas escalas, cheque o primeiro texto desta coluna.

2. Escala Maior Natural A Escala Maior Natural será nossa escala mais importante, uma vez que ela será usada como referência para entendermos todas as demais escalas. Além disso, ela é base fundamental para compreendermos as estruturas harmônicas em que as músicas são compostas, que é o chamado sistema tonal.

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Toda escala começa e termina na mesma nota. A primeira nota de uma escala é chamada de tônica, e consequentemente é a mais grave. Dentro de uma escala, a tônica é a nota que tem poder de produzir sensação de encerramento em frases musicais. É como se as escalas fossem uma progressão específica de notas, que mostram como se viajar de uma nota tônica até sua oitava correspondente. Dessa forma, quando dizemos que uma música está escrita em um determinado tom ou tonalidade, estamos indicando qual é a nota que irá produzir a sensação de fechamento. A partir disso estamos de alguma forma subordinando todas as demais notas à tônica. É por esta razão que reconhecer o tom de uma música facilita muito para um músico tirar uma canção de ouvido, pois o tom informa como entender a relação entre as notas, sendo assim uma ferramenta de caráter lógico de identificação dos padrões. Mais detalhes sobre o sistema tonal será melhor discutido no próximo texto desta coluna. Provavelmente você já conhece a escala de Dó Maior, que nada mais é que a sequência das notas musicais naturais: Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si e Dó. Vamos usá-la como exemplo para entender as propriedades gerais desta escala, e assim obter a escala maior natural de cada uma das 12 notas.

Esta escala é chamada de maior porque em relação a nota tônica (nota Dó) todos os intervalos são maiores ou justos. Além disso, podemos analisar através da figura o intervalo relativos em

tom (T) e semitom (ST) entre as notas, o que irá gerar uma definição para uma escala maior: qualquer sequência de notas que seguir a progressão de frequências T-T-ST-T-T-T-ST será uma escala maior de sua nota tônica. Usando esta regra de formação, obteremos 12 escalas diferentes, uma para cada uma das notas musicais como tônica. Veja por exemplo a escala de Fá# Maior:

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Evidentemente a escala de Dó Maior é a mais fácil de ser lembrada, uma vez que ela só possui as

7 notas naturais. Dessa forma, uma boa maneira de pensar nas demais escalas a partir da escala de Dó Maior consiste em pensar no intervalo entre a tônica da escala desejada e a nota Dó. Por exemplo: como a nota Dó encontra-se 1 semitom a frente da nota Si, podemos obter a escala de Si Maior simplesmente subtraindo um semitom de cada uma das notas da escala de Dó Maior:

Basta comparar com a escala de Dó Maior para observar que todas as notas da escala de Si se encontram um semitom abaixo das notas da escala de Dó (geralmente quando não há nenhuma especificação de ‘maior’ ou ‘menor’ acompanhado com o nome da escala, identificaremos esta como sendo maior, exatamente como fizemos com os acordes). Evidentemente todos os acordes maiores, sejam eles tríades ou tétrades encontram-se dentro das escalas maiores, pois por definição as escalas maiores contém todas os intervalos fundamentais para formação destes acordes: terça maior, quinta justa e sétima maior.

Para resumir, deixo todas as 12 escalas maiores escritas a seguir. Obviamente não há necessidade de decorar, basta saber como formá-las. Um exercício teórico é derivá-las e ir checando com a tabela, mas no fim se tratará somente de um exercício de intervalos.

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A sonoridade da escala maior também possui a mesma expressão dos acordes maiores pois obviamente ambos derivam de uma mesma características de intervalos. Veremos a seguir a escala menor, que possui alguns intervalos menores em sua formação, fazendo com que estas escalas soem mais tristes e sombrias quando comparadas com a escala maior, exatamente como ocorre com os acordes menores.

3. Escala Menor Natural A Escala Menor Natural pode ser derivada da escala maior natural reduzindo-se o terceiro, sexto e sétimo grau de um semitom, produzindo assim três intervalos menores em relação a nota tônica da escala. Vejamos a escala de Dó Menor Natural:

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Como já mencionado em textos anteriores, os intervalos de terça menor e sétima

menor possuem uma sonoridade bem característica, e é devido a estes dois intervalos que esta escala é chamada de Menor. Veremos a seguir que existem outras formas de se definir a escalas menor, que vão depender da escolha do intervalo entre o sexto e o sétimo grau da escala, que neste caso também foi escolhido como uma segunda maior. Para o que chamamos de Escala Menor Natural, temos a regra de formação T-STT-T-ST-T-T. Podemos derivar qualquer escala menor usando esta regra, vejamos como exemplo a escala de Lá menor:

Neste particular exemplo existe algo curioso a ser notado: nenhuma das notas da escala de Lá Menor possui sustenidos ou bemóis. Contudo esta é a mesma propriedade da escala de Dó Maior, e isto implica que ambas escalas possuem exatamente as mesmas notas. É importante ressaltar que mesmo possuindo as mesmas notas, as escalas de Lá Menor e Dó Maior são escalas fundamentalmente diferentes, pois a sequência das notas em cada uma delas é diferente, fazendo com que a progressão de intervalos seja também diferentes. Além disso,

pode-se dizer também que estas escalas são distintas por possuírem tônicas distintas. Contudo, se as escalas possuem as mesmas notas, pode-se explorar a simetria de equivalência de tonalidade fazendo a pergunta: quantos tons deve-se adicionar em uma escala maior para essa se transformar em uma escala menor? No nosso exemplo, isso equivale a encontrar o intervalo entre as notas Dó e Lá, o que corresponde a uma sexta maior. Para transitar de uma escala menor para uma maior, devemos considerar o intervalo entre as notas Lá e Dó, que é uma terça menor.

Usando por simplicidade o intervalo de menor comprimento, podemos dizer que para transitar de uma escala maior para uma escala menor devemos subtrair um intervalo de terça menor (ou 1,5 tom) em suas notas. Analogamente, adicionando um intervalo de terça menor nas notas de uma escala menor estaremos obtendo a sua escala relativa maior. Tente observar esta simetria com as escalas relativas de Sol Maior e Mi Menor. 9


Estas ideias são úteis na prática, pois em muitos instrumentos musicais, conhecer como se toca as escalas maiores implica em necessariamente saber como se tocar as escalas menores. Além disso, podemos usar as ideias de tonalidade relativa para obter todas as 12 escalas menores (além da sequência de formação da escala). Caso tenha curiosidade de ver todas as escalas, nota por nota, deixo a derivação destas escalas como exercício. Você pode (somente se quiser!) consultar a tabela contendo todas as escalas maiores que deixei logo acima. Por fim, devemos observar que as escalas menores também contém todos os acordes menores (como já era esperado). Devido aos aspectos sonoros dos intervalos de terça menor e da sétima menor na escala, dizemos que esta possui um caráter mais triste e sombrio quando comparada a uma escala maior. Lembre-se de verificar estas diferenças tocando os intervalos/acordes/escalas em seu instrumento.

3.1 Escala Menor Harmônica Como já mencionado anteriormente, é possível definir a escala menor de maneira diferente. Dizemos que uma escala é Menor Harmônica quando possui a sétima nota de uma escala Menor Natural aumentada de um semitom. Isso confere um caráter de terça menor (ou segunda aumentada) em relação ao sexto e sétimo grau da escala. Vejamos a escala de Lá menor harmônica:

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Esta escala possui regra de formação T-ST-T-T-ST-(T+ST)-ST, e possui uma sonoridade característica da música oriental.

3.2 Escala Menor Melódica A Escala Menor Melódica visa diminuir o atrito produzido pela terça menor entre o sexto e sétimo

grau da Escala Menor Harmônica. Para isso, basta aumentar o sexto grau da escala harmônica em um semitom, gerando assim uma escala menor um pouco mais próxima de uma escala maior. Vejamos o exemplo da Escala de Lá Menor Melódica:

Esta escala possui sequência de formação T-ST-T-T-T-T-ST. Não é muito utilizada e muitos músicos preferem usufruir da Escala Menor Natural ao invés de usar o recurso da Escala Menor Melódica. De qualquer forma, todas essas definições só se baseiam em uma sequência definida de intervalos para se caminhar de uma tônica até a sua oitava, e a sensação sonora produzida

estará completamente correlacionada com a escolha desta sequência, que é o mais fundamental.

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4. Escala Pentatônica As escalas pentatônicas são escalas primitivas, que levam em consideração que notas que se encontram separadas por apenas um semitom de distância são consideradas dissonantes. Assim, para se montar uma escala pentatônica a partir das escalas maior e menor, devemos retirar duas notas visando remover os intervalos de segunda menor da escala. Estas escalas de cinco notas são muito utilizadas em solos de rock n roll e improvisação, pois transmitem a sensação de que todas as notas harmonizam muito bem entre si. Veremos agora como formar estas escalas, mas lembro novamente que poderemos derivar 12 escalas distintas (uma para cada nota) para cada uma das leis de formação que apresentarei a partir daqui. Você pode transcrever estas escalas como exercício caso exista um desejo incontrolável de vê-las escritas uma a uma. Não o farei aqui para não estender demais o texto com questões repetitivas, mas sinta-se à vontade para enviar qualquer pergunta para esclarecer possíveis dúvidas.

4.1 Escala Pentatônica Maior Na Escala Maior temos regra de formação: T-T-ST-T-T-T-ST. Dessa forma, para se obter a Escala Pentatônica Maior, basta remover o quarto e sétimo grau desta escala. Vejamos o exemplo da Escala Pentatônica de Dó Maior.

Observe que a nova lei de formação é T-(T+ST)-T-T-(T+ST), formando uma escala de cinco

notas, derivada da Escala Maior Natural e sem intervalos de semitom entre as notas.

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4.2 Escala Pentatônica Menor A sequência de formação de uma Escala Menor Natural é T-ST-T-T-T-ST-T. Dessa forma, para gerar uma Escala Pentatônica Menor, basta retirar o segundo e o sexto grau de uma escala menor. Vejamos o exemplo da Escala Pentatônica de Lá Menor:

Esta escala possui regra de formação (T-ST)-T-T-(T-ST)-T, e equivale a uma Escala de Lá Menor com intervalos de segunda menor retirados da sua lei de formação.

4.3 Escala Penta-blues Esta escala, como sugere o nome, é muito utilizada em solos e composições do gênero Blues. Ela é fundamentalmente uma Escala Pentatônica Menor, contudo possui a adição de um intervalo de quinta diminuta com a tônica da escala. Essa nota especial também é chamada de blue note e é bem característica por ter um som bem dissonante, justamente por produzir um intervalo de segunda menor (o que inicialmente queríamos retirar) exatamente no meio da escala. Vejamos a Escala Penta-blues de Lá Menor:

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Gerando assim uma nova escala, com regra de formação (T+ST)-T-ST-ST-(T-ST)-T.

Evidentemente não há nenhum cabimento em querer lembrar de todas as regras de formação das escalas. É importante você compreender como as definições se relacionam e qual o propósito de cada uma das escalas. Fundamentalmente, só é necessário mesmo conhecer a regra de formação da Escala Maior Natural e a partir daí, basta lembrar dos conceitos envolvendo cada uma das escalas para gerá-las.

5. Modos Gregos Os chamados Modos Gregos são maneiras de analisar a Escala Maior Natural sob diversas tonalidades diferentes. Estas escalas no entanto, pertencem a um outro espectro da lógica musical. Até agora, tudo que discutimos em toda esta coluna refere-se a uma interpretação da música através da chamada Música Tonal. Contudo existe uma outra maneira de se interpretar todo este conteúdo através da denominada Música Modal, que é um sistema

mais primitivo que valoriza mais o ritmo e andamento das melodias. Voltarei a discutir melhor essas diferenças em um texto futuro, quando já tivermos as noções de Campo Harmônico. As escalas referentes aos modos gregos consistem em se olhar para Escala Maior Natural posicionando a tônica em cada um dos sete graus da escala. Estes modos recebem o nome de Jônio, Dórico, Frígio, Lídio, Mixolídio, Eólio e Lócrio (os nomes correspondem a regiões diferentes da Grécia), respectivamente de acordo com o grau da escala maior original que elegemos como nota tônica.

O modo Jônio é aquele que mantém a tônica original da Escala Maior Natural. Dessa forma, a escala de Dó Maior é equivalente ao modo grego Dó Jônio.

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Já no modo Dórico, temos que a tônica deve corresponder ao segundo grau de uma escala maior.

Dessa forma, teremos que a escala Ré Dórico corresponde a escala de Dó Maior iniciada da nota Ré.

Seguindo a mesma linha de raciocínio podemos produzir o Mi Frígio:

E assim sucessivamente até produzir os sete modos. Evidentemente iremos percorrer todas as Escalas Maiores para obter os sete modos para cada uma das notas, pois precisaremos encontrar cada uma das notas em todas as posições possíveis. Para se obter o Dó Dórico, por exemplo, vamos precisar encontrar uma escala maior na qual a nota Dó corresponde ao segundo grau desta escala. Para isso, basta diminuir a escala de Dó Maior em 1 tom, obtendo assim a escala de Si bemol Maior, na qual a nota Dó corresponde ao segundo grau. Começando a escala de Si bemol Maior a partir da nota Dó

estaremos obtendo o modo grego Dó Dórico:

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O mesmo pode ser feito para todos os outros modos e todas as notas. Você pode tentar derivar e escrever todas as 84 escalas (7*12) derivadas dos modos gregos, mas considero isso estúpido. O que é realmente importante é que você tenha entendido como se formar cada um dos modos a partir da escala maior natural. Para resumir e exemplificar estas ideias, deixarei aqui uma tabela contendo os sete modos gregos da nota Dó, para serem usadas como referência em seus estudos.

É interessante por fim notar (verifique!) que os modos Jônio, Lídio e Mixolídio possuem uma sequência de intervalos que lembram uma Escala Maior, enquanto os modos Dórico, Frígio, Eólio e Lócrio possuem estrutura de uma Escala Menor.

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Conclusão Este breve e objetivo texto teve o intuito de introduzir o conceito de escalas, além de apresentar aquelas mais usualmente utilizadas em nosso contexto musical atual. É interessante verificar a sonoridade destas escalas e ficar cada vez mais familiarizado com elas, pois elas são parte fundamental para o desenvolvimento de uma compreensão musical mais profunda, tanto no aspecto teórico como experimental. No próximo texto desta coluna, irei explicar as ideias referentes a Campo Harmônico e com isso espero você finalmente tenha em mãos uma forte bagagem teórica para iniciar sua próprias composições musicais.

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-Rorschach Drogas psicoativas fazem parte da história da humanidade. Existem

evidências de uso de ópio em 5.000 AC e de álcool em 10.000 AC. Até mesmo animais buscam esse tipo de efeito, desde macacos que dão preferência por frutas fermentadas (que contém álcool) até renas que comem cogumelos alucinógenos. Através da história, culturas e sociedades aceitam certos tipos de drogas e condenam outros. No Brasil, é permitido (e até mesmo bem visto) o uso de álcool e de

Samorini, G. (2002). Animals and psychedelics: The natural world and the instinct to alter consciousness. Inner Traditions/Bear & Co.

tabaco, enquanto outras substâncias são proibidas (e condenadas).

Essa condição de legalidade das drogas acaba causando um estigma sobre elas – positivo ou negativo – que acaba limitando o conhecimento que as pessoas tem sobre as mesmas. O objetivo da coluna Zé Droguinha é desmistificar o funcionamento e efeito de algumas drogas (na medida do possível, visto que muitas pesquisas são limitadas devido à proibição), de forma objetiva e imparcial.

Esse texto inicial servirá como uma introdução para a série, em que cada edição abordará uma substância diferente. Para que isso possa ser feito de maneira satisfatória, abordaremos agora uma revisão geral sobre o funcionamento do cérebro, para que possamos entender o funcionamento das drogas no nosso corpo. Na próxima edição, serão discutidos aspectos dos conceitos tolerância e vício, e aí então

É importante ressaltar que nada é uma regra absoluta quando se trata de biologia. Tudo o que será dito aqui serve para o caso geral, mas sempre haverão excessões.

daremos início à abordagem de cada droga.

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Como funcionam as drogas Curiosidade: existem muitas células do sistema nervoso espalhadas pelo corpo. Por exemplo, quando queimamos a mão, são neurônios com terminações na pele desse local que mandam o estímulo até a medula espinhal, e daí para o cérebro, para então, termos a sensação de dor.

↠ Sistema nervoso O sistema nervoso pode ser considerado o sistema de comando do nosso corpo, sendo que é ele quem “controla” todos os outros sistemas. Ele é composto basicamente de sistema nervoso central (cérebro, cerebelo e tronco cerebral) e periférico (medula espinhal). Existem muitas outras maneiras de dividir e classificar o sistema nervoso.

Dois tipos de células constituem o sistema nervoso: os neurônios e as Até pouco tempo se pensava que as células da glia tinham função basicamente estrutural (de sustentar os neurônios no lugar), mas hoje já se sabe que algumas delas podem até mesmo realizar sinapses.

células da glia , sendo que são os neurônios os responsáveis pelo real funcionamento do mesmo. Os neurônios podem ser divididos em 3 partes: axônio, corpo e dendrito:

Dendritos:

são

numerosos

e

espalhados pela célula. Atuam na

recepção de estímulos nervosos e na transmissão

dos

mesmos

para

o

restante da célula.

Corpo: Similar ao das outras células, contém o núcleo e a maioria das organelas.

Dele

saem

os

prolongamentos (dendritos e axônio)

Axônio: cada célula possui somente 1 axônio, é por ele que sai o estímulo nervoso

que

neurônio, outras

vêm

sendo

células

ou

do

corpo

transmitido para

do para

músculos

efetores.

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Assim, o impulso nervoso sai do axônio de um neurônio para o dendrito de outro, continuamente até que seja recebido um sinal para que o impulso termine. Axônios e dendritos de neurônios diferentes não estão conectados diretamente, eles ficam separados por um pequeno espaço chamado fenda sinaptica. Esse espaço é o local em que ocorrem os processos necessários para a transferência de informação (impulso nervoso) entre os dois neurônios. Tais processos serão explicados mais adiante.

O impulso nervoso tem natureza elétrica. Ele é gerado através de uma diferença de potencial entre o ambiente interno e externo do neurônio (tal fenômeno é causado pela composição química de cada ambiente), que se dá de modo que o interior da célula seja mais

Os dois ambientes tem cargas positivas, mas a exterior é maior.

positivo que seu exterior. Dessa maneira, quando dizemos que um impulso elétrico está percorrendo o neurônio (sempre no sentido

dendrito-axônio), o que está acontecendo na realidade é que os canais iônicos da célula se abrem , permitindo a entrada dos íons positivos externos, e, assim, invertendo a diferença de potencial de maneira instantânea (o meio interior fica mais positivo que o exterior). Essa

Eles normalmente ficam fechados, com a célula mantendo o potencial de repouso de maneira ativa (com gasto de energia).

abertura dos canais se dá de maneira progressiva ao decorrer do neurônio, e a isso denominamos impulso nervoso. Botão sináptico

Imagem: Impulso nervoso passando pelo axônio de um neurônio.

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Existem diversos tipos e categorias de neurotransmissores, vou citar nomes conforme for necessário. O mais importante é entender o mecanismo.

A transmissão do impulso do axônio de um neurônio para o dendrito de outro se dá de forma química, através de substâncias denominadas neurotransmissores . Eles ficam acumulados em vesículas presentes no botão sináptico do axônio, e são liberados na fenda com a chegada do impulso nervoso. O neurotransmissor é, então, captado pelos receptores específicos presentes no dendrito do neurônio seguinte,

Os neurônios são sensíveis a determinadas quantidades de neurotransmissores, assim, se a quantidade não for suficiente, ele pode não ser ativado. Além disso, existe um neurotransmissor que é inibitório (chamado GABA), que quando liberado impede a transmissão sináptica.

podendo ou não disparar o impulso nervoso no mesmo . Ele também é captado por autoreceptores específicos presentes no axônio do próprio neurônio que o liberou. Tal mecanismo é chamado de feedback, e é através dele que o neurônio “sabe” quando deve parar de liberar o neurotransmissor. Terminado o processo com o receptor, a molécula de neurotransmissor é liberada, ela pode, então, tornar a ser captada por receptores ou autoreceptores, ser reabsorvida pelo axônio ou desintegrada por enzimas presentes na célula.

Receptor Se reabsorvida ela voltará a ser armazenada em vesículas para uso posterior.

AXÔNIO

DENDRITO

Autoreceptor Neurotransmissor

Um importante aspecto que deve ser citado é a plasticidade cerebral. Nosso cérebro é moldável, e é dessa maneira que ocorre o aprendizado. Toda passagem de impulso nervoso gera alterações químicas no neurônio e na sinapse, porém, dependendo da intensidade ou da frequência com que ocorre o impulso, ele pode

gerar também alterações físicas, permanentes. A plasticidade pode ser tanto estrutural, em relação à circuitos de neurônios, ou sináptica, a 21


qual vamos tratar mais aqui. As sinapses podem ser fortalecidas (impulsos frequentes ou muito intensos), ou enfraquecidas (impulsos pouco frequentes ou de baixa intensidade). Fortalecer uma sinapse pode significar aumento da reserva de neurotransmissores nas

vesículas, aumento da liberação (mais neurotransmissores são liberados comparado ao que seria em uma situação anterior), aumento de receptores ou até mesmo mudanças na maneira como a célula seguinte reage aos neurotransmissores, e o contrário ocorre para o enfraquecimento. Fortalecer ou enfraquecer uma sinapse tem influência na sua probabilidade de ocorrer e em sua intensidade e eficiência.

↠ Funcionamento das drogas Existem diversas maneiras pelas quais uma droga psicoativa pode atuar no cérebro. Vou citar algumas aqui com nomes que de maneira alguma precisam ser decorados, a intenção é passar uma ideia geral para permitir as discussões seguintes, pois o funcionamento específico de cada substância será abordado em próximos textos. É importante notar que algumas drogas podem realizar mais que um dos efeitos

É importante ressaltar que em droga psicoativa incluo também as legais, que podem ser prescritas, como antidepressivos, remédios para ansiedade, entre outros.

citados a seguir. Os principais mecanismos são:

Agonistas do receptor: a molécula da droga é parecida com a de determinado neurotransmissor natural, tanto que consegue ativar o receptor desse neurotransmissor, causando na célula o mesmo efeito que seria causado naturalmente.

Antagonista do autoreceptor: A molécula da droga se conecta ao autoreceptor do axônio que está liberando o neurotransmissor, não causando nenhum efeito ativo, mas impedindo que ele exerça o mecanismo de feedback, fazendo assim com que a célula continue liberando neurotransmissores quando naturalmente pararia.

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É importante lembrar que enquanto as moléculas de neurotransmissor estiverem presentes na fenda sináptica (não forem recaptadas nem decompostas), elas tem o potencial de continuar ativando o neurônio que está recebendo o impulso. .

Inibidores de receptação: Existe uma proteína que recolhe parte dos neurotransmissores liberados para serem novamente armazenados no

axônio, para uso posterior. Algumas drogas podem inabilitar essas proteínas, fazendo com que os neurotransmissores permaneçam na fenda sináptica por mais tempo.

Liberadores de neurotransmissor: Essas drogas atuam abrindo as vesículas que armazenam neurotransmissores, fazendo com que eles sejam liberados mesmo quando não o seriam de forma natural, ou em maior quantidade.

Não se preocupe se você pensar que foi muita informação e se não fez muito sentido. Esse texto servirá de apoio quando formos falar mais

especificamente da atuação de cada substância no organismo, e vou tentar trazer pequenas revisões do que foi dito aqui quando necessário. Espero que você agora tenha uma noção básica de como é possível a atuação das drogas no nosso cérebro.

Na próxima edição abordarei assuntos bem interessantes, como vício e tolerância.

Até lá!

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MÉTODO CIENTÍFICO W. N. Centauro

Eu sou W. N. Centauro, e você será julgado. Nesta noite, dia ou tarde veremos, atônitos e lamuriados, amarrotados e vomitados na sarjeta da alma após a passagem do carnaval das angústias, até que ponto pode descer um homem, um pai de família, para saciar seus ímpetos mais escusos de sapiência, poder hierárquico e literácia acadêmica. À época das festividades carnavalescas, é comum, até mesmo nos mais elevados círculos da sociedade, observarmos a perda completa e consentida do pudor: uma garrafa a mais, uma assinatura a menos, uma nota mal calculada no fim do semestre, e assim samba, ébria, a Scientia e seus métodos, tais como pierrôs molhados em uma ríspida mistura de suor e urina daquilo que, em última análise, não é mais nem menos que gente. Para o cientista moderno, sobretudo os com reconhecido domínio da termodinâmica, o copo nunca está meio cheio, nem meio vazio. O copo está sempre prestes a quebrar. Hoje veremos os autos de condenação do físico paulista Luis Risada, aposentado docente de um instituto sem nome; este registro foi resgatado numa pilha de papel que, eventualmente, encontraria seu destino último no depósito de lixo. O então professor, nesta nota, descreve uma situação de alta tensão em um de seus últimos dias de trabalho. Os envolvidos tiveram seus nomes ocultados. Eles podem ser qualquer um. Eles podem existir, ou não. Eles podem ser você. E eu.

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Capítulo IV: Ao Gostinho do Catarro (Texto Especial de Carnaval) Prezada Alta Cátedra, Prezado X. Sr. Director,

Venho, em meu nome, ciente de minhas responsabilidades, direitos e deveres como cidadão residente em território nacional, e alegadamente

são

e

sem

nenhuma

enfermidade ou coação, relatar sob minhas considerações a respeito do ocorrido nos últimos

semestres,

para

que

vossas

senhorias tomem conhecimento e apreciem a queda iminente de minha taxa de produtividade acadêmica, e os motivos reais que levaram à minha carta de demissão. Os documentos referentes ao processo decorrente da análise e proposições do X. Sr. Director estão anexos, grampeados a esta folha, em três vias.

O dia de hoje é quarta-feira de cinzas, mas o pó sou eu. E eu cheirei todo o pó de mim mesmo que pude encontrar neste escritório, que me aguentou por todos estes malditos e ingratos anos. Em cada canto. Em cada cadeira. Em cada livro. Em cada apêndice apostilado. Em cada chapéu. Em cada diploma. Em cada memorial circunstanciado que só me serviu de algo há quatro décadas e agora é mofo e bolor e inseto. Em cada memorando. Em cada copo de café vencido, aguado e melado. Isso sou eu. Este é meu sonho concretizado. Vocês tem muita pena dos aluninhos, não tem? E de mim, quem tem pena? Por quê as regras tem de ser tão diferentes?

Eu sei bem o porquê. E não preciso da pena de gente tão baixa quanto as que sentem pena. Eu não preciso dos olhares como daqueles que veem um cachorro leproso apanhando de um policial militar na alta madrugada depois de uma noite em que o crime mais uma vez venceu e todo o resto perdeu. Eu não preciso de você, nem de você, nem de você, e nem de ninguém desta maldita lista de chamada, nem dos colegiados, nem de bosta nenhuma. Eu não preciso ler, nem escrever, nem saber, nem tomar ciência, porque EU sou a palavra, EU sou a escrita, EU sou a sabedoria e EU sou a ciência. E, aliás, eu sou meu próprio colegiado. Meu inferno é meu, meu, meu e somente meu.

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Vocês todos sabem bem meu nome, mas meu nome não importa, porque meu nome não vale mais nada. Podem me chamar do que quiserem, mas eu prefiro ser conhecido pela alcunha de Ferradura. Apenas Ferradura. Tal qual a ferradura de um cavalo que pisa incessantemente contra a terra batida e suja, e deixa uma marca que, aparentemente eterna, vai embora na primeira chuva. Uma ferradura de ferro enferrujado, cheia de merda, mas a qual, sem ela, não existe cavalgada.

Tenho acumulado glórias e publicações desde aquela década tão passada, em que eu era uma criança que sonhava em ser cientista de foguetes. Fui a todo canto, vi de toda gente. Das dunas do Norte aos pampas do Sul, do Mediterrâneo à Micronésia, com especial apreço por aquele bordel de vinho barato na ilha dos rubis. Mas nunca, nunca mesmo, eu vivi algo como tenho vivido agora. É um ultraje!

Parece-me, X. Sr. Director, que, como dizem, tudo degringolou de uns dois anos pra cá. Ora eu estava me recompondo das recentes, e ainda sofridas, perdas. Ora eu chorava, sozinho, neste mesmo escritório, acompanhado apenas pelo pior uísque que eu pude encontrar, ouvindo repetidamente as gravações de minha filha, no meu celular, dizendo pra mim que me odiava, que eu era um péssimo pai, que eu devia enfiar minhas equações no rabo… Eu… Logo eu! Eu que fiz de tudo por aquela criatura! Eu que trabalhei dia e noite pra mandá-la pra Irlanda, pra Grécia, pra Macedônia, pra puta que me pariu! É assim que sou agradecido, X. Sr. Director, veja bem! Isto é a gratidão humana. Uma filha que odeia o pai que fez tudo por ela.

Não dei melhor sorte com minha quase ex-esposa, que só olha pra mim quando quer se sentir enojada. E pede para eu olhá-la, e sabe que eu não posso. Antes era porque eu estava ocupado simulando o universo e tendo o mundo na ponta da minha caneta. Agora, porque estou surdo, coxo, mudo, e, principalmente, cego – e, acredite, eu nunca estive tão cego em toda a minha vida. Ela só continua comigo por pena e por causa da nossa filha. E eu sei disso. E por isso não continuo a importuná-la com minha presença rude, grosseira e geniosa. Por isso tenho ficado tardes e mais tardes, e madrugadas e mais madrugadas, nesse 26


cubículo com vista pro mar. Eu poderia, dramaticamente, dizer que sinto que meus dias estão no fim. Mas não seria verdade, nem um pouco verdade. Eu ainda viverei muito, e as décadas ainda continuarão a cuspir sobre meu nome e meu rosto, e eu não poderei ser perdoado pelo que fiz nesses dias presentes. Eis a verdade, nada além da verdade. Tenho novidades para você, X. Sr. Director, e pra todo o resto desta corja: A CULPA É MINHA. E isso não vai mudar absolutamente nada.

Posto o contexto de meu temperamento sórdido, passo a relatar os fatos referentes à disciplina recente sobre a qual versam os autos deste processo ao qual tomei conhecimento mediante minha secretária D. Marta Arcano-Torres:

Durante o segundo semestre do ano anterior ao retrasado, recebi em minha sala um grupo de alunos com um abaixo assinado, para que eu ministrasse, no lugar do prof. Mitrino, a disciplina de Rudimentos I e II. Segundo o documento que me foi entregue por este grupo de seis alunos, assinado por cerca de quarenta e quatro nomes, por se tratar de uma disciplina fundamental para a formação de scientistas, era importante que fosse ministrada por alguém que estivesse por dentro dos novos desenvolvimentos, e isto, com a máxima vênia, o prof. Mitrino não poderia fazer. Ele é um ícone, um exemplo a todos nós. Mas está como um quadro pintado de belas uvas do século dezenove. As uvas pintadas são belas, mas já foram comidas, mastigadas e cagadas. Com o perdão do termo. Ele é história viva, mas os alunos precisam de mais ciência do que contos. Com isto em mente, homologuei meu aceite à disciplina, e aquele procedimento correu com tranquilidade nas entranhas burocráticas do Instituto. O prof. Mitrino ficou com a disciplina de Métodos I e II, além de um merecido descanso.

Preparei o curso baseado em um material que, particularmente, considero adequado ao aprendizado dos Rudimentos. Trata-se do mesmo material que usei para aprender a matéria no ano de 1979, quando eu ainda era pós-graduando em Minas, sob orientação do saudoso Djalma da Costa. Ora veja, Rudimentos são Rudimentos. O que posso trazer de novo são algumas simulações que preparei com muito carinho, principalmente referentes à parte final do curso, em que eu planejava abordar a equação de recorrência de Pereira-Bresser. Mas o grosso continua o mesmo.

Confesso ter ficado desapontado com o desempenho da turma naquele semestre, em que ministrei Rudimentos I. O que vi foi muito aquém do que eu esperava como professor, e, principalmente, como cientista formando outros cientistas, seguido de uma frutifera linhagem

acadêmica. Com exceção do meu aluno de iniciação científica, cujo desempenho e perícia estão 27


acima de qualquer suspeita, e tem comprovada iluminação e inteligência para prosseguir seus estudos, e que, além disso, é livre para pensar no que quiser, o resto da turma era fraca. Maioria não fazia questão de ir às minhas aulas. Quem ia, ou dispersava lendo no livro o que eu explicava com o incalculável esforço do corpo para emitir sons lógicos, ou, para fingir participação, perguntava coisas óbvias e tolas, para claros fins de autoafirmação em relação aos colegas. Nunca em minha carreira vi uma turma tão fraca e preguiçosa. Nem mesmo as listas de exercícios, que eles poderiam fazer junto ao monitor (um aluno de mestrado escolhido por mim), eles entregavam. Claro que eles entregavam alguma coisa, um papel com resoluções dos exercícios que pedi na lista, mas dava pra perceber na escrita que eles não sabiam o que estavam fazendo. Acredito que o X. Sr. entende o que digo, pois já teve inúmeras disciplinas sob seu comando. A gente, quando passa o tempo e a vida, começa a perceber quando um aluno escreve com honestidade. E aquilo lá não era honesto. O exercício estava correto, com a resolução correta. Mas não podia ser certo. Eu sentia nas minhas vísceras que o aluno não sabia. O único que aparentava saber alguma coisa era meu aluno de iniciação científica.

Chegada a época das provas, fiz exatamente o combinado pela ementa, conforme a modificação mais recente. Cobrei algo análogo ao pedido nas listas. Mesmo assim, os alunos reclamaram de falta de tempo para resolver. Eu achei esse pretexto infundado, mas, mostrando benevolência e boa vontade (que não foi recíproca em momento algum), normalizei a nota da

P1, e 67.5197% da turma ficou acima da média. O desempenho da classe continuou pífio até a última avaliação, em meados de junho. Alguns alunos me procuraram para que eu aumentasse a nota deles, “garimpando” qualquer ponto extra. Foram, no total, dezesseis alunos que vieram em meu escritório. Destes, pude aumentar somente a nota do meu aluno de iniciação científica (que, tirando 9.8, mereceu um 0.05 a mais por ter corretamente derivado a equação de recorrência), e de um outro rapaz estudioso, aluno do Franco. O restante da turma fez a prova substitutiva, e apenas os completamente débeis tiveram de fazer a prova de recuperação. E nela, sinto muito, ninguém foi bem sucedido. De forma geral, Rudimentos I teve uma toada boa, apesar de todos esses entreveros. Maior parte da turma foi aprovada para cursar Rudimentos II, naquilo que, descobri depois, seria o último semestre de curso para muitos alunos. Confesso que, depois da grande mudança de grade, eu mesmo fiquei um pouco confuso. 28


X. Sr. Director, confesso ter sido um dos maiores erros de toda a minha vida ter aprovado tanta gente no primeiro semestre. Não fosse por isso, muito do que se sucedeu até o fim do ano jamais teria acontecido, e não teria eu que escrever este documento, junto com todos os outros que escrevi, e eu não teria que ficar me humilhando por algo tão simplesmente solúvel.

Durante as férias estudantis de inverno, a moral da turma ficou abalada devido aos desocupados que reintroduziram ao imaginário da mocidade aqueles acontecimentos fantasiosos supostamente atribuídos ao Escaninho 44 e ao laboratório de laser, na década de 1990. Eu desconheço a origem daquelas estórias, mas os alunos costumam comprar todo tipo de absurdo que ouvem dos corredores apenas porque satisfazem a si mesmos com essas descrições irreais e deturpadas da realidade. Eu até compreendo, pois já fui adolescente, que, nessa etapa da vida, a gente precisa dar significado a um monte de coisas corriqueiras, e a gente precisa de histórias fantasiosas e ilusórias pra dar sentido a algo que, depois, descobrimos ser tão vazio em significado quanto em objetivo: nossa vida.

Menciono este acontecimento porque ele teve clara influência na mentalidade dos alunos em Rudimentos II. Eles vieram com perguntas alheias à ementa, e queriam saber mais do que deveriam querer. Isso não foi algo que só aconteceu comigo. Meu amigo Prof. Cruz da Costa relatou o mesmo em sua disciplina (que, naquele momento, era Polímeros II). Acredito, sinceramente, X. Sr., que a divulgação de tais histórias teve uma forte motivação política, pois alguns alunos da turma se interessavam por política, e, suspeitamos, inclusive faziam uso do espaço do centro acadêmico para debates inúteis ao desenvolvimento científico.

Este contexto tarou tanto os alunos quanto a mim mesmo. Os alunos por medo. Eu, por precaução. Naquele momento, eu deveria estar atento para qualquer tentativa de insubordinação acadêmica. Qualquer início de bagunça intelectual cabia a mim ser reprimida conforme meu grau hierárquico permite (cf. Resolução CXXXVII/99 do Regimento, que também anexo a esta carta).

Confesso ter perdido a razão em alguns momentos. Mas eu fiz o que se espera de um docente respeitado e sério que ministra uma disciplina tão importante quanto Rudimentos II. Prestei pronto atendimento hospitalar à aluna G. C. M. quando esta sofreu um ataque de pânico e começou a mutilar-se em frente a toda a turma, enquanto berrava contra a parede que eu “nunca mais chegaria perto dela com meus pimentões”; organizei um mutirão de atendimento junto aos técnicos do laboratório vizinho, quando o aluno J. S. B. e o aluno N. V. T. tentaram

suicídio em meio à realização da P1. Quando fui confrontado, no corredor, pelo aluno M. L. P., 29


deixei inclusive no bolso dele o antídoto para o psicotrópico que eu o fiz engolir ao tentar discutir comigo sobre as aplicações espectroscópicas do método usado para calcular os níveis energéticos do Hélio, dessa forma facilitando o atendimento por pessoal especializado. As sequelas que estes alunos todos tiveram devido aos seus comportamentos nocivos ao ambiente científico não são de minha responsabilidade.

Mesmo demonstrando tranquilidade e resiliência para resolver as questões da turma, não fui procurado em minha sala, sequer uma vez, durante todo o decorrer do curso. O monitor, mesmo aluno do semestre anterior, também se mostrou inapto a exercer suas funções, e estudo o recolhimento do auxílio fornecido a ele pela Fundação de Amparo. Ao fim do semestre ele me entregou as notas das listas de exercícios dos alunos. No papel, muita gente tinha ido nas monitorias, e os exercícios estavam exemplares. Mas eu conhecia os alunos melhor que ele. Eu sabia que naquele mato tinha cachorro, e não podia dar nota integral, nem considerar que os alunos realmente estudaram. A única exceção foi meu aluno de iniciação científica, cujos traços e equações demonstravam a qualquer um uma clareza de ideias que o destaca entre todos os outros. Tomo a licença de, nesse momento, exaltar que meu aluno de iniciação científica é um dos físicos mais brilhantes de sua geração, e portanto merece o reconhecimento por parte de X. Sr. e seus pares no que tange o annual Prêmio Bucaresti.

Após a última avaliação, mesma história do semestre anterior. Um grupo de alunos insatisfeitos com a nota merecida procurou-me para que eu aumentasse a nota. Alegaram, os alunos, que as questões cobradas não condiziam com a matéria. Mas, X. Sr. Director, naquela ocasião eu já estava preparado.

Assim que eles chegaram em minha sala, às duas, eu me antecipei às perguntas e mostrei em minhas notas a resolução de todos os exercícios. Eles ficaram claramente contrariados por verem, de maneira tão objetiva, que eram inaptos a aprender os Rudimentos. Agiram com notória deselegância, questionando minha autoridade, de maneira claramente política e com intenções partidárias. Eu disse, alto e bom tom, que minhas decisões eram apolíticas, e que se alguém tinha algo político a esconder eram eles, e não eu. Alguns deles, X. Sr. Director, inclusive recebem dinheiro para fazer suas pesquisas. Em todas essas décadas, por todos os países que passei, eu nunca vi uma universidade deixar os alunos estudarem de graça. Muito menos pagar para que eles finjam estar estudando! Foi-se o tempo em que a ciência era restrita aos mais adequados da sociedade. Hoje em dia estes entojados resolvem duas ou três equações de maneira pífia e se sentem no direito de ostentar o título que damos, por pena, a eles. É 30


asquerosa nossa decadência. Sorte do mundo do intelecto que ainda há cientistas da nossa geração, X. Sr. Director. Sorte do mundo…

Eu segurei as pontas pra reunião não ser transformada numa completa baixaria. Peguei o aluno I. S. pelo pescoço, amistosamente, como um pai pega um filho antes de surrá-lo por ter quebrado a garrafa de licor. Ele mostrou resistência. Eu me ofendi com isso, pois eu sou docente e ele aluno; eu tenho meus direitos salvaguardados, ele tem os deveres. Tivesse ele agido com cortesia e entendido que, no instituto, quem manda sou eu, não precisaríamos ter tido tantos prejuízos.

Em notando-se que o aluno estava fora de si, histérico, descontrolado, ordenei a todos que ajoelhassem, para que a ordem fosse mantida. Os outros recusaram-se e bradaram palavras de ordem e gritos de guerra. Suspeito que eles estavam sob efeito de bebida alcoólica. Sem ajuda, sozinho, tranquei a porta para tentar acalmar os ânimos, e usei minha pistola elétrica, em medida disciplinar resguardada pelo conciso V, na cabeça de um dos alunos para que os outros abaixassem o tom. Não funcionou. O que era pra ser uma reunião como todas as outras transformou-se num verdadeiro transtorno. É inacreditável a forma como nós, professores do instituto, somos desrespeitados ao exercermos com o mínimo de seriedade nossa função. Eu não gosto de política, afinal sou apolítico, mas devo notar que esse tipo de comportamento cresceu

exponencialmente quando

nossos

governantes

passaram

a

tomar

medidas

popularescas, das chamadas “iluminações” dos indivíduos. Dizem eles que os alunos agora aprenderam a pensar não só na matéria, mas sobre a matéria. Eu te pergunto, X. Sr.: de que vale? Aqui se formam físicos, não filósofos! Querem filosofar, que vão para o bar, pois lá é o o lugar de filosofar. Aqui é negócio sério. Ciência não é brincadeira.

O aluno que foi acalmado por minha pistola elétrica fingiu desmaio para comover os outros, num claro tom de deboche. Ele inclusive simulou um vômito. Os

outros

alunos

ficaram

realmente comovidos, pois se

comovem por qualquer 31


fingimento ideológico. Eu não me dei por vencido, afinal a calmaria ainda não reinava. Tinha até alguns alunos que estavam fingindo um choro porque, diziam, o colega corria risco de vida por ser cardíaco. Disparate! Isso mostra o quanto a trama foi bem ensaiada e mal intencionada. Eu disse a eles: “pois é? Cardíaco? Vamos ver se eu conserto isso, então”. Amarrei o aluno, que não parava de se debater, tentando convencer aos outros que estava em convulsão, na minha escrivaninha mesmo. Peguei uma lapiseira Thomson, que sempre levo comigo pois é resistente, feita de aço cirúrgico, e fiel a todo momento, e comecei a abrir seu tórax com perícia. Ora, se ele fosse cardíaco, eu queria ver aquele coração batendo errado e fora de ritmo. Eu sou cientista, não padre. Eu não acredito, eu meço.

Um dos alunos que assistia à análise matemática do sistema vascular do colega estava colado à porta de madeira, tremendo, claramente descontrolado e tomado pelo vazio da razão. Eles imploravam para que eu parasse, mas eu não posso recusar ao chamado da ordem e do progresso por causa de dois ou três incompetentes que acusam e não suportam as contraprovas. Eu abri o peito dele, fazendo um pouco de sujeira (pois o aluno não teve a decência de controlar seu fluxo sanguíneo, e sujou até mesmo alguns documentos muito importantes, que a família dele terá de se virar para arcar com os prejuízos causados) com aquele fluido espesso e contaminado. O coração dele parecia estar batendo. Eu não sou músico, embora às vezes arrisque no trompete, mas pra mim parecia tudo em ordem quanto ao ritmo cardíaco. Medi com meu cronômetro, e lá estavam as evidências. As acusações de arritmia causada por pistola elétrica são evidentemente infundadas. Eu vi, eu abri, eu medi. Quem duvidar, que faça autópsia.

Não vi quando outro dos baderneiros que se encontravam na sala pegou minha garrafa de uísque escocês e deu em minha cabeça, quebrando a garrafa em centenas de estilhaços. Fiquei muito triste com a atitude deste aluno, que preferiu usar de violência quando não conseguiu mais argumentar de igual pra igual com alguém que sabe mais que ele. O galo ainda me dói um pouco, X. Sr. Director. Eu só estava fazendo meu serviço para a sociedade, devolvendo ao povo o que o povo investiu em mim. Responda-me: é justo que eu tenha esse tipo de tratamento? De minha parte, não é. Justo é o que eu fiz com este aluno violento. Violentei-o de volta? Claro que não. Eu conversei com ele. Eu mostrei, calmamente, que aquilo era irracional da parte dele. Tentei argumentar, em vão, que sala de professor não é consultório de psicologia para que gente como ele apareça choramingando e querendo que eu faça caridade. Aqui não é uma instituição de caridade. É, na verdade nua e crua, um dos últimos rincões de seriedade em pesquisa técnica e científica neste país. Não podemos nos entregar às vontades popularescas 32


dessa estirpe. Foi em vão. O aluno, não querendo sair pela porta, que estava trancada a fim de manter a paz no ambiente acadêmico alheio, quebrou a vidraça e defenestrou-se, tendo algumas fraturas expostas com a queda no fosso de depósito dos laboratórios. Vi-o rastejando escada acima até a portaria, e depois dela, e desmaiando por clara falta de preparo físico e psicológico, antes de ser levado por transeuntes até o pronto socorro, e lá ter sido guardado aos cuidados de especialistas. Confesso: fosse eu um médico, e tomasse conhecimento da causa dos ferimentos, jogaria ácido e catarro sobre as feridas para que, além da cura física, também exercesse sobre aquele indivíduo uma cura moral, que tanto precisamos impor aos nossos alunos.

Terminada nossa reunião, que por minha parte era amistosa e profissional, mas que não o era por parte dos alunos, todos foram dispensados, e fizeram arruaça pelos corredores. Continuaram a gritar palavras de ordem. Nada disso adiantou, pois minhas decisões são pautadas em técnica, e não em pena. Pena dos alunos todo mundo tem. E de mim? E eu, que tenho que sofrer calado essas ofensas, todos os dias? X. Sr. Director, com muita cordialidade atesto que todas essas palavras são verdadeiras, e sei que o X. Sr. não duvida de mim, pois somos conhecidos há muito tempo. Devo alertá-lo sobre a índole dos alunos que possam vir ao X. Sr. para fazer o relato mentiroso e leviano do ponto de vista deles. É gente a toa. Gente vã. Gente que não estuda e não quer estudar, e mesmo assim quer que eu dê um título para que eles ostentem e promulguem a escumalha que entendem por ciência. Não é assim que devemos tocar nossa instituição. Se a ordem e o progresso não sobressaírem, haverá caos e retrocesso. Nós somos a vanguarda desde nossa geração, e devemos zelar pelo bom funcionamento de nossas entidades, neste país em que cada vez menos instituições são respeitadas como a nossa.

Att.,

Ferradura.

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Hora da historinha! - Wild Child Em um ponto distante do espaço, um excêntrico indivíduo aconchega-se em um aposento altamente

tecnológico, preparando-se para uma noite

de entretenimento.

Em sua

excentricidade, conversa com o vácuo:

- Hihi, hoho, humanos... Hoje é dia de humanos, esses eu adoro. Preparei os meus aperitivos preferidos, porque esta noite veremos historinhas divertidas sobre essas criaturas tão amáveis, os humanos.

O indivíduo conecta aparelhos transmitivos entretentes, com grande excitação:

- Está quase começando, então vamos prestar bastante atenção. São cinco gostosas narrativas que se conectam por uma temática em comum, precisamos nos focar no meio de tanta diversão para tentar descobrir qual é a temática. É agora! Uh! Que excitação, adoro humanos!

Convergimos para a tela entretora, que se transforma no usual.

1. Arte pós-moderna. Nessa sexta-feira, no EspAqua, o Espaço Aquário para Artes Pós Modernas Ultra Cotidianalistas, começará a exposição Moinhos Urbanos, do notório artista plástico francês naturalizado brasileiro François Bidieur, um expoente vanguardista do cenário artístico mundial. O evento conta com uma abertura monumental, François planeja uma intervenção em que se apresentará em nu artístico, com milhares de palavras escritas sobre seu corpo, cobrindo todas as suas partes. As palavras foram selecionadas por usuários de redes sociais ao longo de dois meses, com as três mais votadas a serem tatuadas em seu rosto ao vivo, e o artista diluirá na tinta uma substância também votada pelos usuários. As três palavras mais votadas foram piroca, jesus e #arteposmodernaecoisadegenteescrota, esta última tendo viralizado em uma campanha on-line. O artista diluirá seu próprio sêmen na tinta da tatuagem, segundo o resultado da internet. A mostra de Bidieur é uma coletânea de esculturas e painéis surrealistas construídas com materiais que ele adquiriu em favelas de São Paulo, que vão desde os materiais

das casas até a comida feita pelos moradores. François convida os apreciadores a interagir com e comer a sua arte durante os três dias de exibição. François Bidieur é notório por sua arte 34


móvel e iconoclasta. A abertura se inicia às 19 horas e a entrada é gratuita. “A arte é como o ar, preenche todo o espaço à nossa volta e a cada instante a estamos consumindo. O artista é como o vento que sopra, dá forma e força à arte e a choca contra as faces do público, é feito da arte e a injeta, se injeta, no interior dos corpos mundanos. Quanto maior a força, maior o arrebatamento.” – François Bidieur.

2. Festa na piscina. O dia amanhece em uma residência da zona rural de uma pequena cidade, o sol está surgindo radiante enquanto inúmeras variedades de pássaros cantam suas peculiares melodias. Atrás da

casa há um grande gramado com uma linda piscina situada em uma área elevada, após uma pequena subida gramada, onde há também uma escadinha de acesso, feita de concreto. O pequeno pássaro Simon é um dos residentes e, como todos os dias, acorda ansioso para o seu passeio matinal. Um senhor abre a porta dos fundos da casa e liberta Simon de sua gaiola. Ele não voa. Simon sai disparado, rodopia pela varanda, pula, brinca, mas logo nota diferentes percepções. Um cheiro gostoso paira no ar, as canções estão mais vivas, nítidas, os arredores parecem muito mais coloridos e existe todo um clima de felicidade no mundo. Simon atenta-se

ao que está acontecendo e percebe toda uma população de pássaros espalhados pelo gramado além da pequena varanda. Aquela grama que sempre foi tão assustadora, grande, cheia de perigos, agora está brilhosa, aparadinha e abriga muitos amigos. Os pássaros bicam vigorosamente o gramado, Simon consegue ver. Explode de vontade de participar da festa e conhecer novos amigos, na verdade isso é algo que ele vem há muito tempo desejando, em sua existência solitária; essa é a oportunidade que Simon precisa para socializar com seus pares e injetar um pouco de aventura e novidade em suas veias de pássaro. Sem deixar tempo para

hesitação, Simon corre em direção ao gramado e pela primeira vez na vida atravessa a fronteira da varanda. Seus pezinhos tocam a terra fofa e molhada e a sensação é maravilhosa, é como se suas raízes despertassem de um longo sono, gentilmente tocadas pelo sopro do crescimento. Aquele cheiro selvagem e ao mesmo tempo sereno da grama recém cortada invade seus pulmõezinhos, arrebatando-o com uma nostalgia intensa e fugaz, indo e vindo a cada fôlego tomado. Simon se sente vivo como nunca antes. Ele vê que os pássaros, das mais variadas cores, estão na verdade se aproveitando de um grande festim, enchendo-se dos insetos e pequenos animais que agora estão expostos na terra. Simon é então invadido por uma grande fome, uma fome por ser como os livres amigos do gramado e do mundo. Ele avança pela grama, sente as 35


folhas roçarem seu corpo e com elas interage, misturando-se, enquanto sua cabeça mergulha repetidas vezes, rapidamente liberando seu instinto que amplia o espaço de sua mente, dandolhe uma feroz precisão para capturar os bichinhos. Simon se torna um deus, e em sua alquimia os insetos transmutam-se de entidades para substratos, seus substratos, passando a habitar o seu mundo particular. Ele sobe a encosta sentindo a naturalidade de seus movimentos, sua consciência de pássaro se espalha pelo gramado e se conecta com a dos outros, agora seus verdadeiros amigos, e todos se comunicam com suas danças e cantos. Todos eles são células de um ser maior, o Gramado, que emerge da terra para reinar naquele dia testemunhado e servido pelo sol ardente. O calor anima a terra que anima Simon, e Simon avança até o topo, extasiado. A visão do topo é um raio de compreensão, ele não faz só parte da dança, ele agora enxerga a dança. De repente, Simon, com sua realidade ocupando um espaço imenso, captura como um todo a gloriosa piscina, que reflete toda a vida daquele organismo. Imerso pelo otimismo e a naturalidade do que vive, Simon se aproxima, hipnotizado, do universo aquoso, inconscientemente ansiando pelo retorno ao lar, o ponto máximo da nostalgia que emana de seus sentidos, que embriaga sua percepção desde o primeiro momento. Alucinando, Simon imagina todos os seus amigos, células como ele, continuando a dança juntos, dentro da piscina, do útero, da realização final. Antes que pudesse verificar se estava sozinho, Simon cai. E ele está sozinho. Os outros pássaros continuam em seu próprio festim, dançando pela continuidade da vida. A tragédia ardente soma com rapidez a um espiralado caminho à singularidade. O fôlego convulsivo que se sustenta sobre as batidas caóticas na superfície conduz o caminho pela descida final. Um único momento de turbulência põe fim à festa e à existência do pequeno Simon, que parte sem conhecer a real narrativa por trás daquele gramado que tanto o inspirou a começar sua jornada.

3. Alimento orgânico. - Olá, bom dia. - Bom dia. Por favor, sente-se. Aceita um café? - Não, ob... Ah, então sim. Obrigado. - Você sabe por que você está aqui? - Anh... Para uma entrevista de emprego. - Sim. E por que você acha que é o mais qualificado para a posição? - Eu não acho. Talvez eu não seja. - Você não acha que lhe falta confiança? Isso não costuma ser algo bom a se dizer em uma entrevista de emprego.

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- Eu não estou aqui para mentir. Pretendo mostrar o melhor de mim. - Muito bem. Qual a sua maior qualidade? - Eu tenho muito apreço pela vida, pelo meu tempo. Isso faz com que eu queira fazer tudo com muita intensidade, foco. Faz com que eu respeite o tempo e a vida dos outros também. E eu adoro comer, entendo muito de comida, haha. Acho que essa qualidade se aplica para um emprego na área da culinária. - Ah, se aplica. E, me diz, seu pior defeito. Acho que devo saber. - Hmm... sou um tanto egoísta. Tento sempre considerar mais os outros, mas estou constantemente encontrando razões para me preferir. - Ah, gostei! Você soa bastante sincero. Isso é muito bom. - Obrigado. Isso que você está segurando é um gravador? - Ah, sim, sim. Preciso guardar esse registro, é de suma importância. - Legal, interessante. - Eu quero saber como você vê você daqui a dez anos. - Ah, nossa, se eu tiver realizado metade dos meus sonhos, vou estar muito feliz. - Me conta um sonho seu. - Eu tenho muita vontade de conhecer alguém que dê certo comigo, casar, ter um filho. - Isso é muito bom, né? Concordo. Vamos falar a respeito de algumas coisas práticas? - Sim, c-claro... É pra isso... é pra isso que tem um fogão ali? - É, tudo isso aqui é pra prática. Me diz, o que você acha do papel do fogo? - Hm... é... desculpa, acho que estou passando um pouco mal, acho que está abafado aqui, não sei.. - Nossa, o que você está sentindo? - Meu corpo... meu corpo está estranho, estou com uma moleza... ai, me desculpa por isso... - Tudo bem, enquanto isso eu posso responder. As pessoas subestimam o fogo, as pessoas pensam que ele apenas queima. - O que? Moço... acho que não consigo me mexer, chama ajuda pra mim, por favor. - Oh, as coisas que você pode fazer com o fogo. Existe um mundo inteiro dentro do fogo. Entender o fogo é entender a paixão, a obsessão. O fogo tem que tocar, invadir, ser íntimo. - O que você está fazendo? Meu Deus! - O fogo não se importa, o fogo não hesita, ele faz o que se propõe. É preciso uma vida para dominar o fogo. O mais difícil é manter a sanidade, não ser completamente seduzido pelas chamas. - Ah... Ahn... - Acho que você não pode mais falar. Mas não se assuste, é melhor que você se mantenha 37


focado. Você vai ver eu começar a serrar a tampa da cabeça, aqui, depois mais nada. O que eu quero fazer é determinar como o estado mental e o frescor sináptico afetam o sabor, sabe? Ora, a vida não é excitante? Às vezes eu paro e penso, olha as coisas que dá pra se fazer. Isso é tão bizarro. Explorar o fogo, quem diria. Nós vamos ser íntimos, nós vamos ser muito íntimos, eu e você. E esse é o fogo que vai selar a nossa comunhão.

4. A menina que não gosta de tomates. É sexta à noite. A mãe está sentada em um canto. A avenida está cheia de gente. São cheirosas e suas roupas brilhantes. Todos têm um celular. A menina está junto com a mãe, olhando os irmãos. Todos são menores que ela. Ela está com a sacola das coisas. Tem adesivos e balas agora. A mãe comanda e a menina distribui as coisas para os irmãos. Ela pega um pacote de balas pra ela e vai. As crianças se espalham pela avenida. Elas vão longe, entram nos lugares, abordam as pessoas. Oferecem balas, os adesivos ficam com as menores. As pessoas que estão com dinheiro na mão sempre compram. O melhor lugar é na saída do caixa, mas eles não deixam. A menina nota que eles sempre fazem as mesmas caras pra ela. E que essas caras eles não fazem pra eles. Ela vê de longe e gosta de imaginar como é a vida deles. Não dá muito pra saber. Ela gosta quando estão mais perto do shopping. Muitas vezes eles tiram, mas não tem problema. Lá é muito bonito. Ela aprendeu que é melhor fazer uma cara triste. Mas nos finais de semana, à noite, ela está feliz. As pessoas estão mais felizes, ela ganha mais dinheiro, é um evento. Ela que ensinou os irmãos, ela tem quatro. Mas um deles ainda não tem idade, o neném. Nessa sexta o tempo está muito feio. Ela corre pra vender mais rápido. A chuva começa. Ela precisa juntar os irmãos e comprar a comida. Ela corre. Todos voltam. Ela sai da avenida, essa parte é a mais assustadora. Ela tem que passar por uma rua escura. Ela passa correndo no meio. Pede três marmitas. Volta tudo. A chuva aperta. Eles se juntam no cantinho, está todo mundo ali. As pessoas começam a se agrupar. Elas não têm escolha. O mundo desaba. O barulho da água toma conta de tudo. A água toma conta da avenida. É tudo dela. Ninguém se arrisca. Os jovens começam a ligar para buscarem eles. Enquanto isso, todo mundo fica no cantinho da calçada. Com a chuva eles não se importam de ficar bem perto. Ela se molhou um pouco. Ela gosta da água, adora tomar banho. Mas é muito ruim tomar chuva. Ela fica com bastante frio. Teve uma vez que ficou muito doente, e foi por causa da chuva. Agora eles vão comer. Eles sentam em volta das marmitas. A mãe divide com o neném. A cada dia a menina fica melhor

em comer com os garfinhos. Ela não gosta de sujar a mão de gordura. Ela vai dividir com o irmãozinho que prefere esperar e comer sozinho depois. Ela se afasta um pouco de uma goteira 38


forte. Abre a marmita e deixa a tampa do lado. Sempre vêm umas rodelonas de tomate. Ela não gosta de tomate. Delicadamente tira todas e deixa na tampa. O irmãozinho vem e come os tomates enquanto espera. Ela nunca sabe como fazer. Quanto mais ela comer, menos ele come. Ela já fez vários testes. Não importa se ela come bem pouco, ele sempre come tudo o que sobra. Ela correu bastante, também comeria tudo. Mas está tudo bem. Aos poucos a avenida vai se esvaziando. A chuva expulsa todo mundo. É muita água. No estrondo da chuva escondem-se infinitas histórias, as águas guardam cada detalhe. Elas não lavam as ruas, elas coletam as histórias. Elas se atiram na chuva, contando para quem quiser ouvir. Mas as pessoas têm medo, elas fogem. A comida está muito boa. A menina também come bem rápido, pro irmão não esperar demais.

5. O rodízio O grupo de amigos entra sorridente no requintado restaurante que serve um maravilhoso rodízio de massas, comidas estrangeiras e sobremesas. Enquanto se acomodam e escolhem bebidas, continuam comentando sobre o espetáculo que acabaram de presenciar: - Gente, falando sério, eu estou com-ple-ta-men-te chocado com essa exibição. Não, o cara é genial! Eu já tinha ouvido falar muito bem desse François, mas superou todas as expectativas.

Achei nota dez! - Ai, eu achei um pouco berrante demais, sabe? Fiquei com muito nojo daqueles fubás escorrendo, as pessoas comendo. Gente, o que é que dá na cabeça? Ah, sim, vou querer um suco de laranja. - Gente, vocês acreditam que o facebook censurou a foto que eu postei do François? Que ódio, tava o maior sucesso aqui. Ai, olha esse meu pai, que brega, postando homenagem pro passarinho que morreu. Não é pra tanto, colega.

- É passarinho dele? - Sim. Simon. O bicho se jogou na piscina, que que ele achou? Que ia nadar e voar de volta? - Peraí, quem coloca um nome desses num passarinho? - Né? Gente, meu pai é velho. - Pizza de que? Não, não gosto. Nossa, por que sempre ficam passando esses sabores ruins primeiro? - Ah, rodízio é assim. É bom a gente já ir pedindo o que prefere. - Eu vou pedir só queijo, adoro queijo. - Ah, eu prefiro o japonês. O rodízio vai acontecendo, o papo vai e vem, e em dado momento eles prestam atenção na 39


notícia da televisão: “Foi preso nesta tarde o serial killer identificado como José Pastor da Silveira, mais conhecido como Churrasqueiro, que fez mais de trinta vítimas aqui na grande São Paulo, no período de três meses. Após uma investigação conduzida pela polícia militar auxiliada pela Abin, a agência brasileira de inteligência, José Pastor foi cercado em sua residência em Diadema. Ele responderá em reclusão por crimes que vão desde homicídio qualificado até canibalismo”. - Meu deus, gente, que horror. Isso é coisa de filme. - Fiquei sabendo que ele matava desempregados... - Ahh, gente, gente, espera, sabe quem começou a trabalhar na agência? - Quem? - A Júlia! - Ah não. Sério? Agora a coisa anda, hein? Ela falou alguma coisa? - Ainda não. Mas vamos ver, só estou de olho no que eles vão fazer. - Gente, parece que vai cair a maior chuva, vamos indo? - Ah, espera, vou pegar só mais um sorvete. - Nossa, eu já tô cheio, não aguento mais nada, vou passar mal. - Eu também, nossa. Assim, o grupo de amigos foi encerrando o agitado jantar. Foram chamar um táxi na avenida, mas a chuva não esperou. Tiveram que esperar o táxi encolhidos no canto da calçada. - Meu deus, o céu tá desabando. - Ah, eu não acredito que eu molhei esse sapato, é tipo a segunda vez que tô usando. Um deles vê uma menina sentada na calçada comendo e tirando os tomates. Ele comenta discretamente. - Ai, pensa, a menina tá separando o tomate. Dá uma dó né, mas sei lá, se eu morasse na rua eu não ia me dar ao luxo de não gostar de tomate não. - Nossa, nem fala. Deve ser horrível. - Pelo menos eles estão comendo, né? Imagina o que é passar fome. - É a pior coisa. Semana passada acordei atrasado e não comi nada, eu tinha tanta coisa pra fazer, quando eu vi já tava super estressado, com a barriga doendo, eu imagino o que as pessoas passam. - É foda. - Ai, chegou, vamos, corre, corre...

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Então voltamos ao entretido indivíduo, que agora raciocina intensamente na tentativa de descobrir o tema das histórias.

- Hohoho, quantas emoções, é sempre uma coisa muito intensa, muito explosiva, assistir humanos. Vejam só, estou na ponta da poltrona, hihi. Mas e agora, sobre o que eram as histórias? Eu não sou muito bom nessas coisas, admito. Hmmm... Muito difícil, será que vocês sabem? Daqui a pouco a resposta aparece, então temos que pensar rápido. Mas aiai, eu me envolvo tanto que sempre esqueço de notar as semelhanças, nem comi meus aperitivos, olha que bobagem, hoho. Hmm... Pensando bem, acho que é isso! Acho que finalmente vou conseguir acertar, o tema é comida! Vocês pensaram em comida também? É óbvio agora! As pessoas podiam comer as obras do artista, o pássaro saiu para comer os bichinhos da grama, o assassino comia as vítimas, a menina comeu sua marmita e os amigos foram para um rodízio! Perfeito! Adorei, tem gente falando de comida e comendo em todas as histórias. Ah, vamos lá, vão explicar.

A tela volta a se animar:

Para você que pensou que a temática eram os cinco elementos, você acertou! A primeira história nos mostra a presença e qualidades do ar, a segunda é sobre a terra, a terceira sobre o fogo, a quarta sobre a água, e a quinta é a quinta ponta do pentagrama, a mente, que soma e domina os outros quatro elementos e com eles interpreta a realidade em que ela se insere, sendo única em sua capacidade múltipla de se transformar e experimentar com subjetividade a dinâmica da existência. O mundo dos humanos é bem exótico e é sempre interessante observar o que eles fazem com suas mentes nas condições em que vivem. Até a próxima!

Então a transmissão se acaba.

- Hohohohoho, mas quem diria. Que pegadinha! Mas adorei, achei bastante instrutivo. Que bobo eu, comida está em todas as partes, tudo é comida, eu deveria saber, hihihihi. Como sempre, me diverti muito esta noite, espero que vocês também, e conto com vocês na próxima, pessoal! Tchau tchau! Hihihi.

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Carta de um amigo

- Wild Child

21 de fevereiro de 1897

Olá! Durante os dias desta semana voltei a pensar a respeito daquela conversa que tivemos, na última vez em que estivemos juntos. Em particular, concentrei meus esforços a tratar de sua confissão que muito me intrigou; você me disse que vivia uma instabilidade irritante (não sei o quanto se lembra), em alguns dias acordava com o espírito cheio de ímpeto por viver o potencial das relações humanas, disposta a lançar-se aos círculos sociais e preencher

o seu tempo e sua atenção com as incríveis complexidades das outras pessoas (eu me encanto com suas descrições); porém, em outros dias, desde o início, sentia aversão do contato social, deprimida com a superficialidade daquelas mesmas pessoas! Como se não valesse o tempo, terminava no mesmo estado que começava aquelas interações, sem quaisquer acréscimos.

Acontece que vivi aqui, nestes últimos meses, algumas coisas que podem se remeter a isso que você descreveu; sempre tendo suas ideias em mente, nestes últimos dias construí uma síntese que, conto com sua disposição, tentarei descrever nesta carta (e espero ansiosamente por seus comentários a respeito). Contarei um pouco do que vivi aqui para depois servir como exemplo para as minhas “considerações filosóficas”. Como ainda me considero relativamente novo nesta cidade, preocupo-me com minha adequação social e ainda anseio por conhecer o que há de diferente por aqui, então, como verá, às vezes irá estranhar a propensão à vida social que nunca tive. Fiz dois amigos no trabalho, todos os dias saímos para almoçar juntos e assim eles acabam me mostrando diferentes lugares na cidade (a comida daqui é muito boa, conto com o dia em que virá conhecer). Quando estamos os três juntos, todas as vezes (presto minha atenção a isso) conversamos sobre banalidades, piadas, notícias triviais, apostas, não sai disso.

Mas um deles também gosta de um bom cigarro e com frequência nos encontramos para rápidas conversas em pequenos intervalos ao longo do dia. Na janela do prédio, observando o movimento, é comum que conversemos sobre assuntos mais íntimos, mesmo que por pouco tempo. Refletimos sobre as rotinas da vida enquanto vemos carruagens e pedestres apressados; confessamos medos e sonhos olhando para o horizonte, geralmente no fim do dia. Sinto que conheço ele muito mais, e aquelas conversas me mudam. Curiosamente, este 42


amigo viajou por uma semana, e então passei a almoçar somente com o outro deles. Ele começou a me contar sobre sua família, seu passado, e disso me senti na liberdade de inquirir mais a respeito de quem ele é, do cotidiano que o envolveu até então, etc. Também o conheci muito, mudei impressões a respeito dele (eu o via como uma figura engraçada, uma espécie de personagem que possui somente aquela dimensão de sua performance). Quando meu outro amigo voltou, em um de nossos intervalos complementou fatos a respeito do passado de nosso amigo engraçado, fatos muito tristes que o deixaram ainda mais vivo em minha mente. Mas quer dizer que ele também conhecia um pouco de sua história.

Lá no apartamento, estou agora dividindo com outro rapaz (aquele que eu mencionava em cartas anteriores se mudou da cidade). É um verdadeiro camarada, praticamente todas as noites sai em virtude de suas agendas políticas e sociais; ele e seus amigos, de brincadeira, inventaram um termo para seus encontros noturnos: rolês! (acredito que tenha alguma coisa a ver com os bondes, não lembro). Você já deve ter percebido aonde quero chegar agora, e é isso, tenho ido aos rolês dos camaradas. E já adianto que passei por diversas experiências novas, eles fumam e bebem algumas coisas diferentes, que mexem um tanto com a mente (quero conversar melhor sobre isso depois, pessoalmente). Continuando, no começo eu gostei muito dos rolês, cada vez era na casa de uma pessoa, um mais excêntrico que o outro, e as conversas eram novas para mim, pensei muito a respeito de política e da sociedade, todo o cenário era um mundo novo. Meu amigo camarada vivia me emprestando livros, que eu lia com bastante interesse. Ali, conheci muitas pessoas diferentes e me enchi de empolgação e curiosidade, comecei a me relacionar com aquelas pessoas com variados graus de interesse, mas queria conhecer mais a respeito de todos eles.

Mas, com o tempo, todo aquele ímpeto foi dando lugar a uma inquietação, uma ansiedade ruim, pois cada vez mais parecia que os rolês eram congelados no tempo. Os relacionamentos não pareciam se desenvolver; a cada pista que havia em direção a uma intimidade crescente, eu me pegava seguindo uma ilusão. Chegou um momento em que as conversas não eram mais novidade para mim e eu queria seguir em frente, desenvolver mais aquelas ideias, mas eles não pareciam se importar. Todos ficavam sentados em uma roda jogando conversas repetidas, afirmando as mesmas coisas ou reclamando das mesmas coisas, muitas vezes também se moviam pela motivação de serem engraçados. E era só isso. Novamente, quando estávamos em casa, eu e o camarada somente, conversávamos com 43


grande fervor; eu o questionei a respeito dos rolês e a discussão avançou muito bem, ele confessou vários desapontamentos em relação à sociedade, e acontece que sua visão é um tanto mais pessimista que a nossa. Ele é basicamente conformado de que as pessoas não são muito complexas e não chega a esperar muito delas, suas energias se focam nas causas políticas e ele sente que precisa dos rolês para viabilizar suas atividades. E faz muito sentido para ele possuir essa postura, dados alguns tipos de experiências que ele sistematicamente vive em sua vida. Fiquei fascinado com todos estes fatos, não posso negar.

Com tempo, tendo mais liberdade de ação nos rolês, passei a experimentar alguns cenários com meus amigos dali. Veja, os rolês são bastante voltados à interação de grupo, não há espaço para interações individuais, todos sempre estão juntos em rodas que no máximo se quebram em discussões paralelas de no mínimo quatro pessoas e ninguém chama alguém para conversar em particular. Mas descobri que uma amiga de lá faz um trajeto para o trabalho que tem muito em comum com o meu e sugeri que um dia voltássemos andando por este trajeto, para aproveitarmos a coincidência. Fiquei particularmente animado com essa oportunidade, pois aquela amiga, nos rolês, não parecia muito interessante, ela nunca falava algo diferente, parecia estar apenas ali vivendo. Então aconteceu de conversarmos bastante, somente nós dois, enquanto andávamos pelas ruas da cidade. E foi maravilhoso! Conversamos sobre muitas coisas e ela me disse que não se sente muito à vontade para falar sobre suas ideias nos rolês (alguns dos motivos dela também são uma conversa à parte que ainda quero abordar com você em outra oportunidade); ela também levou minha atenção a um outro aspecto curioso; muitas vezes quando tentamos introduzir uma discussão nos rolês, perdemos o controle do que as pessoas fazem com ela. De repente, várias pessoas querem responder ao que foi dito ou cortar com outras coisas e, quando você vê, já não há mais como recuperar a intenção inicial. Eu ri muito no dia em que finalmente pude verificar isso com meus próprios olhos, já tendo essa consciência, e veja, do outro lado da roda a moça cruzou o olhar com o meu e rimos juntos, ela estava vendo o que acontecia ali.

Durante todo esse tempo, tive algumas interações menores individualmente com outras pessoas, e posso dizer que no geral elas não iniciam interações que levam a mais intimidade, não tão rápido, pelo menos; creio que os motivos podem variar muito, pode ser insegurança, falta de interesse, ou pela ideia não ocorrer assim, etc. Muita gente não parece investir a originalidade nesse aspecto, também. Mas vejo que as pessoas, quando sozinhas com você, 44


são muito receptivas a este tipo de interação mais substancial. É aqui que começo a delinear melhor as ideias que venho tendo (espero que tenha gostado de saber das minhas aventuras sociais). Lembro de já termos conversado uma vez sobre como as pessoas se simplificam quando estão em turba, quando agem dentro de algum grupo que as representa. Acredito que o grupo tenha várias características coletivas que dissolvem a individualidade, por exemplo, nos rolês eles possuem algumas expressões internas que as pessoas dizem muito, mas nunca faz diferença quem as diz; na prática, a pessoa não está expressando opinião alguma, todos do grupo sabem que todos irão pensar assim mesmo. Ainda assim, todos as dizem muito, e quando converso por certo tempo com alguém, algum assunto que distancia daqueles típicos de lá, digamos, quando converso com meu camarada a respeito de questões do apartamento, ele não usa as expressões que tanto usa nos rolês. Ou seja, as pessoas vestem aquela identidade coletiva, em detrimento de suas próprias particularidades.

Pense no fenômeno observado pela minha amiga do rolê, toda vez que tentamos desviar a direção do grupo, o próprio grupo possui uma forma de restaurar seu equilíbrio e dissolver o desvio, o assunto que vai fugir do comum. Pense também nos meus almoços com os dois amigos do trabalho, somos somente três no grupo e, ainda assim, há uma grande dificuldade de engajarmos em conversas diferentes, parece que não há como achar o ponto de conforto cruzado entre nós três. Explicitar isso é muito estranho, uma vez tentei começar a falar a respeito, mas logo o assunto virou piada, fiquei até um pouco constrangido. Mas não quero me demorar falando de grupos, você deve viver bem todos estes fenômenos também. Mas quero explicitar o máximo que puder o grande encanto que é conversar com alguém, individualmente. Para começar, você com alguém é uma atividade diferente de você no grupo; o grupo é maior que a soma das partes, você está ali vivendo suas rotinas e responde ao grupo, que não é alguém. Todos estão diante do grupo e as atenções formam um espectro borrado, com diversos processos acontecendo (isso é outro fenômeno que me escapou de comentar, nos rolês existem desavenças entre algumas pessoas que frequentam, acho que é bem comum que ocorra em grandes grupos; de qualquer forma, aqueles processos estão na roda enquanto estamos ali, e as ações de todos vão refletir os processos que lhes competem, entende?).

Quando estamos sozinhos com alguém, estamos ali para aquela pessoa, conversando somente com ela, e não existem processos que não envolvem ambos! Esse cenário gera todo 45


um espaço mental e comportamental que pertence apenas aos dois envolvidos, e tudo pode ser feito com naturalidade (volto ao exemplo dos meus almoços; de certa forma fiquei mais próximo do meu amigo que fuma comigo, e existem alguns assuntos que são nossos simplesmente porque o outro amigo não participa de algumas coisas; quando estamos os três, é até indelicado falar a respeito destes assuntos, pois ele fica de fora; e também alguns assuntos que meu amigo se sente constrangido em falar na presença dele). Todas essas experiências sugerem muito que o avanço na qualidade de relacionamento com alguém se dá pelo contato individual com essa pessoa; claro que é possível avançar em um grupo, mas para isso o grupo deve estar em uma configuração bem específica. Dois a dois sempre pode dar certo! Mesmo que as pessoas às vezes possam ser inconvenientes, ou estar fora de sintonia com você, basta a sua vontade para gerar um espaço de contato interessante. Agora me lembrei de uma cena engraçada, eu estava à espera do bonde, sentado ao lado de duas pessoas, um homem bem idoso e um jovem. O homem não se cansava de comentar assuntos triviais, e era difícil entender sua fala, enquanto o jovem apenas acenava com a cabeça e murmurava impacientemente (eles não se conheciam). A conversa era um desastre, e eu senti pena do homem. Quando o bonde chegou, o jovem se apressou em subir e eu vi que o homem estava apenas ali sentado. Então deixei que partisse e resolvi esperar o próximo enquanto eu mesmo conversava com o homem. Ele tinha a intenção de comentar coisas realmente desinteressantes, mas fui conduzindo a conversa, e logo ríamos com ele me contando algumas de suas aventuras de juventude; foi tão agradável que me surpreendi com o bonde passando novamente. Veja, agora existe um espaço na minha mente com bons fragmentos de quem aquele homem é.

Tome agora aquele momento agradável em que eu e minha amiga rimos juntos através da roda; aquilo foi a própria expressão do nosso espaço, que expandimos ao nos conhecermos melhor. Estávamos em contato um com o outro, e acho que um dos grandes objetivos que temos em nossas vidas sociais é esse. O objetivo do grupo é nos colocar em possibilidade de contato, servir de material para interações e ajudar a firmar nossas identidades; mas ele falha em de fato produzir essas interações que tanto ansiamos. O objetivo final das interações sociais é a construção deste espaço íntimo com as outras pessoas, que deve começar dois a dois (agora também digo, a começar pela semana que meu amigo viajou, nossos almoços estão adquirindo aos poucos um caráter um pouco mais substancial; falta apenas o terceiro pilar, que é uma maior intimidade entre os dois, ainda apesar de se conhecerem a mais tempo). 46


O que vejo que acontece muito aí, nos círculos novos de amizades, em que você se encontra atualmente, é que as pessoas estão exagerando nas convivências de grupos, sem expandir o contato individual. É uma situação um tanto oca. Aí ainda vejo outro problema; como muitos são vizinhos e estão sempre tendo contato, mas sempre cada um fazendo seus afazeres, estão constantemente trocando algumas palavras rápidas e vazias. Não parece existir a atividade de se estar com a mente presente no outro, como normalmente é quando nos movemos para interagir. No geral, isso dá a sensação de que vocês estão próximos, mas na verdade estão construindo um simulacro de proximidade. Conectando com as sensações que você descreveu, imagino que você tenha muita vontade de estar em um contato mais verdadeiro com os amigos daí, mas não há brechas para tal, e você só se frustra, perdendo tempo com relações, como os rolês daqui, que não avançam em nada. Creio que este desespero instável segue essa rotina; você se enche de ímpeto, tenta viver um contato real, vai participar dos eventos sociais, não consegue extrair contato, todos parecem satisfeitos com como é (isso não sei bem porque, também, mas suponho que muitos achem que seja só isso mesmo; tenho pensado ultimamente que eu mesmo trouxe dimensões novas para esses amigos que conheci melhor), então você sente que apenas perdeu seu tempo e tem muito mais que pode fazer sozinha, daí perdendo seu ímpeto.

Sugiro que você vá com a consciência de que o grupo é um vetor da verdadeira realização social, e não um fim em si, na maioria das vezes; e tome cuidado com essa falsa sensação de intimidade que a banalização do contato acaba causando. Ou então que ache uma forma de vir pra cá, o que é uma alternativa que eu prefiro! Sinto muitas saudades de você, sabe, nosso espaço é muito grande e confortável, e anda sempre fechado desde que saí. Espero que você esteja bem.

Com carinho, eu!

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FILHOS - Wild Child *Esta peça foi escrita para apresentação na categoria de cenas curtas do festival Águas de Março, de Franca-SP.

Personagens: Carlos Alberto, O Evangélico, A Cientista, A Mãe, O Obcecado.

É dia, um homem está em uma praça movimentada, sentado em um banco. Ele se apresenta para o público.

C. A.: Bom dia, meu nome é Carlos Alberto, e eu gosto muito de conversar com as pessoas. Sempre que encontro um dilema para pensar, venho aqui nessa praça ouvir histórias. Tenho me perguntado ultimamente se valeria ou não à pena ser pai. Ter um filho, na prática, não é tido como uma escolha. É algo que acontece, ou que alguém naturalmente planeja, não é bem uma das inúmeras opções da vida, como aprender a tocar um instrumento. E é estranho, por que é algo que determina radicalmente quem somos.

Neste momento, passa diante do banco um homem apressado, de postura rígida, vestido com terno e com uma bíblia sob o braço. Carlos Alberto o aborda com um gesto.

C. A.: Amigo, bom dia, posso saber o que você pensa a respeito de ter filhos?

EVANGÉLICO: (O homem se senta antes de começar e folheia a bíblia enquanto a cita) Veja bem, “os filhos são a herança do Senhor”, está no Salmo cento e vinte e sete. Tudo que você conquista na sua vida, o fruto do seu trabalho e a sua sabedoria serão transmitidos e perpetuados na Terra através dos seus filhos e os filhos serão bênçãos para os pais, dadas por Deus. E é por isso que a educação do filho é de suma importância.

C. A.: Mas existem outras formas de herança, você não acha? De impactar o mundo com o conhecimento. 48


EVANGÉLICO: Veja bem, Deus disse em Gênesis, capítulo um, versículo vinte e oito: “sejam férteis e multipliquem-se. Encham e subjuguem a Terra. Dominem os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela Terra”. A família é um desígnio central do plano de Deus para o Homem. Devemos espalhar a bondade e o evangelho de todas as formas, sim, mas os filhos são o fruto do casamento, da união divina, e o que é naturalmente esperado para a edificação da família nessa Terra. (Ele se levanta, indicando que precisa ir)

C. A.: Obrigado!

Vem passando uma moça apressada, Carlos Alberto tenta abordá-la, mas ela se desvia e vai embora. Em seguida uma mulher usando óculos de grau se aproxima com passos lentos, escrevendo em um caderninho. Carlos Alberto a aborda e ele se senta.

C.A.: Olá, bom dia, posso saber o que você pensa a respeito de ter filhos?

CIENTISTA: Essa é uma questão interessante. Colocando em perspectiva nossa história evolutiva, vemos que há pouquíssimo tempo os seres humanos adquiriram a capacidade e o interesse de entender isso como uma escolha, entende? Ter filhos é o mandamento máximo da continuidade genética dos animais. Nossa recente capacidade de consciência nos permitiu questionar sua importância e a ainda mais recente capacidade tecnológica nos permitiu dominar o prazer com métodos contraceptivos, entende?

C. A.: Sim, é um ótimo ponto a considerar. Você tem filhos?

CIENTISTA: Tenho apenas um, não planejo ter mais. Vejo que, apesar do comprometimento, ser mãe faz parte dos grandes prazeres da vida. Não vejo problemas em seguir a doutrina dos genes, desde que possamos enxergar a questão de forma mais consciente. Quero acreditar que no futuro um número cada vez maior de crianças nasça de forma planejada, entende?

Devemos implementar em nossas ações os poderes do conhecimento e ter cada vez mais controle sobre nossas vidas. Certo? 49


C. A.: Certo, muito obrigado pela conversa.

Os dois se despedem. As luzes se apagam, agora ocorre um intervalo. Começa um anúncio, uma música instrumental suave começa a tocar. As luzes se acendem e há apenas um homem no palco, ele olha para a plateia enquanto a música toca com a voz de um narrador.

NARRADOR: Então é isso, decidi que vou me matar hoje, daqui a três horas, ao meio dia em ponto.

A música continua, as luzes se apagam. Elas acendem, o homem está varrendo o chão. Elas se apagam. Se acendem, o homem está fazendo bolhas de sabão. Elas se apagam. Se acendem, o homem está molhando uma manga em um copo de leite e comendo. Elas se apagam. Se acendem, há apenas um caixão, com o homem dentro. Neste momento, a voz do narrador ressurge.

NARRADOR: Caixões Vapt Vupt. Na medida, até para as mortes mais planejadas.

As luzes se apagam. Quando voltam a se acender, Carlos Alberto está de volta no banco. Vem passando uma mulher grávida, empurrando um carrinho de bebê. Ele a aborda, ela logo senta no banco, com certa dificuldade.

C. A.: Olá, bom dia, posso saber o que você pensa a respeito de ter filhos?

MÃE: (Enquanto fala, balança o carrinho devagar. Ela conversa com bastante alegria) Ah, haha. Esse vai ser o meu quarto. O meu primeiro filho não foi esperado, aconteceu haha. Foi muito difícil, mas foi a melhor coisa que já me aconteceu. Assim... Eu vivo por eles, dá trabalho mas é muito bom.

C. A.: Que ótimo! E... Desculpa a pergunta, mas alguma vez você pensou que a gravidez foi um erro?

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MÃE: Tudo bem. Assim... Abortar, nunca. Até cheguei a pensar em dar, sabe? Mas no fim isso parecia absurdo. Depois disso, com os outros também, nunca, aí eu já sabia, era só festa, mesmo a condição não sendo fácil. A gente sempre vai levando. Essa aqui nem quis esperar muito, porque eu queria uma menina, tentei e já tentei de novo, agora deu certo haha. Pensa bem, vai ter três irmãos mais velhos. E você, é pai?

C. A.: Eu? Não, ainda não, estou pensando.

MÃE: Logo, logo, né? Haha. Mas assim... Os filhos são a maior alegria, se tornam nossa vida, como se diz, você mata e morre por eles. E depois de grandes, eles cuidam da gente, nos orgulham bastante, né? E é o ciclo da vida, a família é tudo que a gente tem...

C. A.: Muito bom, muito obrigado pelo papo.

Eles se despedem e ela vai embora. Nesse momento, já tem um rapaz parado a certa distância, olhando fixamente pra plateia. Ele está com o cabelo desarrumado e carrega uma sacola de mercado. Carlos Alberto o chama, e ele também se senta.

C.A.: Bom dia, posso saber o que você pensa a respeito de ter filhos?

OBCECADO: (Ele fala tudo com muita intensidade e rápido) Não faz sentido nenhum! Nós todos vamos morrer, e então acabou. Temos o dever de tentar gostar da vida, de aproveitar o tanto que der, cada momento.

C. A.: Mas espera, ter filho não é aproveitar?

OBCECADO: O que? Não! É caríssimo, e ganhar dinheiro dói, cada centavo dói, e é tempo no ralo, me diz que não. É como ir a uma festa que nunca mais vai acabar. Parece uma boa ideia, mas o resto da sua vida vai ser lá. Você não vai chegar em casa pra tirar os sapatos.

C. A.: Mas as pessoas mostram o contrário, agora mesmo eu conversei com uma mãe super...

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OBCECADO: Ter filho te muda! É biológico! Você se torna alguém feito pra gostar disso, se torna estranho, pais são sempre estranhos, alguma coisa desliga (Aponta para a própria cabeça). E é uma fonte inesgotável de preocupação, o filho vai sofrer, todo mundo sofre, e você sempre vai sofrer com ele.

C. A.: Você não tem medo de envelhecer sozinho?

OBCECADO: Não, os pais só têm os filhos por causa dos filhos. E o que os filhos vão ser? Não dá pra ter controle, eles são engolidos pelo mundo, as chances são as de te jogarem em um canto, brigarem pelo seu dinheiro, te matarem!

C. A.: Essa é uma opinião bem forte, o que você pensa do futuro?

OBCECADO: Pra que se importar? Você vai estar aqui? E isso não é egoísmo, é consideração. Olha a merda que é viver nesse universo obscuro, o constrangimento que é ser humano, frágil, carente, finito! É tanta criança que já sofre, por que não existe instinto pra adotar uma delas? Por mim, a gente aproveita o que pode, ao máximo, aí a gente some de vez. Melhor que viver sofrendo por um filho que viverá sofrendo pelo filho dele, que viverá sofrendo pelo filho dele... (Ele sai repetindo isso indefinidamente, com cada vez mais ênfase)

C. A.: Bom... É muita coisa pra processar. É interessante pensar em como as histórias são diferentes, vai ser difícil chegar a uma conclusão. A vida é tão complexa, respostas são tão raras, acredito que vale a pena acostumar-se com o desconforto, com a dúvida, e, mesmo errando, o importante é prestar atenção nas histórias e aprender com elas. Quanto à questão de hoje, não sei se vou ter ou não filhos, acho que vai depender do momento... Mas sempre que a hora chegar, quero me lembrar das histórias e me sentir preparado para escolher. Obrigado por compartilharem esse momento comigo, até a próxima.

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Vamos saltar juntos -Melancolírico Chegou enfim o casal, de mãos dadas, ao patamar mais elevado daquele grande pico, que era visto pequeno da cidade onde moravam, a uns cinco quilômetros dali. Olharam um para o outro, sorriram, e não disseram nada na próxima meia hora. Mas apenas vislumbraram aquele último lindo pôr do sol de inverno de suas vidas.

Quanto mais o sol adentrava o horizonte, maior era a vontade que ambos sentiam de retomar as angústias e causas daquela decisão que haviam tomado juntos. Fazia frio. Haviam se casado há dez anos, eram muito íntimos ainda, e se amavam. Ele sentiu um impulso em perguntar alguma coisa, mas um simples olhar dela captou a aflição do homem, o que o fez calar-se e não se importar com uma resposta.

Ela estava com câncer. Seu corpo já não pertencia a si, mas à doença. Os médicos haviam feito o possível e pensado sobre todas as possibilidades de salvá-la. Porém, três dias atrás, explicaram à ela que não havia mais nada a ser feito. Que depois de seis meses lutando, teria apenas mais uns dois meses de vida e que deveria pensar agora em se acertar com todos seus amigos e familiares. Ela não tinha amigos nem família, só tinha a ele. E também por isso ela decidira se matar, encurtar seu sofrimento e o dele pela espera do final de sua vida que já seria tão curta.

Ele, marido tão afável, ao saber que sua esposa morreria em pouquíssimo tempo, não sentia que sua vida tivesse algum significado ainda. Porque ele não tinha também amigos nem família, perdera os pais quando criança e fora criado por parentes que agora estavam afastados. E era estéril.

Esse era um maior motivo para que ele quisesse partir e morrer junto dela. Se pudessem e tivessem tido um filho juntos, ele nunca tomaria tal decisão, pois existiria um ser fruto do amor que eles cultivaram por tantos anos, uma criança que o faria sempre se lembrar dela, sua esposa. Mas estavam agora no ponto mais alto daquele pico, o sol já havia sido engolido pelo horizonte, estava escuro e mais frio, e chegara então o momento de realizarem o que haviam decidido.


Chegaram a borda do pico e hesitaram por um instante, por medo. Ventava muito. Um vento que parecia querer convencê-los a voltar atrás, a desistir daquela decisão tão mórbida. Ela então começou a convencê-lo que pulasse primeiro, pois isso iria motivá-la a não desistir de pular também, e que este ato seria a maior prova de amor dele à ela. Ele queria que ela pulasse junto a ele, mas não pensou duas vezes e fez a vontade dela. Deu um último abraço e beijo em sua esposa, entregou-lhe sua aliança, com o nome dela inscrito, e pediu que instantes depois ela

devolvesse a ele, quando se jogasse também. E saltou para a morte. Sozinho.

Ela observou enquanto seu marido desaparecia, até quando não mais conseguiu vê-lo. Foi acometida por calafrios, tremia muito, caiu de joelhos e começou a chorar durante uma hora sem parar. Depois disso, levantou-se, enfim, e se aproximou da beirada do pico outra vez, de onde seu marido havia segundos antes se atirado. Já não chorava mais, e estava calma. Parecia um ser morto, sem vida. Atirou a aliança ao nada. Já era noite, gelada e de lua cheia. Virou-se

vagarosamente, cabisbaixa, e decidiu voltar para casa. Sozinha.


A Criação de Adão

-Bromélia

Seu último sexo, havia quisto ela, não pela rua escolhida, pela péssima companhia, muito menos pela, ainda não sabida, péssima transa, mas pela insistência de seu hábito diário de olhar mãos, punhos, os formatos dos dedos e suas articulações, e imaginar como cada um desses instrumentos disfarçados de corpo se moveriam dentro dela.

Analisava os inocentes gestos vindo das mãos de estranhos, que gesticulavam naquele café em mesas vizinhas a sua, e notava que eles se moviam de forma mais imperial do que as de qualquer Toscanini. Seu pensamento foi interrompido pela vista de sua provável campainha. Ele chegava como quem sabia seus pensamentos preliminares, a cumprimentava e sentava-se ao seu lado com um sincronizado movimento de levantar o punho com o indicador suavemente esguio.

-Garçom!

A noite se movia frente à indiferença à conversa falada, já que, se não deles, era do conhecimento dela que ao término daquela noite estariam, ambos, em formas intensamente mais primitivas. Ela estimava os acréscimos no ponteiro das horas pelo, cada vez menor, nível da garrafa de vinho e se perguntava quando seria findada aquela interminável monotonia de conversa respeitosa entre duas pessoas civilizadas.

As horas foram passivas ao aparecimento de uma intensidade não habitual de repulsa e tesão pelo desconhecido. O olhar vago, a mão delicada, o estilo piedoso de beijar, a voz condolente, os ombros arqueados para frente não muito seguros, a vivência liberal, tudo nele lhe despertara era um horror na volúpia, uma espécie de asco somada a sua vontade arisca em se degradar.

Aparecia outra vez o garçom e, mais uma vez de maneira passiva, lhe ajudou nos seus anseios. Trazia a conta com um ar leve do sábado de trabalho já findo e da garantia do descanso no domingo, sentimento que possuiu ela de maneira similar. Ela e seu acompanhante entornaram o resto do vinho que lhes restavam nos copos e saíram caminhando um ao lado do outro, com aquela atmosfera mais forte de uma conversa pré-coito. Sorriu consigo mesma, satisfeita com o reconhecimento de, pelo menos, um momento real durante aquela noite.


Ela chegava próximo ao carro de seu estranho amigo em linhas não muito retas, graças a quantidade suficiente de álcool ingerida, quando recebeu o convite clichê de rondar terras mais serenas.

O acompanhou e, como se estivesse insatisfeita ao se sentar no banco do passageiro, sem esperar que ele passasse o cinto, sentou-se sobre ele, com as pernas cruzadas uma sobre a outra, mas suavemente abertas, em sentido perpendicular ao dele, mantendo as pernas atravessadas

sobre o freio de mão e os pés sobre o banco onde deveria estar sentada. Finalmente pode sentir as examinadas mãos deslizarem pela parte inferior das suas costas, por dentro da camisa de decote canoa, com uma doçura, e arriscava dizer até com ares de respeito, os quais foram se perdendo no meio das respirações mais ofegantes. O sutiã de renda azul marinho parecia apontar o caminho a ser seguido por tal mão, que foi lentamente obedecendo esse percurso, e com um ar de desenhista iniciante que usa papel vegetal para traçar suas linhas, desenhou uma cópia, risco a risco, dos mamilos dela com o seu indicador e coloriu com a língua.

-Você vai nos permitir ir para algum lugar mais tranquilo? Motel quem sabe, ou na rua mesmo?

- Ele completava a frase com risos, ela pensava com seriedade só na opção mais rápida.

As horas passadas naquele carro, naquela rua, com aquela companhia se resumem a apenas algumas cenas, sons e toques, seja pelos esquecimentos que o álcool lhe propôs ou pelos esquecimentos que ela preferiu se propor. Mãos sobre uma cabeça. Um oral bem mais que razoável. A vista do vidro traseiro embaçado. Uma mão puxando os cabelos da nuca. Duas pélvis se encaixando. O brinco perdido.

Houve, no entanto, pra ela, a marca daquela noite. Vendo o seu parceiro ainda em razoável disparate de altura com relação a ela mesmo, ouviu a frase falada com aquela terna, aguda e educada voz, que foi a causa do ápice da repulsa que já sentira:

- Sua boca é maravilhosa!

Chegou em casa, fechou a porta e foi deixando para trás suas roupa que marcaram o caminho da porta até o chuveiro. A água, que escorria sobre o seu corpo e descia com as marcas que as mãos e a saliva puderam lhe causar, não limpavam o excremento que ela sentia sob sua pele e


que impregnava seus poros. Sentia como se sua única forma de respiração fosse cutânea. Havia morrido um pouco naquela noite. E aquela frase, que ecoava com aquele tom de voz e com aquela doçura, fazia com que ela fosse morrendo um pouco mais naquele banho. Contraditoriamente, ela tinha consciência que esse processo de falecimento seria perpétuo, e já pensava sobre sua próxima parcela de sopro. Em seus pensamentos ainda imaginava a orquestra que o homem que se sentava na mesa ao lado poderia conduzir.


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