O círculo vol 8

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Índice

ÍNDICE

03. O Mundo das Frutas: Capítulo III (Wild Child) 24. O método científico: Capítulo VII – O maníaco do Laser Verde (W. N. Centauro) 31. Introdução e Manifesto ao Ponderamento (Sr. Y)

34. Senado à brasileira (Alguém) 37. Weltschmerz (Wild Child) 42. Balanço (Melancolírico) 46. A síntese de plano (Wild Child)

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´ Mundo das frutas – capitulo iII - Wild Child III. Nadília O silêncio se fez no auditório lotado, depois de extensos aplausos, quando a palestrante encarou os colegas com confiança e estava prestes a começar sua fala. Os maiores cientistas da metrópole estavam ansiosos pela palestra de abertura da conferência sobre as novas perspectivas da ciência, um evento realizado a cada dez períodos, destinado à apresentação e discussão de temas vanguardistas das ciências. A maracujá Nadília, cientista da natureza, abrindo com o tema ‘A escuridão além da

fronteira’, era a integrante mais aguardada pelos mais jovens, interessados na emergente disciplina da exploração externa. Apresentando o seu característico aspecto, a jovem cientista começou o seu discurso em tom animado:

- Bom dia, queridos amigos, agradeço imensamente a oportunidade de dar início a esta excitante conferência e assim poder mostrar a vocês os resultados e desafios dos trabalhos do meu grupo. Estou muito feliz de estar aqui e espero conseguir despertar em alguns de vocês uma motivação a mais pelo estudo de temas que se

encontram além da nossa própria sociedade, que acredito não estarem assim tão distantes de nós. Principalmente considerando os rumos recentemente tomados pela perspectiva científica. Devo ressaltar, antes de abordar o que preparei para falar, que não podemos ignorar aqui o que aconteceu há dois dias, no festival da passagem, e nos forçou a abrir os olhos para uma pressão latente das Drosophilas, que está começando a mostrar seus efeitos. Eu lamento muitíssimo a tragédia ocorrida ao reverendo Lidoff, sei que alguns de vocês aqui presentes são seus amigos pessoais. Com isso, vou tentar improvisar na minha apresentação uma abordagem mais enfática dos nossos resultados acerca das Drosophilas. Acredito que o espírito que nos reúne neste evento é a preocupação em delinear os próximos caminhos da prática científica e, sendo a ciência a nossa ferramenta de busca por maiores elucidação e conforto, uma vez inseridos nesta realidade e nessa sociedade, devemos elaborar e tomar uma postura de ação que aborde aspectos considerados intocáveis, uma vez que temos consciência da existência de inúmeros perigos e também recursos ocultos no desconhecido. 3


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Ela fez uma pausa e olhou rapidamente para a plateia. Sentiu uma pequena ansiedade apresentando-se ao seu corpo por meio de calafrios, pelo medo de ter sido ousada ao ser tão franca em sua introdução. Recobrando a postura, iniciou o conteúdo de sua apresentação:

- Muito bem. Vou começar apresentando um panorama geral sobre o que sabemos da formação geográfica e outros aspectos da nossa terra. A metrópole ocupa a região central de um terreno plano aproximadamente circular que, sabemos, se eleva levemente até a borda, formando uma espécie de calota que serve de base para o paredão rochoso que a circula completamente. O paredão se eleva a uma mesma altura em todos os pontos, uma altura de mais ou menos cinco mil uvos. - O uvo era uma antiga medida de distância que se originou baseando-se no tamanho

característico das uvas puras, antes de começarem sua transformação. Nos tempos modernos, o uvo passou por um processo de padronização em um projeto que tornava mais precisos os sistemas de medida. - A metrópole se estende por um raio aproximado de dez mil e duzentos uvos. Fora da fronteira da metrópole, por todos os lados há uma densa floresta, com extensão de mais uns vinte mil uvos desde os muros da metrópole até o início das rochas; uma floresta riquíssima, contendo diversas plantas com propriedades que não conhecemos e abrigando todo um ecossistema a ser explorado. No meio da floresta, temos conhecimento da existência

de tribos de silvestres, chamados de morangos, que vivem sem se incomodar com os altos muros da metrópole circulando as bordas da floresta, exibindo intrigantes costumes. Até aí percebemos uma característica simetria radial em nossa terra, mas então no alto do paredão, sustentado por dois pontos diametralmente opostos, há o grande arco, atravessando toda a extensão do céu de um lado ao outro, com uma largura estimada de quinhentos e trinta uvos. O arco possui uma curvatura aparentemente semelhante à curvatura do próprio solo, mas de forma que seu ponto mais alto é o centro. Ou seja, sua concavidade é voltada para baixo. Temos também um momento bem determinado de noite e outro de dia, este de duração um pouco menor. Esta distinção é consequência do movimento da estrela de fogo, que surge de um lado e caminha até o outro, por trás do paredão. Não sabemos, por exemplo, se há apenas uma estrela de fogo ou se cada dia uma delas surge de algum lugar e atravessa o céu. Estudos recentes indicam um leve aumento na temperatura do solo subterrâneo durante o período da noite, fato que contribui para os ciclos biológicos das plantas, nós sabemos. A partir disso, considerando o fato explícito de 4


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que a estrela de fogo é uma grande fonte de calor e outros detalhes, surgiu uma teoria de que a estrela de fogo é uma só e realiza uma órbita que circula a nossa terra, que tem uma profundidade finita – Uma onda de vozes surgiu na plateia, com os cientistas sussurrando entre si. – Claro que uma forma de testar esta hipótese seria cavar um grande buraco – Nadília soltou um pequeno riso com seu comentário. Parte da plateia acompanhou. – Muito bem, outro fato bem conhecido é que a cada novo dia a estrela de fogo aparece deslocada em um grau para o lado, circunstância pela qual determinamos a escala de graus, de modo que há um dia em que passa exatamente por trás do grande arco, o dia da passagem, que marca a troca de períodos. Um giro completo de quinhentos e quarenta e oito graus na extensão de nossa terra compreende dois períodos inteiros. Por fim, sabemos que as Drosophilas surgem do céu sob o grande arco, então, será que durante os outros

dias do período permanecem vivendo sobre o arco? Aproveito para perguntar também, qual a natureza de sua intenção no dia da passagem, e o que mudou agora? Quem é a Drosophila diferente que pegou Lidoff? Temos muitas razões para crer que se trata de uma mutante!

Nadília estava vibrante, parou para tomar um pouco de água, notou os próprios olhos arregalados. Os cientistas se agitaram com suas últimas sentenças. Ela respirou fundo, ajeitou seus óculos e deu uma olhada em algumas folhas que trazia

consigo, sobre o pequeno púlpito. Sentia sua energia mental pulsando. Então se dirigiu à plateia e recomeçou, calmamente, se preparando para o que sabia que teria de dizer em instantes:

- A partir dessa breve contextualização, podemos ver vários pontos de exploração interessantes: a vegetação da nossa terra, a cultura dos morangos, a dinâmica da estrela de fogo e os outros objetos celestes, o que se esconde atrás do paredão, do arco e da existência das Drosophilas, etc. O projeto sendo desenvolvido pelo meu grupo aborda a importância de todos estes tópicos, e ainda alguns outros. Estamos trabalhando para a criação de diversas linhas de pesquisa, todas seguindo a motivação de remover o véu que esconde o mundo que está de fora de nossa civilização, este véu que nos amedronta cada vez mais. Nós estamos dispostos... – Nadília sentiu o receio atravessá-la enquanto falava em um nervosismo crescente. Olhou brevemente para o seu mentor, o professor Pancini, que, do fundo, tentava 5


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transmitir confiança com o olhar. Em um ímpeto, ergueu a cabeça e continuou. – ... a desafiar a tradição com o nosso projeto de abertura científica, levando a nossa prática para fora da universidade, gerando um conhecimento vital que permaneceria para sempre obscurecido pelas limitações da tradição.

Diversas vozes já invadiam o imenso auditório, mas Nadília não se abalou mais; manteve o discurso forte sobre os ecos dos velhos cientistas, inflamada pelo brilho nos olhos de seus companheiros.

- Nós vamos descobrir quem são as Drosophilas e sair do seu controle. Vamos absorver a riqueza da cultura dos morangos e dos elementos da floresta, vamos mapear tudo o que este mundo tem a nos oferecer e, no futuro, teremos muito mais

controle sobre nossas possibilidades, inclusive a de nos mantermos vivos. Nosso primeiro projeto a ser colocado em prática se trata de uma expedição a uma aldeia de morangos, em que buscaremos construir um bom relacionamento com seus líderes e finalmente propor uma troca de conhecimentos.

Neste momento, um velho maracujá, muito bem vestido, usando calças lisas e sapatos lustrados, levantou-se e bradou:

- Garota, esta ideia é ultrajante! Causaria a destruição de nosso poder!

Nadília parou, inspirou profundamente e, fixando os olhos nos dele, respondeu:

- Por favor, professor, continue. Eu quero saber porque.

O maracujá desviou o olhar para diversas direções e então continuou:

- Ora, silvestres... já temos a universidade para realizar nossas pesquisas, nossa maneira sempre funcionou, construímos tudo o que temos dessa forma. Qualquer silvestre não acrescentará nada ao nosso corpo de conhecimento. Nem mesmo estudar árvores e montanhas. Levando pesquisas para fora você ameaça o sigilo científico, a população vai se interessar, a instabilidade gerada vai acabar destruindo o sistema religioso e... bem... nossa estrutura social pode colapsar. Um caos! 6


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- Você tem toda razão com suas preocupações, professor. – Nadília mantinha o olhar fixo no maracujá, que se sentou ao terminar sua fala. – Eu e meus colegas queremos, com esta conferência, remover os equívocos que mantêm válidas estas preocupações. Primeiro, eu também acredito que a nossa universidade funciona como ela é, tudo bem? Estamos falando de uma expansão, não de uma substituição. Em relação aos silvestres e às montanhas, teremos tempo para explicar com detalhes nossas teorias sobre seu potencial de nos fornecer conhecimento, mas por enquanto apenas digo que você pode estar certo, principalmente se estiver pesquisado sobre o assunto honestamente, não é? E digo que isso não é motivo para temer, o futuro mostrará sem perdas para a ciência se a sua aposta vale. Para terminar, o assunto mais delicado, o sigilo. Eu admito a minha grande preocupação com o sigilo, acho que todos devemos concordar com isso. Pensando no contrabalanço entre a

possibilidade de ameaçar o sigilo e a necessidade cada vez maior de sujeitar ao invés de sermos sujeitados pelo ambiente, digo que este movimento deverá ser feito em algum momento, ou nossa sociedade ruirá com ou sem sigilo. Estamos a quantos períodos de uma subjugação mais severa das Drosophilas? Ou de qualquer outra ameaça ainda desconhecida? A quantos períodos de uma superlotação ou de um colapso energético? Isso é o que eu mais quero que vocês todos entendam. Nós precisamos aceitar essa condição e pensar exaustivamente em como manter o sigilo, dentro desta perspectiva, assim como o temos mantido até então. Inclusive, parando

para pensar, não é fácil encontrar uma sequência de eventos em que uma expedição como esta causaria uma preocupante quebra de sigilo científico. Acho que é ainda um avanço modesto comparado à urgência da nossa situação; urgente principalmente pelos avanços internos que temos que conquistar a cada mísero passo.

A jovem cientista se permitiu uma pausa, espantada com sua resposta que atravessou o auditório como uma tempestade, conduzindo a atenção de todos os presentes. O velho maracujá parecia pessoalmente ofendido, exibindo uma expressão indignada.

- Então, professor? – Disse ela, de repente, assustando-o ligeiramente.

Passados uns segundos, o professor se pôs de pé e encheu seus pulmões de ar até avermelhar sua casca, para então proferir, levantando as mãos abertas ao ar: 7


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- Você é prepotente, garota. Assim como todos os jovens que, com dois dedos de experiência já acham que sabem como as coisas funcionam e podem ensinar seus próprios tutores. O conhecimento é nosso!

Nadília franziu a testa, com pesar.

- Eu sinto muito, profess...

- Eu sempre vou defender o nosso poder, dentro da universidade! Sempre! – Interrompeu o velho maracujá, gritando. O restante das frutas presentes emudeceu diante deste embate.

Após apertar a boca e respirar fundo, Nadília respondeu, com a voz saindo devagar enquanto rangia os dentes:

- Me desculpe, mas então o senhor superestima um pouco a extensão da sua vida, professor.

Ao terminar, seu olhar perfurava o professor. Rapidamente, ele pegou sua maleta e se dirigiu à saída, promovendo um minuto constrangedor em que se ouvia apenas o

som seco de seus sapatos lustrados. Nadília buscou o olhar do professor Pancini, que retribuiu com um discreto sorriso. Ela ajeitou novamente seus óculos, olhou para suas folhas e pigarreou levemente.

- Muito bem, acredito que já cumpri meu objetivo para a abertura dessa conferência. Nosso grupo desenvolverá os detalhes de nossos projetos ao longo do evento, principalmente o que escolhemos para nossa primeira expedição. Agradeço a atenção de todos vocês e peço mais uma vez, pelo nosso futuro e nosso conforto, acendam as luzes. Obrigada.

Uma imensa onda de aplausos surgiu entre os presentes e Nadília teve certeza que, apesar dos olhares de desprezo de vários professores, ela tinha aliados suficientes. Confiante, desceu do púlpito e se dirigiu ao fundo do auditório, inebriada pelo conjunto de experiências que viveu durante sua palestra. Este era o momento em que ela lentamente tomava consciência do que acabou de fazer. 8


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Enquanto atravessava a plateia, sem distinguir a movimentação a sua volta, ela foi abordada por um maracujá muito novo, que esbanjava entusiasmo.

- Nadília, parabéns, eu gostei muito da palestra. Você poderia me falar mais sobre a expedição? Nadília? – O jovem pulou na sua frente, exibindo um largo sorriso e grandes olhos.

- Hm... oi, qual o seu nome?

- É Nim.

- Nim, podemos conversar amanhã durante a apresentação de projetos. – Nadília

respondeu, devolvendo o sorriso.

- Certo, estarei apresentando minha pesquisa lá!

Afastando-se do jovem Nim, percebeu que o professor Pancini não estava mais no auditório. Saiu enquanto anunciavam o próximo palestrante.

Pancini estava preparando café em uma lanchonete da universidade e Nadília entrou no momento em que o professor enchia duas xícaras. Naquele momento, exceto por um miúdo maracujá algebrista rabiscando velozmente seu caderno ao fundo, o lugar estava vazio em virtude dos eventos da conferência que ocorriam no auditório principal. Nadília se sentou, aguardando o professor, que se sentou em seguida à sua frente, entregando-lhe uma xícara de café.

- Parabéns, Nadília, você foi incrível, sua pertinência é invejável.

Ela sorriu, envergonhada, ao ouvir estas palavras.

- Nossa, professor, eu ainda não me dei conta da realidade. Estou eufórica. – Ela disse com um suspiro. – Mas então, acha que desrespeitei aquele professor?

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- Oh, claro que não, ele é um ignorante. Aproveite o seu momento, minha cara. Pancini gargalhou enquanto admirava o êxtase de sua aluna. - Sua palestra nos colocou à frente nas discussões da conferência, sem dúvidas temos a comunidade jovem ao nosso lado.

- Sim... – Nadília assentiu enquanto tomava um gole de café. - Sim, professor. Estamos fazendo um ótimo trabalho, estou muito, muito, feliz. E por favor, ah... – Nadília, já retomando o fôlego habitual, abaixou o tom de voz – Me conte sobre as novidades da reunião. O que vocês decidiram?

Pancini se endireitou, adquirindo uma postura mais séria. Alisou os bigodes e começou:

- Pois bem. Todos estamos muito alarmados com o que aconteceu, Nadília. Apresentei a eles a minha ideia de que aquela Drosophila pode ser uma mutante, mas na verdade não sabemos e não temos muito o que fazer em relação a isso. A demanda por mais informações é muito urgente. Eles me cobraram bastante sobre o que sabemos e o que intencionamos e levantaram a ideia de alterar o nosso projeto. – Nadília ouvia atentamente e, nesse ponto, prendeu o fôlego, em ansiedade. – Calma, foi o seguinte, eles estão mais interessados do que nunca na expansão das

fronteiras do conhecimento, acredite, mas não estavam interessados nos morangos. Então eu contei a eles o que sabemos a respeito disso, contei sobre a sua tia, e eles entenderam o quanto o contato com os morangos pode ser importante. – O professor fez uma pausa, Nadília estava pensativa, olhando para baixo. – Fiz com que eles compreendessem que o conhecimento dos morangos está relacionado com as Drosophilas e que este plano é justamente o primeiro passo para um maior entendimento sobre elas.

- Você contou a eles sobre as marcas?

- Sim, principalmente este detalhe, diante do recente acidente. Isso os convenceu prontamente.

- Hm... E o que vocês decidiram? – Pergundou Nadília, já ansiosa. 10


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- O círculo decidiu que começaremos imediatamente, nós vamos planejar a expedição intensivamente e depois fazer contato para nos misturar com os morangos. Temos meio período para planejar tudo em conjunto com as maçãs e meio período para concluir o projeto, no máximo, estando de volta com respostas. O círculo pretende se preparar mais contra as Drosophilas, se possível antes da sua próxima aparição.

Nadília ficou ainda mais empolgada e comemorou com satisfação.

- Que incrível, professor, tudo está dando certo. – Mas de repente sentiu-se constrangida ao se atentar que parte disto era devido ao acidente com o reverendo Lidoff. Deixou transparecer seus pensamentos.

- Fique tranquila, Nadília, temos muita razão em estarmos contentes. Esta será nossa primeira resposta a elas, ao mesmo tempo que começamos nossa pequena revolução científica. – O professor interveio com um sorriso discreto.

- Mas se aliar com a minha tia e as maçãs... E a questão do sigilo? – Lembrou-se Nadília, após consentir com o professor.

- Ah... nós vamos manter nossos movimentos em segredo, a expedição não deverá ser grande e nos comunicaremos apenas com algumas maçãs. Teremos algumas histórias para elas. Nós concluímos que a proteção dada pelas maçãs é imprescindível. Além do mais... no fundo sabemos que o sigilo não é uma questão, isso está mais perto de um grande tabu do que de uma preocupação legítima. – Sua voz foi diminuindo ao proferir as últimas palavras. Pancini sentiu um gélido calafrio; acreditou que por um momento foi longe demais.

Mas Nadília não perdeu a oportunidade:

- Como assim um tabu, professor?

O professor ficou em silêncio por um instante. Sentiu-se fraco por não conseguir controlar seu desejo de se abrir com Nadília. Hesitou, observou demoradamente o 11


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maracujá algebrista no fundo da lanchonete, que rabiscava seu pequeno lápis como se estivesse sozinho no mundo. Voltou-se aos olhos de Nadília e disse com pesar:

- Eu confio muito em você, Nadília. Sinto uma amizade única por você. Espero até que um dia você me substitua, seja membro do Círculo. Mas, até lá, eu sinto não poder debater francamente com você sobre alguns assuntos. Isso é para o seu próprio bem, acredite em mim. Me perdoe por trazer à tona este assunto, mas saiba ao menos que sim, eu e os outros membros do Círculo temos esta opinião. Não se preocupe, qualquer quebra de sigilo que, por algum descuido, possamos promover não causará algum mal à estrutura da sociedade.

Nadília se envergonhou; apesar de estar diante de uma omissão importante, sentiu

absoluta sinceridade nas palavras do professor e sentiu-se até lisonjeada. Isso não a impediu de registrar a estranheza desta opinião; resolveu encerrar o assunto e deixar a reflexão para depois.

- Tudo bem, professor, me desculpe pela pergunta... Já começo a me sentir animada para preparar tudo, acredito que temos muito trabalho a fazer. – Disse ela, se encorajando com a nova perspectiva, sem deixar de guardar essa situação para uma reflexão posterior.

- Ah, sim, teremos um calendário rígido para cumprir. Com a aprovação prévia do Círculo, a aceitação da comunidade é um ponto extra, não determinante, mas muitíssimo importante. – O professor acrescentou e então virou de uma vez sua xícara de café.

Nadília se inquietou mais uma vez e disse:

- Se me permite, professor... qual a posição do Círculo por, na noite da passagem, ter sido... – Nadília pensou em como continuar, mas Pancini completou:

- Violado? – E alisou novamente os bigodes. – O ideal de coletividade do Círculo é tal que vimos o ocorrido apenas como uma violação da nossa sociedade. De fato, um golpe na cabeça de um indivíduo é mais grave do que um em suas pernas, mas 12


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o indivíduo continua, buscando recursos para se remediar e se prevenir, e nunca parar de percorrer o seu caminho de progresso.

- Muito bom, professor. E estamos prontos para dar asas a este indivíduo.

Fechado em seu quarto, Malus observava a foto em que estava com seu pai. Sentado em sua impecável cama, com os pés descalços sobre o tapete, perguntava-se o porquê de sua mãe nunca ter lhe contado detalhes sobre o seu pai. Frustrou-se ao pensar que ele mesmo não parecia ter se interessado muito por essa questão. Pensando na mãe, sentiu uma imensa angústia ao recobrar na mente sua ausência, suas entranhas apertavam diante do abismo intransponível que o separava de seu carinho, da pessoa mais querida de sua vida. Não conseguia lembrar o que

aconteceu para que seu pai tenha se tornando uma espécie de símbolo estático, um totem congelado no passado. Perdido em seus devaneios, percebeu a estranheza de sentir-se conectado pelo fio de sua consciência ao momento de seu nascimento, passando por todos os instantes de sua vida, mas ao mesmo tempo sentir-se mais longe do que sempre esteve de compreender como foi que ele chegou ao presente. Não conseguiu definir o sentimento em palavras na sua mente, percebeu isto, mas sua angústia latejava claramente, em compasso com seu coração. E com o coração batendo rápido, acompanhou em seu corpo o calafrio do reconhecimento de que

sentia dentro de si um compasso infalível que estava em sintonia com a sustentação de sua própria vida. Um relógio constante que o lembrava que a hora de conhecer o seu pai já havia passado, que a hora de perguntar e abraçar mais uma vez a sua mãe havia passado e que lhe restava somente deitar e dormir, na esperança de sonhar, projetar o simulacro de um desejo impossível. Tudo isso ele sentia pulsando no corpo, com o raciocínio criptografado em um código binário de contração e relaxamento. Sua mente estava apenas espalhada pelo quarto, mas acabou entendendo o recado implorado pelo corpo; deixava-se envolver lentamente por um sono que ao mesmo tempo lhe protegia das profundezas em que ecoavam os sons de seu coração. Piscou os olhos demoradamente, viu seu pequeno sorriso ao lado do pai entrando em foco enquanto inclinava-se pela extensão de seu leito. Apagou a vela e, acomodando-se em seu ninho, deixou-se levar pela escuridão. Ainda sentindo as ondas oníricas calmamente avançarem sobre seus pensamentos, indo e vindo em um ritmo hipnotizante, viu-se assistindo à memória de seu último 13


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encontro com seu amigo Gamel. Suas vozes ecoavam pela vasta escuridão. “Não entendo como todos podem venerá-las, eu só consigo ver monstros”, “São anjos, Gamel, nós não compreendemos suas razões. Elas são tão belas, divinas... [...] Onde estão os novos ares da passagem?”, “Que passagem? Aquele espetáculo de horrores?...[...] Cada vez mais me sinto uma aberração, estou ficando paranoico, tenho noção disso... [...] Daqui a pouco ninguém vai apreciar minha companhia... Nem mesmo você, nem mesmo eu... “, “Gamel... Gamel... Deixa de bobagem, Gamel... [...] Deixa de bobagem... [...] Você não é uma aberração... [...] Eu sou uma aberração, Gamel, olha só pra mim, olha para as minhas asas gigantes, meus olhos vermelhos... [...] Não é estranho?...”, “Não, Malus, você é um anjo, não é?”, “Não sou... [...] Você está certo, Gamel, sempre esteve certo... Eu devo ser mais como você, é disso que eu preciso...”, “Malus? O que você...”, “Eu preciso te consumir, essa é a

minha natureza... Aceite, aceite esse desejo...”, “Malus, não, ahhhh...”. O grito veio de longe, invadiu o quarto. Ofegante, Malus por um momento se esforçou por se reconhecer, percebeu que esteve gritando, que acabou de acordar. A luz do dia revelava o suor que escorria em sua casca. Tentou desembaralhar as imagens de seu pesadelo, lembrou-se da noite anterior e não conseguiu acessar novamente aqueles sentimentos, pareceu que foi há muito tempo. Viu-se atrasado, não tinha tempo para mais divagações; espantou com um salto aquela atmosfera e em poucos minutos já andava com pressa pela rua.

Na manhã do segundo dia da conferência, a multidão de maracujás transitava por um grande salão da universidade, no evento de exibição de diversos temas de pesquisa dos jovens cientistas; esse era o momento da conferência dedicado ao trabalho da nova geração, as novas mentes da ciência tinham a oportunidade de mostrar suas ideias e buscar amplamente o interesse de potenciais orientadores. Os jovens se utilizavam de diversos recursos, desde pôsteres explicativos até a exibição de máquinas e aparatos de pesquisa. Nadília passeava distraída quando avistou um maracujá naturalista parado sozinho diante de um pôster cuja escrita parecia rabiscos, mas continha um lindo desenho de um relâmpago em uma tempestade. Ela notou um constrangimento em seu olhar tímido e resolveu falar com ele.

- Olá, bom dia. Como você se chama? 14


Arregalando os olhos, ele respondeu:

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- Eh, eu sou especializado em física. Trabalho com estrutura teórica.

O jovem voltou os olhos para baixo. Nadília conteve um sorriso, simpatizou-se com sua situação.

- Hmm... Que interessante, o professor que mais admiro também é especializado em estrutura teórica em física, sabia? O professor Pancini.

- Ah, eh... eu iria ter aula com ele no ano em que ele se afastou para compor o Círculo. Li seu livro sobre energia enquanto escrevia meu projeto.

- Puxa, pelo que sei é um pouco avançado; pode me mostrar suas ideias?

- Pode ser. Você é quem deu a palestra de abertura, não é? – Ele olhou brevemente nos olhos de Nadília.

- Sim, sou eu. Você gostou? – Ela respondeu com um sorriso carinhoso.

- Gostei... Ah, então, eu tenho a intenção de modificar a ideia que temos dos relâmpagos de tempestade. A teoria que tento desenvolver parte da interpretação de que os relâmpagos são um estado diferente de matéria, consequência de um processo que acontece com o próprio ar que faz com que ele emita luz, como o fogo. - Nossa... Que incrível. – Nadília inclinou-se a respeitar a ousadia desse projeto. Ficou espantada com a aparente maturidade vinda de um maracujá tão jovem e tímido, identificou-se ainda mais com ele.

Chuvas eram raríssimas para as frutas e os relâmpagos eram um fenômeno natural pouco compreendido e que causava muito espanto. As teorias a respeito deles não fugiam muito de especulações do senso comum, variando de línguas de fogo a pedaços de estrelas que ficavam retidos em densas nuvens de água. Nadília continuou:

– Parece muito interessante, no que você se baseia? 15


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- Ah, eh... você conhece a transformação inversa de Biggs dos grupos fundamentais do modelo padrão dos estados da matéria? O modelo matemático prevê a existência de um estado muito parecido com os relâmpagos para casos de campos extremos.

- Infelizmente, eu não faço ideia. – Nadília disse com os olhos saltados.

- Ah... bom... se eu estiver no caminho correto, pelo tipo de processo que esse parece ser, existe um potencial muito grande de aplicação tecnológica no futuro.

- Pelos deuses, por que não tem ninguém interessado no seu projeto? – Ela deixou escapar, pasma.

O jovem suspirou, com a testa enrugada.

- Acho que é a minha letra...

Neste momento, gritos histéricos surgiram:

- Nadília! Nadília, aqui!

Os dois se voltaram à fonte dos gritos e viram o garoto Nim, a certa distância, abanando os braços. Nadília riu e voltou-se ao jovem prodígio: - Olha, eu quero que você procure o professor Pancini e diga que a Nadília quer que vocês conversem sobre o seu projeto, tudo bem? É sério, não tenha medo, ele vai te dar atenção.

O jovem maracujá esfregou as mãos suadas em sua camiseta e assentiu, aparentemente alegre.

- O-obrigado... Nadília... - E de novo olhou brevemente em seus olhos. - Nadília! Sou eu, o Nim! Lembra de mim? - Os gritos continuaram a ecoar. Nadília riu ainda mais e pediu desculpas ao jovem e o parabenizou pelo projeto, ele esboçou um risinho e deu um passo pra trás. Então, ela se virou e foi de encontro ao desesperado Nim, de longe já podia ver a sua alegria. Chegando em seu ponto de 16


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exibição, Nadília ficou intrigada ao se dar conta do fato de que o jovem estava envolto em diversos tipos de plantas exóticas, todo sujo de terra. Quando ela se aproximou, ele veio empolgado com uma delas na mão:

- Bom dia, Nadília, olha só isso aqui, você vai adorar a minha criação!

Divertindo-se, ela se pôs a seguir a condução do efusivo maracujá. Observou a flor em suas mãos, era exótica e apresentava-se em um lindo padrão de cores, bastante incomum.

- Minha querida Nina 1, trabalhei nela por anos! É o meu primeiro sucesso criativo com manipulação genética. Olha aí.

Nim despejou bruscamente o vaso sobre as mãos de Nadília. Tentando segurá-la adequadamente, ela disse:

- É linda, o que ela faz?

- Eu suspeito que ela exibe um padrão cromático diferente para cada substância que ela percebe aqui, nessa boquinha. - Ele respondeu prontamente, apontando para o

centro da flor. - Agora ela está com as cores do ar daqui, ela é até bem sensível, veja ela mudando ligeiramente o padrão.

As plantas eram seres no geral muito exóticos e com capacidades incríveis. Seu estado evolutivo impressionava as frutas, que estudavam suas funcionalidades há muito tempo. As plantas eram vitais para as frutas, principalmente porque eram a única fonte de água para elas; plantas eram seres capazes de sintetizar essa substância, que deveria compor a dieta de todas as frutas, regularmente, além de servir a uma gama imensa de propósitos em sua rotina. Uma das plantas sintetizadoras de água, muito eficiente, havia sido geneticamente aprimorada pelos cientistas e era cultivada em imensas fazendas nos limites da cidade. A extração de água era um negócio seguro para as laranjas, além da pecuária. Os teóricos naturalistas especulavam que a vida evoluiu em uma situação de abundância de água, mas um evento geológico pode ter eliminado as reservas dessa substância. 17


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- Mas o que é isso, só tem gente muito talentosa aqui? Estou muito impressionada! – Espantou-se Nadília.

- Ah não, eu não sou muito talentoso, haha. Eu só penso nisso desde que eu nasci, essas plantas são a minha vida. Consegui gerar a Nina 1 por muita tentativa e erro, e olha, eu fiz uma coleção com quase todas as plantas geradas nos últimos tempos; quando eu virei maracujá, a primeira coisa que eu fiz aqui foi pegar um livro de receitas enorme hahahaha. - Nim dizia, maravilhado, enquanto mostrava as plantas à sua volta, com um amplo gesto usando seus dois braços.

Na metrópole, quando uma uva se tornava maracujá, ela era levada para a grande universidade para viver lá, dissociada de sua família. Os maracujás tinham acesso

ao conhecimento científico e, no momento em que já podiam voltar para visitar os familiares que não eram maracujás, já entendiam que fazia parte da ciência ajudar a manter as suas crenças religiosas. O conhecimento científico era visto como mais um ofício, muitos maracujás nem paravam para descreditar pessoalmente o valor da religião, apesar de não mais possuírem a fé. Nadília continuou a conversa perguntando:

- Nossa, mas a sua Nina 1 tem muito potencial, pra quem você já mostrou ela?

- Não mostrei pra ninguém aqui, trouxe só pra você ver. Acho que poderia servir para a expedição, sabe, ela é resistente aos venenos naturais que nos afetam. Eu estou atualmente observando como os padrões se relacionam para substâncias semelhantes ou com atuação semelhante, essas coisas. Quero fazer um catálogo de padrões, principalmente para os venenos. As minhas plantas venenosas eu achei melhor não trazer aqui, hahaha. São bem legais, mas são meio perigosas, né?

- Eu não consigo imaginar a quantidade de aplicações que aguardam a existência de um método para decifrar a composição de substâncias; precisamos saber como ela faz isso, não acha?

- É, ela é bem especial. Mas quer dizer que se eu te der ela eu posso te ajudar com a sua pesquisa? Posso fazer parte do seu time? Eu preciso fazer parte do seu time! 18


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Nadília ficou um tempo observando a flor em suas mãos, hipnotizada por sua beleza. Percebeu que Nim esperava uma resposta quando ondas de ansiedade começaram a bater em seus olhos.

- Hm... Sim, acho que podemos testá-lo.

Ao processar a resposta, o jovem Nim explodiu em alegria e começou a gritar, pulando, transbordando. Nadília quase deixou o vaso cair quando começou a receber soquinhos em seu lado. Com os soquinhos, ele dizia:

- Eu sabia, eu sabia, eu sabia...!

Nadília ficou muito empolgada com a vivacidade de Nim, acreditou que ele simbolizava muito bem o espírito jovem que ela intencionava suscitar. Os dois continuaram conversando enquanto ele mostrava cada exemplar de sua coleção. Após as apresentações, Nadília o levou para conhecer seu departamento e ele se sentiu em casa de imediato. Nos próximos dias, Nim traria um novo ar de jovialidade e empolgação; Nadília sentiu-se muito à vontade com sua personalidade e tomou gosto por ensiná-lo, desde o início.

Uma fração da estrela de fogo brilhava sobre as quadras de treinamento enquanto Malus e Gamel praticavam com suas espadas de treino. Os dois eram excelentes lutadores, mas principalmente Malus; seus movimentos sempre desenhavam no ar trajetórias dançantes ao mesmo tempo graciosas e ferozes. Gamel adorava o desafio de praticar com o amigo, mas, particularmente neste dia, sentia uma diferente obsessão em seus olhos que se manifestava em golpes agressivos, excessivamente fortes e secos. Desde que se encontraram para o treinamento, Gamel notou a forma com que Malus evitou interagir com ele e se propôs a começar o treino de imediato. Ao perceber seu próprio descontrole, Malus avançou com mais agressividade, atacando em um ritmo crescente. Tentava se concentrar, controlar a respiração, mas seu interior fervia. De repente, hipnotizado naquela sincronia, com o amigo se esforçando para defender os golpes, olhava cada detalhe de seu rosto próximo, sentindo o seu cheiro diferente dos cheiros das maçãs, sentindo o corpo latejar e ao 19


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mesmo tempo lembrando de fatos aparentemente aleatórios de sua infância; estava brincando de imitar os outros, estava cantando, estava apanhando de seu pai, apertava-se contra o colo de sua mãe, corria mais rápido, passava a noite treinando, tornava-se maçã, estava chorando sem motivo, gritava com todas as suas forças:

- Chega! Afaste-se de mim!

Com isso deu um salto e atingiu Gamel em cheio, meneando a espada horizontalmente em seu corpo. A força foi suficiente para arremessa-lo no chão. Instantaneamente, tendo exteriorizado essa energia, Malus tomou consciência do que havia acontecido, pensou no que fez e só aí percebeu que Gamel já vinha tentando chamar a sua atenção enquanto se esforçava para se desvencilhar de seu

frenesi. Olhando incrédulo ao chão, encontrou um olhar assustado e injuriado, que logo se transformou em raiva.

- Ei, que desgraça é essa? – Gamel gritou enquanto se levantava.

Malus não conseguia se mover. Disse bem baixo, com o olhar fixo no chão:

- Eu... me desculpe...

Gamel começou a perceber que havia algo errado, segurou em seus ombros e o chacoalhou:

- Fala comigo, Malus, o que está acontecendo com você?

- Eu não sei, eu não sei, me desculpe. – Gamel continuou o encarando, esperando por mais respostas. Depois de um tempo ele começou a articular melhor. – Eu tive uma noite péssima, ultimamente venho tendo momentos de confusão, de pânico... não sei o que pensar... eu não sou assim...

- Você sabe que pode contar comigo para tudo, né? Você pode me usar para tentar se sentir melhor.

Nesse momento, Malus começou a se perder novamente em seus pensamentos. 20


´

Pensou no que seria se abrir com Gamel, tentou formular o que gostaria de contar a ele. Para sua surpresa, percebeu-se falando baixo:

- Eu tive um sonho essa noite...

Porém, nesse momento, Gamel era atingido por uma percepção que o encheu de culpa. Sem prestar atenção em seu comentário, exclamou:

- Malus, eu acho que o problema sou eu! Eu tenho te envolvido em confusões nesses últimos tempos. Eu te forço a pensar em coisas desagradáveis, a considerar problemas que você não tem. Tento te convencer de que a realidade é pior do que é para você. Eu sou quem deve pedir desculpas, Malus.

- Eu queria que tudo começasse bem nesse período... mas não se sinta culpado, Gamel, eu adoro conversar sobre os seus assuntos, você não me atrapalha – Enquanto dizia isso, sentia seu corpo arrepiar ao antever e preparar as palavras que saiam. – Eu adoro você, Gamel... eu... eu não queria bater em você assim.

Gamel riu e o abraçou. Depois, afastando-se e começando a recolher as espadas, disse animado:

- Vamos tirar o resto da manhã para andar pela metrópole, como costumávamos fazer. E dessa vez eu vou ouvir você. Por favor, me conte o que tem te deixado aflito, vamos nos amparar, juntos.

Malus começou a construir uma imensa alegria enquanto sentia essa maior proximidade entre eles, de repente. Andaram e revisitaram vários lugares marcantes de suas antigas caminhadas; praças e ruas com casas de arquiteturas pitorescas. Conversaram sobre a foto do pai de Malus e a recente enxurrada de sentimentos que ela proporcionou. Gamel compreendeu que a infância de Malus tinha aspectos traumáticos que eram a fonte de inseguranças para ele, que era conhecido por sua tão admirável resiliência. Apesar disso, os dois se divertiram bastante e esqueceram qualquer aflição.

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Quando sentaram um pouco em uma das praças, Gamel comentou a conversa sobre as Drosophilas:

- Me desculpe por ter sido irritante na última conversa que tivemos sobre a passagem. Eu estava um pouco transtornado. Eu gosto bastante da passagem e respeito sim as Drosophilas.

Malus, neste contexto de proximidade, resolveu contar o que sabia:

- Não se preocupe com isso. Na verdade, a Kadia me contou algumas coisas interessantes, eu acho que você vai gostar de saber.

- Hm... o que? - Disse Gamel, surpreso.

- Então, ela acha que os silvestres podem estar relacionados com o aparecimento da Drosophila diferente. Nas observações que ela faz dos seus ritos, ela presenciou uma mudança de processos que se combina com o que aconteceu.

- Se combina como?

- Ah, eu não tenho certeza. Eu acho tudo isso muito estranho, eu não sei porque os maracujás não saberiam de algo que os silvestres possam saber.

- Hm… - Gamel parou por um instante, pensando. - Eles deram a entender que tinham uma forma de saber, através do sonho que eles disseram que muitas frutas tiveram. Se isso for verdade, os silvestres também podem receber sinais de alguma forma.

- Nossa, faz sentido. - Concordou Malus, deslumbrado.

- É, não sei, isso volta ao que eu reclamei, porque o que aconteceu foi estranho. Mas tudo bem, você não sabe dizer o que ela observou?

- Eles fazem uns riscos nas árvores e têm umas danças e músicas. Eles sempre faziam riscos amarelos e, recentemente, fizeram um risco vermelho. 22


- Interessante mesmo… como nos olhos delas...

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- Mas o mais importante não é isso. Os maracujás ficaram muito interessados nisso, ela contou para uma sobrinha dela que é maracujá. Ela levou o assunto pra universidade deles e agora eles chamaram a Kadia para propor alguma coisa.

- O que será que eles querem? Eu achei que eles não gostassem dos silvestres.

- Talvez não sejam todos, a Kadia disse que essa sobrinha dela gosta muito deles.

- O que será que acontece dentro da universidade? - Gamel pausou enquanto Malus absorvia essa indagação e balançava a cabeça. - Você conhece essa maracujá?

- Não… mas a Kadia uma vez me disse que não é nada fácil processar os desígnios dos deuses e nós precisamos ser capazes para sermos abençoados com o conhecimento. Ela disse que os maracujás trabalham nisso.

- Hm… os silvestres devem fazer algo assim de forma independente, não é? Faz todo o sentido o interesse por eles.

- Gamel, vamos perder o almoço! - Espantou-se Malus ao olhar para o relógio.

- Ah, muito bem, vamos. Vou pensar mais nisso tudo depois, obrigado por me contar, eu acredito que ela o recomende a manter segredo dessas coisas diferentes.

- Eu… estou mantendo segredo, Gamel.

Gamel sorriu, enquanto se levantava. Malus percebeu o quanto era bom pontuar estes elementos de harmonia entre eles, nesse momento tomou para si o objetivo de fazer isso sempre que possível, com a intuição de que isso o acalmava, estabilizava.

- Você não fumou hoje.

- Ah, pois é, haha… de uma forma estranha, o período teve um bom começo, afinal. Concordantes, saíram apressados em direção à fortaleza. 23


MÉTODO CIENTÍFICO W. N. Centauro

Eu sou W. N. Centauro, e você será julgado.

Alguns biólogos de renome argumentam que a publicação do livro A Origem das Espécies, de Charles Darwin, representa a maior revolução científica na história da humanidade, não apenas pelo que trazia de biológico, mas pelo que mudou da visão de mundo do ser humano. Obviamente, estes biólogos estão enviesados por não conhecerem as magníficas obras que deram origem ao que hoje chamamos de Mecânica Quântica. A revolução trazida por Heisenberg, Planck, Bohr e uma miríade de cientistas sem nome ultrapassou tudo o que conhecemos como realidade, e rasgou o véu das tradições, revelando um mundo além do mundo. Além mesmo da nossa tola presunção de conhecer de onde viemos, por que viemos e para onde iremos. Pouco tempo depois de iniciadas as pesquisas em física quântica, as conquistas tecnológicas vieram aos montes. Sensores, peças eletrônicas, vidros. A vida cotidiana do ser humano moderno não poderia ter sido prevista nem pelo mais imaginativo dos que viveram antes da grande revolução. Ainda hoje existem grandes grupos de cientistas que são dedicados vinte e quatro horas por dia a avançar ainda mais a fronteira da nossa ignorância. Nesse âmbito, encontramos um tipo especial de cientista: aquele que pesquisa com Lasers. Veremos, hoje, o relato de um jornalista que viveu em meio aos deuses tecnocratas, no antigo ano de 1995, num instituto de pesquisa de muito renome, num grupo que se dedicava integralmente aos lasers. Este é o caso do Maníaco do Laser Verde.

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Capítulo VII: O Maníaco do Laser Verde Ele foi doutor, antes de pensador; mestre, antes de doutor; brilhante, antes de mestre; promessa,

antes de brilhante; ferozmente torturado, dia após dia, antes de ser sequer uma promessa. Seu nome não existe, apenas seus prêmios e suas publicações. Por trás da aveludada cortina da meritocracia fidedigna dos cacoetes espetaculares mais sutis de um filósofo autarca por excelência, entretanto, existem engrenagens que rodam desde sempre, dia após dia, impulsionando o progresso científico de nossa civilização, e agora já não conseguem mais esconder o cheiro da graxa velha.

Foi num Instituto de Pesquisa muito renomado, de reconhecimento internacional, há nem tanto

tempo assim, que uma série de acontecimentos inquietantes levantaram uma grande poeira de receios, e, até hoje em dia, neste tempo em que o que restou daquela época de ouro é apenas um pouco de areia sob o carpete do glamour, e alguns vídeos digitalizados diretamente das fitas que já mofaram nos armários da biblioteca, nenhuma conclusão foi tomada, e pouco se comenta mais sobre os acontecidos daquela época, mesmo com todos os protagonistas na ativa, vivos e bufantes nos altares do conhecimento.

Quando recém fundado o Centro de Fonética (CF), divisão do Instituto destinada a desvelar

com maestria e zelo os fenômenos da emissão de ruído inteligente, muitos alunos do segundo período da graduação de Ciências Físicas demonstravam muito interesse pela especialização nestas artes pós-sacrossantas. Hoje em dia, é verdade, pouco mais de cinco alunos a cada ano querem prosseguir nesta linha de pesquisa, e em muito essa impopularidade se deve aos acontecimentos de Novembro de 1995, mesmo que nem os próprios pesquisadores saibam ou possam sonhar em saber disso.

Novembro de 1995: três famosos cientistas eram os chefes do recém criado Centro de Fonética. Um deles, o barbudo, tinha muito mais o que fazer do que cuidar de neófitos acadêmicos, e portanto pouco era visto; era um vulto na dramaturgia científica; era, sobretudo, uma voz que ecoava nas revistas conceituadas de Fonética; um fantasma que assombrava as mentes despreparadas. Mesmo assim, naquele mês uma onda crescente de pedidos de transferência de habilitação, e até mesmo de dispensa de curso, acumulava-se aos pacotes nas mesas da secretaria acadêmica. Oito em cada dez requerimentos eram de moças, em geral moças com exemplar rendimento acadêmico, e isso, pouco a pouco, passou a chamar atenção dos burocratas da Instituição, sobretudo do então Presidente da Magnífica Cátedra (MC), que era 25


intimamente ligado aos órgãos governamentais, e bem por isso era bem preocupado com a popularidade dos centros de pesquisa que jaziam, embora demasiadamente vivos, dentro daqueles prédios.

O que mais chamava atenção dos burocratas da “sala dos céus” (carinhoso apelido dado à secretaria acadêmica e todas as suas ramificações, raízes e frutos), além do crescente número de requerimentos, era que, em grande porcentagem, as cartas de dispensa mencionavam a aversão aos trabalhos desenvolvidos com o recém desenvolvido laser ultra-verde (LUV1500®), o qual, em grande parte, deveu-se às pesquisas incessantes do professor barbudo. Oras, pensavam os burocratas, este laser sequer havia sido formalmente cadastrado nos bancos de dados informatizados, não parecia consistente um número tão grande de menções desonrosas associadas a tal trabalho… O que poderia explicar este fenômeno que nem os cientistas entendiam?

Outro relato que contribuiu para a estranheza do ambiente de pesquisa, naquele tempo, não veio por parte dos professores, nem dos alunos, mas dos funcionários da limpeza do prédio. Aparentemente, desde que o professor barbudo dissera ter retomado sua atividade pedagoga, o banheiro feminino que ficava imediatamente ao lado de seu escritório nunca mais precisou ter uma limpeza muito profunda. Dia após dia os faxineiros adentravam aquele ambiente de purificação das almas, e encontravam tão somente pureza. Não havia papel higiênico usado nos lixos, não havia sujeira alguma, não havia mau cheiro. Tudo brilhava. Apesar de louvável, no entanto, esse ambiente não fazia sentido algum. Por mais limpas que as usuárias fossem, era muito estranho que sequer um papel higiênico estivesse devidamente dobrado nas cestas de lixo – e o papel era usado com certeza, pois sempre havia de ser substituído nos compartimentos ao lado dos vasos sanitários... Algo muito estranho acontecia, e todos os fatos esdrúxulos pareciam não ter conexão alguma uns com os outros, pelo menos para as mentes sãs

daquele Centro de Pesquisa.

Por volta do mês de Julho daquele ano, algumas alunas comentavam nos corredores sobre um estranho incômodo ao usar o banheiro feminino que ficava ao lado da sala do professor barbudo. Recorrentemente era mencionado, sem qualquer tom sombrio, que era possível ver brilhos verdes, difusos e trêmulos, rebatendo nas paredes do banheiro, oriundos provavelmente de testes que estavam sendo feitos na sala do professor com algum instrumento que emitia luz verde; era possível que algum efeito de reflexão nas paredes, desde o vão da porta, pudessem

fazer com que a luz chegasse até a intimidade das usuárias do espaço higienizador, e, portanto, não era motivo de grande alarde, apenas de incômodo moderado.

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Todavia, coincidentemente naquele mesmo mês algumas câmeras de segurança passaram a ser instaladas por todo o complexo do Instituto, por gentil pedido das novas portarias que haviam sido baixadas na presença do Exmo. Governador em pessoa. As fitas gravadas eram duplicadas: uma ficava em posse restrita da prefeitura do campus, outra ficava em posse restrita da Superintendência de Assuntos Acadêmicos de Segurança (SAAS). Curiosamente, todas, absolutamente todas as fitas relacionadas à camera de segurança que monitorava a vizinhança da sala do professor barbudo no período das duas às quatro da manhã de dias úteis, bem como toda uma papelada referente a um estranho pedido da Secretaria de Ordem Patrimonial (SOP) para analisar exatamente essas fitas devido a uma conjuntura improvável de pedidos extraordinários vindos do Presidente da Magnífica Cátedra, haviam desaparecido desde que houve uma pane nas instalações elétricas do prédio (Oficialmente, emitiu-se nota alegando manutenção no sistema de distribuição de cátodos do Centro de Cristais), numa fatídica quintafeira a tarde. O porquê de tantos pedidos da análise desse material específico é algo que ninguém nunca soube ao certo, e os reais motivos permanecem perdidos em algum gabinete, a espera de serem contemplados pela autoridade de plantão.

Neste contexto de estranhos acontecimentos inócuos, todos os setores administrativos do Instituto foram pegos de surpresa no mês de Novembro, que foi onde comecei esta investigação e este relato. À época, o Instituto, e sobretudo o Centro de Fonética, viviam um auge atípico: publicações cada vez mais relevantes envolvendo os trabalhos iniciais com o laser ultra-verde figuravam em capas de grandes periódicos nacionais e internacionais; autoridades políticas, científicas e jornalísticas frequentemente visitavam os corredores do Instituto, e um semnúmero de adolescentes migravam para a área científica desde o final da puberdade, e desejavam terminar de envelhecer no mesmo laboratório em que começaram, como se as raízes e as sementes da árvore fossem a mesma coisa, destinadas a caírem sempre sobre a mesma relva adubada, fofa e úmida dos tempos repetidos. O Instituto desdobrava, como polvo

espreguiçando aos raios do primeiro dia, em financiamentos megalomaníacos bem justificados. Os autarcas cresciam, as engrenagens giravam a todo vapor... Até o grande baque do dia 15.

No dia 15 de Novembro de 1995, aniversário da proclamação da República, feriado nacional, a cobertura em rede nacional das marchas comemorativas ao longo do país, em horário nobre, foram interrompidas por uma matéria que parecia ter sido colocada por engano, um deslize, um erro da produção de todos os jornais. Por cerca de dois minutos, a população pôde experimentar um pequeno incômodo causado pelos grandes jornais que noticiaram, quase que

como forçosamente, o caso de uma aluna chamada Silvana M. Dias, que fugira do Instituto há 27


duas semanas para ser encontrada vagando pela Rodovia Régis Bittencourt, com roupas imundas, sem tomar banho desde que saíra correndo de uma aula de Introdução à Fonética dos Sólidos (ministrada pelo professor barbudo), num estado tão estarrecedor que não conseguia tecer palavras, apenas grunhidos, e emanava fluidos de todos os seus orifícios ao mesmo tempo, em reflexo de desespero.

No vídeo mostrado em cadeia nacional por dois minutos, Silvana aparecia encolhida no canto de uma sala acolchoada e branca, babando algo turvo, catatônica. Forçando-se muito, poder-seia ouvir alguns sons oriundos de seu corpo, mas nada que fosse inteligível. Um analista especializado em demências acadêmicas comentava, em termos demasiadamente técnicos, que durante o acolhimento a menina teve uma espécie de surto, e desenhou no próprio braço, usando uma chave de fenda enferrujada, um equipamento que lembrava um canhão comprido com um pequeno orifício do qual emanavam “raios”, junto com representações de roupas íntimas femininas ao redor do aparelho, e muitos círculos. No noticiário não era possível aferir tal afirmação, pois os braços de Silvana estavam enfaixados devido ao tratamento médico de urgência.

Uma multidão de jornalistas mal intencionados, alguns deles idênticos aos que há poucos dias exaltavam a glória do Instituto e seus pesquisadores geniais, aglomerava-se na portaria do mesmo Instituto, em busca de informações a respeito do ocorrido. A horda era tão afoita que nem os professores mais eméritos conseguiam pensar em como agir para dar uma resposta pouco mais satisfatória que “em toda a minha vida eu nunca vi algo tão aborrecedor” ao público; o silêncio combinado, por outro lado, só aumentava a ansiedade por alguma posição oficial a respeito do que ficou conhecido como Caso Silvana. Toda a reputação do Instituto parecia estar se equilibrando numa fina corda entre duas montanhas, e ninguém sabia se a travessia poderia ser concluída sem uma queda desastrosa evidenciada por aqueles dois

malditos minutos em cadeia nacional.

O Presidente da Magnífica Cátedra, de longe o mais transtornado com toda a série de acontecimentos esdrúxulos, enviou por escrito, em carta triplamente qualificada dentro dos padrões vigentes na Academia, uma ordem ao professor barbudo, em específico, mas dirigindose a todo o Centro de Fonética, para que fosse realizada uma vistoria em cada laboratório, cada sala, cada máquina de café, embaixo de cada tapete que se pudesse existir naquele espaço, a fim de encontrar qualquer coisa, virtualmente qualquer maldita coisa, qualquer coisa que pelo

menos deixasse todo mundo abismado, mas que substituísse aquele vazio incômodo de saber 28


que algo estava acontecendo, sem que ninguém pudesse ter a mínima ideia do que fosse, e que talvez, apenas talvez, conseguisse dar uma pista do porquê de Silvana ter surtado. O Presidente, em seu tempo de graduando, havia acompanhado de perto o obscuro caso do Escaninho 44 (que, por sorte, e em prol do bom gosto da sociedade brasileira, diferentemente do Caso Silvana não foi noticiado em cadeia nacional), e aquele tipo de evento não aconteceria de novo, mesmo, dizia o Presidente, que fosse necessário cair morto sobre todo o seu memorial circunstanciado escrito a tinta de impressora, lamúria e sangue de bom cientista.

Por três dias ele esperou, e a carta nunca foi respondida, tão pouco devolvida em branco. O professor barbudo há muito não dava as caras, escondido por trás de um atestado de dispensa por esforço profissional (oficialmente, o professor barbudo estava ocupado demais apresentando grandes resultados em congressos no Panamá, naquela época uma promessa científica na área dos fônons ultra-acelerados em Campos de Mammon-Belphegor). O Presidente, cansado de utilizar em vão seus dons políticos inestimáveis, ordenou uma varredura minuciosa, tão minuciosa quanto manda um bom trabalho científico, e, no dia vinte e cinco de Novembro, uma comissão de cientistas reuniu-se no auditório da Magnífica Cátedra do Instituto, às três da manhã, revisou todo o plano de trabalho, e partiu em busca de qualquer coisa.

Como num grande clichê que todos queriam evitar, o único lugar que sobrou a ser vistoriado era o próprio escritório do professor barbudo. Fora dele, todo detalhe havia sido explorado, desde gavetas de cozinha até versos de quadros, mas nada de estranho foi encontrado. Não encontrando, obviamente, a cópia da chave do escritório que deveria estar presente no setor administrativo, o próprio Presidente tomou em suas mãos um pé-de-cabra (que ele chamou, em tom de sarcasmo mas também de desespero, de “dedo de Deus”) e foi em frente para arrombar aquela porta.

Por cerca de três segundos, toda a comissão científica, seguida de perto pela horda de jornalistas, não soube como agir. Não havia como agir. As informações naquela cena eram tão complexas que nenhum cérebro seria capaz de processar tudo aquilo de uma vez sem implodir. Do escritório exalava um cheiro podre, abafado, orgânico, uma mistura de sêmen velho, fezes, urina e cuspe podre. Sobre a mesa central, a versão prototípica original do aparelho de laser ultra-verde, ligado, com um estranho fluido (provavelmente saliva) escorrendo dos tubos e fios (alguns mordidos a ponto de comprometer o isolamento); o laser apontado para a frente, para

uma cadeira muito ornamentada, na qual muitas roupas íntimas femininas usadas estavam 29


espalhadas. Ao chão, uma quantidade inacreditavel de papel higiênico usado e entulhado, como tivesse sido vomitado do concreto pelo lixão da cidade, com toda sorte de sujeira, alguns visivelmente umidecidos devido a algum líquido posteriormente acrescentado. Uma chaleira repousava sorridente sobre a mobília de canto: dentro, várias fitas cassete cozidas n'água (que visivelmente havia sido bebida), e algumas chapas de registro de raios X, igualmente derretidas naquele chá abissal. Um número doentio de elásticos escritoriais estava preso a um copo de cristal sujo por dentro, com o que pareciam ser restos de uma sardinha que esteve, um dia, em putrefação. Aberto no chão, sobre o carpete, em meio ao papel higiênico, um fac-símile de Júlio César, devidamente identificado com o código da biblioteca do Instituto. Ato III, cena II.

Meses se passaram desde Novembro de 1995 até que o professor barbudo voltasse da sua prolífica viagem ao Panamá. Em sua volta, descobriu um Instituto novo, no qual vários de seus colegas próximos já não mais trabalhavam, pois pediram dispensa urgente para mudar de cidade (alguns de estado, outros de país, outros de carreira). A secretária acadêmica, sempre solícita, era a mesma, e o sorriso em seu rosto continuava o mesmo, e foi ela quem deu o primeiro abraço no professor para saudá-lo em sua volta de jornada. O Presidente havia viajado. Circulavam burburinhos sobre suas filhas terem sido cordialmente enviadas para estudar na França e ele ter embarcado junto, mas voltaria para terminar seu mandato. Todos os noticiários locais, nacionais e internacionais, quando se referiam ao Instituto, exaltavam as novas publicações. Desde então, o número de aceitações de alunos para o Centro de Fonética foi limitado extra-oficialmente a 5 por ano, com igual distribuição de vagas masculinas e femininas, cujas aprovações dependeriam de uma banca de pesquisadores sorteados ao acaso.

O professor barbudo, ponderando sobre todas as mudanças pelas quais o Instituto havia passado, decidiu-se por largar completamente os compromissos extra-acadêmicos, para dedicar-se tão somente à pesquisa e ao ensino naquele local. Em dados atuais, é estimado que o

professor barbudo, desde 1995, teve mais de 2500 alunos, e hoje, já aposentado, é referência nacional de como a meritocracia é o único caminho até uma sociedade justa e limpa. Em seu primeiro dia de volta ao trabalho, encontrou uma sala limpa, brilhante e cheirosa; na chaleira elétrica havia um gostoso chá de camomila, misturado com algumas delicadas gotas de leite de soja, adoçado com açúcar de Sevilha. Sobre sua mesa, ao lado do laser ultra-verde, um bilhete não assinado, dobrado cinco vezes, trazia nada mais que três palavras:

“desculpe o transtorno”.

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Introdução e Manifesto ao Ponderamento -Sr. Y Olá leitores assíduos dessa revista, Sr. Y está de volta! após meses conturbados de minha vida, venho novamente conversar e discutir convosco sobre a conjuntura política, histórica e econômica do mundo e especificamente do Brasil. Nesse texto iniciarei-vos a um projeto que pretendo realizar nas próximas publicações, e será voltado para a História Política Brasileira.

Mas Sr. Y, porque temos que conhecer a História Política? Bem, o que vivemos em nossa atual situação política deve-se a fatores formados antes mesmo da República, origina precisamente na estrutura Monárquica de Portugal, a mentalidade dos seus governantes e a rápida ascensão da fidalguia que se apossou das terras tupiniquins, construindo a Aristocracia brasileira.

Veremos a construção das classes econômicas e suas disputas no cenário, as vertentes dos pensamentos liberal, como o iluminismo, “colapsando” com a estrutura anterior resultando na formação da República. O governo de poucos da metade do século XIX, passando pelo Estado Novo de getúlio até encontrarmos com O Golpe Militar de 64, as razões de sua queda para

instituir o que agora conhecemos como a Democracia Ocidental, ou Democracia Indireta.

Pretendo não ficar preso às questões históricas e sim evidenciar aspectos sócio-econômicos da época que influenciam na atual estrutura do estado e governo.

Espero que gostem dessa forma de leitura e que o conhecimento vos ajudai a serem melhores pessoas e cidadãos!

“Conhecer o Passado é uma dádiva da humanidade, pois não há o novo se não existir o velho.”

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Para a segunda parte do texto gostaria de escrever a minha opinião não diante dos fatos que assolam o mundo, em ocasião o Brasil, mas sim a reação que esses fatos geraram na sociedade. Caro leitor, como essa parte é uma impressão minha, não sinta-se pressionado a ler o que um velho louco pensa do mundo.

“O que mais me aflige é a Polaridade Cega das pessoas.”

No meio em que vivo, acadêmico econômico, é muito comum as pessoas se definirem em escolas ou grupos de pensamento, como direita ou esquerda, liberal ou conservador, etc. É natural do ser humano procurar grupos semelhantes de características, a prova mais clara desse agrupamento deve-se a criação das religiões, no entanto não entrarei nesse caminho.

Como citei no texto anterior, irei realizar a discussão de fatos históricos do Brasil, e por mais que seja contra, algumas horas terei que denominar um grupo de indivíduos como fazem, cientificamente essa método é praticável pois vemos macroformas a fim de facilitar nossos

cálculos e análise, como dizem a metáfora da “vaca esférica” na área das exatas.

A questão que gostaria de levantar é uma polaridade cega, ou seja, a que não possui senso crítico das informações captadas, enfraquece a sociedade humana como um todo, criando efeitos como: • No momento em que a pessoa entra no grupo ideológico que se assemelha, ela absorve todo o pacote de ideias do grupo a fim de garantir a proteção e diminuir a rejeição ao mesmo. Porém, ao fazer isso, esse meio condiciona a quebra a cultura do senso crítico intencionalmente, onde a pessoa para de questionar e segue os dogmas ideológicos. Ao meu ver, o homem somente evolui quando depara-se num conflito ou dificuldade, esse efeito resulta na falta de debate e discussão interna das doutrinas, com a falta de discussão, a ideologia entra no conformismo e não aprimora-se, tornando-se obsoleta, incompatível com a sociedade pós moderna em que vivemos, onde temos o maior número de informação sobre um determinado acontecimento; • Vindo do pressuposto que o ser humano é um animal individualista (essa é um bom assunto que podemos discutir futuramente), essa criação dogmática favorece em aspecto real (enriquecimento ou poder) apenas um número ínfimo de indivíduos dentro do próprio grupo, o que tanto conhecemos como corrupção; 32


• Agora no âmbito externo da polarização, o efeito de preconceito que gera essa alienação de ideais cria formas radicais nos próprios grupos, e os mesmos tornam-se propensos a atos violentos contra indivíduos fora do ambiente, são inúmeros exemplos que posso citar, e muitos provém de conflitos religiosos;

Chegamos onde gostaria de fazer minha súplica:

“Nós precisamos saber Ponderar.”

Não acredito que o homem consiga ser imparcial, mas o que realmente espero é que ele pondere sobre as coisas que ele vê, escuta, sente. Não aceite verdades unilaterais, procure de qualquer forma diferentes visões daquilo que você queira conhecer, vivemos em um mundo em que a informação é acessível, sua parte é saber filtrar para evoluir.

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Senado à brasileira -Alguém Nos últimos tempos muitos brasileiros ficaram chocados com o nível das tramoias e corrupções na classe política dessas terras tupiniquins. Uma das coisas que mais chamaram a atenção foi um senador (e então presidente nacional de um dois maiores partidos do Brasil, o PSDB), em um grampo, comentando (talvez por força de expressão) sobre “matar” um recebedor de propina (uma mula) antes de uma eventual delação. Pode-se pensar no senado romano nessas horas, mas o brasileiro não fica muito atrás. O Senado Federal brasileiro foi palco de diversos acontecimentos históricos, desde a renúncia de Collor horas antes da votação do Impeachment até o Impeachment de Dilma Rousseff. Porém coisas realmente inacreditáveis marcam a casa máxima do mais poderoso braço de poder republicano. Gostaria de usar esse espaço para discorrer sobre um episódio bastante peculiar na casa da federação. Em 4 de dezembro de 1963 o plenário do senado teve uma difícil sessão (mas, inacreditavelmente, longe do Top 5). O Senador alagoano Silvestre Péricles de Góis Monteiro, em um discurso, sobe o tom contra outro Senador alagoano (e conhecido desafeto político), Arnon Affonso de Farias Mello, pai do ex-presidente Fernando Collor. Mello pede a palavra à Mesa Diretora do Senado para que pudesse responder. Tenso, o presidente do Senado Auro Soares de Moura Andrade avisa que “se alguém perturbar a ordem será posto imediatamente em custódia” e “se houver qualquer delito, será Silvestre Péricles

imediatamente aberto inquérito...”. Arnon então acusa Silvestre de

ameaçá-lo de morte. Com o barulho de gritos e discussões vêm

os disparos, e mais gritos. De acordo com a Justiça do Distrito Federal ambos sacaram suas armas, mas apenas Arnon disparou. Seus tiros erraram Péricles e acertaram outro senador, José Kairala, que faleceu no mesmo dia. Senador pelo estado do Acre, Kairala nunca foi eleito, era suplente do Senador José Guiomard dos Santos. Havia assumido a cadeira em 6 de julho de 1963 quando o titular entrou em licença, e sairia dela no dia 7 de dezembro de 1963 e,

muito provavelmente, se aposentaria. Sua carreira política foi abreviada por meia semana (morreu na quarta, sairia no sábado).

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Arnon de Mello


Arnon e Silvestre foram presos em flagrante e os autos do inquérito foram encaminhados à autoridade judiciária competente. A autoridade em questão era o recém-criado TJDFT (tribunal de justiça do distrito federal e territórios). Em 16 de abril de 1964 o então Juiz Presidente do Tribunal do Júri de Brasília, Djalmani Calafange Castelo Branco, inocentou Silvestre da morte do Senador acreano. Para Arnon o Juiz decidiu que ocorresse um julgamento pelo Júri. Porém, nova análise dessa decisão absolveu Arnon de Mello. O entendimento na época foi que o “homicídio praticado em legítima defesa ou estado de necessidade não constitui crime, mas fato lícito (...) não é crime doloso contra a vida”, portanto fora do alcance do Tribunal do Júri. Não

demorou meio ano para que tanto Arnon quanto Péricles voltassem ao nobre cargo de Senador, sem perderem seus mandatos. Esse evento é tão curioso quanto é

chocante

e

serve

para

demonstrar a complexidade da política

brasileira,

fruto

da

complexidade da história do Brasil. Essa não é uma terra para iniciantes. A partir daqui eu tinha uma conclusão positiva sobre a possível melhora do país, pois,

aparentemente,

não

se

resolve tanto as coisas na bala. Porém, por ironia da história agora 20h de 24 de maio de 2017 e, para frear protestos violento (sim, violentos, não há o que se discutir), o presidente Michel Temer lançou mão de uma tática antiga e maquiavélica. O presidente acaba de decretar que o exército interceda na segurança do DF. Só para que fique claro, a última vez (que eu saiba) que essa medida autoritária foi usada foi na votação da emenda constitucional

Dante

de

Oliveira, a emenda ficou conhecida pelo movimento até hoje conhecido como “Diretas já”. Deixo abaixo a conclusão do meu texto, que agora já não faz mais tanto sentido:

35


Mas, no meio do desespero criado por essa história que este autor jura que não é inventada, existe uma luz. A esperança de que o Brasil, ao que tudo indica, está parando (ou tentando parar) de resolver os problemas na bala, ainda que socos e cuspes sejam comuns. Da renúncia do primeiro presidente, Deodoro da Fonseca, até a promulgação do AI 5 resolver as coisas desse jeito já foi muito mais comum, infelizmente. No momento de crise que o Brasil passa agora sou forçado a citar o ex-presidente José Sarney: “A democracia brasileira cresce quando não se bate mais nas portas dos quartéis em momentos de crise”.

Referências: 1. O Senado Federal permaneceu como corte extraordinária apesar da renúncia e, após empossar Itamar Franco, votou pela perda dos direitos políticos de Collor por 76X3. O “esquema PC” havia lhe ferido politicamente. Em dezembro de 1994, por 5X3, o plenário do Supremo Tribunal Federal absolveu Collor das mesmas acusações, i. e., vantagens indevidas na compra de um Fiat Elba de 10.880 dólares, reformas na casa da Dinda e um tratamento dentário da mulher. 2. Conhecido como “rei do gado”, Auro foi o homem responsável por ler a carta de renúncia do presidente Jânio ao Congresso Nacional. Auro também foi quem empossou Ranieri Mazzilli na presidência (em 2 de abril de 1964) apesar do então presidente João Goulart ainda estar no Brasil, começava assim o golpe militar de 64. 3.

Todo

o

trecho

da

sessão

do

plenário

do

Senado

Federal

pode

ser

ouvido

em

<<https://www.youtube.com/watch?v=KnSr0HFpG4Y>>. 4. Essa informação pode ser observada na resolução número 35, de 1963, que pode ser consultada aqui: <<http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=88790&norma=114659>>. tramitação

pode

ser

checada

aqui:

<<

Sua

http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-

/materia/63656 >>. 5. Que, na verdade, era nascido em Manaus (AM). Serão sempre comuns senadores de um estado

nascidos em outro. O melhor exemplo é de 1990, quando o ex-presidente Sarney for eleito senador pelo recém-criado estado do Amapá, sendo ele obviamente um maranhense. Essa história é muito boa, mas fica pra outra hora. 6.

O

processo

tinha

o

número

967/1963

e

seu

resumo

pode

ser

lido

aqui:

<<

http://www.tjdft.jus.br/institucional/centro-de-memoria-digital/documentos/processoshistoricos/PROCESSOS%20HISTORICOS_caso%20arnon%20de%20mello.pdf >>. 7. O DF é um território federal, logo, de um ponto estritamente legal isso não está alheio à lei. Para ler o decreto

pesquise

aqui:

<http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=24%2F05%2F2017&jornal=1000&pagina =1&totalArquivos=2>. 8. Sobre o caso: <<https://pt.wikipedia.org/wiki/Medidas_de_Emerg%C3%AAncia_do_Planalto>>. A emenda foi derrotada no Congresso. 36


Weltschmerz - Wild Child De tudo o que dá pra se saber, pra se sentir que é verdade, você só será você, só terá essa vida, que será desse jeito que é, existirão só essas coisas e fatos que existem e são possíveis, será nesse lugar que é e nesse tempo que é. Você não saberá o que vem depois, não terá o que perdeu, não irá saber o que é ser outra pessoa, não terá ou viverá outras coisas. E o que você terá depende de você conseguir atingir ou vivenciar na circunstância em que você vive, com a sorte que lhe foi dada pra ser quem você é e viver onde você vive. As escolhas devem ser feitas enquanto você sente a pressão do tempo que te empurra, cada vez mais perto do abismo.

Olhando para si,

Você sente um desespero, sofre por ter tanta capacidade de imaginar, criar e desejar, por conseguir compreender como a realidade poderia ser, e a cada dia ter que ser atingido pelo fato de que os fatos sempre acontecerão em um plano inferior àquele que você vislumbra. Você,

debatendo-se pelo contrário, acaba percebendo que as chances de se surpreender positivamente são tão baixas, tão perdidas em meio às surpresas negativas do mundo. Você admite que o mundo que te sustenta é um lugar pobre, que você morrerá sem satisfazer a maioria dos seus desejos ou realmente chegar a ser quem você quer ser. E no fim você vai dizer que conseguiu sim, que até que deu, mas só porque o constrangimento desse fracasso, em especial, é insuportável.

Esse é O Fracasso, e aquele que é inerente ao mundo daqueles que desejam com força. Por

construção, não somos nem mesmo capazes de sustentar a felicidade por muito tempo, nós mesmos somos uma parte do mundo que nos odeia, que nos fornece a existência e a precariedade ao mesmo tempo. Vou tentar explicar melhor, com uma metáfora. Você se sente uma criança nascida sob os socos de seus pais, você tem olhos maravilhados com as possibilidades daquele lugar, mas está miseravelmente amarrada ao espancamento dos pobres de espírito que te nutrem. Você fantasia, mas eles não entendem nada disso, eles te espancam. Você está no colo deles, deseja se aconchegar naquele calor, eles te espancam, você continua desejando o calor daquele colo, porque sem ele você é nada, então você aceita o

espancamento.

Com o tempo se acostuma a pensar que o espancamento não é tão mal assim, que até dá pra sentir o calorzinho do colo, que é só prestar atenção no calor ao invés do espancamento. Com o 37


tempo parece que nem é espancamento. É uma boa ideia mesmo, mas o que seria se não houvesse o constante espancamento? Você pode ter essa fantasia, mas se recusa. Dói demais. Isso seria vivenciar O Fracasso. Pra que fazer isso? E se chegar uma hora em que não dá mais pra ignorar essa fantasia? O que a realidade se torna? Quanto mais você elabora suas fantasias, mais o que é real se torna uma distorção sádica dos seus sonhos. Com o tempo você vê que os sonhos não são para ser manifestados, seja por culpa do espancamento, seja por culpa sua, que é tão feito sob medida pra se espancar.

Na pior das hipóteses, você em depressão aprende a se desapegar do calor e consegue adquirir a coragem necessária para não se permitir ser mais espancado, não se permitir mais ser. Na melhor das hipóteses, você consegue anular suas fantasias e atingir uma posição na realidade em que você sente menos o espancamento. Mas anular as fantasias e continuar até que você seja naturalmente atirado pelo abismo exige mais coragem do que para simplesmente se jogar, junto com suas fantasias. Na hipótese mediana, você foge, fragmenta sua identidade para que um lado seja espancado enquanto o outro fantasia. Então você se concentra no outro, foge. Ali você vive seu reino encantado, enquanto luta para não ser puxado de volta, muitas vezes perdendo,

quase sempre perdendo, e se acostuma a se contentar com prazeres etéreos e desconexos, pois concreta é a realidade que espanca.

No fim, você sofre, sofre porque a realidade não foi feita pra te deixar bem, pra que você tenha uma vida plena. Você pode tentar ou achar que dá sim, você é livre pra fantasiar o que quiser, induzir loucuras, não desenvolver alguns tipos de sensos, acreditar em quaisquer coisas. A verdade é que o cenário que te criou é alheio ao que te faz bem. Você sabe demais, você entende demais, infelizmente. Tudo poderia estar certo, poderíamos viver em um paraíso, só acontece que não vivemos, azar. O azar está em todos os lugares, esperando pra te consumir ainda mais. A destruição é mais forte, mais competente e mais durável que a construção. A construção se esconde, fazendo o que dá, no seu canto. No processo, você sofre. O mundo não é seu.

Olhando para os outros,

Você sente um desespero, porque você entende que os outros são como você, são mentes perdidas buscando um lugar ao sol, buscando entender o que se passa nesse mundo caótico e cruel, bem cruel. Agora é confortável pensar e dizer que o mundo é uma desgraça, um inferno faminto e insaciável. Enquanto olhamos para os outros não nos sentimos mal de xingar a

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realidade que nos alimenta com o sopro da vida, porque o sofrimento dos outros não é o nosso sofrimento, é O Sofrimento. O mundo destrói as pessoas, faz o sangue das pessoas jorrar, manchar todos os tipos de superfícies. O mundo espalha as vísceras das pessoas no chão. O mundo é criativo com a infinidade de traumas que é capaz de tecer para presentear às outras pessoas. Ele faz com que elas tentem continuar vivendo, tendo esperanças, depois de terem presenciado e vivenciado cenas nojentas, irreversíveis, cenas que provocam perdas tão substanciais. O mundo faz com que as pessoas sofram por muito tempo com males que brotam de dentro delas mesmas, com males que brotam dos outros, que brotam do acaso e as

consomem. Faz com elas coisas que você nunca verdadeiramente imaginou sendo feitas com você.

Se você toma coragem e para pra desenvolver uma consciência do que realmente acontece com muitas outras pessoas, a maioria delas, todos os dias, e o que aconteceu sempre e ainda acontecerá muito, você entende que o mundo é um mar de sofrimento com ilhas efêmeras de felicidade. Na verdade, a para sermos justos, a maioria das felicidades não é nem uma ilha no mundo, mas uma ilha nas pessoas, nas fantasias das pessoas.

E tomando essa consciência, você sente forte em si o quanto todas essas outras pessoas são como você, são você, com a única diferença que você não sente de fato o que elas sentem. Parece toda a diferença, mas é uma pequena diferença, uma que também contribui para a desgraça, para que você contribua para a desgraça, se quiser, e muitas vezes você quer. Mesmo sem querer, você quer, porque com a desgraça é assim, ela não espera o momento certo nem o ponto certo da teoria, ela acontece, ela faz a inação virar ação contrária, te consumindo e consumindo os outros, por todos os lados.

Olhe para as outras pessoas. Tudo o que elas fazem e são de diferente, tudo que você discorda nelas, tudo que você despreza, é circunstancial. Você acha que existe uma essência humana? Permita-se saber, você verá. Vou tentar explicar melhor, com uma não-metáfora. Já existiram muitas pessoas que morreram de fome. Pessoas que cresceram passando fome, e o cérebro delas não se desenvolveu o suficiente, ficou menor, e elas ficaram menos capazes de tudo. A fome sendo um sentimento muito intenso, controlando quem você é, o que você pensa e o que você quer, contaminando suas fantasias e sua identidade, te jogando no chão com força, perturbando cada respiração sua. A fome sendo uma dor muito intensa, o estômago vazio não provocando um sentimento de vazio, provocando sim um sentimento de cheio, com muita coisa acontecendo dentro de você, doendo dentro de você, te fazendo torcer, não tendo posição pra 39


ficar, nem dentro e nem fora. É seu corpo comendo seu corpo, comendo sua mente, dia após dia. Até que seu próprio corpo e sua própria mente não são mais suficientes, daí você morre. As outras pessoas morrem. Morrem disso. E também tem outras pessoas que morrem pelo abuso da comida, que vomitam de tanto comer, pessoas já morreram esmagadas por um monte de comida. Pessoas já morreram esmagadas por um monte de muitas coisas.

Mas morrer é um lado do sofrimento. Tem o outro lado que é ser mantido vivo. Igual as outras pessoas são mantidas enquanto, por exemplo, a fome não as mata. A espera também existe

muito. Muitas outras pessoas já sofreram acidentes terríveis, como batidas de carro, e muitas ficaram por muitos minutos, ainda respirando com muita dificuldade, pensando, sofrendo, descobrindo dores, tentando, vendo a morte à sua volta, aos poucos chegando mais perto, e ela chega. A morte e o sofrimento chegam, não são destruídos no último instante durante o clímax, não existe clímax, a dor vem chegando e ela chega. Muitas pessoas já foram torturadas, mantidas vivas em sofrimento, por muito tempo. Muitas pessoas já foram estupradas, mutiladas, enlouquecidas, exploradas, escravizadas. E muitas serão, tendo uma vida de miséria.

Também podemos pensar em superação, em renovação. Essas coisas acontecem, às vezes. É que não estou aqui pra dizer que o mundo é a pior das desgraças, só pra dizer que ele é uma desgraça, e que ele poderia não ser, e que você tem o poder pra saber como ele poderia não ser. Pense que a vida que as pessoas têm é tudo o que elas terão. De repente não é mesmo exagero pensar no mundo como uma desgraça. A não desgraça está apenas em nós, em alguns de nós, nas ilhas efêmeras. Existe beleza, mas está longe de ser tudo o que precisa para se livrar da desgraça, porque beleza só é beleza quando apreciada, quando acessível, quando não silenciada pela dor.

Na pior das hipóteses, você faz algo a respeito pra se sentir bem com quem é, orgulhoso de si. Na melhor das hipóteses, faz algo a respeito pra dividir o sofrimento, sabendo qual a verdadeira face da realidade. Na hipótese mediana, você faz algo às vezes, sofre quando faz e sofre quando não faz.

Sabendo de tudo isso, parece constrangedor poder dar as costas ao mundo e se divertir na ilha, mas ao mesmo tempo não fazer isso quando se pode é constrangedor porque é desperdiçar. Alguém não sofrer às vezes é melhor do que só haver sofrimento. Mas quanto mais claro tudo é, mais difícil é agir. Você tem vontade de não ser, não poder ser feliz nem sofrer, só pra não ser responsável por tanto. Só que fazer algo a respeito também gera o problema que tenta evitar. 40


Então você sofre, sofre porque os outros sofrem, sofreram e sofrerão, vidas já foram para sempre marcadas e vidas serão marcadas. E essa conexão que temos por definição? Não poderíamos usá-la para criar uma nova realidade, uma em que todos podemos negar grande parte do sofrimento? Poderíamos, mas não fazemos, não somos tão bons assim, tão capazes assim. Criamos mundos novos, mas temos outros fins, outras ideias uns dos outros. Nós entendemos e não nos entendemos. E os outros sofrem. O mundo não é de ninguém

41


-Melancolírico saio pra tentar entender uma sensação nova e comprar cigarro. principalmente pelo cigarro. e tentando lidar com o novo, tropeço no velho e acabo me entregando a uma queda na zona das memórias. é essencial desapegar do passado, mas não negá-lo ou não aceitar que o mesmo é a areia que preenche os vazios entre as grandes rochas que alinhadas formam a via do presente, do novo e

das

próximas

experiências

[PORRAAAAAA!!!!!

QUERO

MEU

CIGARRO...].

as ruas do centro de são paulo estão mais vazias que o normal e não é pelo frio, mas pela chuva que apesar de fraca é insistente. quando chove, o caminhar das pessoas é mais rápido mas o fluxo bem menor. isso te faz mais atento aos detalhes da rua. então me chama atenção um casal que caminha logo à frente. o X que seus braços fazem ao se cruzarem pra segurar as cinturas um do outro é bonito visto de trás. a silhueta de seus corpos juntos também. [PORRAAAAAA!!! EU QUERO PODER CONTINUAR BEM ESTANDO SOZINHO COMO AGORA E RECONHECENDO POR QUE TAMBÉM É BOM TÁ COM ALGUÉM...] às vezes um vira o rosto pro outro e confia a ele a direção da caminhada que tem como obstáculos postes, placas e pessoas na direção contrária. eu paro e observo eles irem, quero ver a cidade os engolir depois de alguns blocos, mas não quero

me molhar muito e por isso desisto e vou pra debaixo de uma banca de jornal. agora a coisa pega pra valer, porque é julho e há pisca-piscas do último natal em algumas das paredes da banca. pode rir e dizer que eu sou idiota(porque eu sou um idiota), mas isso me sensibiliza. e eu gosto. o agridoce da melancolia [PORRAAAAAAAAA!!!! EU QUERO MAIS DISSO...] e é isso, a partir dos piscapiscas meu pensamento salta.

lembro de um dia nas proximidades do último natal, não sei se antes ou depois.

irrelevante! casa de um amigo, pisca-piscas colocados e funcionando!!! uma galera foda, que confio, parcerias pra se ter por perto. o clima é de relaxamento e esquecimento. esquecimento de que há um mundo e várias coisas lá fora. e isso não é egoísmo. isso é se colocar e aproveitar ao máximo o momento com quem você ama. 42


tv ligada, som, conversas. todo mundo feliz. mas por um momento se preocupa o dono da casa e a namorada: o cachorro está doente. um border collie fofo que apesar de estar meio mal se esforça pra ficar bem, alegrar e roubar carinho de todo mundo. meu amigo coloca um comprimido na boca do cão com carinho e lhe dá o rosto que se torna alvo de muitas lambidas molhadas. é que isso garante que o garoto tenha engolido o comprimido.

o comportamento do cão, esse seu esforço em ser o que deve e nasceu pra ser apesar de não estar bem, me desperta um afeto e sentimento muito raro, desses que você não nomeia. seres que estão se esforçando, que estão tentando, fazem isso comigo. e esse pensamento me lembra dela [PORRAAAAAAAA!!!!!! EU QUERO ENTENDER ISSO MAS NÃO ENTENDO AINDA, PORQUE AS VEZES ACHO QUE ISSO É UM PROBLEMA???...].

falando-se em corpo, o meu ainda processa o contato com o dela. poderia explicar com uma poesia que falharia em escrever, uma música que não conseguiria compor ou com um sorriso de canto de boca seguido por um grito e um soco na parede que me quebraria a mão enquanto eu continuaria sorrindo ou até gargalhando. e eu prefiro não quebrar a mão, por isso só eu vou entender do que

eu

falo,

aqui

serei

meio

cuzão,

foda-se

e

[PORRRRRRAAAAAAAAAAAAAAAAAAA EU QUEEEEEEEERO ENTRAR NUMA OUTRA DIMENSÃO DE NOVO VOLTAR E BRINCAR DIZENDO

VOLTEI E SORRIR E VER ELA SORRIR COM OS OLHOS DE UM JEITO DESGRAÇADO].

a vida é feita de encontros, de contatos, de atravessamentos. e pelo corpo dela fui atravessado, só não mais do que pelos corpos que desejo e que ainda não conheci. a mente projeta e desenha expectativas grandes demais, e que geralmente nao são verdade.

uma pequena pausa aqui pra me desculpar porque eu reconheço que falo muito de corpos. é que eles conversam entre si tanto quanto as mentes, e as mentes com os corpos e vice-versa.

43


e continuando, vou terminar de contar sobre ela falando agora sobre nosso encontro à nível mental (rs). e pra isso temos de voltar ao border collie. o encantamento causado por ela é essencialmente igual ao causado por ele [PORRA O QUE É ISSO EU NÃO ENTENDO E ISSO ME INCOMODA PRA CARALHO POR QUE EU SIMPLESMENTE NÃO FICO DE BOA EM NÃO ENTENDER???]. uma garota incomum-excêntrica-cheia de experiências-meio

perdida-se esforçando pra encontrar qualquer caminho que a satisfaça e faça sentido. algo que seja novo. quando começava a falar da vida e das pessoas quase não respirava entre as falas, parecia que o corpo não sabia onde estava, mas estava tentando, procurando e [PORRAAAAAA EU QUERO QUE ELA ENCONTRE O CAMINHO DELA...]. e tudo isso gera uma admiração maluca, que

não

me

provoca

o

instinto

paternal

e

imbecil

de

tentar

proteger/interferir/ajudar, porque algumas buscas são individuais.

não falo aqui sobre amor ou paixão [PORRAAAAA EU QUERO QUE VOCÊ PARE DE FALAR SOBRE AMOR EU TÔ CANSADO!!!] (as pessoas deveriam falar menos de amor, do que é, a partir de quando acontece, etc, ou usá-lo como a medida mais elevada pra se perceber uma relação). falo sobre alguma coisa que não sei nomear, e só. e isso é o novo que eu estou buscando entender desde que saí de casa pra comprar meu cigarro, no começo desse texto. o novo de perceber e dar nome a algo inominável e que algumas pessoas que conheci até hoje geraram em mim. pessoas por quem também me apaixonei ou não. pessoas que

amei ou não.

saltando entre memórias de volta pra casa do meu amigo, com a galera conversando, fumando, bebendo, jogando... dois deles assistem atentamente o momento final de um último episódio de uma série que na época ainda enlouquecia os viciados em netflix. na tela aparece um cara, meio perdido, brincando em um balanço amarelo que ele mesmo havia instalado na beira de um precipício, pensando, meditando e decidindo sobre questões da própria vida, desde relacionamentos e trabalho até se deveria pular e morrer [PORRAAAAAA EU QUERO QUE VOCÊ PULEEEEEE E FAÇA AS PESSOAS CHORAREM ME DÊ UM FINAL LEGAAAAAL.....] e é uma imagem muito bonita. me coloco no lugar dele. uma sensação nova. cada balançada é imensamente prazerosa, sensação de recomeço ou de uma primeira experimentação de algo novo. a cada 44


balançada coisas, pessoas e memórias ficam mais pra trás. e cada vez eu me balanço mais forte e mais forte e mais forte e eu me impulsiono mais e mais e mais forte e então eu solto das cordas e caio do precipício [ ].

consegui comprar meus cigarros, fui até um pico mais próximo porque tinha

parado de chover na grande cidade e o céu se aberto. deu pra perder um tempo com umas estrelas, fumar alguns dos cigarros e voltei pra casa.

45


A síntese de Planto

- Wild Child

No meio do nada havia um ferro velho com montanhas de sucatas metálicas, com metais e peças de todos os tipos, inteiras e quebradas, retorcidas e desenroladas. Também havia uma cabana, feita de lata, de vários tipos de latas, lar do robozinho Planto. Ninguém estava ali para chama-lo de Planto, mas ele que pensava “eu sou o Planto”. Planto também era feito de vários tipos de metais, combinados formando seu corpinho, mas não quaisquer metais. Os metais de Planto eram certinhos e bem cuidados.

Em sua cabana, havia sua cadeirinha de metal de frente à janela, que era uma moldura na parede de metal e um buraco pelo qual Planto apreciava pacientemente a companhia do Sol, que ia e vinha. Também havia sua bancada de metal com suas diversas ferramentas, separadas por tamanho. Ali, Planto fazia seu trabalho, quando era preciso. Durante a noite, Planto se encolhia no cantinho, pacientemente esperando seu amigo Sol voltar a visita-lo.

Um dia, com o Sol chamando pela janela, Planto se ergueu de seu cantinho e foi animado sentar-se em sua cadeira, para sua conversa matinal com o Sol. Sentado, esfregou sua barriga de metal e, no processo de sentir-se bem, notou que algo não estava bem. Pediu licença ao Sol por

um instante, virou-se, e abriu a portinha em sua barriga para verificar o problema. Observou que uma de suas engrenagens estava defeituosa, enferrujada. Aquele seria então um dia de trabalho. Afastando-se da janela, sabendo que o Sol entenderia, saiu de sua cabana pela porta feita de um metal diferente do metal da janela.

Lá fora, diante das montanhas de sucatas metálicas, Planto se pôs a procurar pecinhas para fazer uma nova engrenagem para sua barriga de metal. Primeiro recolheu uma bacia de metal para colocar as pecinhas dentro. Depois, recolheu botinhas de metal para poder pisar sobre a

sucata. Aí, Planto começou seu trabalho de coletar as pecinhas. Ele não coletava somente o que precisava para montar uma engrenagem nova, mas qualquer pecinha que tinha cara de útil, principalmente para a cabana. Estava juntando para reformar o telhado, principalmente. Mas nem tanto também, Planto pensava que não poderia demorar muito, uma das coisas que queria era conseguir mostrar sua engrenagem nova ao Sol, antes que ele fosse embora mais uma vez. Depois de coletar uma porção de pecinhas em mais de uma das montanhas de sucatas metálicas, Planto voltou para a cabana ansioso e cheio de ideias para estilizar a engrenagem nova. Acomodou-se e acomodou as pecinhas juntos à bancada metálica da cabana e trabalhou 46


por várias horas. Derreteu uma pecinha, soldou outra pecinha, torceu uma pecinha, encaixou outra pecinha, usou todas as suas ferramentas menos duas, uma grande e uma bem pequena. Delicadamente compôs sua nova peça. Depois, com muito cuidado, Planto pegou sua ferramenta bem pequena e poliu a engrenagem bem certinho, moldando os tamanhos exatos do espaço dentro de sua barriga. No fim do processo, a engrenagem brilhou diante de Planto. Ele sempre sabia o momento em que a peça estava perfeita, pois era quando seu brilho dava um salto de intensidade.

Planto rapidamente levou a nova engrenagem para radiar diante do Sol, na janela. Ergueu-a e, junto com o Sol apreciou aquela arte, que havia nascido para ser ele. Bem em tempo, eles brilharam com os últimos raios daquele Sol. Planto abriu de novo a sua barriga de metal, parou seu interior por um instante, e rapidamente trocou a velha engrenagem pela nova. Voltou a funcionar, fechou a barriga, esperou passar a tontura, esfregou a barriga e sentiu-se bem durante todo o processo. Seu trabalho havia sido um sucesso.

Planto olhou para a engrenagem velha em sua mão e sentiu-se grato pelo que ela fez sendo ele e penoso por ela não ser mais ele. Ainda assim, estava apegado a ela, então resolveu leva-la com ele ao cantinho. Planto se encolheu, envolveu a engrenagem, e ficou ali sentindo seu corpo, as engrenagens novas, e a engrenagem velha. O tempo foi passando e o mundo no cantinho era só o que ele sentia, pois só o seu amigo Sol podia trazer o resto do mundo de volta ao cantinho, chamando-o para mais um dia.

Mas naquela mesma noite, antes mesmo do Sol voltar de novo, Planto sentiu barulhos, tantos barulhos que ele se assustou. Levantou-se do cantinho com pressa, pela janela viu um mundo bem mais feio e confuso do que seu mundo com o Sol. Só que era uma outra versão daquele mesmo mundo, ali estavam as montanhas de sucatas metálicas. Mas então também outra coisa. E outra coisa. As coisas passaram rápido pela janela, e o barulho vinha delas.

Antes que Planto pudesse imaginar o que seriam, as coisas abriram a porta da cabana e o

barulho entrou com elas. Planto viu que eram robôs como ele, mas bem diferentes dele, com outros metais e outras peças. Bem maiores que ele. Planto não percebeu isso, mas os robôs se olharam e ficaram felizes de ver Planto. Congelado de medo, Planto se manteve em pé, no meio da cabana, olhando para eles. Os dois então com naturalidade pegaram Planto e o ergueram dentro de sua cabana de lata. 47


Planto só pode olhar uma última vez para a janela, e o Sol ainda não estava lá, antes que os robôs puxassem seus braços de metal e espalhassem Planto até que ele se tornasse um monte de pecinhas novas no chão. Felizes, os robôs substituíram suas peças velhas pelas peças novas de Planto. Terminando o trabalho, eles esfregaram suas barrigas, sentindo-se bem durante todo o processo. Eles pegaram algumas ferramentas da bancada de metal, bagunçando a ordem de tamanho, e saíram da cabana, voltando por onde vieram.

Pela manhã, o Sol apareceu de novo e chamou dentro da cabana de lata, pela janela. Mas dessa vez, chamou apenas as peças velhas no chão.

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