O círculo vol 10

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Índice

ÍNDICE

03. O Mundo das Frutas: Capítulo V (Wild Child)

27. Uma verificação da relação entre faces, arestas e vértices de polígonos e poliedros (Wild Child) 33. O princípio do Super Jump (Sol)

40. Paradoxo da especialidade da existência (Rorschach)

43. Leite (Gato que late) 47. O oráculo da flauta (Wild Child)

52. Leão (Chico Chicória)

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´ Mundo das frutas – capitulo V - Wild Child

V. Acasos Os maracujás do Círculo marcaram mais uma reunião de emergência naquela mesma madrugada. Um pouco depois do ataque, com a metrópole ainda imersa em caos, Selkit isolou-se em seu santuário em busca de preparar-se para a reunião e reformular seu plano de ação. Uma salinha circular com estantes repletas de livros em volta de um grande tapete de faixas circulares, roxas e pretas. Poucas velas estavam acesas, gerando um ambiente sombrio, mas ao mesmo tempo aconchegante. Uma atmosfera que pedia desconforto, mas não permitia que ele surgisse. Ela estava sentada com as pernas cruzadas no centro do tapete, rodeada por livros abertos, páginas e cadernos com densos rabiscos. Tinha diante de si um dos cadernos e sobre ele debruçava gerando frenéticas anotações. Seu estado mental era conturbado, febril. Pensava em Drosophilas e em desastres.

“O que vou fazer? Onde posso encontrar respostas? Qual é a melhor saída? Desvende o caminho”.

Ela observou por um tempo as perguntas anotadas em linhas tortas. Tentava sincronizar os pensamentos com a lenta e profunda respiração. O fluxo de informações e imagens que dançavam em sua consciência era intenso demais para esse objetivo. Por alguns instantes, observou sua mente funcionando, a consciência pulsando por trás daquela bagunça, sentindo a falta de suporte para tanto. Respirou fundo mais uma vez, então arrastou uma mantinha e um vaso com uma planta de

fora do tapete. Com calma, enrolou a mantinha em torno de si, tomou tempo para sentir o efeito em seu corpo, então colheu uma folha da planta. Estruturou sua postura, colocou a folha sobre suas mãos em concha, mantendo-as diante de si. Cheirou profundamente a folha e a colocou em sua boca. Mastigou com calma, aos poucos engolindo planta com saliva. Esperou, respirando, de olhos fechados.

Abriu os olhos, as pupilas dilatando em um abismo. Seus pensamentos vazaram para fora de sua cabeça, projetando-se por toda a sala, diante de sua visão. O silêncio da salinha se desfez. Ela olhou à sua volta, apreciando o que via, sentiu-se e 3


apreciou. Espirais de palavras cruzavam sua frente, em meio às imagens do pensamento, no ritmo de sua lenta respiração.

“Existir é bom. A travessia é excitante, todos os pontos. Ser quem eu sou é incrível,

eu sou elevada, indestrutível, digna. Eu estou no comando, eu tenho o controle. Mesmo que eu morra, que eu seja uma simples criatura a alguém superior, nenhuma espécie de deus é capaz de apagar quem eu sou, o que eu fiz, a minha ciência, o que eu faço com o que eu tenho. Eu estou no ponto mais alto da sociedade e do meu potencial. O poder é meu, as minhas decisões controlam a estrutura. Eu sou causa.”

Enquanto as palavras passavam, o fogo inundava os túneis escuros de seus olhos. As velas sumiram com a luz que vinha de dentro e a dança de respiração, palavras e imagens se tornava cada vez mais furacão.

“Assim que eu consigo me ver como uma ditadora, uma manipuladora, eu estou aqui livremente exercendo esse controle e sentindo prazer com isso. Mas não, eu devo agir conforme as leis, ser racional, seguindo a regência da realidade sobre o que é melhor. Eu acabo não sendo livre, eu acredito em um caminho, me sinto mal com suas consequências. Eu gostaria que a realidade fosse melhor, que a vida fosse mais simples e feliz para todos. Todos. Mas não é assim que funciona, somos um enorme sistema de partes movendo-se sob o comando de regras universais, alheias aos nossos domínios de existência. Sim, a minha não-liberdade é minha, a deles não é deles, eu é que consigo. Conseguir. O mundo não é tão bom quanto eu sou. Não consegue ser. Coexistir com o sofrimento. Eu devo jogar conforme o jogo com a esperança de apenas maximizar o meu, o nosso lucro. Apenas maximizar. Isso, é tão

bom, tão amplo. A existência me dá regras, eu descubro, eu sigo, eu descubro mais, eu posso mais. O caminho se revela. Eu tenho prazer, meu desejo invade o caminho, eu faço funcionar. Eu sou o progresso, é bom pra mim e é certo. Otimizar. Tornar ótimo. Pontuar o máximo permitido. As frutas dependem de mim! Nós dependemos de mim! Eu posso pensar qualquer coisa, eu tenho tudo o que é preciso. Qual a melhor saída? O que precisa ser feito?”

Suspensa, extasiada, concentrou-se na luz crescente. Sentiu a energia pulsar, uma corrente incontrolável permeando todos os cantos de sua consciência. Começou a 4


escrever. Dentro daquele lugar, em si e distante da realidade, escreveu e leu, por duas horas sem parar, até o horário da reunião da madrugada.

Muitas frutas passaram a madrugada trabalhando nos escombros. Na manhã seguinte, uma cerimônia coletiva de homenagem às vítimas e cremação dos corpos foi improvisada na metrópole. Nadília virou a noite em seu dormitório na fortaleza, orientada a esperar. Teria passado trabalhando com a motivação de ter registrado um ritual dos morangos. Mas acabou acordada diante das folhas com os registros, vagando em seus pensamentos. Não teria chorado, não chorava desde que era uva. Mas acabou chorando várias vezes ao longo da madrugada. Se, por exaustão, cochilava, acordava em seguida chorando de novo. Durante a noite, não se perguntou, não pensou; apenas sentiu o que havia para sentir. Ela teria acordado animada e preparado seu rotineiro café da manhã, nutritivo e funcional. Mas ao amanhecer, sem ter que acordar e sentindo a dor da fome na barriga, passou o tempo questionando-se o propósito de se nutrir. Com o corpo encolhido na cadeira, as pernas dobradas no corpo redondo, sentindo sua dor, em seu devaneio tentou se lembrar o porquê de estar com tanta fome. Lembrou-se que não terminou o jantar. Chorou forte, pois seu único desejo era terminar aquele jantar, seguir aquela linha. Queria saber o que mais ele falaria, queria saber o que ela iria achar do que ele falaria. Chorando, voltou a pensar em propósito.

O otimismo, a esperança, a jornada, a ciência, entender o mundo, tudo isso era movido por uma crença, uma que vivia lá no fundo e que ali ela considerou imatura, agora que a percebia. A crença de que as coisas não simplesmente dão errado. “Até quando vamos esperar pela desgraça? Remover o véu!” Isso não era

mais propósito nem retórica, era história. Nadília não tinha medo, mesmo; isso tudo era somente o que ela queria fazer, na verdade, com sua mente exploradora. Os argumentos viviam só na mente, combustível de propósito. E de onde saiu essa crença? Ela se perguntou. Das histórias que contamos a nós mesmos, sabendo ou não; da nossa necessidade de nos fazermos protagonistas. Necessidade de a vida ser especial. Mas aí ela pensou na realidade por trás dessas histórias, a realidade que trata o bom como trata o ruim, então ela vislumbrou a selva, escondida por trás das lágrimas que tanto esperam para cair. A selva que te faz ser o que ela quer ao invés do que você quer ser. Era selva porque, sabendo ou não, com ciência ou não, você 5


consegue se ver perdido, ser presa da vida que acontece. Nadília não conseguia parar de sentir dor. Mesmo assim, a dor a levou a pensar. O que fazer com essa montanha de histórias que esperam por finais felizes? Sem que possamos evitar, esperando ou não, elas morrem, assassinadas diante da negligência da realidade. A

queda do protagonismo ardeu em seu peito.

Naquela manhã, Nadília teria vivido e criado mais histórias, teria feito mais ciência. Mas, sofrendo, pela primeira vez viu-se do lado de fora, onde nem o propósito tinha propósito. Ironicamente, naquela manhã, ao invés de fazer ciência, Nadília fez um pouco da sua ciência, com a primeira visão da selva. Começou a remover o seu véu. Percebeu que não seria protagonista e que o propósito só vive nas histórias. Assim, sem projeto de pesquisa, com o mundo já em escombros, Nadília esperou. Ela teria lido mais um artigo de sua área, mas focou-se na luz da estrela de fogo que se movia pelo quarto, em forma de janela.

Bateram na porta. Estava na hora de comparecer à cerimônia. Ela se viu indo, mas, vendo-se na realidade, não prestou atenção à história.

Muitas frutas, de todas as vocações, preenchiam um dos grandes salões das igrejas. Todos reunidos em luto e confusão, com o espectro do sofrimento dos oprimidos reverberando por seus sons e seus rostos. Um lugar amplo, com uma grande pira funerária improvisada no canto aberto do salão. Também algumas linhas de corpos enrolados em panos distribuídas em um dos lados. Ali, o resultado manifesto dos esforços da madrugada nos escombros, corpos recuperados e reconhecidos, visões de sofrimento.

As frutas aguardavam o início da cremação, na verdade aguardando algo indefinido. De todos os presentes, Malus era quem mais incorporava em seu olhar as características do espectro. Estava também praticamente morto, inerte, sentado no chão e escorado na parede, sem postura e estrutura. Estava ali desde o começo, as frutas chegavam aos poucos enquanto ele se mantinha não se mantendo, no chão. As vozes se intensificaram e os sacerdotes ainda não haviam chegado. Kadia chegou e começou a reunir maçãs para conduzir uma homenagem formal improvisada e foi pessoalmente chamar Malus. Atravessou a linha de seu olhar opaco e se abaixou ao 6


seu lado. Ela notou que Malus estava ainda sujo de pó e sangue, sua voz ecoou de longe em um lugar vazio:

- Malus... Malus... Venha comigo, você está passando bem?... Malus...

Kadia esperou, observando com pesar a expressão e a ausência de seu comandante de fronteira e amigo. Então sentou-se ao seu lado e o abraçou com força, permanecendo com ele enquanto a multidão intensificava sua agitação. Malus não reagiu. Mantendo a proximidade, ela recomeçou:

- Eu estou sentindo o mesmo que você, todas as frutas estão. A metrópole precisa de nós, Malus. Nós vamos passar por isso, juntos...

Interrompendo Kadia, ele começou a respirar rapidamente, em pânico, e chorar em meio a soluços. Sua boca começou a repetir, praticamente sem voz:

- Não, não, não...

Kadia retomou um pouco da firmeza, levantou-se um pouco e segurou em seus ombros:

- Ei, ei, todos estão contando com você, o que está acontecendo?

De repente, dando vida ao seu olhar, voltou-se a ela dizendo em um único ímpeto:

- Pra que? Pra que? O que eu preciso fazer? Vai, como você vai me convencer? O

que eu estou sentindo, Kadia?

Assustada, Kadia não soube como reagir. Ao terminar de falar, ele voltou a chorar, agarrando fortemente suas próprias roupas, extravasando raiva. Neste momento, um outro oficial abordou Kadia para que eles prosseguissem com as cerimônias. Ela respirou fundo ainda olhando para Malus. Ao se levantar, disse:

- Desculpa, Malus, mas... Por favor, não se prejudique, nós somos todos um nesse momento. 7


Kadia não compreendia a natureza da dor de Malus, também não tinha ainda o conhecimento dos oficiais mortos. Ele continuou chorando e soluçando. Sem palavras, as maçãs se juntaram próximas às linhas de corpos, com um batalhão separado na frente. As maçãs do batalhão sacaram suas cornetas fúnebres e

começaram a tocar as notas de sua marcha. Diante dos sons das cornetas, o silêncio se fez em respeito. O ruído mórbido das cornetas perdurou durante o restante do tempo de atraso dos sacerdotes, mantendo as frutas em uma espécie de hipnose social de sofrimento.

Quando os maracujás chegaram, os oficiais finalizaram a performance guardando as cornetas fúnebres em coreografia. Diversos cientistas e líderes maracujás importantes acompanhavam os sacerdotes, espalhando-se na multidão. Entre eles, o professor Pancini surgiu atento, à procura de Nadília. Um sacerdote de ar pomposo e culto surgiu em um púlpito improvisado também diante das linhas carregando, ainda sem costume, uma discreta pasta preta. Por dentro, estava ansioso por já ter recebido uma função tão séria e importante. Saudou o público, começou a falar em tom solene, pesaroso, mas resoluto. Além do luto, ele também trazia algumas respostas. Para Malus, os ruídos ecoando no túnel se transformaram em uma voz monótona ao fundo. Com a voz vinham aquelas mesmas palavras, aqueles esclarecimentos de como tudo o que aconteceu foi na verdade bom, e como a surpresa era ilusória. E como todos ali lamentavam muitíssimo as perdas. O suco de Malus começou a se agitar em seu corpo, ferver, querendo explodir tudo ali, o tempo e o espaço. Pronto para gritar, ele abriu os olhos. Congelou de repente ao ver que seu padrinho Gumba estava à sua frente. Parecia sério, impaciente. Mesmo com o sacerdote ainda discursando ao fundo, vozes começaram a surgir na multidão. Com isso, Gumba também começou a falar:

- Ei Malus, eu vim correndo, preocupado com você, no momento em que eu soube que você estava na luta contra a Drosophila. Mas o que está acontecendo? Já ouvi frutas comentarem sobre a sua postura. Não estão te entendendo, Malus. Você não pode deixar isso acontecer, você tem que ser firme. É... eu sei que é tudo uma coisa traumática, mas... olha só, Malus, seus amigos não estão reagindo como você. Malus focou seus olhos nos do padrinho, indignado. A raiva que sentia em seu suco queimava seu corpo. Aquela imagem, interpretada pelo estado atual de sua mente, gerava nele uma contradição insuportável, estagnando ainda mais a sua ação e 8


fazendo crescer um paradoxo indefinido em seu peito. Vendo toda aquela loucura expressa na face de seu protegido, Gumba se desesperou e lançou olhares discretos à multidão. Arregalou os grandes olhos ao perceber que dois de seus amigos mangas, deputados de grande importância, olhavam para Malus e comentavam

entre si com cara de desaprovação. As mangas estavam apavoradas com sua nova vulnerabilidade perante as Drosophilas e preparadas para exigir explicações, mas não podiam deixar de reparar. Sem refletir, Gumba começou a falar tentando não mexer a boca enquanto dava pequenos chutes em Malus:

- Vai, levanta, tá bom, rapaz. Você está se complicando, está me complicando. Depois você chora mais em casa. Veja bem, minha situação é ainda pior que a sua. Então Malus se perdeu. Levantou-se empurrando Gumba com um forte ímpeto, gritando. Os presentes testemunharam uma grande, e muito bem vestida, manga atingindo o chão de costas, estalando o terno no piso liso do salão da igreja, deixando no ar as pernas e o sapato pontudo. Malus partiu em direção ao púlpito e aos corpos, chorando e gritando palavras irreconhecíveis, mas foi subitamente repreendido por dois outros oficiais, que o seguraram em cada lado. Logo havia outros oficiais. Malus enchia de ar os pulmões e descarregava em urros trágicos, debatendo-se com todos os membros. A cena gerou horror entre as frutas e desconstruiu o efeito do discurso do sacerdote. O caos se espalhou pelo salão; no momento em que desmaiaram Malus com um soco, já não era mais possível conter o distúrbio.

Pancini avistou Nadilia observando o momento em que Malus era arrastado para fora. Ignorando a aflição dos seus companheiros do Círculo em meio ao tumulto, correu até ela e também saiu, puxando-a gentilmente pelo braço. Do lado de fora do

salão, o professor percebeu que lágrimas escorriam em abundância sobre seu rosto enquanto ela o acompanhava, calada. Quando o barulho do salão já permitia o diálogo, ele parou de andar e perguntou se ela estava bem. Nadília acenou que sim com a cabeça. Ele começou a falar, sério e enérgico:

- Então, você deve imaginar, o Círculo todo está alarmado. Estamos trabalhando incansavelmente para manter a calma na metrópole, mas ainda assim o maior objetivo é nos lançar com todas as energias sobre a abertura científica. Eu e você temos mais crédito do que nunca, o foco é expansão e velocidade. 9


- Você estava certo, professor... – Ela disse enxugando o rosto sem alterar a expressão, tentando montar um sorriso de apreciação.

- Nós estávamos! E, veja, estamos montando um programa avançado de exploração

para subir o arco, e enquanto isso querem que você parta imediatamente para os silvestres, em uma pequena expedição.

- Ok. Eu vou.

- Calma, Nadília. É mais sobre isso que precisamos conversar. Você praticamente não teve tempo de fazer o dever de casa, nós não sabemos o que esperar.

- Do que eu já vi, as coisas se revelaram diferentes do que eu esperava... quero dizer, mais fáceis. Nós esperamos coisas demais.

- Ótimo... Mas, você tem certeza que quer ir? Eu me preocupo com você, por favor, não se sinta pressionada. Nós vamos dar um jeito, de qualquer form-...

- Professor... O que você está sentindo hoje? Digo, com tudo isso acontecendo...

- Ah. – Pancini fez uma pausa, respirou. – Você sabe que nessas horas não devemos prestar atenção a emoções.

Dizendo isso, ele a olhou com uma expressão que se tornava condescendente. Mas ela tomou fôlego e simplesmente disse:

- Sei... Então, vamos preparar expedições.

No dia seguinte, a universidade requisitou um pedido de suporte das maçãs para uma expedição imediata à aldeia dos silvestres. Nadília pediu o acompanhamento de apenas dois oficiais, enfatizando a necessidade apenas de segurança no trajeto de dez mil uvos mata adentro. Trabalhando com a hipótese de uma recepção amigável, pelo que concluiu de suas poucas observações, os maracujás planejaram uma viajem de contato e troca de impressões, servindo como abertura da rota de trocas entre a 10


metrópole e os morangos. Parte do novo plano do Círculo era construir um posto na aldeia e uma rota limpa até a encosta em cinquenta dias. Mas, a princípio, quatro ou cinco frutas, sem aparentar hostilidade, fariam muito mais do que um grande grupo.

Tendo recebido dois nomes desconhecidos, Nadilia foi pessoalmente ao apartamento de Malus durante a mesma tarde. Ela bateu na porta várias vezes, chamou por ele, e não obteve resposta. No momento em que desistiu, em que se afastava da porta, ouviu-a se destrancar e abrir. Ela voltou, intrigada, e empurrou a porta devagar. Não havia ninguém atrás da porta, então ela chamou por ele mais uma vez, enquanto continuava entrando. Dentro da escura e pequena sala, Nadília pôde ver a sombra de Malus; ele estava sentado no sofá, quieto. À medida que seus olhos se acostumaram com o contraste de luz, ela observou o lugar.

Ela viu uma pequena estante no canto, e sobre ela um conjuntinho antigo e bem conservado de pequenos objetos de jantar, específicos para enfeite, ornamentos de costume em gerações anteriores; sob o conjunto, um tapetinho bordado à mão. Ela também viu, ocupando o centro da sala, dois sofás também antigos e bem conservados, um grande coberto com uma capa bem lisa, e outro pequeno onde se encontrava Malus. No outro canto, ela viu uma prateleira desalinhada destoante do resto do ambiente, repleta de quadros quebrados, objetos estilhaçados e cacos. No chão, havia medalhas e certificados, espalhados e rasgados. Dando mais um passo, Nadília viu próximo à parte central do teto baixo da sala um grande candelabro rachado, com pedaços sobre o elegante tapete branco entre os dois sofás. Viu que as mãos de Malus estavam sangrando. Chocada, ela ficou por um tempo sem pronunciar uma única palavra. Foi ele quem iniciou o diálogo, com uma voz baixa e

falha, praticamente sussurrante:

- Me desculpe pela desordem. Por favor, sente-se.

Ainda em silêncio, Nadília se dirigiu ao sofá grande, desviando-se dos cacos, e se sentou, amarrotando a capa. No caminho, uma lágrima escorreu em seu rosto.

- Eu fui afastado. – Malus levantou o olhar enquanto falava. - Eu... – Então abaixou novamente, e permaneceu calado, respirando mais fundo. 11


- Toda a metrópole está abalada com o ataque...

- Eu estava preparado para o ataque.

- Sabe... Essa catástrofe sobre a metrópole, sobre nós como sociedade, é particularmente dolorosa pra mim, significa uma derrota pessoal, acho que você entende... Mas, eu admito que, por algum motivo, o que tem movido a maior parte da minha dor...

- Por que você está me falando isso?

- Malus, eu acredito que nós podemos nos ajudar muito. Por favor, vamos conversar um pouco.

Os dois permaneceram se olhando por um tempo, então Malus recomeçou:

- Ele... Ele não é qualquer amigo pra mim. Ele não é qualquer fruta... Mas o que você tem a se importar? Você não conhece ele, da mesma forma que ninguém mais conhece. – Ao terminar a frase, Malus já lutava contra o choro e a angústia.

- Eu conheci o suficiente pra saber que ele era especial. Eu estou concordando com você, Malus, eu estou do seu lado. Se ninguém mais está, pelo menos eu estou. Ele colocou as mãos em seu rosto, chorou, pensou em lançar-se contra ela de várias formas, gritando e com palavras descontando nela o que sentia, mas estava cansado. Ergueu os olhos novamente, tentou formular frases, sem sucesso, até se render e enfim dizer:

- Eu achava que tinha muita coragem, mas não sou capaz de admitir o que eu sinto de verdade. Você não deve concordar comigo. Eu fui uma abominação, eu sei que estou pagando pelo que eu me permiti sentir. Mas por que ele? É por que ele tinha as dúvidas dele sobre os deuses? Ele só estava sendo sincero, ele queria realmente entender, ele tinha razões, por que não foi ao menos levado? Que espécie de vingança é essa? O que você sabe sobre isso, Nadília?

Ela pensou por um tempo, sem saber o que era melhor dizer. A verdade que ela 12


tinha não cabia no momento, era incompleta e inútil. Permaneceu sem palavras até que ele jogou o corpo contra o sofá, deixando-se:

- Não importa... O meu papel agora é aceitar, sentir dor... Me desprezar.

- Não, Malus. Eu peço que você venha comigo, que você me ajude a não deixar que tudo isso tenha acontecido em vão. Vamos nos usar pra tentar prevenir mais sofrimento, tentar entender o que nos falta entender. Pela metrópole e por ele.

-... Como você consegue continuar pesquisando?

- Eu estou te chamando pra ir comigo agora para fora da metrópole. Quero que você componha a expedição que faremos agora, sem mais esperas.

- Eu não posso, estou fora, afastado.

- A expedição é minha, afaste-se comigo.

Malus ficou quieto, com o olhar fixado. Permaneceu quieto. Nadília continuou:

- Eu espero que você me procure com a resposta, e que você venha. Não quero te incomodar mais agora e... Obrigada por conversar comigo.

Dizendo isso, ela se aproximou dele, colocou a mão sobre sua mão ensanguentada, buscou se conectar com seu olhar. Então se levantou e foi em direção à porta. Malus se manteve imóvel. Ao chegar à saída, Nadília parou e olhou novamente em sua

direção, então terminou de se retirar. Naquela tarde, Malus continuou na mesma posição no sofá ainda por horas.

Nim, em sua forma jovial e desprendida de compreender a realidade, não sofreu qualquer colapso diante dos recentes acontecimentos. Chocou-se no dia do desastre e tomou luto pela morte de Gamel e das outras frutas, mas pulou de alegria ao saber que partiria o quanto antes rumo à floresta. Em seu quarto, na universidade, praticamente não conseguiu dormir. Ainda durante a madrugada, resolveu sair da 13


cama e ir até o laboratório de pesquisas genéticas, um lugar grande que abrigava inúmeras espécies de plantas, amostras e equipamentos de última geração; onde Nim passou a maior parte de sua vida até então, na seção de cruzamentos vegetais. Até o amanhecer, divertiu-se contando para si suas piadas favoritas e ajeitando seu

estojo de coleta e análise de espécimes vegetais. Depois, durante toda a manhã, cantarolou enquanto arranjava amostras de diversas plantas funcionais, para diversas ocasiões. Os outros maracujás pesquisadores mais velhos, que chegavam bem cedo, já haviam se acostumado com a sua presença barulhenta. Nim fez para si um colete de aventureiro, com diversos bolsos. Vestiu o colete diante de uma bancada cheia de folhas, flores, ramos e pequenos galhos, então colocava cada porção em um bolso, enquanto recitava “para alergias”, “para vazamentos de suco”, “para problemas na barriga”, “para dor de dente”, etc. Alegrou-se ao se perceber se tornando também uma espécie de curandeiro, um boticário. Viu-se no meio do mato, preparado para as adversidades, analisando espécies nunca antes vistas, cheias de novas funções e belezas.

Na hora do almoço, comeu de pé, em poucos minutos, e logo voltou pronto para encontrar uma maneira estável de levar sua importante Nina 1 e também finalizar o manuscrito de sua receita, dado também o fato de que ainda não havia conseguido produzir suas sementes. Durante a tarde, um de seus antigos amigos de pesquisa o viu no laboratório:

- Ora, vejam quem apareceu novamente! Eu sabia que você não aguentaria se manter longe.

- Ah! Você nem imagina, cara. Você nem imagina! – Nim respondeu de imediato o

amigo já largando seus escritos para cumprimenta-o.

- Olha só, você precisa me contar o que tem acontecido lá com as maçãs. Esse lugar está fervendo.

- Mas o que está acontecendo?

- Logo você, não sabe? Não ficou sabendo da folha de projetos? Este é o melhor momento pra estar aqui, cara. Claro que uma das coisas mais comentadas da 14


universidade é a viagem de vocês, surreal.

- E o que mais está sendo feito? Diz aí.

- Estão recrutando pesquisadores para dois projetos insanos! Um deles também é do grupo que você entrou, que eles já planejam a grande expedição até o arco! Vão usar os resultados da sua viagem de agora...

- Ah! Mas isso eu já sabia, é só isso?

- ... Calma, calma. Agora que entra a grande sensação, a grande bomba!

- Fala logo, desgraçado!

- É isso, é a grande bomba. Esse é o projeto, cara! Hahaha.

- Espera aí, uma bomba não é só um objeto teórico?

- Exatamente, e seguindo o precedente de parceria entre os maracujás e as maçãs que vocês abriram, o próprio Círculo fez acordo direto com o comando das maçãs para um projeto de pesquisa que vai tentar criar uma bomba de verdade. E é pra ser grande. Cara, uma bomba anti-Drosophila! Basicamente toda a galera está se candidatando.

- Uau! É isso aí! Nós não estamos de brincadeira mesmo. Vamos dominar essas idiotas!

- Vamos explodir essas idiotas, cara!

Ambos deram risada e continuaram conversando a respeito dos novos projetos das frutas. Nim mostrou seus aparatos para o amigo e contou detalhes da viagem. A empolgação imperava naquele canto do laboratório. O clima na universidade era o de contra-ataque, os maracujás achavam que o lamento e as questões existenciais não trariam as respostas que precisavam. Muitos começaram a achar que a busca pela bomba traria. 15


´

No alto da torre do Círculo, no final da tarde, mais uma reunião acontecia. Os maracujás estavam sentados, equidistantes, em volta da mesa circular, com suas pastas diante de si. Ao longo da reunião, podia-se perceber a existência de uma leve

rendição aos sentimentos devida às recentes fontes de desequilíbrio emocional, expressa nos detalhes de suas expressões. Alguns membros do Círculo não possuíam muita experiência em situações com níveis tão altos de desconforto e descontrole. Qualquer um que se preocupasse com o futuro da metrópole e tivesse que agir para preservá-lo, naquele momento, estaria lutando contra a pressão do desconhecido. Eles eram bons, mas também eram frutas. Em dado ponto, o maracujá encarregado de conduzir a reunião prosseguiu:

- Tendo concluído a discussão dos detalhes para o projeto da grande bomba, prosseguimos para a atualização dos processos relativos à contenção da opinião pública. Como foi a divulgação de conteúdo aos sacerdotes da metrópole?

O novo sacerdote, substituto do reverendo Lidoff, com notável hesitação da voz, prosseguiu:

- Bem... Ministrei um curso a todos, expliquei os detalhes do nosso conteúdo sobre o proposto significado do ataque.

- Quais detalhes? – Interveio Selkit.

- Justificando que o ataque serve como uma grande provação a nós, frutas, como sociedade. Que nos foi revelado um projeto para a construção de uma arma divina

e, de alguma forma, nosso objetivo em conjunto é conseguir montar essa arma e utilizá-la antes que os deuses nos mostrem indignos através de seu castigo. Assim, a nova Drosophila é um emissário do progresso da sociedade.

- E o que mais? – Ela perguntou depois de um momento de silêncio.

- Sobre os detalhes do ataque, eu disse que não temos acesso à maneira dos deuses de operar e cabe a nós continuar rezando em busca de esclarecimento. Também disse que a manga capturada era merecedora... 16


- O que? Não, não sabemos o porquê de a manga ter sido levada. Isso não estava no plano.

- Eu achei que seria melhor detalhar essa parte.

- Não seria melhor. Volte e repare isso, os sacerdotes não podem repassar essa informação.

- As frutas perguntam a respeito disso.

- E a resposta é que não sabemos. Elas vão se contentar com isso ou, caso tenhamos uma resposta, continuarão perguntando em cima dos detalhes fornecidos, nesse caso abriremos brechas. Pela maneira em que tudo aconteceu, dessa vez.

- Isso é porque o plano é seu? Sendo alto sacerdote eu visualizo essa forma como melhor.

Um silêncio se fez, até o maracujá que escrevia a ata parou. Selkit fervilhou por dentro, mas sabia que não poderia demonstrar nada, controlou-se com a respiração. O maracujá condutor foi quem prosseguiu:

- Isso não adiciona nada ao seu argumento, alto sacerdote. Apresente uma razão para ter improvisado, assim como o outro argumento foi criado com uma razão para seguir o plano.

- Ahn... As frutas vão querer saber, ora... Não vejo problemas em fornecer uma

resposta que inclusive já utilizamos antes.

Então Selkit explicitou seu argumento:

- Precisamos criar a noção de que os deuses nos enviaram tempos difíceis, e a metrópole precisa se ocupar com as orações para entender melhor o que está acontecendo. O episódio da manga, em específico, possui altas chances de suscitar dúvidas, de gerar conversas sobre a destruição da metrópole. A manga foi retirada desacordada em meio aos escombros, aleatoriamente. Outras frutas sofreram outros 17


destinos e nós não temos respostas suficientes e coerentes. Ao invés de nos enrolarmos em mais problemas, vamos usar o cenário ao nosso favor, o quanto pudermos. O sucesso também pode depender dos detalhes.

A última fala desestabilizou o sacerdote. Já descarrilhando de sua posição, ele proferiu impetuosamente:

- Isso parece uma grande paranoia que está maracujá inventa para controlar a reunião, para que os planos aceitos sejam os dela!

Selkit mordia os lábios, mas agora controlando o prazer que sentia ao prever o destino dessa discussão. Outro maracujá respondeu:

- Acho melhor encerrar essa discussão e aconselhar ao senhor sacerdote que, aqui, nunca importa de onde vêm os fatos e as análises. A única coisa que importa é a estrutura do pensamento em si. Somos todos células compondo uma única rede. Se, fora daqui, você tende a se preocupar em ser aquele que contribui mais, sugiro que foque-se em se tornar capaz. Todos de acordo em encerrar esta discussão? Ou o sacerdote tentará demonstrar que a resposta é uma paranoia?

Silêncio. O sacerdote não soube mais o que dizer. Não era raro que um novo membro do Círculo enfrentasse dificuldades como esta para se adequar aos métodos das reuniões. A reunião então prosseguiu:

- Muito bem, fica determinado que a orientação dada aos sacerdotes da metrópole será corrigida. Mais um ponto, os folhetos com as novas orações estão em que fase

de produção?

- Já foram revisados e agora serão enviados para replicação, não há imprevistos. - Certo. Continuando, a próxima pauta é a respeito da expedição até a aldeia dos silvestres, com a partida agendada para amanhã. Quais as especificações para essa partida?

O professor Pancini tomou a palavra: 18


- A equipe é composta apenas por dois maracujás e duas maçãs, a própria chefe do projeto, Nadíia, e seu assistente e botânico, Nim, juntamente com os oficiais Malus e Arek. O objetivo é estabelecer rota de viagem e contato com os morangos silvestres, vislumbrar a pertinência por trás de seus rituais e abrir caminho para a utilização de

informações externas em nossa pressionada busca por respostas e controle. A equipe sairá ao amanhecer levando consigo um pônei com suprimentos e equipamentos, eu mesmo irei acompanhá-los até sua saída da metrópole, passando por uma fazenda para pegar o pônei que já foi preparado hoje. A previsão é que a viagem de ida dure dois dias inteiros, a volta também. É difícil estimar o tempo de permanência, mas estabelecemos a intenção de que não passe de sete dias. Monitoraremos o que for possível da estadia na aldeia através das observações da muralha, já montamos uma outra equipe de maracujás para isso, também eu mesmo estou no comando.

Selkit comentou novamente:

- É importante que a expedição tenha acompanhamento até a sua saída da metrópole. Eu quero ir junto ajudar a nos certificar de que estará tudo certo.

- Eu mesmo estarei lá, não será preciso que você também vá, se for para isso. – Respondeu Pancini, internamente impaciente.

- Tudo bem, professor. Minha preocupação é apenas com os tais improvisos, não vindos de você, mas da equipe.

- Também me preocupo com improvisos, e posso garantir que a equipe está nas

melhores mãos, com Nadília.

A reunião do Círculo continuou com Selkit pedindo mais algumas informações sobre as observações já feitas por Nadília antes do ataque. Até o final da reunião, o senso de controle aumentou novamente no topo da alta torre e a atmosfera tornouse mais condizente com a filosofia de progresso, com os membros do Círculo de acordo e prontos para executar as medidas que, segundo eles, proporcionavam as melhores chances de salvar a metrópole das frutas. 19


´

Malus aceitou partir com Nadília sem dar qualquer justificativa, Kadia respondeu às suas atitudes emocionadas com solidariedade e também preferiu que ele fosse, para respirar e poder se reencontrar; mandou-lhe uma carta dizendo para ele que

não se importasse com o afastamento, que seu posto de comandante estaria à sua espera após o seu retorno. Ao sair, Malus enviou uma carta ao seu padrinho com um pedido de desculpas. O jovem Arek foi o oficial mais próximo à posição de Gamel que aceitou partir com a expedição. Sua vida não ia muito bem, também considerava Gamel um grande amigo, inclusive jurou nunca mais jogar cartas, em sua memória. No início do período foi deixado por sua namorada laranja que acabou se relacionando com outro oficial, um policial de distrito; o que era uma das fontes de seus incômodos. Decidiu aproveitar a oportunidade e sair um pouco da metrópole porque, diante de tudo isso, passava por um grande stress em sua rotina, e ele sempre se divertiu com o seu trabalho. Não queria estragar sua visão de sua vida e sua vocação. Ao sair, Arek passou pela igreja para rezar.

Nim nunca se sentiu tão preparado, arrumou até um chapéu cheio de estilo. Confeccionou uma mochilinha adaptada para carregar a Nina 1 e um bastãozinho resistente e do seu tamanho para servir como apoio e como ferramenta de defesa pessoal. Também comprou sapatos especiais de corrida. Quando soube que roupas específicas para a expedição haviam sido construídas para eles pelas melhores laranjas artesãs da metrópole, sentiu-se obrigado a recusar. Nadília resolveu todas as questões burocráticas e via à sua frente apenas a floresta. Compensou a necessidade de apresentar seu profissionalismo com a forma com que conduziu suas questões pessoais, por causa de seu real estado emocional. Deixou seu apartamento na faculdade, seus equipamentos na fortaleza e em seu laboratório,

tudo como se estivesse apenas saindo para caminhar um pouco. Nem mesmo trancou a porta ao sair, nem mesmo pensou em levar consigo as chaves, deixou-as sobre a mesa. Não falou com ninguém.

O professor Pancini estava inquieto, parecia sem fôlego, com cara de quem possuía problemas muito pessoais e urgentes para resolver. Lembrava-se apenas do pônei mal-passado que havia apreciado sem medidas na noite anterior, ao comemorar consigo o sucesso que havia começado a emergir do desastre, em seu luxuoso apartamento. Os cinco se encontraram antes do aparecimento da estrela de fogo, no 20


bonde que se dirigia à borda da metrópole. Nim e Arek se conheceram e já conversavam animados pelo grande dia que se iniciava; Malus foi quieto, pensativo em um canto do bonde. Pancini foi contando para Nadília tudo o que precisava ser feito na fazenda, mas ao chegarem à plataforma, no fim da linha, sua situação se

agravou. A hora estava marcada com as laranjas na fazenda e o professor possuía hábitos bem específicos acerca dos assuntos de seu corpo. Naquele momento, vislumbrava o conforto higiênico de seu lar.

Estavam todos ao lado do bonde que se preparava para voltar. Nadília olhou adiante e viu os portões no muro da metrópole. A fazenda estava próxima, entre eles e a floresta. Os bondes chegavam e partiam de meia em meia hora. Ela então se dirigiu a Pancini:

- Professor, se você preferir, pode voltar já com esse bonde. Sei que você tem um dia cheio, vou saber como proceder a partir de agora.

- Ora, está tudo bem, Nadília... – Pancini respondeu automaticamente.

- É sério, professor. Pra que perder tanto tempo? Eu disse que você nem precisava ter vindo hoje, era só ter me dito tudo antes. Estamos bem.

Ele hesitou. Olhou para o bonde, para Nadília, pensou em seu problema, pensou em Selkit incomodando com seu perfeccionismo, então decidiu que não era mandado de ninguém e que seria capaz de confiar sua vida ao bom trabalho de Nadília:

- Ah, mas você tem certeza que está tudo sob controle mesmo?

- Sim, sim. Pode ir tranquilo.

- Então, neste caso, acho melhor eu ir... Entregue isso pro pessoal da fazenda, por favor. É o pagamento. – Então ele deu a ela um envelope que estava em seu bolso. Já com uma expressão mais esperançosa, Pancini se despediu do grupo e desejou uma ótima viagem a todos. Disse que já estava ansioso para sua volta e para saber de todas as maravilhas que descobririam. Sem demora, saltou no bonde novamente. O grupo se dirigiu ao lado de fora da metrópole, atravessando os portões. Dali já 21


viram os pastos com os pôneis, contornaram a cerca e entraram na fazenda. Neste momento, a estrela de fogo já brilhava pelas bordas do mundo.

Nim se divertiu muito com aquela cena, nunca havia saído da metrópole e nem

visto um pônei vivo de perto, achou fantástico. Centenas deles dispostos nos campos gramados, comendo, pulando e correndo, alguns deitados. Eram pôneis pretos, marrons e mesclados, também chegando próximos à cerca com suas caras engraçadas, mastigando grama. Nim correu até eles, querendo passar a mão, e então eles se dispersaram estranhados. Depois de andar por um tempo, observaram várias casinhas diferentes após os pastos, com a grande floresta aos fundos. A primeira casa além do caminho em que estavam era a do fazendeiro. Chegando perto, avistaram uma uvinha sentada à porta. Ela acenou e gritou para eles, com voz firme:

- Bom dia!

Arek, que vinha na frente, respondeu:

- Bom dia, garoto!

Nisso, a uvinha se levantou e veio com a cara já amarrada, com raiva. Com suas botas de couro de pônei, chutou as canelas de Arek.

- Eu sou garota!.

Ele sentiu a dor ecoar em seus ossos, mas manteve-se tranquilo, sem demonstrar.

Engoliu seco, somente. Deu uma risada sem graça:

- Poxa, me perdoe. Qual a sua idade, hein?

- Não sei não.

O resto do grupo já estava também diante da casa. Nim perguntou, indignado:

- Como assim, não sabe? 22


- Ué, nunca me disseram. Só sei que faz muito tempo que eu nasci.

Arek e Nim deram risada, Malus e Nadília sorriram, e se olharam, sem pensar. A porta da casa se abriu e de lá saiu o fazendeiro, uma laranja calva de corpo robusto.

- Bom dia, pessoal. Bem vindos à fazenda. Vamos entrando, tem leite, tem bolacha.

Todos o cumprimentaram. Nadília se apressou em dizer:

- Obrigada pelo convite, mas não podemos parar. A viagem vai ser longa.

- Os deuses que me livrem de enfiar nesse mato. – Então deu dois tapinhas nas costas da uvinha. – Filha, corre lá no estábulo e busca o pônei deles. – Daí voltou-se novamente ao grupo. – Vocês tomem cuidado que nessa floresta tem pônei do mato, selvagem, bravo que só ele.

- Espero que essas maçãs possam dar conta do serviço. – Nadília respondeu contagiada pelo bom humor do fazendeiro e enquanto via a uvinha correr rápido na direção de uma das casinhas.

Arek também riu e reagiu com confiança. Malus parecia nem ter prestado atenção, desde que saiu da cama estava aéreo e pensativo, mas apesar disso tinha o ânimo renovado, o suficiente para executar o que precisava, corporal. O fazendeiro continuou:

- A gente colocou no pônei as coisas que vieram da universidade, as comidas, tá

tudo lá certinho, ele vai carregar tudo. O pônei também é bom pra enxergar perigo, vocês podem prestar atenção se ele estiver desconfiado. Olha lá que beleza.

A uvinha já vinha puxando o pônei cheio de tralhas no lombo. Todos prestaram atenção ao animal. Quando chegaram, o fazendeiro exclamou:

- Peraí! Ah, não. Não era esse pônei não, tá errado. Quem é que pegou o pônei lá? Não foi o que eu pedi. 23


- Foi aquela mesma banana, pai!

- Ahh, vai chamar pra mim! Essa foi a última vez. Pelos deuses, que vergonha, a última vez. Pelos deuses! – O fazendeiro havia alterado seu humor radicalmente,

estava furioso.

Todos se constrangeram com aquela gritaria. Nadília tentou intervir:

- Tudo bem, pessoal. Não tem problema, não precisam se irritar. O pônei é pior? É só isso?

- Não, não é isso, é que... ah, tá errado, tá errado. Chama essa banana desgraçada, filha, é agora que eu mato ela de vez. Vocês que me perdoem, essa banana já causou muito problema, é um demônio, um demônio! Eu demorei, os deuses que me perdoem!

Mas a filha já havia saído à toda velocidade, tendo também sacado um chicote da cintura. O pônei ali, alheio, arrumadinho, e as quatro frutas da metrópole sem saber o que fazer diante de tal cena. O fazendeiro de repente estava com um pau na mão. Uma maça e um maracujá curiosos, uma maçã e um maracujá chocados. O fazendeiro foi berrando até que a uvinha chegou, açoitando a banana. A banana chegou e o pau começou a se agitar, acima, abaixo na banana. Ela mal se movia e nem gritava, parecia vencida. Jogou-se no chão e ali ficou. Sua casca começou a escurecer e amassar de pancada, e o fazendeiro não parava. Era chute de bota e paulada. No meio do processo, começou a rir e a gritar. “Agora você morre! Chega de gracinha, hoje eu satisfaço seu desejo! Desgraçado, safado”. Ali não era nenhum

problema matar uma banana assim, era praticamente como quebrar, de raiva, um objeto, era no máximo uma falta de maneiras. Arek começou a achar graça também. Nadília e Nim tinham ambas as mãos na boca e nos olhos, respectivamente. Malus tinha lágrimas escorrendo de seus olhos, de repente gritou:

- Chega! Já chega! – E enquanto gritava, jogou-se entre o pau e a banana, contendo o fazendeiro com as mãos.

O fazendeiro se assustou e, recompondo-se, retrucou bufando: 24


- Que historia é essa, rapaz? Que isso?

- Eu quero levar a banana! Penso que ela será útil na viagem.

De repente, silêncio. O fazendeiro com os olhos arregalados sobre Malus, a banana voltando a si e as outras frutas emudecidas. O fazendeiro buscou o olhar da filha, um sorriso começou a surgir em seu rosto e então os dois caíram na risada. Depois de exaurir o fôlego, ele tomou mais um pouco de ar, olhou para Malus e riu mais.

- Útil na viagem? Hahaha. Você quer comprar essa banana? Essa banana?

- Não, eu quero levar ela com o pônei, como compensação pelo serviço errado e por essa cena.

Malus então olhou para Nadília buscando aprovação. Ela, também comovida com a situação e segurando o choro, fez que sim com a cabeça sem pensar. O fazendeiro amarrou a cara, alisou o bigode, e disse:

- Mas você é um cara muito ousado mesmo. – Demorou-se. – Eu pago é pra ver no que é que vai dar essa tal de viagem. Pega esse lixo e vai, do jeito que tá aí.

Malus agachou para ajudar a banana a se levantar, perguntou seu nome. Ela, em choque, só olhou para ele. Os dois se levantaram, a banana encolhida e com um pouco de dificuldade. Nadília apressou-se em entregar o envelope e pedir para Arek puxar a corda do pônei. Nessa altura, olhando para ela, o fazendeiro sentiu-se um pouco envergonhado pelo que aconteceu.

- Ora, moça, você me desculpe por todo esse mal-entendido. Eu imaginei que seria um contato agradável, fiz até o café da manhã pra vocês. Mas vocês verão que o mal é essa banana, vocês pagarão para ver.

Nadília não respondeu. A pequena uva deu um tapinha na bunda do pônei e foi levando o grupo para o fundo da fazenda, para que entrassem na floresta por lá. Em linha reta, acabariam na aldeia dos silvestres. Nim lembrou-se que havia colocado 25


suas roupas na mochilinha, junto com a Nina 1. Entregou-as para que a banana as colocasse. Ficaram um pouco curtas e largas. O grupo enfim entrou na mata, a uvinha se despediu e voltou correndo. Ninguém falou por um tempo; a banana simplesmente foi, sem reagir a nada. Vários minutos mata adentro, ela quebrou o

silêncio, dizendo com voz trêmula:

- Meu nome é Tanos.

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Em 2012, durante a minha graduação, por um feliz acaso me vali de pesquisas de documentos obscuros do sĂŠculo XVI. Em meio a escritos indecifrĂĄveis, encontrei um pitoresco estudo sobre a entĂŁo conhecida por mim como caracterĂ­stica de Euler. No estudo, uma interessante verificação nĂŁo creditada da relação entre os parâmetros de certos polĂ­gonos e poliedros. Hoje, a generalização da fĂłrmula dessa caracterĂ­stica revela-se mais profunda sob o conceito de invariante topolĂłgico, tendo a forma đ?‘‰ − đ??´ + đ??š = 2 − 2đ?‘”, onde đ?‘” ĂŠ o gĂŞnero de uma superfĂ­cie que, quando esta ĂŠ orientĂĄvel, conta seu nĂşmero de buracos. O autor desconhecido estava ciente da validade do resultado para diversos poliedros e se propĂ´s a encontrar uma justificativa para tal. Segue o tratado em sua forma integral traduzido por mim do latim arcaico, com imagens e equaçþes prĂłximas Ă s originais:

Uma verificação da relação entre faces, arestas e vÊrtices

de polĂ­gonos e poliedros

- Wild Child

A motivação inicial deste pequeno estudo foi a tentativa de demonstrar a relação entre os parâmetros de um poliedro usual (coloco aqui a palavra usual com a intenção de deixar vago o limite de validade da relação, uma vez que no meu ponto de vista inicial este me era desconhecido e tambĂŠm porque esta era a forma vista por mim) dada por đ?‘‰ − đ??´ + đ??š = 2, relacionando vĂŠrtices, arestas e faces. NĂŁo conheço demonstraçþes existentes e nem mesmo

todas as espÊcies de poliedros para as quais Ê vålida a relação. Partindo desta condição, desenvolvi os seguintes raciocínios.

De inĂ­cio, meus pensamentos me levaram a tentar planificar a figura tridimensional para facilitar uma possĂ­vel estrutura de visualização e contagem dos parâmetros, o que jĂĄ me levou a definir uma classe de validade para os poliedros a serem considerados. Usei um procedimento que chamei de abertura de vĂŠrtice (N.T.: ou mais literalmente, “arreganhamentoâ€? de vĂŠrtice) para planificar um poliedro e defini a classe a ser considerada como: todos os poliedros que podem ser planificados atravĂŠs da abertura de vĂŠrtice (eles sempre formam figuras planas de total preenchimento, ou seja, sem espaços abertos ou buracos em seu interior).

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Abertura de vĂŠrtice: Consiste em se expandir um vĂŠrtice qualquer de um poliedro, abrindo-o, formando assim um contorno arbitrĂĄrio contido em um plano tal que o corpo do poliedro possa ser acomodado no interior deste contorno, contido neste mesmo plano. É como pegar um poliedro feito de um contorno elĂĄstico (como uma “bola de brincadeirasâ€? poliĂŠdrica de couro de cabra) (N.T.: o

equivalente ao que seria uma bola de futebol de borracha, sem preenchimento interno), rasgå-lo no ponto de um vÊrtice e depois abri-lo, esticando seu contorno em um plano. Seguem dois exemplos de uma planificação por abertura de vÊrtice.

Cubo, abrindo-se qualquer vĂŠrtice:

Pirâmide de base quadrada, abrindo-se o vÊrtice da ponta:

Não importam as proporçþes de comprimento na planificação. Vemos então que o resultado da planificação Ê a geração de um polígono ligado ao contorno por algumas arestas (as arestas que se conectam, no poliedro, ao vÊrtice que foi aberto). Nos exemplos, temos para o quadrado um

hexågono com três arestas internas e, para a pirâmide, um simples quadrado. Com isto, podemos facilmente relacionar os parâmetros do poliedro aos parâmetros do polígono. Se chamarmos de I o número de arestas que se ligam ao vÊrtice aberto, que no plano ligam o polígono ao contorno, temos sempre que (o índice p Ê relativo aos parâmetros do polígono):

đ??´ = đ??´đ?‘? + đ??ź

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Levando em conta que o Ăşnico vĂŠrtice do poliedro que nĂŁo estĂĄ contido no polĂ­gono ĂŠ o vĂŠrtice que foi aberto, temos:

đ?‘‰ = đ?‘‰đ?‘? + 1 E, por fim, vemos que o nĂşmero de faces externas ao polĂ­gono dado pode ser expresso em termos do nĂşmero de arestas externas đ??ź. Podemos perceber que cada aresta conectando a borda ao polĂ­gono corresponde Ă criação de uma face externa, uma vez que o polĂ­gono e a borda apresentam ambos contornos fechados:

đ??š = đ??šđ?‘? + đ??ź Com isso, somos capazes de construir a seguinte relação:

đ?‘‰ − đ??´ + đ??š = đ?‘‰đ?‘? − đ??´đ?‘? + đ??šđ?‘? + 1

Relação para polĂ­gonos: O procedimento ĂŠ construir o polĂ­gono em etapas e ir adicionando em uma contagem cada novo elemento pertencente a um dos trĂŞs parâmetros. No final, seremos capazes de relacionar os nĂşmeros totais de elementos de cada parâmetro entre si atravĂŠs da prĂłpria construção. Vamos adotar Ă­ndices numĂŠricos para marcar o aparecimento e a contagem de novos elementos para cada parâmetro a cada etapa. Começamos com a estrutura externa, composta de um contorno fechado de vĂŠrtices e arestas, com um vĂŠrtice correspondendo a uma aresta, como “doces de ponta de carameloâ€? (N.T.: um doce barato europeu comum na renascença, com nome sem tradução, mas equivalente ao atual pirulito) enfileirados, formando um colar:

đ?‘‰1 = đ??´1 Depois, adicionamos arestas internas A2 que se conectam aos vĂŠrtices V1 sem se cruzarem (sem produzir outros vĂŠrtices):

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đ??´2 + 1 = đ??š1 Estas arestas criam faces adicionais Ă face Ăşnica que jĂĄ existia no interior do polĂ­gono, aumentando o nĂşmero de faces para A2+1. Depois, criamos vĂŠrtices sobre estas arestas internas. Cada vĂŠrtice V2 criado quebra uma aresta interna, adicionando outra aresta na contagem:

đ?‘‰2 = đ??´3 Por fim, visualizamos esta construção como suficiente para comportar todos os vĂŠrtices necessĂĄrios para a criação de qualquer polĂ­gono, ou seja, nĂŁo hĂĄ possĂ­veis vĂŠrtices que nĂŁo possam ser classificados como das categorias 1 ou 2. Uma vez que isto ĂŠ satisfeito, podemos

adicionar livremente mais arestas (N.T.: ou mais literalmente, adicionar arestas a gosto) para completarmos a forma geral do polĂ­gono:

đ??š2 = đ??´4 Vemos tambĂŠm que cada aresta adicionada no Ăşltimo passo, A4, gera uma nova face Ă contagem anterior, pois promove uma quebra sobre uma face jĂĄ existente (como o vĂŠrtice sobre a aresta). 30


Exemplificando a ideia de que o polígono construído, do ponto de vista dos parâmetros, Ê indiferente a transformaçþes de posicionamento e proporção das arestas e seus vÊrtices, temos a seguinte figura que mostra um polígono equivalente ao construído nas imagens:

Agora, somando o nĂşmero total de arestas do polĂ­gono, temos:

đ??´đ?‘? = đ??´1 + đ??´2 + đ??´3 + đ??´4 = (đ?‘‰1 ) + (đ??š1 − 1) + (đ?‘‰2 ) + (đ??š2 ) đ??´đ?‘? = đ?‘‰1 + đ?‘‰2 + đ??š1 + đ??š2 − 1 = đ?‘‰đ?‘? + đ??šđ?‘? − 1

∴ đ?‘‰đ?‘? − đ??´đ?‘? + đ??šđ?‘? = 1 No processo, somamos tambĂŠm os vĂŠrtices e as faces do polĂ­gono. Notamos que, no caminho de demonstrar a relação para os poliedros, acabamos por descobrir uma relação equivalente aplicada a polĂ­gonos! Como fizemos para o poliedro, podemos dizer que a classe de polĂ­gonos considerados para este resultado ĂŠ aquela que pode ser construĂ­da seguindo-se estes passos apresentados, que ĂŠ a mesma classe gerada pela planificação (basicamente, um polĂ­gono composto por um contorno fechado de vĂŠrtices e arestas possuindo um interior completamente preenchido de vĂŠrtices sobre arestas e arestas sobre faces).

Conclusão: Do resultado obtido para os polígonos, voltamos à relação para os parâmetros do poliedro:

đ?‘‰ − đ??´ + đ??š = đ?‘‰đ?‘? − đ??´đ?‘? + đ??šđ?‘? + 1 = 2 ∴đ?‘‰âˆ’đ??´+đ??š =2

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Esta análise não mostra que somente estes poliedros obedecem a esta relação (o mesmo vale para os polígonos), mas não tenho a pretensão de fazê-lo por hora, embora seja difícil imaginar construções que não se encaixem nessa categoria para as quais valha a relação. Justamente por isso, a noção intuitiva de que seja verdade obstrui o direcionamento do pensamento. Como comentário final, ainda sobre esta questão, sinto que deixa de valer a relação apenas quando colocamos “túneis” que atravessam toda a superfície do poliedro (túneis que criem um caminho entre duas faces passando por dentro do poliedro, gerando faces nas paredes desse caminho). Portanto, afirmo, sem demonstrar, que o suporte à abertura de vértices seria equivalente à ausência de tais túneis. Fica como uma interessante busca futura a de encontrar uma relação como esta para poliedros com um ou mais túneis.

32


- Sol

Este texto é um relato da aplicação de algumas ideias que venho experienciando e testando ao longo dos últimos dois meses, cujos resultados me pareceram tão impressionantes que decidi registrá-las de forma escrita, fundamentando aquilo que chamarei de “O Princípio do Super Jump”. Primeiramente justificarei o nome escolhido através do fato que originalmente me motivou.

Por volta de junho de 2017, fiquei sabendo de um certo desafio existente em um jogo de vídeo game chamado ‘Mario RPG’ . O desafio consiste em fazer o Mário pular 100 vezes em qualquer inimigo durante uma batalha, tarefa que se resume a apertar um único botão para cada um dos pulos, em um tempo específico (aproximadamente a cada 1 segundo), ou nas palavras do jogo, acertar o Super Jump 100 vezes. O processo se encontra ilustrado na sequência de figuras abaixo.

O Super Jump pode ser usado em qualquer momento do jogo e em qualquer inimigo, de forma que o jogador pode completar o desafio em questão em qualquer ponto do game, bastando apenas acertar os 100 pulos. No entanto, ao longo de todo o jogo (e em todas as outras milhares de vezes que já o joguei), nunca consegui realizar mais do que exatos 16 pulos em sequência. Após ficar algumas horas tentando, fracassando sempre no 17º pulo, decidi procurar alguma dica na internet para realizar o desafio.

¹ Vídeo do Super Jump: https://www.youtube.com/watch?v=KKlvMMonXB4 33


Encontrei um fórum onde diversos jogadores discutiam a possibilidade de execução do desafio². Aparentemente, após o 16° pulo, a precisão necessária para se apertar o botão aumenta muito³, exatamente como mostrado nas figuras a seguir:

Aqui as coisas começaram a ficar curiosas: neste mesmo fórum, muitos jogadores descrevem a dificuldade de se passar do 16° pulo, mas grande parte deles conseguiram, ainda que

despretensiosamente, dar muitos pulos sucessivos, na faixa de 35, 68, 89 e após isso voltavam a não conseguir passar do 16° novamente. Existe até um relato muito triste de alguém que diz ter conseguido 99 pulos. Este fato é muito intrigante pois como é possível que todos sintam uma grande dificuldade em ultrapassar o 16° pulo e repentinamente conseguem acertar mais de 50?

Toda essa informação me pareceu muito estranha até que me deparei com um comentário que dizia “100 Super Jumps -- Não é tão difícil como você pensa”4. Neste, o autor explica que nas primeiras vezes que jogou o game, tentou conseguir 30 pulos e não chegou nem perto disso, mas que eventualmente, como nos casos anteriormente descritos, conseguiu acertar 55 pulos por acaso. Movido por esta súbita melhora, ele começou a treinar, e pouco tempo depois conseguiu executar os 100 pulos.

² Fórum sobre o desafio do Super Jump: https://www.gamefaqs.com/boards/588739-supermario-rpg-legend-of-the-seven-stars/49031071 ³ Explicação da precisão do Super Jump: https://www.youtube.com/watch?v=uzqmcwvrO7M 4 Link para o comentário mencionado: https://www.gamefaqs.com/boards/588739-super-mariorpg-legend-of-the-seven-stars/49286839 34


Ainda na mesma postagem, o autor comenta que percebia errar quando tentava contar quantos pulos havia acertado, de forma que a ansiedade o fazia pressionar o botão um pouco antes do necessário (segundo ele, o botão deve ser pressionado 0,1 segundos após Mário atingir o alvo). Além disso, após ter conseguido, ele passou do estágio de nunca conseguir passar de 16 pulos para agora conseguir 70-100 pulos em todas as suas atuais tentativas, o que em suas palavras :”É como andar de bicicleta, eu acho, uma vez que você consegue, você sempre se lembra como”. Levado por esse discurso, comecei a tentar freneticamente para ver se conseguia qualquer indício de passar do 16º pulo. Após 2 horas de fracasso sucessivo, repentinamente consegui algo em torno de 30 pulos. À partir deste ponto, se tornou uma tarefa natural conseguir mais que 16, como se minha cabeça tivesse aprendido instintivamente a executar a tarefa. Pensando na possibilidade de um possível defeito, pedi para que meu irmão tentasse algumas vezes, que o fez repetidamente sem passar dos malditos 16. Com isso, após mais algumas tentativas, eu finalmente consegui os 100 pulos (todo o processo deve ter durado umas 3 horas). E exatamente como descrito pela postagem do fórum, esta tarefa me parece agora relativamente simples, de forma que sempre consigo um grande número de acertos.

Uma tarefa que parecia impossível se tornou extremamente fácil diante de poucas horas de treino. Mas o que é ainda mais curioso foi notar o estado mental em que me encontrava a partir do momento em que comecei a acertar mais de 16 pulos: estava extremamente concentrado no objetivo, no entanto não conseguia contar quantos pulos já havia acertado, falar, ou até mesmo ter qualquer ideia de passagem de tempo. Quando prestava atenção em um destes elementos, perdia a concentração e simplesmente errava.

Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Quando adolescente, jogava muitos games que envolviam grande coordenação motora (como Guitar Hero), de forma que se eu prestasse atenção no que estava fazendo, começava a errar toda a sequência de botões. Na verdade, a comparação com ‘andar de bicicleta’ feita no fórum é extremamente pertinente. Andar de bicicleta é aquela atividade que aprendemos e nunca esquecemos e não sabemos explicar exatamente o que fazemos para andar, simplesmente andamos! Se pensarmos bem, isso não é tão estranho quanto parece e em nossas vidas é muito comum nos deparamos com este estado mental que descrevi. É um estado onde estamos completamente imersos na atividade que está sendo executada, mas isso ocorre de uma forma espontânea, como se houvesse uma mudança de paradigma em nossa cabeça que nos permite fazer coisas muito incríveis sem necessariamente pensarmos naquilo que estamos fazendo. 35


Você provavelmente já deve ter acessado estes estados jogando alguma coisa, praticando um esporte, tocando um instrumento musical, ou até mesmo dirigindo: em todos estes casos a pessoa provavelmente executa muitos movimentos sem pensar em cada um deles. É muito comum ver grandes artistas, em qualquer área, não saberem explicar exatamente as coisas que extraordinárias que fazem. Vi recentemente um exemplo disso em uma palestra do TED com o skatista Rodney Mullen5, em que ele explica movimentos muito avançados de skate como se fossem uma coisa extremamente simples e orgânica, mas na verdade sabemos que o movimento é complexo e por isso necessita de uma grande precisão para ser executado. Irei portanto postular o Princípio do Super Jump da seguinte forma:

Princípio do Super Jump: “A perfeição de uma habilidade e/ou técnica é atingida quando esta é executada sem pensar”

Talvez aqui você esteja se perguntando se de fato existe algo inovador nesta ideia. Provavelmente não. Ela é simplesmente a afirmação de uma constatação que grande parte das

pessoas já tiveram. Muitos sabem bem que se não ocorre devido a falta de talento, mas sim a um desconhecimento de como aplicar a modalidade D em nossas atividades (segundo ela, a habilidade manual necessária para se desenhar com realismo é a mesma que necessitamos para assinar nosso nome de forma legível).

Atualmente me encontro muito convencido do Princípio do Super Jump e sua eficiência. Este texto só foi produzido devido ao fato de que considero ter encontrado um excelente método para alcançá-lo. Acredito que este método proporciona uma espécie de expansão da mente, e sua grande beleza reside no fato de já possuirmos um grande número de habilidades extraordinárias e somente precisamos descobrir como acessá-las. Não tenho objetivo de apresentar detalhes sobre o desenvolvimento do livro pois acredito que sua leitura é certamente mais eficiente que minhas palavras. Caso tenha curiosidade deixarei o link da segunda edição em PDF para download na notatreinarmos muito, repetindo um exercício ou estudando uma técnica, eventualmente ficaremos realmente bons naquilo. Existe até a famosa ‘lenda das 10000 horas’ , que diz que nos tornamos profissionais em alguma coisa quando já gastamos pelo menos 10000 horas com ela.

5Palestra

de Rodney Mullen no TED: https://www.youtube.com/watch?v=3GVO-MfIl1Q. O trecho especificado no texto se encontra por volta de 9 minutos do vídeo. 36


Contudo, uma vez que observamos que há efetivamente um outro estado mental associado a execução perfeita de alguma coisa, podemos procurar algum método que nos leve a atingir a perfeição em nossas habilidades mais rapidamente, simplesmente através de um maior controle, entendimento e reconhecimento deste estado. E acredito ter encontrado este método através da leitura de um livro indicado por um amigo, chamado ‘Desenhando com o Lado Direito do Cérebro’6.

Neste livro, a autora Betty Edwards explica a já conhecida ideia de que cada um dos hemisférios do nosso cérebro se comporta de forma diferente, e que em média, treinamos mais o lado esquerdo do que o lado direito do cérebro em nossas vidas. De maneira bem genérica, segundo ela, o lado esquerdo do cérebro (chamado por ela de modalidade E) trabalha de forma verbal, analítica, simbólica, lógica e linear. Já o lado direito (modalidade D) trabalha de forma sintética, concreta, intuitiva, não temporal e de forma global. A partir disso, a autora nos ensina a reconhecer e distinguir as duas modalidades de trabalho do nosso cérebro para aplicá-lo com maior eficiência na execução de qualquer atividade. Nesta obra em particular, ela aplica a

modalidade D na aprimoração de nossas habilidades como desenhistas.

É possível que você já tenha notado que a ‘modalidade D’ é muito similar ao estado mental alterado mencionado anteriormente. É por este motivo que decidi experimentar o método sugerido pelo livro. A autora faz questão de enfatizar que desenhar é uma habilidade inerente de todas as pessoas, e que o fato da maior parte das pessoas não saberem desenhar com realismo de rodapé nº 6.

Como motivação, deixarei aqui os resultados que obtive desde o início da minha leitura. Tudo que fiz foi ler o livro e fazer os exercícios sugeridos pela autora. Os desenhos estão datados e foram feitos olhando-se diretamente para minha própria mão e pé. Apesar de ainda estarem longe de desenhos profissionais, a melhora é claramente perceptível para um espaço de tempo tão curto. Continuarei o treinamento para obter maior domínio da modalidade D para estender esta capacitação para outras habilidades (como música, por exemplo). Espero que o Princípio do Super Jump lhe seja útil!

6Download

em PDF da segunda edição do livro: http://gen.lib.rus.ec/book/index.php?md5=2F21E685A89A7FEAE81D67FA13847F04

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11/07/2017

20/07/2017

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25/07/2017

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Paradoxo da especialidade da existência

-Rorschach

Tao grandes Quantas coincidências tiveram que acontecer para que você pudesse existir hoje para ler esse texto?

Primeiro, os seres humanos tiveram que surgir... O que teria acontecido se uma bactéria nunca tivesse absorvido uma outra que se tornaria a mitocôndria? E se as algas não tivessem conseguido produzir oxigênio suficiente para formar a atmosfera terrestre? E se um ancestral qualquer, ao separar o bando, tivesse se dividido de maneira diferente? Cada etapa do nosso processo evolutivo é essencial para que os seres humanos sejam como são hoje. Se um bando de homnídeos não tivesse achado que era uma boa ideia colocar a comida no fogo, ainda gastaríamos energia demais na digestão para permitir que nossos cérebros se desenvolvessem.

Todas as coincidências que deveriam acontecer para que a humanidade pudesse existir aconteceram, por menores que fossem as probabilidades. Começou, então, a evolução da cultura, que permitiu que você tenha acesso a todas as ferramentas necessárias para ler esse texto agora, e que eu tenha as que preciso para escrevê-lo. Imagine o que poderia ter acontecido se os gregos não tivessem sido derrotados? Se o tal imperador romano não tivesse se convertido em cristão e obrigado todo mundo a se converter com ele? Se no dia que os Estados Unidos decidiram partir para participar da 1ª guerra mundial, um furacão tivesse atingido o país? E se Cambridge não tivesse concedido a Newton uma bolsa de estudos? São tantas coisas que poderiam ter ocorrido de maneira diferente, e cada uma delas possibilitou que você fosse o que é hoje.

Tivemos sorte, eu e você... a cultura evoluiu exatamente da maneira que deveria para possibilitar que sejamos quem somos. Mas, de qualquer maneira, ainda são tantas coincidências. Imagina a quantidade de homens que sua mãe poderia ter namorado ao invés do seu pai, e a quantidade de mulheres que seu pai poderia ter namorado ao invés da sua mãe. Existem 7 bilhões de pessoas no mundo, poderia ser qualquer uma delas, mas sua mãe e seu pai se juntaram para que você pudesse nascer. E se sua mãe tivesse ficado com aquele outro namorado que ela teve? E se seu pai tivesse resolvido seguir aquele sonho de viajar e não tivesse ido morar na cidade em que conheceu sua mãe? 40


Mesmo depois disso, seus pais se conheceram, transaram, sua mãe engravidou. Você sabia que

a probabilidade de nascer você, com exatamente a sua combinação genética, é 1 dentre milhões? Para que cada gameta (óvulo e espermatozoide) seja formado, existe muita (muita mesmo) recombinação genética. Uma mulher nasce com 500 mil óvulos, sendo que 500 são ovulados ao longo da vida. Se sua mãe tivesse engravidado em um mês diferente já não seria você quem iria nascer. O que deixa as chances ainda menores: cada ejaculação contém de 15 mil a 300 mil espermatozoides, cada um contendo um material genético diferente. Qualquer um dos espermatozoides do seu pai poderia ter fecundado qualquer um dos óvulos da sua mãe, mas foi aquele óvulo, e foi aquele espermatozoide, que se juntaram e criaram você.

Depois que você nasceu, com seu material genético que é único, um caminho muito longo foi percorrido para que você seja a pessoa que é hoje. Quantas coisas aconteceram... tenho certeza que você consegue lembrar de todos os eventos importantes que foram moldando sua personalidade. Você poderia ter ido estudar em outra escola, poderia ter ido jogar basquete ao invés de futebol, poderia ter escolhido uma turma de amigos diferente. Você poderia não ter tido um irmão, ou tido outro irmão. Você poderia não ter conhecido aquele filme, ou aquele livro, que mudou sua vida.

Nós nos construímos a partir de cada coisa que aprendemos, cada experiência que vivemos, cada pessoa que conhecemos (que por sua vez é construída a partir de cada coisa que ela aprende e vive, e das pessoas que ela conhece); somos construídos a partir da maneira com que reagimos a cada experiência vivida, a partir das decisões que tomamos, das interpretações que damos às coisas. Essas reações vão sendo aprendidas ao longo do tempo, baseadas nas reações

que tivemos anteriormente, baseadas em quem somos biologicamente, que depende de quem são nossos pais, de quem são os pais deles, que depende de cada um desses encontros, do fato de que essas pessoas tenham se juntado e tenham tido filhos.

Cada pessoa é uma obra de arte, que vem sendo pintada há muito tempo, desde o começo dos tempos. Vem sendo pintada por cada uma das coincidências que aconteceram na construção do mundo em que vivemos hoje, que faz com que cada um esteja onde está, interagindo com as pessoas que está interagindo, fazendo o que está fazendo, sentindo o que está sentindo, pensando o que está pensando, desejando o que está desejando, construindo sua própria história. Cada um é um universo.

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Tao pequenos Falando em universos, existem 100 bilhões de galáxias no universo, cada uma com 100 bilhões de estrelas. Nós habitamos 1 planeta que gira em torno de 1 estrela que fica em 1 dessas galáxias. Imagine quantas coisas devem existir por aí, a quantas coisas não temos acesso, provavelmente coisas que nem nossa imaginação consegue alcançar. São 10 vezes mais galáxias do que pessoas vivas na Terra. São muitas possibilidades.

Para um observador que vê a Terra dessa perspectiva, ela é um grande formigueiro, formado de vários sub-formigueiros e nós, humanos, somos um bando de formigas. Nenhuma pessoa sozinha é importante para o funcionamento do mundo, todos são substituíveis, e ninguém é lembrado no final. Cada pessoa ocupa um lugar no formigueiro, cumprindo seu papel para que ele continue existindo. Quando um morre, outro entra em seu lugar, e o formigueiro sobrevive.

Nascemos e somos educados com a intenção de ocupar um desses lugares, cumprir um desses papéis, às vezes, até lutamos por esse lugar, fazemos dele nosso objetivo de vida, já que, de qualquer maneira, não temos condições de ter qualquer outro objetivo. A maneira como nossa sociedade é construída nos obriga a ocupar um posto útil, que pode ser até mesmo um papel de entretenimento, para manter as formigas distraídas, para que não percebam que seu único propósito na vida é manter funcionando um sistema que nenhuma delas controla. Trabalhar e ter filhos, cuidar deles até que possam trabalhar também. É isso o que as formigas fazem.

O próprio fato de que nossa vida depende de uma cadeia de coincidências mostra o quão frágil

ela é. Assim como cada pessoa, individualmente, não tem controle sobre sua vida, sendo submetido a normas sobre como agir e o que querer, a sociedade não tem controle sobre si mesma. As formigas brigam, se matam entre si, destroem seu meio ambiente, as formigas não sabem o que estão fazendo, e nem o formigueiro. Ele apenas sobrevive. O controle está dentro da nossa ficção de grandeza, da ficção de que somos importantes, de que temos um propósito. Um meteoro caiu na Terra e extinguiu uma categoria inteira de animais. O que impede que o mesmo ocorra conosco? A extinção dos humanos pode inclusive vir dos próprios humanos, que

não percebem que são formigas, que acham que suas disputas entre times são importantes, que acham que algumas formigas são melhores que outras, que dizem que cada formiga tem seu lugar e deve ocupá-lo. O que cada formiga faz, o que cada uma sente, deseja, nada disso importa, desde que ela cumpra seu papel. E assim, o formigueiro sobrevive.

Tão grandes. Tão pequenos. Tão, tão perdidos....

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LEITE

-gato que late

de vez em quando, quando eu bebo leite, eu vomito ele todo pelo nariz. é um acontecimento tosco e já aconteceu perto da minha mãe, do meu irmão e da minha namorada. eu vomito o leite inteiro pelo nariz e eu não sei se é a impressão do leite saindo por duas cavidades finas ou se acaba saindo algo além do leite de dentro de mim, mas sempre que eu jorro leite do nariz parece que vaza o triplo do que eu bebi. é imparável, eterno, meu coração quase explode. o acontecimento todo é escroto, ofensivo até. eu assoo tanto leite pelo nariz que uma vez encharquei o tapete carícia da sala de casa e minha mãe teve que jogar ele fora. depois de três

lavadas, ela desistiu. você sabe como cheiro de leite gruda e fica insuportável.

mesmo assim eu gosto de beber leite. me dá um prazer abundante. não sei, mas parece que com leite eu tenho sensibilidade gustativa na parede do estômago, porque eu continuo sentindo o gosto fresquinho dele depois que desce. é muito gostoso. ele gelado, mais ainda. eu não consigo resistir. se tiver dois litros de leite na geladeira, eu bebo tudo num dia e ainda fico querendo mais. nem sempre que eu bebo eu jorro. eu só jorro na minoria das vezes. mas isso não acontecia até uns anos atrás. felizmente quem é próximo de mim tolera essa minha condição, a minha mãe, o meu irmão e a minha namorada.

a fabiana viu de um jeito engraçado. ela nunca tinha visto antes, mas chegou em casa no dia que eu jorrei no tapete e tava aquela carniça. minha mãe com uma mangueira, o tapete estendido na garagem, eu e meu irmão passando esses eliminadores de odor. ela riu quando expliquei o que tinha acontecido. eu disse que ia parar de tomar leite e ela riu mais ainda. eu não entendi, nunca tinha visto esse senso de humor na fabiana. aí ela esclareceu que tava rindo porque achada

inacreditável. pelo menos ela não ficou com nojo e mudou comigo. acho que eu não poderia esperar reação melhor.

mas não foi assim que a fabiana viu. ela viu o acontecimento, ela viu eu jorrando. aliás, ela não apenas viu eu jorrando como fez isso acontecer. a fabiana tinha uma mistério que eu não sei explicar. de vez em quando ela sugeria umas coisas que eu não sabia se eram verdade ou mentira. não sabia se ela tava brincando, o que que era. mas um dia ela chegou com um ar sinistro me fazendo uns inquéritos sobre eu vomitar leite do nariz. não é algo que eu gosto de ficar falando assim pra ninguém, nem pra ela, então a última vez que falei foi quando ela riu, foi quando eu disse que não ia mais tomar leite. 43


até aí tudo bem, ela tava curiosa. quem é que não fica curiosa com uma coisa esdrúxula dessas?! mas de repente ela ficou curiosa demais, incisiva comigo. quis saber se eu tomaria leite de novo se ela mandasse. na hora achei que fosse um teste desses de lealdade, ela querendo saber se eu faria por ela umas coisas que eu obviamente não faria. falei que claro que não. vi que frustrei ela. não entendi. depois achei que ela ia fazer uma piada disso, igual faz da minha careca, e pensei que fazer piada da careca até que vai, apesar que eu não gosto, mas mexer com esse negócio de jorrar leite eu achava exagerado. só que aí ela perguntou se eu jorraria o leite em cima dela. a minha primeira reação foi a primeira reação de nojo que aparece na sua cabeça agora.

no fim do encontro, depois que a gente tinha transado e visto série juntos, depois de beber copo atrás de copo de leite, na porta da garagem dela veio a vontade de jorrar pelo nariz.

não deu tempo de preparar nada, e eu tentei tapar, mas espirrava descontroladamente enquanto a fabiana me puxava pro quarto dela. ficava no fundo do corredor da casa, então derramou leite no caminho todo. a fabiana foi tirando o top desde a garagem e arrancou o sutiã assim que entrou no quarto, com uma força que eu nunca vi. ela se atirou na cama e deu um chute na porta ao mesmo tempo. (a vó dela, uma velha de noventa anos, morava com ela e não deve ter escutado nada). em cima dela, eu tirei a mão do meu nariz e comecei a jorrar. eu não

sabia direito o que fazer, porque ela só explicou que queria ver, mas eu adivinhei que era pra mirar nos seios. e assim foi, o que pra mim pareceu uma eternidade, mas deve ter sido, no duro, uns dois minutos e meio.

outro que viu foi meu irmão. no dia do tapete, ele tava tomando banho na hora. minha mãe é que tava na sala, aos berros enquanto saía todo aquele líquido branco pelo meu nariz. ela disse depois que eu tremia, que o pavor tinha baixado no meu rosto. mas meu irmão viu de um jeito muito pior. foi a quarta vez que aconteceu. a primeira com a mãe, a segunda com a fabiana, na terceira eu tava sozinho num dia que tomei muito leite e que não tinha ninguém em casa, mas na quarta eu e meu irmão fomos num desses rodeios.

tem muito na minha cidade, mas eu não gosto de ir. não gosto do ambiente, nem das músicas. eu curto comer alguma comida, ver as meninas. mas naquele dia eu tava sossegado de meninas. a fabiana tava na cidade do pai e eu não ia azarar por aí na ausência dela. nem na presença eu não azaro também. eu sou um cara sem graça, segundo meu irmão. fui com ele mais porque eu nunca vou do que porque eu

vou sempre. tinha lá um desses caubóis famosos que montou no boi por uns segundos. ele tava dando entrevista pra uma televisão e meu irmão tava atrás de uma menina que era caída por esse caubói. meu 44


irmão achando que tinha chance com ela enquanto eu tava lá, acompanhando, tomando suco de milho. eu não sabia que suco de milho era tão bom. melhor suco que eu já tomei.

acontece que vai leite nesse suco, e eu nem me toquei. na verdade, não vou dizer que não passou pela minha cabeça, porque passou. mas eu apostei que não fosse acontecer porque só acontece de vez em quando, ou então eu pensei que misturado assim o leite não saía. era o segundo copo que eu tava tomando enquanto eu só esperava o tempo passar. eu olhando o caubói na frente da câmera, fazendo gracinha com as fãs, eu achando ele um ridículo. na minha frente meu irmão sondando a menina pela lateral e a menina nem aí, até levantando os pezinhos pra enxergar melhor o caubói. ele dava moral pra todas, só não dava pra ela porque já tinha umas quinze na frente dele e a gente tava de costas. eu também nem me toquei que dava pra aparecer a gente na televisão, e se tivesse tocado também nem ligaria, porque eu não ligo de

aparecer nesses canais regionais que ninguém assiste.

foi sem aviso, porque é sempre sem aviso que acontece, mas dessa vez o primeiro sinal que eu notei de que eu tava vomitando leite pelo nariz foi quando vi na jaqueta marrom do meu irmão uma meleca pastosa meio amarelada. daí eu vi de novo, vi saindo, tava saindo reto, que nem uma seta, espirrando nas costas do meu irmão que não tava nem sentindo. aí parece que o esporro aumentou porque eu percebi aquela sensação incomunicável, que depois de muitos

anos sofrendo disso eu descrevo como “sucção ao contrário”, como se algo tivesse puxando o leite pelo meu nariz. sei lá.

acontece que eu nunca vi durar tanto. eu tenho certeza que tinha entrado bem menos leite no meu organismo que da vez que eu jorrei na fabiana, mas eu jorrei muito, mas muito mais dessa vez. meu irmão primeiro gritou bravo, decerto constrangido por causa da menina, me culpando. depois ele teve que me ajudar, sei lá como ele pensou que pudesse me ajudar, mas ele me segurou pelos braços, porque segundo ele eu tava indo pra frente, como se alguém puxasse uma corda presa no meu nariz. tá aí, essa é outra boa descrição.

eu tava sendo puxado pelo leite com milho e meu irmão me segurando por trás, falando pras pessoas que aquilo era normal. eu não via nada, não consigo ficar com o olho aberto enquanto acontece. já tentei, mas é instintivo, o corpo não obedece. então eu nem sabia pra onde mirar, o espaço era grande, as pessoas gritando e eu escutando o líquido fazendo splash no chão de esterco. o caubói parou de dar entrevista, eu acho.

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no outro dia eu levantei sossegado, porque me dá um sossego estranho depois que esses episódios acontecem. não sei o que é. fui olhar na internet e as pessoas tavam me mandando uns vídeos. pelos títulos eu já sabia o que era. não vou nem falar o que tava escrito nesses títulos, só vou dizer que um deles dizia assim, “careca atira lazer amarelado pelo nariz”.

vi esse vídeo. eu já esperava. o jorro realmente tava saindo bem reto. mas o que me deixou puto mesmo é que fiquei marcado de careca.

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O oráculo da flauta

- Wild Child

Era uma vez, um homenzinho tímido, que perambulava pelo bosque ao amanhecer, todos os dias. Certa manhã, o homenzinho tropeçou e rolou por um desfiladeiro, o que seria um infortúnio, senão pelo fato de cair sobre uma pequena lombada na terra, que acertou suas

costas. Pois na verdade a lombada era um objeto de metal, o homenzinho descobriu ao desenterrá-lo. O objeto era uma caixa ornamentada que guardava uma pequena flauta, a qual o homenzinho admirou já por sua rara beleza. Intrigado com o instrumento, ainda lembrando-se das dores do tombo, o homenzinho seguiu sua curiosidade de criança e se pôs a tocar sua música. Imediatamente, entretanto, da pequena flauta emanou uma fumaçinha brilhante, que materializou uma figurinha no chão, sobre os cascalhos. O homenzinho até caiu para trás, assustado com a manifestação desconhecida. Permaneceu apreensivo, até poder distinguir o simpático ursinho adiante. ‘Sou um grande e singular oráculo’ disse a figurinha com sua divertida voz. O homenzinho perguntou ‘Que tipo de oráculo?’, ao que o ursinho respondeu com um silêncio e, depois, disse ‘Só respondo perguntas que podem ser respondidas com sim e não. Além disso, só respondo perguntas que dizem respeito à pessoa que pergunta e perguntas que fazem sentido e o sentido das respostas é o meu sentido, esse ponto é muito importante. Outras perguntas eu sei responder, mas não respondo. E já vou avisando, eu sempre estou certo, você pode verificar. Minha sapiência é vastíssima e certeira, e também minha linguagem’. O homenzinho piscou rapidamente os olhos tentando acompanhar, claramente ficou muito

surpreso com a singularidade daquele ser. Tão logo já estava testando os poderes do oráculo. ‘Tem um cascalho na minha mão direita?’, ele perguntava com as mãos para trás e o oráculo sempre ficava em silêncio, havendo ou não qualquer cascalho. ‘Mas o que significa este tipo de pergunta que você responde?’, repetia o homenzinho enquanto o ursinho nem se preocupava em responder. ‘Por acaso... Eu sou elegante?’, de repente soltou, e o oráculo nem se incomodou. O homenzinho começou a suspeitar, e já viu que era difícil interagir com aquela criaturinha, pois jamais respondia coisas e soltava apenas comentários irrelevantes. O homenzinho pensou que precisava então entender o que seriam perguntas que dizem respeito a ele. Os dois voltavam juntos para a vila, o homenzinho pensava enquanto ouvia a vozinha engraçada ‘Flores bonitas’, ‘Como é bom caminhar’, ‘Maravilhoso casaco’, etc. Tanto que nem se incomodou em agradecer pelo elogio da vestimenta. De repente teve uma ideia, ‘Oráculo, então, aquelas flores são bonitas?’. Silêncio. E em seguida, ‘Acho aquelas flores bonitas?’ e ele respondeu ‘Não’. O sangue do homenzinho se esquentou, ‘Ora! Você é incoerente, disse que é muito sábio, mas não responde nada, e quando finalmente responde, você erra! Eu acho, sim, as 47


flores bonitas’. O oráculo nada respondeu. Chegando à casa, o homenzinho guardou a flauta, acomodou o oráculo em um velho quartinho e foi ao trabalho. Passou o dia intrigado com o aparecimento e o comportamento daquela criatura. Ao voltar, cansado, foi espiar. Entrando no quarto, percebeu que o pequeno oráculo havia executado cálculos muito complexos em uma folha de papel que achou em uma gaveta. A criatura permitiu que os visse, mas ele nada entendeu. Logo pensou que ele então devia sim ser inteligente como disse, que talvez houvesse ali uma charada a ser resolvida. Propôs-se a descobrir o segredo de seu funcionamento, ali mesmo. Pensou um pouco, hesitou, seu interior se esfriou de repente quando perguntou ‘Vou morrer hoje?’, ‘Não’ respondeu o oráculo. Ainda de súbito ‘Então vou terminar o dia respirando?’, ‘Sim!’. O homenzinho ficou aliviado e contente, também sentiu um arrepio em vislumbrar a capacidade daquele singular companheiro. ‘Ah, você não precisa se preocupar, eu não como’, lembrou o pequeno urso. O homenzinho mal o ouviu, sentia a animação crescente em relação à diferença que aquele novo recurso poderia fazer em sua vida; foi continuar seus afazeres enquanto pensava em mais perguntas. De tão tímido que era, não tinha a coragem de se expor ao perguntar qualquer coisa. Logo, já era tarde o suficiente e então foi dormir, com a

cabeça imersa na tentativa de descobrir a maneira mais correta de utilizar o oráculo, desvendando seu funcionamento. De manhã, acordou com uma ideia. Foi direto da cama e perguntou ‘Devo sair para o trabalho hoje?’, e a resposta foi um olhar passivo. ‘Claro. Pois então, todas as manhãs eu chego à mesma conclusão que devo ir ao trabalho, estou certo com isso?’, e para seu espanto a resposta foi ‘Não’. ‘Então, se com isso eu chegasse à conclusão de não ir, aí estaria certo?’, e de novo a resposta foi ‘Não’. Então o homenzinho levantou-se em empolgação e disse ‘Ora, é possível que eu esteja certo neste assunto?’, e a resposta do oráculo dessa vez foi ‘Sim!’. ‘Como pode?’ o homenzinho resmungou, novamente intrigado. Olhou para a pequena mesa e viu mais folhas de cálculos complexos, o oráculo ansioso para continuá-los. Decidiu que não tinha escolha senão sair para o trabalho, depois de caminhar um pouco no bosque. Deixou ali o oráculo e foi, sem parar de pensar em como avançar com ele. Durante todo o dia, inquietou sua mente pensando em uma maneira de entender as últimas respostas. Voltando para a casa, pensava, então elaborou uma ideia. E se o oráculo se referisse ao modo que

o

questionador

formulava

sua

questão?

Desta

forma,

estando

inadequado,

independentemente da conclusão, ele estaria errado. Se isso fosse correto, poderia muito bem usar o oráculo para descobrir a maneira certa de se chegar a uma conclusão, além de todos os dias confirmar que não morreria. Ao chegar à casa, interrompeu-o de uma bateria de cálculos pesados e, olhando para os papéis sobre a mesa, imediatamente pensou em uma engenhosa maneira de testá-lo. Pegou uma das folahs, em branco, e escreveu sobre ela um cálculo, ‘2+2=?’. Pensou que, se possui duas unidades e adiciona mais duas, termina com quatro unidades, então 48


escreveu na folha. ‘A resposta correta a este cálculo, dois mais dois, é quatro, estou certo?’, e o oráculo respondeu ‘Sim!’. Depois de um tempo refletindo, repetiu, escrevendo ’30-18=?’. Pensou que, se juntar 30 com 18, tem 3018, cuja soma dos algarismos é 3+0+1+8=12, portanto a resposta é 12. Escreveu na folha e perguntou, ‘A resposta correta a este cálculo, trinta menos dezoito, é doze, estou certo?’, e desta vez o oráculo respondeu ‘Não’. O homenzinho abanou a cabeça lentamente, agradado, enquanto refletia. Seus olhos saltaram num instante, ao tempo em que ele vislumbrava o entendimento do processo pelo qual o seu peculiar amigo julgava suas respostas. Seria aquela lógica a forma pela qual a própria mente humana se definia, sempre? Em um giro, esbarrando na cadeira, ele se pôs a verificar. ‘Pequeno oráculo, eu vivo?’, e a figurinha calmamente arrastava a cadeira de volta para o lugar, em silêncio. O homenzinho continuou, em constante empolgação ‘Eu acho que estou vivo?’, e o oráculo respondeu ‘Não’. Então foi rebatido com entusiasmo ‘Eu acho que estou respirando e meus órgãos funcionam?‘. O pequeno oráculo deu uma sapateadinha e respondeu ‘Sim’. O homenzinho foi arrebatado por um surto de inspiração linguística e proferiu ‘Eu acho que existo em uma realidade, definindome através das coisas que experimento e do meu entendimento delas?’ O ursinho estendeu sua

mão, manipulando os dedinhos de modo a ter somente o polegar levantado. Disse ‘Sim!’. O homenzinho estava contagiado, em êxtase; por fim, pegou o papel repleto de cálculos, escrevendo em um canto que o pequeno oráculo rapidamente indicou, longe de seus complexos escritos, pensou em uma equação simples de forma que não soubesse a solução e disse ‘Para confirmar, oráculo; a resposta para esta equação é 1?’. Depois do silêncio que previra, ele perguntou ‘Digo que a resposta é 1, estou certo?’, e então o oráculo respondeu ‘Não’. O homenzinho rapidamente resolveu a equação no papel e, empolgado com sua grande sorte, verificou que a resposta era 1. ‘Digo que a resposta é 1, estou certo?’ perguntou de repente, ouvindo a resposta que previu, ‘Sim’. O homenzinho gargalhou de tanta empolgação por seu progresso. Pensou que, se for assim, o poder desta figurinha é realmente imenso, pois por quais meios poderia saber os raciocínios e processos internos utilizados pelas pessoas para tomar uma decisão? O pequeno oráculo estava dentro de sua mente mais intimamente que sua própria consciência. Aquela era uma ferramenta única. Estático, no meio do quarto, foi interrompido pelo pequeno urso, ‘Muito calor por aqui’. Deu um salto e perguntou, por fim, ‘Estou certo por achar que desvendei a direção de suas respostas, pequena figura?’. O oráculo olhou para ele e abanou a cabeça, ‘Sim!’. Naquela noite o homenzinho foi dormir agradado, cheio de energia a ser gasta em perguntas. Ao acordar, tinha novamente em mente a questão do trabalho. Chegou ao quarto e, ao abrir a porta, percebeu que o pequeno oráculo ainda dormia, envolto em um cobertor. Enquanto voltava pensativo, concluiu que ele não devia precisar dormir. Entrou novamente no quarto e, atentando-se, viu que o pequeno urso esfregava-se no cobertor com os 49


olhos fechados. O homenzinho pigarreou. O oráculo abriu seus olhos de repente e, aconchegando-se no cobertor, exclamou ‘Excelente contato com a superfície, o deste cobertor’. Estranhando, o homenzinho perguntou ‘Oráculo, por favor me responda, eu não quero ir ao trabalho hoje, estou certo?’. O oráculo respondeu, sem se incomodar em encerrar sua atividade, ‘Não’. ‘Preciso então formular melhor, este é o segredo... Ah, estou correto com isso?’. E a resposta foi ‘Sim’. Esfregando suas mãos, o homenzinho continuou ‘Hmm... Eu estou indisposto, ainda cansado, e não acho meu trabalho agradável, é por isso que não quero ir, certo?’. E recebeu ‘Não’. Ele não se abalou, ‘Hmm... Hmm...’, só que foi acometido por um surto de inspiração linguística ainda mais intenso que o do dia anterior ‘Eu sinto que desperdiço a minha vida, que é a única e finita oportunidade que eu tenho de experimentar coisas e estar consciente, por ficar muito tempo fazendo algo que me aborrece e ainda concretiza o meu sentimento de desprezo em relação a mim mesmo que vem do fato de eu não estar realizando os objetivos que mantenho guardados nos cantos dos meus pensamentos, enquanto me recuso a mudar minha condição, por covardia; é por isso que não quero ir trabalhar hoje, estou certo?’. Quando terminou, o ursinho estava de costas, esfregando-se no cobertor. Então virou-se,

encarou-o e respondeu ‘Sim’. O júbilo que o homenzinho sentia atirou-o de joelhos, enquanto chacoalhava o pequeno urso, que não reagia. Naquele dia, o homenzinho não foi ao trabalho, passou diversas horas inquirindo ao pequeno oráculo, visceralmente enriquecendo sua visão de si mesmo. O oráculo da flauta estava exercendo seu poder. A intensidade da atividade foi tanta que o homenzinho sentia fortes dores relacionadas à manutenção de seu corpo quando percebeu que o dia havia praticamente acabado. Fora isto, nunca sentiu um prazer mental tão grande em toda sua vida, na verdade sentia que poderia ser quem ele quisesse e atingir o conhecimento que quisesse. De repente, um golpe de lucidez condizente com seu atual ânimo o invadiu, lembrando-o que durante todo este tempo ele mesmo poderia ter previsto corretamente todas as respostas do oráculo, se prestasse a devida atenção a este aspecto. Além disso, antes possuía dificuldades em entender a pertinência da forma de chegar a conclusões que o oráculo exibia, mas agora tudo estava claro e o homenzinho sentiu que nunca antes estivera realmente certo de algo sobre si ou sobre os termos que tinha o costume de usar em sua linguagem. Em meio a toda essa iluminação, o pequeno urso levantou-se e comentou, calmamente ‘Aprecio a oportunidade de ser o seu hóspede, mas já se passou tanto tempo que eu começo a me sentir constrangido. Você poderia tocar novamente a flauta e então atirá-la pela janela?’. O homenzinho se surpreendeu. Não queria se despedir do oráculo, mas bem refletiu; ele realmente não precisava de suas respostas, se sabia prevê-las, e também respeitava tanto o pequeno oráculo que não podia recusar seu pedido. Procurou a flauta rapidamente e, tocandoa, viu o ursinho começar a se desintegrar. Apontou a flauta enquanto dizia ‘Adeus, grande 50


amigo’. O oráculo abanou suas mãos no ar enquanto era sugado pela flauta. Sem pensar duas vezes, o homenzinho atirou a flauta pela janela do velho quarto, que o ligava a um pequeno quintal de terra. Respirando fundo, o homenzinho se voltou à mesa que o oráculo havia utilizado para escrever seus cálculos, as folhas ainda estavam ali. Espiou uma delas que parecia ter seus escritos interrompidos por rabiscos. Ao final liam-se as palavras ‘Sem desfechos conclusivos’. Ao repassar os olhos sobre as letras, sentiu um estalo na espinha e, com o coração em socos, correu apressado para o pequeno quintal, apenas para descobrir que a flauta havia sumido. Apertou os olhos tentando processar o vislumbre de uma possibilidade aterrorizante; lembrando-se das respostas do oráculo a respeito da morte e do próprio funcionamento de suas respostas, o homenzinho se perguntou ‘Então nós temos condições de saber quando estamos próximos da morte?’.

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O Leão

- Chico Chicória

Era nosso primeiro encontro. Eu estava bem alimentado, indistinto.

porém Dei

com

um

aquele

passo

a

instinto frente,

demonstrando minha fortaleza. Ele avançou com igualdade, e foi então, que resolvi tirar da situação mais do que um só lado favorável.

Saltei no pacote saudável, rasgando suas fitas ao meio. Embolei-me por todo o tecido, perfurado jorrava vermelho. Minha piedade era um reflexo de vampiro que se olha no espelho. Sentiu na maestria que deveria não ser o primeiro. E que na minha soma o dividia, retirando de tudo, um inteiro. Sobrando no que antes havia, bem melhor a qualquer carniceiro. Acho que não me conhecia ou sequer seguia o conselho, de que bicho algum deseje um bom dia para aquele que é o dono do reino.

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