O Círculo Vol.3

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Editorial O Editorial deste mês tem como objetivo transmitir e esclarecer as principais mudanças que entrarão em vigor a partir desta edição. É com grande pesar que este volume possui uma quantidade de conteúdo significativamente menor do que as edições anteriores. Apesar de acreditarmos apreciavelmente que essa baixa ocorreu em virtude das celebrações de fim de ano, decidimos ainda assim implementar algumas pequenas alterações. Uma das principais filosofias do projeto estabelece que a qualidade de nosso trabalho está completamente vinculada com a necessidade de que cada texto escrito ressone intimamente com o seu próprio autor. Dessa forma, a produção dos textos não pode ser encarada de forma comercial ou em grande escala: é necessário que o autor sinta que seu texto está sendo escrito porque estas ideias, informações e/ou reflexões realmente são tão importantes que realmente merecem ser escritas. Em virtude disso, decidimos abolir a necessidade das colunas terem um novo texto todo mês. Elas continuarão existindo normalmente, apenas teremos que seus novos artigos poderão aparecer com frequência mais baixa que a usual. A ideia é incentivar nossos colaboradores a não encararem este projeto como uma forma de pressão, para que possam se sentir completamente à vontade para produzir seus textos de acordo com o andamento particular de suas vidas. Outra mudança que ocorrerá a partir da próxima edição, é a inauguração da nova seção de cartas. Caso você possua alguma dúvida sobre um tema, sobre algum texto , ou mesmo deseja se comunicar com um dos autores, você pode enviar suas perguntas para o e-mail textos.ocirculo@gmail.com, com o assunto ‘Carta’. Não se esqueça de indicar qual autor deve responder sua dúvida. Os e-mails enviados até o último dia de cada mês serão respondidos e publicados de maneira anônima no início da edição do mês seguinte. Dúvidas, sugestões, opiniões, ideias, correções e qualquer outro aspecto de caráter geral da revista podem ser enviados de forma anônima através do site www.mepergunte.com/ocirculo. Nele mantemos um mural com os comentários enviados e nossas respostas. Procuraremos responder os todos os comentários por volta de duas vezes ao mês. Não se esqueça que se você gostou do nosso projeto, você pode participar entrando em contato conosco através do e-mail textos.ocirculo@gmail.com.

Saudações,

O Círculo.

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Índice

ÍNDICE

06. Filos e Sofia: Três, dois, um: abortar (Wild Child) 13. Compondo um sentido: Intervalos (Sol) 24. O que nos faz humanos: Falsas memórias (Rorschach) 28. Desconsolos do Ego: O Ego vingativo (Mononoke) 41. Método Científico – Capítulo 2: O Menino que Amava Polímeros (W.N. Centauro)

50. Ana e o mundo de cano (Wild Child) 52. Porta retrato espelhado (Melancolírico) 59. Lar, doce lar (Rorschach) 62. O cara do jogo (Wild Child)

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A seção Filos e Sofia é baseada no formato do livro de Julian Baggini, O Porco Filósofo (The pig that wants to be eaten), em que o autor apresenta uma cena que instiga uma reflexão e segue com ideias e considerações a respeito da situação, deixando perguntas em aberto para o leitor. Aqui, vamos sempre contar algo que aconteceu nas agitadas vidas dos amigos Filos e Sofia e depois levantar questões sobre algo de interessante ou perturbador que se esconde por trás dos acontecimentos.

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3. TRES, DOIS, UM: ABORTAR. - Wild Child A nova igreja evangélica de jesus cristo estrela do pop chegou na cidade e, como Filos e Sofia estavam carentes de um amparo existencial, resolveram dar uma olhada. Ao participarem do grande show de fé, converteram-se instantaneamente. Uma comunidade acolhedora, um deleite para os sentidos e um berço aconchegante para o espírito, a igreja arrebatou firmemente os corações dos dois jovens.

À medida que os meses se passaram, Filos começou o treinamento para se tornar pastor enquanto Sofia mudou todo o seu guarda-roupa e participava de três grupos de jovens. A experiência era tão intensa que ambos faziam apenas isto. Não obstante tanta alegria, aconteceu algo absolutamente inesperado. Sofia engravidou; e o rapaz, participante dos grupos de jovens, compareceu apenas para dizer que seus pais não poderiam descobrir o que aconteceu. Sofia refletiu em reclusão por vários dias, analisou como seria sua vida e confrontou sua nova realidade com todos os seus planos e com tudo o que sempre esperou ser e fazer. Consideravase muito nova, muito despreparada e desmotivada a ser mãe. Ficou muito indignada com o fato de um único incidente poder mudar tão drasticamente sua realidade, e só a dela, nem a do garoto mudaria. Ela ficou irada, não parecia ser justo, pensou em quantos erros são cometidos pelas pessoas, erros mais graves, maldades, faltas de consideração, que não são assim tão carregados de mudanças. Encheu-se de raiva ao concluir que na vida as consequências não correspondem aos atos praticados em proporção, que os preços são diferentes. No fim de uma angustiante espiral de simulações, Sofia vislumbrou a ideia de se livrar das consequências, ela pensou em abortar. Desesperada, ela procurou Filos para ajudá-la a decidir o que fazer: Filos, estou grávida e não posso ter a criança! Ora, Sofia, o que você está sugerindo? Você está carregando um fragmento de Deus, um ser humano! 6


Tá legal, Filos, já chega dessa história, a situação ficou séria. Quero voltar pra vida que tínhamos. Você vai me ajudar a abortar. Meu senhor, você só pode estar brincando. Isso é um assassinato, Sofia! Esse filho vai arruinar a minha vida, eu nem terminei meus estudos. Primeiro, não vai. Segundo, quer dizer que sua resposta é arruinar a vida dele?

Não, Filos. Você sabe que não é assim que as coisas funcionam. Ah, é? Então como elas funcionam? Senta aqui que eu vou te mostrar o que está escrito na bíblia. Sem tempo a perder, Sofia deixou Filos falando sozinho e foi atrás do que poderia ser feito. Foi terrível o seu desalento ao descobrir que o aborto não era legalizado e que no máximo poderia recorrer a um aborto clandestino, altamente perigoso, ou, se fosse bem endinheirada, algo que não era, poderia viajar para um lugar onde o procedimento era legal. Inclusive, o pastor que tinha Filos como pupilo era o próprio deputado que era a propaganda da luta contra o aborto

no país. Sentindo-se abandonada e culpada, Sofia achou conforto em um canto, onde poderia chorar o quanto precisasse.

QUESTÕES Δ Quais aspectos são importantes ao discutir o aborto? Δ Como definir o que é um ser humano? Δ Qual a diferença entre um ato individual e um ato político? Δ Abortar e legalizar o aborto são os mesmos assuntos?

Discussões envolvendo o tema do aborto tendem a ser bastante polêmicas e guiadas por intuições e argumentos carregados de emoções, inclinações e fé. Por isso, acredito que a riqueza e importância de discussões desse tipo não são exploradas suficientemente por qualquer uma

das partes, que deixam de lado muitas questões interessantes e pertinentes que emergem desse debate. Para uma abordagem minimamente rica, precisamos levantar diversos aspectos que vão desde indagações filosóficas a respeito da definição de seres humanos até o que concerne à formulação de políticas públicas. A abordagem completa deste tema é muito mais uma jornada teórica do que uma polêmica religiosa ou um problema social, e é o que pretendo vislumbrar aqui. 7


Filos protesta contra o aborto dizendo que ela não pode se livrar de um ser humano. Mas o que é um ser humano? Pra falar disso, temos que nos lembrar de que a natureza não se adequa à nossa vontade, não se limita às nossas conceitualizações. Nós somos criaturas que evoluíram, que possuem capacidades mentais que evoluíram para lidar com o ambiente à volta, processar informações e criar um modelo de mundo mental para navegar nele com eficiência. Parte disso é a nossa capacidade de cercar o que

vemos em conceitos e essências, mas nada é limitado quanto queremos e os processos dinâmicos na natureza não possuem as fronteiras que desejamos. Não é diferente com nós mesmos, tentando definir o que é humano ou o que é vivo, tentando criar sistemas religiosos para explicar nossa suposta importância e nos confortar; a natureza não tem a menor agenda de satisfazer às nossas expectativas e se adequar ao nosso modelo, é o nosso modelo que faz o que pode para compreendê-la e com isso estabelecer e trabalhar com a nossa condição de vida, nossa condição animal. Independente das propostas mirabolantes que possamos criar para salvar a essência do ser humano, elas nunca se adequam à experiência. Essa essência não existe. Quando cometemos um assassinato, destruímos uma

pessoa que tem uma experiência subjetiva complexa, um semelhante, que possui um histórico robusto de pensamentos e comportamentos, que possui crenças e desejos. Esse tipo de coisa que constitui o conceito de assassinato na nossa cabeça. Mesmo se assassinamos um recém nascido, entendemos aquele indivíduo como um semelhante pois já somos capazes de enxergar nele uma história, mesmo que diminuta. Ele já nos apresenta emoções, comportamentos complexos, curiosidade, a coerência que um animal apresenta. E apesar do horror que sentimos em virtude da crueldade de se assassinar um bebê, indefeso e dócil, é mais fácil nos conformarmos com a morte de um bebê do que de uma criança um pouco maior, porque a criança é um pouco mais “humana”, possui uma subjetividade e uma história

mais ricas.

Podemos considerar ridícula a ideia de que existe “humanidade” em um espermatozóide ou um óvulo, apesar da potência que possuem para se tornarem significativos constituintes de um futuro humano. Para ajudar a elucidar o argumento, imaginemos que fizéssemos questão de, por meio de nossas crenças arbitrárias, encarar estes componentes como sagrados. Veja que a própria prática da nossa realidade impossibilita que eles sejam sagrados, não há como evitar sua banalidade. Espero transmitir a sensação de que isso se estende a qualquer âmbito; em geral, a natureza não deixa nada ser sagrado e a análise e

o descobrimento sempre levam nossas exigências puristas ao constrangimento. A história de nossas descobertas é a maior prova disso, mas sempre parecemos dispostos a apostar naquilo que ainda não foi desmistificado. Continuando, imagine então que as gametas se fundem para formar a célula que possui o dna completo de um ser humano. Aconteceu algo de especial ali? Podemos querer acreditar que sim, mas quando vamos olhar de perto, nada está separando, nenhuma dinâmica especial até então inexistente passa a existir. Coisas novas acontecem, claro, mas como em muitos processos não humanos 8


e não vivos. E enquanto aquela célula se desenvolve e faz brotar sua complexidade, vemos gradualmente um ser surgindo e começando a apresentar características humanas até que esteja pronto para nascer. Pensar em se livrar de um feto de oito meses é estranho como se livrar de uma criança já nascida, temos ali um indivíduo manifesto, que já possui sua subjetividade.

Sabemos que o que dá caráter à subjetividade de um ser humano é um conjunto de processos na complexa dinâmica de seu sistema nervoso, mas este não tem um momento de surgimento, não existe um ponto no tempo e no espaço onde o milagre da vida acontece, infelizmente não. Esperamos que a essência humana seja algo que salte, que emerja, da natureza não humana que o concebe, mas na verdade esse salto nunca acontece, e até mesmo um adulto cheio de crenças, desejos e emoções nunca saltou desse cenário “sem essência” da natureza não humana. Ele também faz parte da dinâmica contínua. Agora, no início do desenvolvimento embrionário, o indivíduo é uma porção de células com a intenção sem subjetividade (ou seja, intenção no

máximo bioquímica) de se tornar um indivíduo mais complexo, naquele meio. Assim como Filos, você considera assassinato se livrar deste indivíduo?

Aí caímos em outro ponto da conceitualização, cuja falta de concordância acarreta muitos debates infundados. O que é um assassinato e como interagimos com esse conceito? Basicamente, é tirar uma vida; mas temos uma conceitualização específica para o ato de tirar uma vida humana, levando em conta os aspectos de uma pessoa já citados. Criminalizar o assassinato de pessoas é uma medida de segurança, todos são passíveis de morrer e matar

alguém soa como uma boa resolução para muitos problemas. A questão do aborto é que quem decide criminalizar já não é passível de sofrer essa pena e quem é passível de sofrer é muitíssimo mais indefeso do que um indivíduo adulto, passível do assassinato comum. Então, se você considera que o aborto de um feto no início do desenvolvimento pode ser considerado assassinato, você tem razão em repudiar o ceifamento gratuito dessa vida. Mas o aborto, inclusive por ser em grande medida contrário a instintos que evoluíram em nós e ajudam a determinar nosso comportamento, sempre envolve um grande conflito e um balanço de prós e contras muito delicado. O importante é ter em mente que considerar o aborto de um feto no

início de seu desenvolvimento um assassinato é uma postura facultativa, que muito provavelmente não possui resposta precisa; então, se compararmos com os balanços de prós e contras do assassinato comum, há uma assimetria. Um potencial assassino avalia o valor da morte de outra pessoa consensualmente, cientificamente, viva, o que soa injusto. No caso do aborto, como expressa Sofia ao pensar em sua vida, uma pessoa avalia abortar algo que está dentro de si, avaliando prós e contras para si e como ela mesma compreende como vida. É uma 9


questão pessoal, de escolha pessoal, por mais que soe horrível para alguém de fora que não está participando disso. Não cabe nem a ideia de que a possível criança paga pelos “erros” de quem está abortando, pois ninguém existe para pagar. E se pensarmos no que aquela estrutura poderia vir a ser, estaremos mexendo com ideias muito abstratas, pedindo um controle impossível da realidade.

Na história, o pastor e mentor de Filos luta legalmente contra o aborto. No cenário disso ser uma questão pessoal, faz sentido levá-la à esfera política, legal e coletiva? Nestes termos, parece que não. Uma pessoa não deveria ser legalmente proibida de fazer algo que se relaciona apenas com ela, principalmente se isso decididamente faz parte da resolução de um problema que ela tem. Mas esta esfera política leva em consideração vários outros fatores, como a manutenção de uma opinião pública ou a aplicação de estratégias de controle populacional. E nesses aspectos, todos teriam a ganhar em imediato com a legalização e a regulamentação do aborto, pois existe

todo um mercado de abortos ilegais e muito mais prejudiciais à saúde e à vida e há previsões de que, com a legalização, as pessoas não se sentiriam mais incentivadas a abortar, mas teriam mais amparo ao decidir. Essas previsões podem ser justificadas também pela análise de como funciona o processo de decisão para se abortar da maioria das pessoas que passam por isso; mulheres pobres em uma situação de desamparo, vivendo em um meio de pouca compreensão das pessoas ao redor, tendo elas próprias pouca experiência na resolução de problemas desse porte e um grande incentivo pessoal para abortar, juntamente com uma grande falta de esclarecimento a respeito do perigo dos abortos clandestinos. Por outro lado, as pessoas não

tendem a pensar que “já que estou amparado pela legalização do aborto, vou ser ainda mais descuidado com as minhas práticas”. Na verdade, um casal que engravida e disso decorre a decisão de abortar não fez isso planejando ou pensando em algo, são acidentes que ocorreriam independentemente da legislação.

Mas isso soa como a ideia de que os fins justificam os meios, e muita gente, principalmente as pessoas que acreditem que isso é um assassinato, poderia argumentar pela adoção de medidas mais corretas para o controle deste problema, mesmo que sejam medidas de longo prazo.

Primeiro, não é uma questão de fins justificarem os meios, porque, lembre-se, esta é uma questão de moralidade relativa; só é assim pra quem acredita que o aborto é um assassinato. Segundo, sejam a educação da população, medidas de adoção de crianças, subsídios ou a propaganda por medidas contraceptivas, coisas comumente propostas que também poderiam controlar a questão e que não sejam legalizar o ato. Todas essas medidas ou contornam o problema (não resolvem o problema de quem já se encontra na situação, na verdade servindo 10


como medidas complementares à legalização), ou criam outros problemas (mais crianças em condições precárias no mundo), ou então não resolvem todos os problemas (obrigam uma mulher a passar por todos os processos de se ter um filho). De qualquer forma, esta postura pode ser válida, mas é preciso levar em consideração os problemas que estão sendo enfrentados hoje pelas pessoas e deve-se dar importância para o bem estar destas pessoas, que já possuem

crenças, desejos e emoções.

Outro aspecto suscitado pelo pastor, que vou abordar brevemente, é a representação política de grupos específicos que gera mudanças e proibições na vida de todos. Relativizando a situação, poderíamos dizer que a igreja pensa uma coisa (que o aborto é assassinato) e a ciência pensa outra (que ela é quem decide o que faz e o que não faz sentido), e que seria normal o cenário político ser um cabo de guerra entre facções. Mas não é assim, a igreja é um grupo específico, as pessoas escolhem estar lá dentro e fazer parte daquelas doutrinas (e o pastor pode até proibir

seus fiéis de abortarem, assim como poderia os proibir de cortar os cabelos ou de usar métodos contraceptivos). Os resultados obtidos por práticas científicas empiricamente correspondem ao funcionamento da natureza, em uma proporção altamente confiável, e se encontram à disposição para serem incorporados pelas práticas políticas, nem necessariamente por cientistas, não é diferente do que a posição da própria ciência política que tenta conhecer a natureza no âmbito que lhe compete para gerar práticas pertinentes à população. Outra questão de nível prático é que muitas vezes a gravidez indesejada é um problema da mulher que fica grávida, acarretando um peso de escolha e uma consequência na saúde e na

vida da mulher. Na esfera política, temos uma maioria masculina decidindo estas questões. É de se pensar se esta questão teria uma outra cara e estaria sendo discutida de outra forma se fosse um problema dos homens (lembrando o caso das pílulas anticoncepcionais, que causam efeitos negativos para as mulheres, e não existe incentivo para a implementação de uma pílula para homens, usando como justificativa de âmbito político os efeitos colaterais negativos). Aqui entra também outro aspecto da realidade vivida por muitas mulheres, com a gravidez consequente de um estupro ou os casos em que a mulher é abandonada pelo homem, a outra metade envolvida na questão.O peso moral e as complicações legais recaem sobre a mulher; a

conclusão deste ponto é que temos medidas políticas que amplificam desigualdades civis entre grupos sociais. Com esta questão de sabermos que um feto no início do desenvolvimento não possui uma realidade subjetiva porque nele faltam os equipamentos materiais que sustentam essa realidade, podemos analisar também a dissonância moral sofrida pelas mulheres ao cogitar abortar. Este é um procedimento invasivo, drástico, e nenhuma medida rotulada como a favor 11


do aborto serve para estimular o aborto. Esta postura visa a esclarecer a tomada de decisão e proporcionar a oportunidade das pessoas não se sentirem culpadas ou assassinas caso decidam que esta é a melhor coisa a fazer. Além das discussões políticas e religiosas a respeito do aborto, existe muita pressão moral pelas atitudes das pessoas envolvidas, principalmente a mulher grávida. Este é mais um exemplo de uma crença infundada servindo de arma para punir

pessoas por atos não intencionados, que muitas vezes fazem parte de cadeias de acontecimentos complexos que fogem do alcance dos envolvidos. Não é à toa também que este é o tipo de problema que acomete em sua maioria pessoas desinformadas, ou em situações de risco. Não podemos nos esquecer que, sob a ótica da ciência atual, a natureza humana é muito complexa e destoante dos parâmetros em que nos sentamos ao tentarmos definir um “caráter” para servir de guia da tão efêmera essência humana.

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Compondo

um Sentido

Intervalos -Sol

Nos textos anteriores dessa coluna, procurei explicar questões de nível mais fundamental da música, como a existência de um conjunto base de notas musicais (no texto A Escala Pitagórica e as Notas Musicais) e a formalização das estruturas rítmicas, que dizem a respeito da duração das notas e dos silêncios na música (no texto Leitura e Escrita Musical Partituras). A partir de agora estudaremos as diversas maneiras com que podemos classificar e organizar uma sequência ou conjunto de notas musicais, com intuito de criar um modelo de reconhecimento para toda diversidade de sons que podem ser gerados à partir das estruturas já mencionadas nos textos anteriores.

Este texto é dedicado a classificação dos intervalos entre as notas musicais, que corresponde à diferença de frequência entre elas. Confesso que uma das grandes dificuldades que tive com a produção deste texto foi pensar em como abordar o assunto de forma a facilitar a compreensão. Uma vez que daqui em diante todos os textos se encontram intimamente correlacionados, será necessário um bom entendimento de cada conteúdo individualmente para prosseguir com a leitura dos textos seguintes. Dessa forma, considerei pertinente que este texto trate somente de intervalos, para possibilitar que o leitor tenha algum tempo para maturar todos esses conceitos em sua mente.

Caso possua alguma sugestão, correção, reclamação ou qualquer outra questão desta natureza, entre em contato através das informações contidas no edital da revista. Espero que gostem!

Intervalos No texto Escala Pitagórica e Notas Musicais, apresentei a escala natural que corresponde ao conjunto das notas musicais sem ascendente, isto é, as notas Dó, Ré, Mi, Fá, Sol,

Lá e Si. Em seguida, calculando a frequência entre cada uma destas notas, encontramos somente dois valores, os quais chamamos de tom e semitom. Mais tarde usamos esses mesmos conceitos para definir a escala cromática ou temperada.

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Utilizando a definição atualmente utilizada na escala temperada, temos que o intervalo de frequência de um semitom corresponde a metade de um tom, exatamente como sugerem estes nomes. Como já mencionado no primeiro texto desta coluna, uma nota que dista de um semitom de outra nota possui frequência 122 vezes maior que a última. Na escala natural, temos que a distância tonal entre as notas deve ser a seguinte:

onde T corresponde à distância de um tom e ST ao intervalo de um semitom. Dessa forma, vamos definir um intervalo como sendo uma classificação numérica para identificar a distância entre duas notas dadas, que será medida em tons e tomando a escala natural como referência. Assim, chamaremos de intervalo de segunda a distância entre as notas Dó e Ré da escala natural, pois a nota Ré corresponde a segunda nota da escala, contada a partir do Dó. Além disso, como pode ser observado através da figura acima, um intervalo de segunda corresponde a uma distância de um tom. Seguindo a mesma ideia, temos que da nota Dó até a nota Mi encontramos um intervalo de terça, pois a nota Mi é a terceira nota desta escala. Um intervalo de terça equivale a uma distância tonal de 2 tons. É importante lembrar que esta definição pressupõe que a contagem dos intervalos ocorra da nota mais grave para a mais aguda, de maneira que o intervalo entre as notas Mi e Dó não é classificado como um intervalo de terça (este intervalo corresponde a um intervalo de sexta menor, como veremos em breve). Repetindo o que já foi feito até aqui para todas as outras notas da escala, definimos os intervalos de quarta, quinta, sexta, sétima e por fim o intervalo de oitava, que neste caso corresponde à distância de uma nota Dó até a outra nota Dó mais aguda, com frequência dobrada. A tabela a seguir resume essas ideias. Nela, utilizei novamente a escala natural como referência, e cada um dos intervalos corresponde à distância entre as notas representadas na partitura. 14


Costumamos utilizar a expressão ‘uma oitava’ para nos referirmos ao conjunto de notas que se encontram dentro do intervalo de um intervalo de oitava. Os intervalos entre notas que se encontram dentro de uma mesma oitava são chamados de intervalos simples. Podemos também definir os intervalos entre notas que se encontram em oitavas diferentes, como os intervalos de nona, décima, décima primeira e assim por diante. Estes receberão o nome de intervalos compostos. Apesar de ser possível continuar definindo intervalos infinitamente, não é comum vermos menção à intervalos que excedam duas oitavas. Além disso, a razão para o nome composto consiste no fato de que qualquer intervalo composto pode ser gerado por uma composição de intervalos simples, Por exemplo, a décima nota da escala natural equivale à oitava da terça, ou a sétima da quarta e assim em diante. A figura a seguir mostra a divisão dos intervalos em simples e compostos em relação a nota Dó da escala natural.

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É importante ressaltar que os intervalos são caracterizados pela distância tonal entre as notas e não pelas notas em si. Somente utilizei a escala natural por motivos de simplicidade, pois esta não possui nenhum ascendente. Agora que já conhecemos as definições dos intervalos em termos de tons, podemos identificá-los partindo de qualquer nota que desejarmos. Começando da nota Ré e utilizando a tabela anterior, temos que os intervalos anteriores são reconhecidos à partir do seguinte conjunto de notas:

Para facilitar a observação e contagem dos intervalos, vou deixar aqui todas as 12 notas da escala cromática. Lembre-se que o intervalo entre duas notas sucessivas desta escala corresponde a um semitom.

Talvez neste ponto algo tenha chamado sua atenção: os intervalos que definimos até agora não identificam todos os intervalos possíveis entre as notas. Um exemplo disso é o intervalo entre as notas Ré e Fá, cujo intervalo possui comprimento de 1.5 tom. A nomenclatura destes outros intervalos que faltam se encontra vinculada com as definições daqueles já apresentados até aqui. Vejamos como se dá a definição dos intervalos levando em conta toda a escala cromática. Como os intervalos compostos são apenas uma extensão dos intervalos simples, todas as definições apresentadas daqui em diante se aplicarão para os dois tipos de intervalo. 16


Por simplicidade, vamos continuar utilizando a nota Dó como referência. Note que um intervalo de segunda na escala natural refere-se objetivamente a distância entre as notas Dó e Ré. Contudo, dentro de uma mesma oitava da escala cromática temos ‘duas’ notas Ré distintas, que correspondem às notas Ré e Ré b. Isso sugere que continuemos chamando estes intervalos de intervalos de segunda, criando apenas uma subdivisão dentro do mesmo. Usando estas ideias, chamaremos o intervalo de um tom entre as notas Dó e Ré de intervalo de segunda maior, enquanto o intervalo de um semitom entre as notas Dó e Ré b receberá o nome de segunda menor. Esta mesma regra pode ser estendida aos intervalos de terça, sexta e sétima. De forma geral, dizemos que os intervalos de segunda, terça, sexta e sétima da escala cromática que coincidem com os intervalos definidos anteriormente na escala natural (1 tom, 2 tons, 4.5 tons e 5.5 tons respectivamente) receberão o nome de intervalos maiores. Se algum destes intervalos estiverem mais próximos da tônica por 1 semitom quando comparados com os intervalos definidos na escala natural (0.5 tom, 1.5 tom, 4 tons e 5 tons respectivamente), diremos se tratarem de intervalos menores. Por exemplo, em relação à nota Dó, a nota Lá corresponde a uma sexta maior, pois dista de 4,5 tons da nota Dó. Já a nota Lá b, corresponde a uma sexta menor em relação a nota Dó, pois se encontra 4 tons acima da nota Dó. Na figura a seguir ilustro todos estes intervalos, na qual utilizei os algarismos para indicar os intervalos, a letra M (em maiúsculo) para designar um intervalo maior e a letra m (em minúsculo) para um intervalo menor.

Os intervalos menores são comumente caracterizados por produzirem sons ‘mais tristes’, ‘sombrios’ ou que causam alguma espécie de desconforto, enquanto os intervalos maiores produzem sons que são geralmente descritos como ‘mais alegres’ ou ‘mais bonitos’. Em textos futuros pretendo abordar um pouco melhor o porquê destes intervalos produzirem essas sensações em nós, mas por hora o que realmente desejo chamar atenção é que estas diferenças 17


sensoriais são significativas até mesmo para um ouvido pouco treinado. Com isso, estas definições de intervalos terão o intuito de ajudar nossa percepção a identificar padrões nos sons. Seria interessante nesse momento possuir um instrumento musical para ouvir o som desses intervalos e verificar empiricamente o que estou falando. Se esse for o seu caso, experimente tocar a nota Dó e em seguida a nota Mi em seu instrumento (uma após a outra, e não as duas juntas, mas de maneira que você toque a nota Mi enquanto a nota Dó ainda está ecoando). Repita algumas vezes e repare bem no som. Depois, faça o mesmo procedimento com as notas Dó e Mi b. Compare ambos intervalos e tente perceber essa diferença sensorial que descrevi no parágrafo anterior, lembrando que em relação a nota Dó, as notas Mi e Mi b correspondem respectivamente a uma terça maior e uma terça menor. Para completar nossa classificação é necessário ainda nomear os intervalos de quarta, quinta e oitava da escala cromática, os quais possuem algumas peculiaridades. Se algum destes coincidir com um dos intervalos de quarta, quinta ou oitava da escala natural (2.5 tons, 3.5 tons e 6 tons respectivamente) diremos que se trata de um intervalo justo. No caso das notas Dó e Fá, temos um intervalo de quarta justa, pois a distância entre estas notas corresponde a 2.5 tons, exatamente como um intervalo de quarta na escala natural. Um semitom abaixo da nota Fá, encontramos a nota Fá b, que é equivalente a frequência da nota Mi, a qual já identificamos como sendo a terça maior da nota Dó. Um semitom acima da nota Fá encontramos a nota Fá#, e nomearemos o intervalo entre as notas Dó e Fá# de intervalo de quarta aumentada, pois possui 3 tons, ou seja, um semitom a mais que o intervalo de quarta da

escala natural.. Neste momento do texto, talvez aconteça de você sentir alguma espécie de desconforto ou ter alguns questionamentos com estas definições. Se isso aconteceu com você, peço que ignore este incômodo e continue com a leitura, ao menos por mais dois ou três parágrafos, pois apesar de não ter conseguido encontrar uma maneira de evitar que eles surgissem nesse momento, acredito que existem grandes chances de que antes de concluir o texto você tenha conseguido encontrar a paz com a solução de sua possível dúvida. Para as notas Dó e Sol, temos o chamado intervalo de quinta justa, pois este intervalo possui comprimento de 3.5 tons. Se aumentarmos a nota Sol de um semitom,

encontraremos a nota Sol#, que possui frequência equivalente à nota Lá b, a qual já identificamos como sendo uma sexta menor. Já a distância entre a nota Dó e a nota Sol diminuída de um semitom, isto é, a nota Sol b, é chamado de intervalo de quinta diminuta. Este intervalo possui 3 tons, e tem um semitom a menos que um intervalo de quinta da escala natural. Os intervalos de oitava, bem como a nota de referência (intervalo de primeira), são sempre considerados intervalos justos. A figura a seguir ilustra estes intervalos, onde os símbolos ‘J’, ‘+’ e ‘-’ indicam respectivamente as atribuições de justo, aumentado e diminuto. 18


Uma boa maneira de se entender as expressões aumentado e diminuto é pensar que estas são uma espécie de sustenido e bemol para intervalos. Isto faz todo o sentido e poderíamos de fato ter chamado o intervalo entre as notas Dó e Fá b de quarta diminuta e o entre as notas Dó e Sol# de quinta aumentada. O que ocorre é que as nomenclaturas de quarta diminuta e quinta aumentada são aparentemente menos utilizadas que terça maior e sexta menor. Além disso, como

vimos, em relação a nota Dó, a nota Fá# pode ser tanto uma quarta aumentada quanto uma quinta diminuta (em virtude disso, é comum também vermos este intervalo de 3 tons ser chamado de trítono). É importante ressaltar que ainda que estes intervalos sejam sonoramente idênticos, eles são resultados de processos teóricos completamente diferentes: a quarta aumentada corresponde a um intervalo de quarta justa acrescido de um semitom, enquanto a quinta diminuta é um intervalo de quinta justa diminuído de um semitom. É muito comum a ocorrência de dois nomes distintos para uma mesma instância musical. Apesar disso parecer apenas um capricho teórico, gostaria de ressaltar que estes detalhes são relevantes para se dominar a base de definições com

a qual se está trabalhando e assim ter maior liberdade criativa com suas ferramentas. Em textos futuros será possível reconhecer uma maior facilidade interpretativa, por exemplo, em tratar a nota Fá como Mi# ou a nota Mi como Fá b. Outra questão que pode ter incomodado é: porque adotar um novo nome para os intervalos de quarta, quinta e oitava (justos, diminutos e aumentados) e não continuar com as definições já usadas para os outros intervalos (maiores/menores)? Afinal, poderíamos ter nomeado os intervalos de quinta justa e quinta diminuta de quinta maior e menor, e os intervalo de quarta justa de quarta maior e escolhendo a quarta menor para designar a mesma nota da terça

maior. Pesquisando sobre assunto, notei que aparentemente não existe um consenso na justificativa desta definição. Cada autor analisa a questão sob um ponto de vista diferente, e as explicações podem possuir razões musicais, históricas, matemáticas entre outras. Há ainda autores que de fato utilizam as definições de maior e menor para os intervalos de quarta e quinta. Independente destas convenções, o que deve ficar claro é a lógica por trás de cada uma delas, para que você possa se adaptar a qualquer nomenclatura sem nenhuma restrição de entendimento. De qualquer forma, apresentarei uma das possíveis motivações desta nomenclatura em conjunto com último tópico deste texto.

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Em alguma parte do texto, chamei atenção para o fato de que os intervalos devem ser sempre contados da nota mais grave para a nota mais aguda, de maneira que o intervalo entre as notas Mi e Dó não corresponde ao mesmo intervalo gerado por Dó e Mi, que é uma terça maior. Na verdade, a nota Dó é uma sexta menor de Mi, como está mostrado na figura a seguir. Chamamos de ‘intervalo inverso’ o intervalo obtido com a inversão das notas contidas nos extremos de um outro intervalo.

Podemos obter todos estes intervalos simplesmente caminhando pela escala cromática e medindo os intervalos entre cada uma das notas. Devido à simetria tonal desta escala, não é difícil determinar o comprimento dos intervalos invertidos, bastando subtrair o valor do intervalo original de uma oitava. Para explicar, considere a figura a seguir, onde usei os índices 1 e 2 para se referir as notas Dó e Ré dentro de duas oitavas diferentes e consecutivas.

O intervalo entre as notas Dó e Ré deve ser medido entre as notas Dó 1 e Ré 1, que

possui 1 tom, caracterizando um intervalo de segunda maior. O intervalo invertido a este, isto é, o intervalo entre as notas Ré e Dó deve ser medido entre as notas Ré 1 e Dó 2. Além disso, a nota Dó 2 encontra-se apenas um tom atrás da nota Ré 2, que corresponde a oitava da segunda maior em relação a nota Dó 1 (ou a uma nona maior). Assim, como o intervalo entre as notas Ré 1 e Ré 2 corresponde a uma oitava, temos que a distância entre as notas Ré 1 e Dó 2 equivale a um intervalo de oitava subtraído de um intervalo de segunda maior, ou seja possui 6-1=5tons. Dessa forma, a nota Dó é uma sétima menor da nota Ré. 20


Com essas ideias, podemos generalizar, a correspondência entre os intervalos naturais e seus inversos:

Quanto a caracterização destes intervalos na escala cromática, basta notar que os intervalos maiores quando invertidos se tornam menores e vice versa. O mesmo se aplica aos intervalos aumentados e diminutos. Já os intervalos justos quando invertidos permanecem justos! Como havia prometido, esse fato é uma das motivações da nomenclatura diferenciada para os intervalos de quarta e quinta justos: uma quarta justa quando invertida se torna uma quinta justa e vice versa. Neste momento, você deve ser capaz de classificar qualquer intervalo entre duas notas dadas. Na tabela a seguir, apresento resumidamente os comprimentos tonais de todos os intervalos, lembrando que são estes os principais responsáveis por toda a classificação apresentada até aqui. Para que você possa treinar estas definições, deixei alguns exercícios após a conclusão do texto.

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Conclusão Neste texto apresentei a classificação dos intervalos entre as notas de acordo com a nomenclatura comumente utilizada na música ocidental. É interessante que desde já você comece a tocar estes intervalos em seu instrumento e compare as diferenças sonoras contidas em cada um deles. Isso nos ajudará a direcionar nossa percepção musical para identificação de um padrão,

expandindo a profundidade do nosso domínio sobre essa ferramenta. No próximo texto, irei utilizar os intervalos definidos aqui para padronizar e classificar conjuntos de notas musicais tocadas simultaneamente. Até lá!

EXERCÍCIOS SOBRE INTERVALOS

1) Classifique os intervalos entre as seguintes notas musicais: a) Dó e Mi

g) Sol# e Ré b

m) Dó# e Sol

b) Dó e Sol#

h) Lá e Dó

n) Fá e Ré b

c) Ré e Lá b

i) Mi e Lá

o) Sol e Mi

d) Si e Fá

j) Ré e Sol#

p) Mi# e Lá

e) Fá e Dó#

k) Sol e Si

q) Ré# e Lá

f ) Mi b e Dó

l) Lá e Sol#

r) Lá e Ré#

2) Determine qual nota musical corresponde a cada um dos intervalos a seguir: a) Terça maior de Mi

g) Décima terceira menor de Ré m) Segunda menor de Dó#

b) Quarta justa de Si b

h) Segunda menor de Fá

n) Nona aumentada de Mi b

c) Sétima menor de Ré

i) Nona menor de Sol

o) Quinta justa de Lá

d) Quinta diminuta de Sol

j) Sexta menor de Lá#

p) Décima primeira de Fá

e) Segunda maior de Lá

k) Quarta aumentada Mi

Nona maior de Fá

l) Sétima maior de Fá b

q) Décima primeira aumentada Fá

r) Décima primeira de Fá#

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Respostas dos exercícios propostos

1a) terça maior;

2a) Sol#;

b) quinta aumentada;

b) Ré#;

c) quinta diminuta;

c) Dó;

d) quarta aumentada;

d) Ré b;

e) sexta menor;

e) Si;

f) sexta maior;

f) Sol;

g) quarta justa;

g) Dó;

h) terça menor;

h) Sol b;

i) quarta justa;

i) Lá b;

j) quarta aumentada;

j) Sol b;

k) terça maior;

k) Lá#;

l) sétima maior;

l) Mi b;

m) quinta diminuta;

m) Ré;

n) sexta menor;

n) Fá#;

o) sexta maior;

o) Mi;

p) terça maior;

p) Lá#;

q) quinta diminuta;

q) Si;

r) quarta aumentada.

r) Si.

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o que nos faz humanos

O objetivo desta coluna é mostrar como são feitos experimentos em psicologia, assuntos interessantes que estão sendo estudados, e reflexões que podem ser feitas a respeito deles. A psicologia hoje é dividida em diferentes abordagens, que não passam de diferentes modos de interpretar os fenômenos psicológicos e intervir sobre eles. Aqui, não vamos usar nenhuma dessas abordagens, mas fazer uma interpretação independente de experimentos realizados pelas diferentes áreas.

-Rorschach

FALSAS MEMÓRIAS Com certeza você já passou por uma situação em que se lembrava de um acontecimento de forma diferente da que outra pessoa se lembrava. Pode ser que um de vocês se lembre de pessoas que na realidade não estavam presentes, de elementos que não estavam presentes, ou não se lembre de elementos que estavam. Essas situações normalmente terminam com risadas e

com a determinação de que a pessoa tem uma “memória ruim”. O fenômeno de nos lembrarmos de um acontecimento ou elemento que na verdade não aconteceu é chamado de falsa memória, e ele passou a ser estudado pela psicologia pela gravidade das consequências que ele pode gerar.

A grande polêmica que assunto gera está concentrada na psicologia jurídica, com a relevância de testemunhas oculares para a resolução de casos criminosos. Elizabeth Loftus é uma grande pesquisadora do tema nos Estados Unidos. Em um TED Talk, ela conta a história de um homem

chamado Titus (vou relatar resumidamente, o link está nas referências para quem quiser mais detalhes, vale a pena assistir). Titus vivia uma vida normal, tinha um emprego e era noivo, em um certo dia, ele foi acusado de ter estuprado uma moça na cidade em que morava. Seu carro batia com a descrição do carro do estuprador dado pela moça, sua foto foi apresentada para reconhecimento junto com a de outros homens, e ela disse que ele era o que mais se parecia. No dia de seu julgamento, a moça disse que seguramente era ele o homem que a estuprou. Não haviam outras provas, mas mesmo assim Titus foi preso. Com a fé no sistema judiciário perdida, ele contou com a ajuda de um jornalista investigativo para encontrar o verdadeiro culpado, que era acusado de 50 outros estupros, e que acabou confessando o crime. Titus foi liberado, mas sua vida estava acabada, perdeu o emprego, a noiva e a saúde mental. Ele entrou com um processo contra o sistema judiciário, e morreu de enfarte no dia do julgamento, com 35 anos.

Loftus já realizou muitos estudos relacionados com falsas memórias, o que será relatado aqui está relacionado à implementação de falsas memórias de situações que não ocorreram, no caso os participantes se recordariam de terem se perdido de seus pais em um shopping quando 24


tinham 5 anos. 24 pessoas participaram da pesquisa, e cada uma delas era recrutada juntamente com um parente próximo, que tivesse convivido com a pessoa em sua infância – nenhuma delas tinha realmente se perdido. Primeiramente, era realizada uma entrevista com esse parente, que forneceria 3 histórias da infância do participante, que não podiam ser experiências traumáticas e tampouco “lendas da família” (aquele tipo de história que é contada toda vez que a família se reúne). O parente também fornecia informações que fariam com que a história falsa, a do shopping, fosse realista, como, por exemplo, onde a família costumava fazer compras, quem iria junto e o que estariam fazendo lá. A história sempre continha as informações fornecidas, e dizia que a pessoa ficou perdida por um longo período, chorou, foi encontrada por uma mulher asiática e então se reuniu com a família.

Os participantes eram informados de que a pesquisa era sobre o quanto conseguiam se lembrar de sua infância. Eles recebiam pelo correio um caderno, que continha no topo de cada página uma descrição de um parágrafo sobre a história relatada pelo parente ou a história do shopping, e o resto da página estava em branco para que a pessoa pudesse relatar tudo o que se lembrava sobre essa história. Eles eram instruídos a não conversar com outras pessoas sobre o assunto, para que pudessem relatar somente o que eles mesmos se lembravam. Após o recebimento dos cadernos, os participantes eram contatados para agendar a primeira entrevista, que seria realizada no intervalo entre 1 e 2 semanas a partir daquela data.

Na primeira entrevista, as pesquisadoras davam uma breve introdução sobre cada uma das histórias (menor que aquela apresentada no caderno) e pediam mais uma vez que o participante relatasse tudo o que se lembrava sobre aquele evento, com o máximo de detalhes possível, mesmo que já tivesse escrito aquelas informações no caderno. Após terminar o relato de cada história, o participante deveria, em uma escala de 1 a 10, avaliar a clareza de sua lembrança, sendo 10 o máximo de clareza. Eles também deveriam avaliar, em uma escala de 1 a 5, o quanto acreditavam que se lembrariam de mais detalhes sobre aquele evento até a próxima entrevista, sendo 5 o máximo de confiança.

A segunda entrevista, realizada em um intervalo de 1 a 2 semanas após a primeira, era basicamente igual. O participante deveria relatar com o máximo de detalhes possível sua lembrança sobre aquela história, e, depois, avaliar a clareza com que se lembrava. Ao final dessa entrevista, os participantes eram informados sobre o engodo da pesquisa. As pesquisadoras pediam desculpas pela “mentira” e, a seguir, pediam para que o participante indicasse qual dos eventos acreditava ser o falso. 25


No geral, os participantes se lembraram de 68% das memórias verdadeiras (aproximadamente 2 das 3), e 25% se “lembrou” do evento falso. Foram usadas menos palavras para descrever as memórias do evento falso do que para os outros, e a avaliação da clareza da memória também foi mais baixa. Uma observação curiosa é que essa avaliação de clareza se manteve constante a respeito das memórias dos eventos reais, mas, para os participantes que diziam se lembrar do evento falso, a clareza das memórias sobre o mesmo aumentou. A avaliação da confiança de que se lembrariam de mais detalhes na próxima entrevista foi baixa tanto para as memórias falsas quanto para as verdadeiras.

Ao serem questionados quanto a qual seria a memória falsa, 19 dos participantes acertaram. Ou seja, 5 dos 6 participantes que tinham memórias sobre o evento falso não o identificaram como tal. Apesar da maioria dos participantes terem identificado a história do shopping como sendo falsa, isso não quer dizer que eles não tenham acreditado nela antes de saber que uma delas era falsa. Uma das participantes, por exemplo, identificou corretamente por um processo de eliminação das histórias da família, mas não podia acreditar que não havia se perdido no shopping, e ligou para os pais no final da entrevista para confirmar.

Essa pesquisa foi realizada com um número baixo de participantes, e mesmo assim apenas 25% deles adquiriu uma falsa memória. Pode parecer pouco, mas esse resultado é extremamente relevante, já que ele mostra que esse fenômeno é real. As pessoas podem sim passar a recordar coisas que não aconteceram. E, detalhe, essas memórias podem ser induzidas propositalmente (ou não) por outras pessoas.

Não se tem informações sobre o que diferencia o nível de suscetibilidade à falsas memórias, mas é importante saber que todos estamos sujeitos em algum nível à ocorrência desse fenômeno, e isso se dá pela maneira como funciona nossa memória. O processo é muito complexo para ser explicado em um parágrafo, mas é importante saber que as coisas não estão guardadas em nosso cérebro como arquivos em pastas ou gavetinhas, que podem ser acessados de forma integral a qualquer momento. Pelo contrário, a memória é um fluxo, ela é contínua, e

novas informações vão se acoplando às antigas podendo alterá-las.

Pense nesse exemplo comum: “João tinha um grupo de amigos que faziam tudo juntos na infância. Em um certo dia, eles fizeram algo que foi muito marcante, mas João, por uma razão qualquer, não participou. Eles contaram essa história e lembraram desse dia muitas vezes durante a vida, e na maioria desses dias de lembranças, João estava presente. João ouviu e 26


contou essa história tantas vezes que os amigos “esquecem” que João não estava lá no dia em estava lá.” João e seus amigos não têm uma memória ruim, eles simplesmente foram vítimas da maneira com que as memórias são armazenadas em seus cérebros.

Esse assunto pode se tornar delicado e polêmico justamente pelos casos que são alvo de estudo de Loftus, os que envolvem crimes e suas testemunhas. O que aconteceu com Titus por exemplo, foi uma fatalidade causada por uma falsa memória. Ao reconhecer a foto dele como a mais próxima do rosto de seu estuprador, a vítima substitui em sua memória as imagens que tinha dos rostos – que já eram parecidos (podemos também especular aqui o papel da dissonância cognitiva nesse fato). Outros casos que vêm sendo discutidos e estudados são os de memórias reprimidas, objeto de estudo da psicanálise, que afirma que as pessoas tendem a reprimir memórias traumáticas como um mecanismo de defesa. O que aconteceu nos EUA foi uma onda de pessoas que, durante a terapia, se lembraram de terem sido abusadas na infância, principalmente pelo pai, sendo que muitos desses casos acabaram se revelando falsos.

A grande polêmica, então é: podemos confiar em relatos de testemunhas para condenar alguém por um crime? Mas, ao mesmo tempo, e se não houverem outras provas e o relato for verídico? Como dizer a uma vítima de estupro que o criminoso não será condenado por falta de provas, sendo que ela sabe quem é a pessoa? São questões a serem discutidas.

Os três primeiros textos da coluna “O que nos faz humanos” tinham a intenção de dar uma introdução sobre como nosso funcionamento é estranho e pouco confiável, que mesmo prestando atenção e nos esforçando, estamos sempre sujeitos a esses “bugs” causados pela nossa mente, simplesmente porque é assim que ela funciona. Saber dessas coisas deveria nos fazer mais compreensivos com nós mesmos e com os outros, afinal, somos todos humanos.

REFERÊNCIAS https://www.ted.com/talks/elizabeth_loftus_the_fiction_of_memory?language=pt-br Loftus, E. F., & Pickrell, J. E. (1995). The formation of false memories. Psychiatric annals, 25(12), 720-725. Johnson, M. K., Raye, C. L., Mitchell, K. J., & Ankudowich, E. (2012). The cognitive neuroscience of true and false memories. In True and false recovered memories (pp. 15-52). Springer New York. Loftus, E. F. (1993). The reality of repressed memories. American psychologist, 48(5), 518. 27


Desconsolos O Ego Vingativo e Passivo-agressivo do Ego

-Mononoke

Certa vez, uma amiga confessou um comportamento sórdido que de vez em quando praticava em resposta a alguma insatisfação raivosa que sentia por sua irmã. Sem que a irmã soubesse, essa amiga esfregava a escova de dente de sua mana no ralo do chuveiro, na pia do banheiro e na borda do vaso sanitário, e então retirava qualquer vestígio visível de sujeira e recolocava a escova onde no lugar.

Minha amiga nunca explodia com sua irmã, nem quando sua irmã estava realmente errada e agindo de forma injusta. Minha amiga jamais perdia a compostura, não abria mão da polidez e nunca dava motivo para que sua irmã lhe incriminasse de qualquer reação desproporcional, irracional ou injustificável em face de alguma discussão entre as duas. Minha amiga era passiva.

Mas quando me confessou a prática desse ato retributivo, minha amiga se rotulou como passivoagressiva.

Passei tempos acreditando que algumas pessoas eram passivo-agressivas. Baseado no exemplo mor da amiga acreditei que passivo-agressividade era uma característica saliente em algumas pessoas, um traço muito proeminente da personalidade de alguns. De fato é razoável achar que algumas pessoas possuem mais propensão para alguns comportamentos do que outros. Uma observação leiga pode constatar isso.

O que me passava despercebido, porém, eram os comportamentos passivo-agressivos presentes em todas as pessoas, inclusive em mim. Faltou-me uma observação mais arguta pra poder perceber. E faltou-me, sobretudo, reflexão pessoal pra perceber na minha pessoa.

Comportar-se de maneira passivo-agressiva parece ser uma espécie de ordem natural humana, uma tendência cognitiva influenciada por alguns princípios contraditórios entre expectativa de comportamento e necessidade de expressão emocional. E esse comportamento pode tomar várias formas, muito mais comuns e sutis, do que o truque da escova ensopada de germes.

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Antes de iniciarmos uma análise mais geral do comportamento passivo-agressivo, vamos estudar antes o próprio exemplo de minha amiga, que é emblemático no sentido de desvendar algumas motivações por trás dessa conduta.

Parece óbvio que a atitude de minha amiga gerava nela uma satisfação pessoal que ela não podia obter num confronto direto com a irmã, uma vez que custaria a ela consequências indesejáveis. Mas era também uma satisfação que não dependia, necessariamente, da ciência da irmã.

A punição executada por minha amiga era invisível, intangível e consequencial. Envolvia a possibilidade de seu alvo desenvolver problemas de saúde por conta do contato com germes e, muito mais imediato, sentir um gosto desagradável ao levar a escova até a língua.

A materialização dessas possibilidades pode ser contingente e talvez minha amiga se deleitasse com a simples imaginação dessas merecidas eventualidades, satisfazendo seu desejo punitivo ao submeter, secretamente, a irmã a esse risco.

Histórias de alunos que colocam laxante na água do professor carrasco não são chocantes.

Parece razoável que, sob a possibilidade de pena, o aluno precise criar uma maneira de realizar sua vingança sem que seja pego. Mas a questão é outra: por mais que a ideia de vingança nos pareça intuitiva, ela não resiste a uma segunda análise. Afinal, se uma vingança não ressarce ao aluno aquilo que inicialmente desencadeou sua raiva (digamos, uma injusta nota baixa na prova), por que, então, executá-la?

Mais chocante do que a história do laxante ou do pneu furado, completamente perdoáveis devido a natureza quase ou totalmente inofensiva de tais atos, são os casos em que professores

são assassinados por conta de desagrados menores provocados contra alunos dentro da sala de aula. A gravidade da vingança e o elevado risco em que a pessoa vingada se submete fazem parecer tais atitudes loucas e desarrazoáveis, além de, obviamente, imperdoáveis.

É por isso que atitudes passivo-agressivas são maneiras menos comprometedoras e ofensivas de se articular uma vingança, uma punição.

São maneiras de atuarmos maldosamente perante os outros sob o direito autointitulado de

fazer justiça, supostamente nos isentando de qualquer responsabilidade ou culpa por tais ações.

***

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Hostilidade revestida de açúcar Basicamente, o comportamento passivo-agressivo, como nota o psiquiatra Scott Wetzler, é uma “hostilidade revestida de açúcar”. Sua forma indireta e disfarçadamente inofensiva, revestida por uma superfície neutra, inocente ou até mesmo polida, proporciona uma vantajosa estratégia a fim de evacuar raiva e insatisfação sem a possibilidade de responsabilização por seus efeitos. Seu intento é vingar, punir, ofender, sem parecer que isso está sendo feito.

A conduta passivo-agressiva de minha amiga quer obviamente comunicar, por meios indiretos, uma ofensa julgada merecida. Em vez disso, ela poderia muito bem optar por xingar sua irmã da maneira mais baixa possível, desancá-la com palavras agressivas e maldosas de modo a expressar efetivamente sua insatisfação.

Seria, inclusive, uma maneira mais honesta de expressar sua raiva. Assim, minha amiga deixaria a irmã saber exatamente o que ela pensa da situação e como ela se sente, além de possibilitar um confronto de igual pra igual.

Uma terceira possibilidade seria a de comunicar, de uma maneira não agressiva, sem ofensas, sua insatisfação, usando palavras temperadas e claras, que objetivem uma resolução pacífica entre as duas.

O problema das alternativas “agressiva mas honesta” e “moderada e pacífica” é que ambas envolvem custos para minha amiga.

Na primeira, ela perderia a moral perante a irmã e qualquer uma que julgasse a situação de fora, sendo avaliada como agressiva e irracional, se sentindo uma perdedora no fim das contas; na segunda, ela comprometeria a efetividade de sua expressão emocional, pois devemos

considerar que minha amiga possui sentimentos fortes que são dificilmente censuráveis pela razão (a raiva, indignação, hostilidade seriam no máximo descritas, num plano conceitual, mas não exprimidas de fato).

Assim, ou nos expressamos de maneira efetiva sendo ofensivos, ou nos expressamos de maneira inefetiva sendo inofensivos.

O comportamento passivo-agressivo parece indicar um meio termo. Afinal, infligir os efeitos de

um laxante em alguém parece ser simultaneamente satisfatório e inofensivo o bastante em comparação a uma vingança física ou moral mais grave. Mas será mesmo que o comportamento passivo-agressivo pode ser justificado como inofensivo?

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É preciso lembrar-se que o comportamento passivo-agressivo não satisfaz seus intentos se não comunicar, de alguma maneira, um ato agressivo, ofensivo ou punitivo.

A filósofa Rebecca Roache adiciona uma perspectiva bastante esclarecedora ao comportamento passivo-agressivo pegando emprestado um conceito da linguística: o ato da fala.

Segundo a teoria dos atos da fala, quando nos comunicamos com alguém, seja através de linguagem verbal ou de sinais, também estamos executando atos. Dizer “Me desculpe” é uma forma de se desculpar; dizer “Tome cuidado!” é uma forma de alertar; dizer “Eu prometo lhe devolver o dinheiro” é uma forma de fazer uma promessa. Também poderíamos executar, por exemplo, o ato de alertar ao tocar uma buzina, fazer um sinal com a mão, etc.

Se minha amiga revida a irmã com palavrões ou esfrega sua escova na privada, ela está executando o mesmo ato. Ambas as reações conduzem a uma mesma finalidade. Ambas as formas ofendem, em algum sentido. Mas o ato da fala não se reduz apenas a uma finalidade; não, o ato da fala também produz efeitos emocionais dependendo de sua forma: dizer para alguém “Saia da minha frente!” é diferente de dizer “Com licença, posso passar?”, e embora intentem o mesmo ato (o de conseguir passagem), produzem efeitos emocionais distintos (o

primeiro exemplo é agressivo, o segundo não).

Que a ação de minha amiga é invisível (porque seu alvo desconhece que foi propositalmente feito por ela) é uma peculiaridade da forma como minha amiga decidiu agir, mas ainda assim é uma forma agressiva, porque produz um resultado indesejado ao alvo, o agredindo de algum modo.

Atitudes passivo-agressivas, na era da internet, tomam formas visíveis a suas vítimas,

aparentando não haver qualquer agressividade mas preservando o mesmo ato da fala de uma expressão explícita de insatisfação. Em mensagens de texto, por exemplo, um casal de namoradas pode passar pela seguinte situação no dia seguinte a um desentendimento que aparentemente havia sido sanado:

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Júlia: Aconteceu alguma coisa??? Teresa: Não. Júlia: Você tá assim por causa da nossa discussão ontem? Teresa: Não. Júlia: É que você nunca é assim, sempre fala bastante, comenta o que digo! Teresa: Sempre fui assim. Júlia: Não, você tá estranha dessa vez!!! Teresa: Tô normal.

Esse diálogo, simples e ordinário, nos permite tirar conclusões mais aprofundadas sobre o comportamento passivo-agressivo, revelando graus bem mais refinados acerca da atitude.

É difícil classificar o comportamento de Teresa como ofensivo ou agressivo, mas ele certamente é punitivo. Numa interação por mensagem de texto, Teresa tem em sua vantagem o fato de que a tecnologia reduz os inputs a palavras escritas, deixando Júlia sem condições de examinar o tom de voz e a linguagem corporal de sua parceira. Isso só adiciona ao desespero de Júlia, que no mínimo se sente angustiada pela negação de que há algo errado quando parece haver.

O comportamento passivo-agressivo cria então uma ambiguidade. Parece haver algo de errado, mas ao mesmo tempo, pode não haver. Talvez Teresa esteja cansada, com preguiça de digitar, desanimada com qualquer outra coisa que não sua namorada, mas ainda assim, faz questão de comunicar uma afetação notável e ambígua o bastante para que Júlia perceba e reaja. Se pressionada mais, Teresa pode muito bem inventar razões para estar assim (“Tô assistindo um filme aqui, por isso”), o que tranquilizaria Júlia se não fosse a continuidade desse comportamento estranho, que levará Júlia a questionar mais vezes (“O filme já acabou e você continua me respondendo seca!”), até Teresa ter uma boa razão para se impacientar

explicitamente com a namorada e, mais uma vez, revidar, puni-la, fazendo-a se sentir culpada e cheia de sentimentos desagradáveis.

É essencial ao comportamento passivo-agressivo que ele se disfarce de alguma forma. Assim, Teresa disfarça seu comportamento com invencionices, que dão boas razões para ela agir seca, mas que escondem a verdadeira razão pela qual ela faz isso: uma insatisfação ainda latente com o desentendimento da noite anterior. Isso impede que Júlia inicie uma conversa franca e que acuse sua parceira de estar agindo de modo infantil.

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Como aspecto-chave da passivo-agressividade, a ambiguidade produz tanto o ato punitivo (mais ou menos agressivo), que é certamente o principal ato intentado, quanto o efeito de confusão, ato que garante à pessoa passivo-agressiva uma proteção, dando margem para interpretações ambivalentes que resultam em dissonância, um incomodo adicional que também pune a vítima e isenta o perpetrador.

É também importante, além disso, querermos disfarçar nosso comportamento punitivo, porém nem tanto. Precisamos que o outro considere a interpretação de que nós estamos, de fato, ofendidos por aquele problema específico; mas precisamos, também, que caso confrontados, tenhamos boas razões à disposição pra negarmos e escaparmos isentos de acusações de culpa. O comportamento passivo-agressivo, de alguma forma, precisa ser catártico, suficiente pra expressarmos nossa insatisfação emocional de modo que atinja e puna aquele que julgamos culpado.

Manipulativo, o comportamento passivo-agressivo se reveste do açúcar, parecendo doce mas guardando uma intenção maliciosa. Minha amiga, mesmo após os desgostos com sua irmã, não dava a ela nenhum tipo de razão para desconfiar de atitudes punitivas, ainda que a irmã percebesse o gosto horroroso na escova de dente. Minha amiga sequer se silenciava perto da

irmã (uma atitude passivo-agressiva bastante comum), e de algum modo conseguia tratá-la com polidez e afeto enquanto contaminava sua escova com germes. *** Não preciso estender descrições nem dar mais exemplos para que qualquer um possa identificar comportamentos passivo-agressivos vindo de pessoas próximas (amigos, familiares, parceiros) e em si mesmo. Somos levados a essas atitudes e as executamos às vezes de maneira semiconsciente, isto é, fazendo quase que por reflexo mas sabendo exatamente que estamos fazendo.

A recorrência dessas atitudes é tão grande que raramente paramos para qualificá-las como passivo-agressivas. É absolutamente normal na vida de um casal, por exemplo, o famoso “tratamento de silêncio” após uma briga e a forjada negação de que há algo de errado quando um dos parceiros é questionado sobre.

Não queremos simplesmente declarar que não estamos no clima pra conversar normalmente, queremos dizer que está tudo bem quando claramente não está, incitando insistências e dando

justificativa a explosões posteriores.

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Reconhecer que queremos propositalmente, ainda que de modo indireto, menor ou semiconsciente punir e agredir nossos parceiros, colegas, amigos e familiares nos dá uma perspectiva bem mais abrangente sobre como estamos, recorrentemente, praticando algum tipo menor de vingança e como ela é central para a expressão de nossas emoções.

Isso de repente confere à vingança uma posição em nossas vidas que não gostaríamos de concedê-la, e nos denuncia como seres muito mais apegados às emoções do que também gostaríamos de admitir.

Mas por que seria tão surpreendente assim reconhecer que somos, todos, recorrentemente vingativos? Por que ser vingativo é uma denominação que damos a poucos e em situações pontuais?

Meu palpite é o de que reconhecer isso (trazer à mente consciente) solapa a efetividade do produto comportamental complexo e refinado que obtemos como resultado de outros dois mecanismos, além da vingança, evolutivamente desenvolvidos em nós, que são: a capacidade de imitação e a teoria da mente (capacidade de imaginar o que outra pessoa pensa).

Que produto comportamental é esse?

Claro, a passivo-agressividade.

*** Evolução e Vingança Submetido como cobaia num teste que pretendia medir as atividades cerebrais enquanto a mente pensa em vingança, Luís pensou na vingança que mais esteve presente em sua cabeça nos últimos anos: a vingança contra a traição de sua ex-namorada.

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Mas Luís nunca teve a oportunidade e a coragem de se vingar dela. Além de seu senso moral que repetidas vezes o censurou, Luís nunca obteve a chance de satisfazer seu desejo por vingança efetivamente. O desejo sobreviveu como fantasia, e foi indubitavelmente nessa fantasia que Luís pensou enquanto a máquina de ressonância magnética escaneava seu cérebro.

O teste descobriu o seguinte sobre o cérebro de Luís: durante sua fantasia de vingança, o sistema de recompensas de Luís foi ativado, justamente onde se encontram alojadas grandes quantidades do neurotransmissor dopamina (substância associada ao prazer) e justamente a região do cérebro que igualmente se ativa com o consumo de drogas e comidas açucaradas. Saber que a vingança é prazerosa nos ajuda a entender sua atratividade, mas não a explica ainda. Isso só prova que o cérebro, de fato, nos recompensa por uma atitude que, em primeiro lugar, se faz necessária para a nossa sobrevivência.

Evolutivamente falando, a vingança é o resultado de mecanismos designados para deter danos, ofensas e outros tipos de ameaças que comprometam nossa sobrevivência. A lógica da vingança parece simples: deter ameaças que sofremos no presente para que não voltemos a sofrê-las no futuro.

A um nível biológico, o único nível com o qual a evolução genética realmente se preocupa, a vingança não tem nada a ver com justiça, tem a ver com prevenção - desperta quando não há cooperação justamente para induzir cooperação futura.

Analisando os reflexos sociais de uma preocupação de ordem biológica - que almeja se livrar de ameaças futuras -, o indivíduo atraído por vingança pode adquirir um status melhor dentro de um grupo, porque, teoricamente, ele será visto como alguém que “não leva desaforo pra casa”, que “não deixa nada barato” e que pune aquele que tenta lhe “passar a perna”, obtendo assim

uma maior chance de cooperação entre seus pares.

Ainda no aspecto social, é interessante como a evolução indica ser maior o desejo por vingança quando um indivíduo sofre de humilhação pública. Nesse caso, se você não se vinga, mais pessoas saberão que você é uma pessoa passiva a maus tratos. Sua reputação está em jogo e todos saberão que não cooperar com você é uma possibilidade livre de consequências indesejadas.

A função da vingança envolve a preservação de sua sobrevivência tanto ao torná-lo menos propenso a sofrer ofensas e agressões futuras, como ao alterar o incentivo do indivíduo que lhe inflige essas ofensas e agressões para que ele não as faça mais, forçando-o a cooperar.

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No caso de Luís, a sede por vingança contra a ex-namorada é completamente irracional. Não apenas porque na escala moderna das relações sociais Luís dificilmente se tornará propenso a ser menos traído no futuro caso se vingue de sua antiga namorada, como também porque sua ex-namorada dificilmente alterará seus incentivos em trair Luís de novo, já que os dois não participam mais do mesmo círculo social.

A vingança certamente aparece em situações que não possuem qualquer utilidade evolutiva. Não que as utilidades evolutivas sejam imperativos morais com os quais podemos justificar nossas ações. Não. Ainda que faça sentido, que dê resultados práticos, a vingança em si é cega a qualquer noção de piedade e bondade entre seres humanos - ela não é, necessariamente, justa.

Mas ela ainda existe, porque serve a alguma função, e infelizmente se manifesta de forma compulsória e indesejável em nossas relações.

Em casos menos dramáticos do que o de Luís, como o exemplo de Júlia e Teresa, como se explica a sutil vingança de Teresa por Júlia em virtude da insatisfação da primeira pela última? A passivo-agressividade de Teresa, como sugerido, é movida por vingança, mas toma essa forma principalmente em razão de duas outras habilidades evolutivas que dispomos.

A capacidade de imitação nos deu o dom de enganar, de representar algo que não somos. Na linguagem verbal, isso se tornou mais nítido na forma da mentira. Sabemos que podemos comunicar uma informação interna que não condiz, verdadeiramente, com o que sentimos. Ou qualquer informação que não condiz, verdadeiramente, com qualquer fato do mundo.

Mas sabemos disso porque dispomos também da teoria da mente, a capacidade de reconhecer o outro como um ser pensante assim como nós, e de supormos o que ele pode estar pensando, e

de sabermos que ele poderá acreditar naquilo que dissermos.

Armadas com essas duas habilidades, podemos manipular. Parecer que queremos algo e executar outra coisa; levar a outra pessoa a acreditar naquilo que não condiz com a verdade.

Além disso, a passivo-agressividade também parece reconhecer que a confusão é um estado mental extremamente desagradável para nós, seres humanos, porque somos dotamos de inúmeras dissonâncias cognitivas que existem justamente para simplificar aspectos confusos da

realidade, de modo a otimizar nossa funcionalidade enquanto seres dispostos a sobreviver no mundo. 36


Privilegiar nossas intenções em detrimento de nossas ações, e supervalorizar as ações de outros em detrimento de suas intenções. Essa é uma dissonância cognitiva imensamente comum. Precisamos, em certa medida, ignorar o fato de que internamente outros seres humanos são repletos de intenções complexas e julgá-los apenas pelo que podemos ver; enquanto nós, com acesso exclusivo às nossas sensações, sentimentos e pensamentos, queremos a todo custo ser julgados por nossas intenções e desejamos que relevem nossas ações - estas sempre tão difíceis de alinhar às expectativas de um convívio ideal.

*** É surpreendente, mas ao mesmo tempo lógico pensar que nossas pequenas perversões vingativas refletem a essência de nosso sistema de justiça criminal, afinal, ele foi construído por nós. Retribucionistas acreditam que as pessoas deveriam ser punidas porque é isso que elas merecem. A retribuição, é claro, não é a única justificativa para se punir, pois também se pune para deter a pessoa, para prevenir que ela cometa um crime novamente, para estabelecer um exemplo que possivelmente previna a prática de crimes parecidos por outras pessoas, além de, talvez, reabilitar o criminoso.

Porém, as bases consequencialistas que apresentamos para justificar punições não justificam todo o sistema de justiça criminal, pois não justificam a necessidade que encontramos em equivaler a punição à gravidade do crime. Quanto pior o crime, pior a pena, independentemente de evidências acerca da efetividade da punição para prevenção de futuros crimes e reabilitação do criminoso.

A realidade é que tratamos criminosos com muito mais dureza do que podemos justificar. Se a pena retributiva não fosse essencial ao sistema, provavelmente teríamos que encarcerar muito menos pessoas por mais breves períodos, e em condições muito melhores. A justificativa para nosso sistema penal, portanto, depende do fato de uma pessoa ter ou não ter merecido uma punição.

***

37


Mas a neurociência aponta para uma realidade muito assustadora acerca de merecimentos. Talvez não mereçamos qualquer julgamento positivo ou negativo atribuído às nossas ações porque, efetivamente, não controlamos nossas ações. Nossas escolhas e comportamentos são determinados por processos físicos fora da nossa condução. É o velho embate entre determinismo versus livre-arbítrio e o determinismo parece levar a melhor.

Alguns filósofos, contudo, acreditam que não há conflito entre determinismo e livrearbítrio, porque o determinismo não nos coage e não nos impede de acessar a razão e

responder apropriadamente. Tais filósofos são compatibilistas.

Acreditam no que chamam de sorte constitutiva, a sorte ou aleatoriedade presente em seus genes ou em seu ambiente que te impele a ser um tipo particular de pessoa, com um conjunto distinto de pontos fortes, fraquezas, talentos e valores.

Assim, alguns filósofos pensam que podemos tomar responsabilidade por nossa sorte constitutiva, aquela que nos determina até certo ponto em que somos apresentados a um conjunto de escolhas possíveis. Mas mesmo essas escolhas possíveis são vulneráveis à sorte presente, de modo que nossas ações não podem ser nada mais do que não autônomas.

Parece uma ideia absurda, mas o ônus está naqueles que discordam. Uma vez que a punição de pessoas envolve machucá-las de alguma forma, deveríamos evitar as punições retributivas a não ser que tenhamos argumentos fortes para justificá-las.

*** O Quão Livre Nós Somos? O que mais pode nos informar as pesquisas científicas atuais acerca das bases físicas da ação e da vontade consciente?

Sabemos que dado seu corpo, o estado do seu cérebro, e seu ambiente específico, você não poderia agir diferentemente da maneira como você está agindo agora.

38


Imagine que pudéssemos produzir uma duplicata você, um gêmeo idêntico que é uma cópia exata de sua estrutura molecular. Se nós puséssemos seu gêmeo na mesma situação em que você se encontra, com exatamente o mesmo estímulo sensor causando pressão sobre ele, então o gêmeo não poderia agir diferente do que você está agindo. O estado atual do universo físico sempre vai determinar o próximo estado do universo, e o seu cérebro é parte desse universo.

Nosso ego, no entanto, aquilo que nós experienciamos fenomenologicamente, discorda disso. Se levarmos nossa fenomenologia a sério, nós claramente experienciamos nós

mesmos como seres capazes de iniciar novas cadeias causais de eventos simplesmente do nada, como seres que poderiam ter agido diferente dada exatamente a mesma situação.

O que acontece é que alguns estágios de processamento no nosso cérebro são elevados ao nível da experiência consciente e apropriados por nossos egos. Assim, experienciamos esses estágios, esses eventos como nossos pensamentos, nossas decisões ou nossos desejos, como propriedades que nos pertencem.

Tais eventos aparecem para nós de maneira espontânea. São os primeiros eventos linkados na cadeia que atravessam a fronteira da mente inconsciente para a mente consciente.

A verdade é que a experiência consciente da intenção é apenas uma camada de um processo muito mais complicado do cérebro. E já que este fato não aparece para nós, temos a experiência robusta de sermos capazes de espontaneamente iniciar cadeias causais da esfera mental para a esfera física. Cria-se, assim, a aparência de um agente.

Em outras palavras, cria-se uma percepção ilusória, quando na verdade não existe agente nenhum fazendo alguma ação.

***

39


Nossa natureza vingativa se explica evolutivamente. Mas isso não quer dizer que todas as vinganças devam se justificar moralmente. Certamente, não deveriam justificar o que parece ser a essência de nosso sistema criminal de justiça. A punição retributiva, afinal, é um fim em si mesma, ao passo que outras justificativas, como a reabilitação, almejam um resultado desejado a partir da punição, um resultado racional.

Só que nossa natureza está embebida de vingança, não só na hora de sentenciar um criminoso, como também nas inúmeras instâncias cotidianas em que sentenciamos nossos amigos, parceiros e familiares a penas particulares que julgamos e executamos

por conta própria, e muitas vezes de maneira velada e ambígua, isto é, passivoagressiva.

Podemos, entretanto, culpar aos outros ou a nós mesmos?

Certamente que questionar isso pode aliviar algumas culpas particulares. Mas também pode nos conduzir a uma autoindulgência perigosa. Mais importante, portanto, seria escapar da óbvia sedução do ego em querer ser julgado pelas intenções enquanto se relevam suas ações, e direcionar essa relativização contundente da culpa, que a ciência bem sustenta, para os outros, não a fim de inocentarmos aqueles que cometem crimes hediondos como estupro e assassinato, mas de ponderarmos as reais e eficientes medidas para se impedir, de alguma forma, tais criminosos, pois muito embora, fundamentalmente, seus atos tenham sido simples obras inevitáveis do estado atual do universo físico, seria moralmente irresponsável deixarmos que esses atos se repitam.

E, talvez ainda mais importante considerando uma vivência imediata, seria transcender a autoindulgência do ego e praticar indulgência com as próprias pessoas potenciais vítimas de seus pequenos atos vingativos, de suas pequenas punições agressivas ou passivo-agressivas.

Transcender nosso próprio mecanismo evolutivo e superar a compulsão vingativa que está introjetada dentro de nós.

Desconsole se quiser. 40


Método Científico – Capítulo 2: O Menino que Amava Polímeros W. N. Centauro¹, T. A. Gonçalves² ¹Pesquisador Ex Catedra ²Instituto de Fonética Sandro M. Cacaroto, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: centauroprof33@globo.com; tagon@cristais.ifsc.gov.br

Resumo Eu sou W. N. Centauro, e você será julgado. Este é o Método Científico. Este discurso foi lido pelo Prof. Dr. Thomaz de Abreu Gonçalves (MS-5 RIPDIP) na abertura da LVII International Conference on Hydro-Polymerase Beta-Decaying of Thermo-Biological NonLinear Systems, realizada em Belo Horizonte/MG, em meados de Maio de 1984. Nesta ocasião, o Professor Joaquim Cruz da Costa Manaus fora homeageado por suas contribuições à criação da grande área de estudos térmicos em geometrias estocásticas, cujas aplicações, conforme dito no discurso, são ubíquas à sociedade moderna. Recebi, no último mês, após a estreia da minha coluna n'O Círculo, inúmeros pedidos de colegas, alunos e professores para que eu publicasse nesta revista este discurso, que coube a mim transcrever, sobre este importante professor que todos tivemos para o avanço da ciência em territórios tupiniquins.

Palavras-chave: Joaquim Cruz da Costa Manaus, Polímeros, Série Grandes Educadores

Abstract I am W. N. Centauro, and you will be judged. This is The Scientific Method. This lecture was delivered by Prof. Dr. Thomaz de Abreu Gonçalves (MS-5 RIPDIP) on the opening ceremony of LVII International Conference on Hydro-Polymerase Beta-Decaying of Thermo-Biological Non-Linear Systems, Belo Horizonte/MG, Brazil, on May 1984. On that occasion, the works of Professor Joaquim Cruz da Costa Manaus were celebrated. These works conveyed deep-ploughing consequences on stocastic geometries fields, and important technical applications on thermal polymer devices, ubiquitious on our modern society. I was asked, lately, after beginning my monthly column on O Círculo, by many colleagues, students and teachers, to transcribe here this famous lecture, at which I was present, so the future generations could know better about this great teacher we all had in Brazil, whom helped us to build some of most relevant foundations of brazilian tupiniquim science school.

Keywords: Joaquim Cruz da Costa Manaus, Polymers, Great Educators Series

41


CENTAURO & GONÇALVES

O CÍRCOLO 3 (2017)

1. Introdução

O caminho do nosso querido Manaus, que hoje se faz presente, se não em carne e osso, pelo menos em ideia, afinal, sem ele, nada do que veremos neste simpósio seria possível de ser realizado, foi longo, complexo, heroico. É claro que nenhuma palavra minha, por mais ornada

de rebusque, faria justiça à figura, ao vulto Figura 1. Fotografia dos participantes do LVII International Conference on Hydro-Polymerase BetaDecaying of Thermo-Biological Non-Linear Systems, no qual este discurso foi proferido. O Professor Gonçalves é a segunda pessoa da direita para a esquerda. Quem tirou esta foto fui eu, W.N.

Senhoras e senhores, a mim ficou esta tarefa que, embora difícil, tem aquele tipo de dificuldade doce e majestosa. Hoje poderei falar um pouquinho para todos vocês sobre um dos maiores cientistas que esse Brasil já teve, e que, por muita sorte minha, e graças ao Método Científico, pude conhecer

pessoalmente

e

ter

uma

convivência que marcou não só a minha, mas

a

carreira

de

muitos

dos

que

continuaram a levar a ciência brasileira do Oiapoque ao Chuí. Hoje falarei sobre o professor Manaus. Joaquim

Cruz

da

Costa

Manaus era mineiro por excelência, criado das terras perfeitamente geométricas de Luizlândia d'Oeste, e tinha um sonho que cultivava desde muito criança: ele queria calcular polímeros. Não queria voar, nem ser

imortal, nem ser um gênio – isso tudo foi um subproduto de seu esforço, mais tarde, como todos sabemos. Mas tudo o que ele queria era calcular os polímeros. E apenas isso.

que é o professor Manaus para nossa ciência. Vou tentar, nos próximos minutos, não fazer uma análise detalhista e pedante sobre toda a trajetória acadêmica do professor, mas salientar algumas de suas grandes realizações, desde quando era pequenininho, no interior do estado, até

alguns anos atrás, que foi quando nos conhecemos. Ao final, falarei um pouco do legado do professor Manaus, e como seu trabalho se relaciona diretamente com tudo o que vemos aqui realizado neste simpósio. Para angariar essas informações, recorri às minhas memórias (que não são poucas), e também

obtive

profissionais

imensurável

do

Acervo

ajuda dos

Histórico

da

Luizlândia, e dos amigos do Instituto, além, é

claro,

de

numerosos

membros

da

tradicional família Manaus.

2. Infância e Caminho até a Ciência Desde

sempre, o bisavô do professor

Manaus, J. Miguel Archangelo Manaus J., proto-cientista que nos tempos antigos se dedicava

a

construir

aparelhos

muito

curiosos e equipamentos bastante insólitos, 42


CENTAURO & GONÇALVES

O CÍRCOLO 3 (2017) algo a mais. Há um tipo de, não sei colocar em

palavras,

talvez

predestinação,

ou

genialidade. Isso é típico dos grandes gênios que a humanidade já conheceu, como Niels Bohr, Albert Einstein, Richard Feynman...

Perdoem-me os puristas, mas, para mim, Joaquim Manaus não deve em nada para Mapa comparativo entre a Luizlândia d'Oeste, cidade natal do professor Manaus, e a capital mineira Belo Horizonte. Fazer ciência é navegar além do horizonte!

nenhum destes que citei, pois não era somente estudioso: era predestinado.

como umas máscaras de chumbo que serviam para proteger os olhos da radiação era emitida por algumas fontes de carbono conseguidas no quintal de sua casa, contava nas reuniões mais pacíficas da Família Manaus como nosso professor se perdia por tardes e tardes com seus pedaços de tubos de PVC, que seus tios carinhosamente conseguiam no meio de entulhos de grandes construções (tão grandes quanto permitia o planejamento urbano de Luizlândia, que na época nem era considerada uma vila).

Figura 2. Nesta raríssima fotografia, gentilmente fornecida pela família Manaus, vemos alguns dos primeiros habitantes da Luizlândia. À direita, na charrete da direita, vemos um raro registro do patriarca J. Miguel Archangelo Manaus J., bisavô do Professor Manaus.

Manaus brincava, e construía,

Pois foi seguindo essa sua

e passava a língua obscenamente em cada

vontade, essa inspiração, que Manaus, em

pedaço sujo de tubo cortado, de maneiras

anos posteriores, matriculou-se numa das

que constrangiam até os mais liberais da

escolas mais tradicionais de sua região: a

tradicional Família. Se não era amor pela

Escola Estadual Cel. Francisco C. A. Pinto,

Ciência, ninguém sabe o que podia ser. Esse,

conhecida nas trincheiras da vilazinha como

meus amigos, é um desses momentos em

“O Velho Chico”, já que fora a primeira

que eu me convenço, apesar de ser cientista

escola de Luizlândia. De grandioso Coronel,

e, obviamente, cético, de que algumas coisas

o Chico se transformara, por um capricho

são obra do destino. Existem muitos bons

sociológico, em grande companheiro até

profissionais que obtem sucesso por meio

mesmo dos mais oprimidos, numa época em

somente dos estudos e do treinamento; no

que nem sequer se falava sobre Paulo Freire

caso do Manaus, pra mim claramente há um

(MANDIRA, 1968). Era uma escola muito 43


CENTAURO & GONÇALVES

O CÍRCOLO 3 (2017)

simplória, é verdade, mas a competência e a

disciplina de seus pedagogos, como a professora

Carmen

Bábaco

Meyer,

a

saudosa diretora Silvia Bulba Girópedes (a famosa Silvinha Giroflex) e, claro, o meu amigo professor Lázaro Luiz Ferreira, fazia com que cada minuto em sala de aula valesse por muito mais de duas horas estudando sozinho em casa. E Manaus

Figura 4: Foto do estado atual do local em que um dia foi o Velho Chico. O prédio, após uma primeira reforma acontecida em meados da década de 50, foi tombado pelo patrimônio nacional, e não pode ser reformado pelos locais.

muito bem se aproveitou deste método disciplinado, ordeiro e rígido que, segundo

Ensino Fundamental já se envolvia com

o próprio professor Lázaro, “foi um dos

projetos muito interessantes envolvendo o

muitos presentes que a Ditadura Militar deu

uso de variados polímeros para solucionar

ao povo”. Justiça seja feita, não fosse a época

problemas corriqueiros dos cidadãos de

da ditadura talvez nós nunca tivéssemos a

Luizlândia. Foi na segunda série que, numa

emergência de líderes tão inconfundíveis

feira de Ciências, ele demonstrou “por a

como foi o Professor Manaus (MANDIRA,

mais b” que trocar os encanamentos das

1968, GLEISER & TYSON, 1978). Claro que a

casas, que antes eram de ferro, chumbo e

ciência não tem absolutamente nada a ver

titânio,

com a política, isso qualquer cientista sabe;

diminuiria sensivelmente a incidência de

mas, cá pra nós, se não houvesse um

doenças intestinais na população, além de

pouquinho de opressão em nossos alunos, o

contribuir para um menor desperdício de

que iríamos produzir? Filosofia? (risos)

água, que até então era oriundo das

por

materiais

como

o

PVC,

péssimas condições das instalações hídricas urbanas, datadas já de muito tempo, muito mais tempo do que a Matemática demorara para chegar à região pelas mãos, pés, esquadros e compassos de D. Mitrino Raimundo de Goytacazes-Pitanguy, patrono científico

do

povoado,

e

que,

eventualmente, ele mesmo entregou as Figura 3: Antigo registro da turma de 1937 da Escola Estadual Cel. Francisco C. A. Pinto, o Velho Chico. Em destaque, o Professor Manaus em sua infância (CABREIRA & MEYER, 1983)

Sempre

muito

aplicado,

Manaus desde o começo de seus estudos no

chaves da cidade ao Manaus pouco antes de nos deixar com tão somente seu legado e não mais seu corpo (CABREIRA & MEYER, 1983; CARRARA & REDONDO, 1970).

44


CENTAURO & GONÇALVES

O CÍRCOLO 3 (2017)

O projeto de Manaus na segunda

série

foi

Como

eu

entrei

nessa

merecidamente

história? Foi um acaso, mas não tão acaso

reconhecido, e desde essa ocasião a Família

assim. Eu, ainda mais novo que o Manaus,

Manaus, representada pelo menino Joaquim

fiquei interessadíssimo pelo que se fazia no

Cruz da Costa, periodicamente aumentava

Instituto durante uma excursão que minha

suas prateleiras, a fim de acomodar o

escola, que já era da cidade, promoveu. Era

crescimento exponencial de troféus que

sabido em toda região que “alguma coisa”

recompensavam o intelecto jovem, porém

acontecia naquele lugar. Era quase um local

viril, de seu mais recente rebento.

sagrado para

o conhecimento.

O que

Observado, justamente, que o

exatamente aqueles homens faziam nós não

lugar de Manaus não era mais dentre os

podíamos saber, mas era coisa grande. Se

mortais que rastejavam como centopeias em

fosse um oceano, lá era a morada dos

banheiros da madrugada quando ninguém

tubarões. Notem que não era qualquer aluno

as vê, a direção d'O Velho Chico o

que podia simplesmente ir até o Instituto e,

encaminhou até uma instituição superior, o

como dizem, “meter o bedelho” no trabalho

Instituto de Fonética Sandro M. Cacaroto,

dos cientistas. Não, a vida de um aspirante a

longe da terrinha natal, lá em outro estado,

pensador é muito mais complicada... Eu tive

no lugar em que os prédios pequenos já são

que estudar muito, e tive sobretudo um bom

grandiosos,

Lá,

Pai que abriu os caminhos do pensamento

morando numa cidade que, convenhamos,

para mim, e se não fosse pelo meu esforço

fica muito além das montanhas mineiras que

contínuo ao longo de todos aqueles anos eu

recortavam Triângulos na grande abóbada

nunca

celeste, e tocavam até as constelações mais

laboratórios. Escrevi um projeto, consegui

firmemente posicionadas na tela dos deuses,

assinaturas até do prefeito, apresentei em sei

Manaus conseguiria transcender seu amor à

lá quantas vias para o programa Jovem

Ciência

níveis

Pensador do Instituto, esperei meses e

inimagináveis pela sociedade rasa. Não

meses, fiz provas de admissão, sofri, chorei,

tendo idade ainda para ingressar num curso

perdi amigos – mas lá, no fim do túnel,

de formação superior, Joaquim recebeu todo

estava o Manaus pronto pra me receber e

o apoio do corpo docente do Instituto para,

abrir suas portas, e as portas do grupo de

desde adolescente, poder dedicar-se ao

cristais (que depois se tornou o três vezes

exercício do intelecto, à produção científica,

glorioso Grupo de Cristais, Polímeros e

aos estudos ao respeito da natureza das

Plasmas), pra mim. Ele ainda era novo, e mal

coisas... E, obviamente, esse apoio todo não

começara seus trabalhos; eu ainda era uma

seria em vão.

criança. Mas o que Manaus colocou dentro

e

onde

aos

nos conhecemos.

Polímeros

até

seria

aprovado

para

visitar

os

45


CENTAURO & GONÇALVES

O CÍRCOLO 3 (2017)

de mim eu nunca mais consegui tirar, e

nhar-se por veias e artérias e curar doenças,

nunca mais quero que saia. Pois é algo maior

também poderiam segurar-se umas nas

que a vida, maior que o caráter, maior que o

outras, e, ordenadamente, em maravilhosos

mundo. Só não é maior que o esplendor da

cristais de potência, garantirem a segurança

ciência. Pois é a própria ciência.

de vôos transcontinentais. Graduado e recém-chegado

à

terceira

década

de

existência terrena, Manaus ganhara uma

3. Manaus como Pesquisador

aura de poder e dominação, e em todos os

Após cinco anos sabáticos,

corredores que passava obrigava, embora

depois de sua iniciação ao meio acadêmico,

nunca dissesse sequer meia palavra, os

onde foi apresentado a novos ângulos e

transeuntes a curvarem-se perante suas

modos

tubos

realizações. Isso não era, note-se, algo ruim,

recentemente

nem desagradável. Agradava, e muito, à

sintetizados, e após a provação inerente de

população local a presença de alguém

uma juventude guiada por hormônios,

íntegro, inteligente e trabalhador como

viagens

e

Manaus, que era um filho do progresso e da

se

ordem, e não da bagunça. Seus colegas o

harmônicos

cilíndricos

à

de

envolvendo

materiais

Micronésia

substâncias

dos

alucinógenas,

sentidos Manaus

transformou em algo que nem o membro

admiravam,

mais imaginativo dos Manaus poderia

cumprimentavam (GONÇALVES, 1979). A

conceber: agora ele não era mais um jovem

Ciência

rebento, uma criança cheirando a leite e a

ramificar suas sementes em solos bastante

encanamento usado. Agora, ele era um

adubados e úmidos. Na bíblia eles dizem

Cientista, e ninguém ousaria segurá-lo. Nem

que “no início era o Verbo”. Pois eu digo:

bem tinha 30 anos de idade, mas a postura, o

para mim, no início era a ordem de Manaus,

olhar clínico e o modo como ele pegava

e eu obedecia, e assim meu mundo foi

numa caneta

criado.

para

assinar

papeis

das

era

seus

completa,

professores

e

agora

o

podia

agências de fomento não enganavam nem o mais cético dos pensadores. Ele havia nascido pra ser cientista, e qualquer um podia ver. Os músculos cresceram, o cabelo foi aparado, o olhar perdeu inocência e ganhou análise. Manaus era agora o dono de seu conhecimento, o imperador das moléculas que construíam, sob sua ordem, as mais maravilhosas geometrias abstratas que, da mesma forma que podiam embre-

Figura 5: Entrada do primeiro laboratório de Manaus. Na época, pertencente ao Grupo de Cristais, que, posteriormente, tornou-se o famoso Grupo de Cristais, Polímeros e Plasma do Instituto; esta sala, que após a reforma se transformou num museu, era destinada a guardar os equipamentos de medição arcaicos da época.

46


CENTAURO & GONÇALVES

O CÍRCOLO 3 (2017)

A Saga de Manaus claramente

avançou a passos largos desde então. Não

4. Legado

posso descrever, em tão pouco espaço, todos

O

trabalho

de

Manaus

os grandes feitos que este cientista construiu

continuou. Logo logo ele angariou alguns

no campo dos Polímeros, muito menos a

estudantes brilhantes para compor o panteão

importância que teve na minha vida e na da

de jovens cientistas que, como pequenas

minha esposa Vera. Qualquer exagero, é

aranhas, estenderiam seus membros aos

verdade, seria uma aproximação grosseira. É

mais

muito

polímeros tinham a oferecer – o ápice dessa

triste

que, num país

que

não

obscuros

recôncavos

que

os

reconhece os feitos da sua elite intelectual, o

expansão

nome Joaquim Cruz da Costa Manaus não

desmantelamento

seja reverenciado e respeitado até pelos

cristais e a ascenção do grupo de cristais e

infantes mais inócuos (NETTO, 1981). A

polímeros, que, anos mais tarde, já quando

cada vez que uma criança começa a morder

eu não estava

um pedaço de encanamento, a cada vez que

transformaria no atual grupo de cristais,

uma dona de casa fica feliz pela conta d'água

polímeros e plasmas. Era muito difícil ser

ter vindo mais barata, a cada vez que um

aluno do Manaus, e eu sei disso como

agricultor vê suas plantinhas crescendo

poucos. Mesmo tendo tanto contato com ele

fortes por terem sido muito bem regadas, a

desde que eu nem gente ainda era, precisei

cada vez que uma meretriz se vê livre de

me provar de novo, e de novo, e de novo, e

doenças venéreas e a cada vez que moças e

nunca era o suficiente. Eu era um quadrado,

rapazes

famílias

dizia ele, e precisava me transformar em

tradicionalíssimas degustam e introduzem

círculo. E ele ia me cortar todo. E foi isso que

em si mesmos (e uns nos outros, por que

ele fez, e não posso ser mais agradecido.

não?

livre!)

Alguns dos nossos pedaços vem “a mais”. O

simulacros grosseiros, porém delicados em

dever de um bom cientista é ver o que é

capricho, de pedaços de gente feitos com

necessário, estritamente necessário, e jogar o

plástico higiênico e colorido,

resto no lixo. E muito de mim foi para o lixo

bem

Vivemos

“Manaus”

comportados

em

deveria

um

de

mundo

ser

o nome

lembrado

e

reverenciado. Nada do que temos em nossa

foi,

do

claramente, do extinto

mais

tão

grupo

presente,

o de

se

– mas hoje em dia, experiente, vejo que foi melhor assim.

civilização local atual seria tão doce, eficaz e

No começo era tudo por ele

higiênico se não fosse a Vontade dele, desde

mesmo. Não tinha um termostato que ele

que

não fizesse questão de regular, nem um cabo

era

Luizlândia.

uma

iluminada

criança

em

que ele não fazia questão de enfiar no osciloscópio. “Esse tipo de coisa, na mão de

47


CENTAURO & GONÇALVES

O CÍRCOLO 3 (2017)

aluno, não dura três minutos”, ele dizia. E

seu esforço e sua genialidade, e seu Amor

era verdade.

aos polímeros transcende, e transcenderá até Eu só percebi isso tempos

o fim dos tempos, as barreiras que a terra

depois, quando eu mesmo comecei a ter

bruta tenta impor aos sonhos mais sublimes.

meus alunos e vi que o que é simples para

Por fim, Manaus conseguiu o que queria, e

nós cientistas é um pouco complicado pra

realizou tudo o que tinha pra realizar, e mais

quem não tem nossas mesmas faculdades

um pouco: Manaus calculou todos os

mentais. Claro que, quando eu conquistei

polímeros.

meus

primeiros

prêmios,

títulos

e

reconhecimentos, o Manaus começou a ser menos rígido. No meu pós-doutorado eu já podia ligar os disjuntores da sala! (risos) Nos tempos atuais, Manaus ainda vive pelos corredores do Instituto, e, embora já com muitas dezenas de primaveras tendo voado pelos seus, agora grisalhos, cabelos curtos, continua sua dedicação por amor aos Polímeros.

É

chefe

honorífico

de

departamento, é comandante de pesquisas científicas

de

vanguarda,

é

docente,

aposentado na ativa, temido pelos alunos que não estão preparados para sair da Caverna, e é pedagogo – recentemente, muito foi discutido a respeito das mudanças das grades horárias dos cursos de ciências naturais

do

Instituto,

e,

Figura 6: O legado de Manaus. Se nosso querido professor pudesse ser transformado numa imagem, com certeza seria esta. Desde cálculos avançados sobre a estrutura dos polímeros mais importantes da nossa sociedade, até as inúmeras aplicações das maravilhas que Manaus descobriu com seu esforço, o professor está presente, literalmente, em todos nós.

Manaus,

revolucionário por excelência, apresentou uma das propostas mais prontamente aceitas e aplicadas pela comissão organizadora, proposta, essa, que, sendo considerada de vanguarda, já era usada pelo docente desde muitos anos (CASTELINHO, 1982; BRASIL, 1968; NETTO, 1977). Mas Manaus, muito além de todos esses títulos e honorários e questões de prova insolúveis por gente despreparada, é Cientista e é Amante. Sua Ciência fora construída pouco a pouco com

Não me resta mais nada a dizer, senão reiterar meus agradecimentos, em meu nome e em nome de todos nós que aqui,

neste

simpósio,

continuamos

a

mastigar a comida primordial que o Manaus começou a mastigar há tantos anos e gentilmente colocou em nossas bocas. Veja isso tudo, Manaus. Isso é seu. Isso é a

ciência. Isso é o Brasil que você ajudou a construir. Muito obrigado por tudo. 48


CENTAURO & GONÇALVES

O CÍRCOLO 3 (2017) Gonçalves, T. A. Histórias do Instituto: Física

5. Agradecimentos

para o Novo Brasil. Editora Instituto de Os autores agradecem o apoio

Fonética Sandro M. Cacaroto, São Paulo-SP,

financeiro da Fundação de Amparo à

1979.

Pesquisa

Brasil - Instituto de Fonética Sandro M.

(FAPUTO), Conselho

Unificada projeto Nacional

Tártaro

Oligarca

#333-333(333)/84, de

Pesquisa

ao

Cacaroto.

Novos

ex-

formação

do

paradigmas cientista

para

a

brasileiro

Catedrática Universitária (CNPeCU) e, pela

contemporâneo, cp. 5: Das Grades Horárias.

cortesia do acesso aos materiais históricos, à

Editora Instituto de Fonética Sandro M.

Prefeitura de Luizlândia e à família Manaus.

Cacaroto, São Paulo-SP, 1968. Mandira, R. M. As Sete Maiores Falácias do Movimento

6. Referências

Estudantil,

3a

ed.

Editora

Livraria Herneah. Rio de Janeiro-RJ, 1969.

Cabreira, A., Meyer, C. B. (orgs.). Acervo

Netto, J. A. H., Ferrera, L. A. Grandes

Historiográfico da Prefeitura de Luizlândia

momentos da Didática no Brasil, 4a ed. J.

d'Oeste: O Menino dos Polímeros. Editora

Sullivan & Filhos. São Paulo-SP, 1977.

Calabouço, Belo Horizonte-MG, 1983.

Netto, J. A. H. Manaus: esquecido da ciência

Carrara, A., Redondo, D. M. C. Uma grande

tupiniquim. Revista Brasileira de Didática

família: Estudo de caso das contribuições da

Física, v. 3, n. 1, pp. 77-88. 1981.

família Manaus para o desenvolvimento do primeiro

termostato

hidroxidado

em

território nacional. Ciências do Globo, v. 4, pp. 12-36. 1970. Castelinho, F. C. A., Netto, J. A. H. Média geométrica na avaliação de graduandos em ciências físicas: uma luz no fim do túnel? Revista Brasileira de Didática Física, v. 2, n. 4, pp. 127-137. 1982. Gleiser, A. B., Tyson, N. G. J. Ciência no

Brasil: Ruim com ela, pior sem ela. Editora Buco, Belo Horizonte-MG, 1978.

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Ana e o mundo de cano - Wild Child Ana abriu os olhos. Ela se percebeu em uma espécie de túnel, dava pra enxergar, mas era pouco. Ana achou que aquele túnel parecia mais um cano, não era um cano pequeno, mas também não era grande, cabia ela. Daí ela percebeu o resto do seu corpo, viu que então não cabia tanto assim. Não dava pra ficar de pé, mas dava pra engatinhar. Ana achou mesmo que fosse um cano quando viu que fazia barulho de cano

-

enquanto ela se mexia sobre ele. Ana viu que estava em um canto do cano, então engatinhou um pouco pra frente, indo ao longo do cano. De repente, Ana se viu em uma bifurcação,

na sua frente tinha o cano da esquerda e o cano da direita. Ela achou engraçado pensar em como ia decidir prosseguir, mas lembrou-se que era canhota, então ela gostava mais do lado esquerdo. Ana seguiu pelo cano da esquerda, pra logo descobrir que não tinha saída. A esquerda era a escolha errada. Sem se incomodar, Ana voltou e pegou então o cano da direita. Engatinhou em frente, fazendo barulho de cano. De repente, Ana se viu em outra bifurcação, dessa vez diferente. Tinha o cano da frente mesmo, mas tinha o cano que ia pra cima. Ana chegou perto e olhou pra frente, não dava pra ver pra onde ia. Então olhou pra cima, dava pra subir por uma escadinha, mas não dava pra ver o fim. Com medo de cair, Ana escolheu

continuar em frente. E assim foi, engatinhando e fazendo barulho de cano. Mas ela começou a perceber que o cano estava ficando mais apertado, cada vez mais apertado. Ela continuou em frente, até que começou a rir, pois estava ficando entalada. Ficou tão apertado que ela não cabia mais, não dava pra continuar, estava errado de novo. Ainda achando engraçado, voltou, e o cano foi ficando mais espaçoso, cada vez mais. Então Ana chegou novamente no caminho certo e começou a subir a escadinha do cano de cima. Tudo foi ficando cada vez mais escuro, mas ainda do tamanho certo. Ana seguiu acima, sem medo, até que um enorme barulho de cano ecoou no mundo inteiro. Teria doído se não tivesse sido tão engraçado, porque o barulho era

sua cabeça batendo no teto do cano. Depois que se recuperou do susto, ela viu que o teto na verdade era uma porta de cano. Parecia uma coisa boa, então ela abriu a porta de cano pra cima. Ana achou incrível, uma luz muito grande iluminou o mundo. Ela terminou de subir a escadinha do cano e saiu. Era uma sala mais do que grande, cabiam muitas Anas, não dava nem pra contar quantas. Era engraçado como o buraquinho do cano, que antes era tudo, parecia tão pequenino dentro da sala grande. Ana olhou as paredes da sala grande à sua volta, eram 50


inteiras desenhadas com figurinhas de muito bom gosto, com muitas voltinhas e simetrias interessantes. Dava pra passar uma vida descobrindo os detalhes. Mas então Ana viu que em uma das paredes havia duas portas bem simples, a porta da esquerda e a porta da direita. Ela seguiu seu caminho, agora de pé, livremente, podia até saltar. Chegando diante das portas, pensou com inteligência. Se da outra vez a esquerda estava errada, então essa era a hora de estar certa. Ana foi confiante, mas errou de novo. A porta da esquerda estava trancada. Agora parecia óbvio, Ana pensou, ela mesma que inventou essa regra. Não tinha problema, pois então ela abriu a porta da direita, que era a certa. Do outro lado, havia uma sala grande como aquela, com outros desenhos nas paredes, igualmente elegantes, mas menos onduladas, mais quadráticas. A luz também era diferente, tinha uma tonalidade mais baixa, era boa para uma soneca. Mas Ana seguiu em frente, sem se demorar nas novas paredes. Ali havia outra porta fechada, mas era a porta da esquerda, aquela que não abria. No fundo da segunda sala grande tinha um buraquinho. Ana foi até lá. Era outro cano, e como não havia mais nada, Ana assumiu que descer pelo novo cano era o caminho correto. Mesmo depois de conhecer as salas grandes, estar no cano era legal. Então ela desceu, da mesma forma que havia subido, agora na escadinha do outro cano. Ana olhou para baixo e não conseguiu ver o que havia, foi descendo devagar até que seus pés tocaram de leve o chão do cano. Ana se agachou e percebeu que aquele chão também era uma porta de cano. Ela se segurou na escada do cano e abriu o chão, então conseguia ver o fundo, que não era tão longe. Ana pulou e se viu em um canto de cano muito familiar. Não tinha nada de diferente ali, parecia o mesmo cano que ela já conhecia. Dava pra enxergar, mas era pouco. Não era pequeno nem grande, cabia ela. Ana pela primeira vez sentiu um pouco de desespero. Afobada, engatinhou de pressa pra frente, até que chegou em uma bifurcação. Diante dela, tinha o cano da esquerda e o da direita. Ana fechou os olhos, pela primeira vez achou interessante se perguntar, como ela tinha ido parar ali? O que estava acontecendo antes? Ela tentou e tentou, mas não conseguiu se lembrar. Não dava nem pra saber se ela tinha ido parar ali ou se o mundo já tinha começado ali. Ela podia ter continuado em seu desespero de descobrir que ela não sabia o que estava acontecendo, e que não parecia mesmo haver o caminho correto. Mas ela abriu os olhos, viu o cano da esquerda e o cano da direita, e só ficou feliz em saber que o cano da esquerda então não era errado. Ana ficou feliz porque a esquerda era o que ela preferia, então ela engatinhou mais um pouco, aconchegou-se no cantinho de cano da esquerda, e sentiu-se bem. Lembrou-se que então agora ela teria tempo de apreciar com detalhes as paredes das salas grandes e sentiu-se mais feliz ainda. Depois ela iria subir lá de novo, bem logo, depois que acordasse.

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Porta retrato espelhado

-Melancolírico

O peso insustentável e belo da vida está por aí, todos os dias. Mas hoje eu me sentia particularmente bem, tanto quanto nos outros dias anteriores, nos meses... Às vezes a vida dá uma trégua, então você aproveita, respira. Senta na cama, olha pro nada. Depois olha pra um

porta retrato espelhado. Tem uma criança lá! Sou eu mesma pequena, que gracinhaaaaaa! Feliz, sorrindo tímida, queixinho abaixado ao peito e as duas mãozinhas pra trás. A infância é linda! Diz tanto sobre a gente hoje e a gente hoje nada sobre ela. O retrato ao mesmo tempo que guarda minha figura quando pequena, reflete meu próprio rosto como é hoje. Me observo. Um tiro de nostalgia me acerta no meio do peito, perco o ar e caio pra trás

deitada na cama. Não sangro. Relaxo, sorrio. Levanto devagar e vejo diante de mim a menininha do porta retrato em pé na minha frente e o porta retrato espelhado sem nenhuma imagem. Não me assusto. Sorrio mais. - Te esperei tanto, pequena! Esses olhinhos sinceros que eu amo tanto. – eu disse. - Também tava com saudade - me diz a menininha ainda tímida e sorridente. - Que veio fazer aqui? - Hoje é o dia dos outros! Da porra da maior desgraça que você conhece bem, amorzinho. – a pequena usa palavrões, mas se mantém meiga e tranquila. Fico mais apreensiva, sorrio menos, a menininha continua. - Foda-se o julgamento, foda-se o bom e ruim, o certo e o errado. Foda-se você! Não vamos falar sobre você. Vamos olhar pra esse lixo por um momento. Vislumbrar calmamente como se fosse um mar. - Tô com saudade do mar.

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- Na verdade é como se fosse um mar, só que diferente. Fico ansiosa. E então pela porta e pela janela do quarto explodem grandes jatos d’água que começam a encher todo o quarto. A água submerge rápido nossas pernas. Guarda roupa, cômoda e cama boiam. Damos as mãos, nos olhamos e sorrimos. A pequena diz, “vai ser difícil, vai doer”. Eu consinto. Juntas caímos pra trás, e quando totalmente submersas pela água tudo fica escuro, se apaga. -AAAAAAAAAAAAAAAAAH! Acordo assustada, toda encharcada num penhasco. O céu muito vermelho. A menininha está sentada ao meu lado. Estava esperando, com as roupinhas estranhamente secas. - Você tá bem, perguntou a menininha. - Onde a gente tá? - Vem cá. A menininha me puxa pela mão até a beira do penhasco. Olhamos pra baixo, e nesse exato instante em que meus olhos observam aquela paisagem inexplicável um forte cheiro de fezes toma conta daquele lugar estranho e isolado. Tenho ânsia, duas, três vezes. Mas consigo não vomitar. A menininha não tem mais voz de criança. Ela fala agora com voz adulta. Minha voz. - Ei, olha lá pra baixo. Você quer evitar, mas olha. Eu não olho.

- Olha! – grita a pequena. Observo o gigantesco mar de fezes logo abaixo. Olha que horrível, diz a menininha. Olha que horror! Esse monte de merda, essa pasta marrom e podre borbulhando, fedendo, invadindo e fermentando nossos pulmõezinhos! Chegamos onde queríamos!

Aí estão os

outros, diz gritando e rindo muito.

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Passo muito mal. Surgem então do fundo do mar de merda, se elevando acima da superfície, um grande telão que se coloca diante de nós. Muita merda escorre telão abaixo. Apesar de estar a uma certa altura do mar, as vezes as ondas podres são tão altas que atingem o telão em cheio e toda aquela bosta respinga e escorre por ele novamente. O telão liga. Imagens e vídeos de muitas pessoas que conheço começam a passar pelo telão. Momentos ruins. Em volume alto. Cada um mostrando o pior de si através das ações, do ego, das não ações. É horrível. E só pra relembrar, querida: hoje não é sobre você!, insiste comigo a criança. Observo atentamente a tela e penso que não queria ter conhecido aquelas pessoas. Não falo nada, mas a pequena criança sente tudo que se passa na minha cabeça. - Vai ser foder, imbecil! Não importa se você quer eles na sua vida ou não! Se você ama eles ou não! Não importa! É tão difícil assim você entender. Só observa, observa essa escória nojenta – rindo -, observa essa merda de lixo humano que você convive, conhece, ou que acha que conhece. Olha o que eles fazem, olha o que eles fizeram! – gargalhando. - Menininha, deixa eu ir embora! – tento implorar. A pequena balança a cabeça negativamente, e pede pra que eu comece a observar com atenção o quanto aquelas pessoas enganam,

mentem e machucam umas as outras sem qualquer receio dilaceram sentimentos. Sinto dificuldade pra respirar. A menininha cantarola pra mim músicas estranhas e começa a correr e pular em círculos pelo penhasco, sorrindo.

You always hurt the one you love, The one you shouldn't hurt at all.

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- Não to aguentando essa desgraça toda, essa merda, todo esse lixo!, pela primeira vez grito muito e então a menininha para por um rápido instante só pra me dizer “sinta como elas afetam você, mesmo quando não te fodem diretamente. Olha como elas preenchem você com toda a merda interior que elas cultivam com carinho e apreço dentro de si por meio do egoísmo, da inconsequência, da impulsividade. Perturbador. A sanidade ameaça sucumbir. E a menininha só está começando. Continua a cantarolar.

Meu riso é tão feliz contigo O meu melhor amigo É o meu amor

- Por favor, me tira daqui!

Só love, só love Só love, só love Só love, só love, só love, só love

- Me ajuda!

Lálálá lálálá lálálálálálá lálálá...

Acontece algo comigo, algo estranho. Caio no chão desolada, tremendo, cheia de ódio. Grito:

- essa maldita tela tela cheia de imagens imagens mais imagens imagens e vídeos das pessoas amigos amigas primos primas titios titias conhecidos ex namorados ex namoradinhas crushs todo mundo

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todos todo mundo se fodendo todo mundo todos agindo mal o volume das conversas dessa porra de telão conversas vão se misturando altas umas com as outras conversas e outras conversas e outras que surgem repentinamente na tela AAAAH cenas de sexo também

AAAHH

AAAAAAAHHHHH

AAAAAAAAAHHHHHHHHHH

traições

que

gostoso traições

OOHHHHHHHHH traições ISSO VAI VAI traições de confiança VAAAAAAAAAAAAAI

traições de amizades de afetos mentiras

mentiras mentiras mentiras mentiras mentiras omissão que também é uma mentira REPETE omissão que também é uma mentira REPETE quem oculta É MENTIROSO PRA CARALHO grito e caio nesse chão e quero vomitar vomitar vomitar vomitar muito e essa menina desgraçada eu mesma pequena não para de cantar e canta e canta um lindo canto QUE PORRA TÁ ACONTECENDO COMIGO um escolhendo não contar a verdade se ferindo machucando fodendo a si fodendo o outro si e outro O VOLUME DESSA DESGRAÇA TÁ MUITO ALTO tudo feito nas costas ataca pelas costas QUEBRA NO MEIO esse coração joga no chão e pisa destrói destrói FODE “ai desculpa foi sem querer” PORRAAAAAAAAAA me arrependi PORRAAAAAAAAAAAAAAAAAA não foi sem querer MENTIRA MENTIRA MENTIRA...

A criança observou calmamente todo meu surto. Cansada fico em

silêncio por um tempo. Ela me diz, baixinho: - Pula e afunda na merda. Eles tão todos no fundo já, bem lá no fundo. Todos podres e insaciáveis em destruir, em se auto destruir. Não querem melhorar. Não vão, e não querem. “A gente é assim mesmo, a gente erra, é natural”. Não, a gente não é assim mesmo. Não, não é natural. Então vai, pula!

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- Eu não quero. - É o caminho mais fácil, pula! - Não. - Vaaaaaaai! - Não não não não. - Erre, foda com alguém e diga “a gente é assim mesmo, a gente erra, é natural”, a criança ri. - Não não não não não não não não não não não não não não não não não não não sai daqui! - Pulaaaaaa! Me

levanto

cheia de emoção,

corpo todo rígido,

olhos

assustadoramente arregalados, toda vermelha. NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃ ÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃ ÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃ ÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃ ÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃ ÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃ ÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO

OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOOOO. Depois do grito, o silêncio. O telão se desliga e afunda novamente no mar de merda. Estou paralisada. A criança caminha lentamente em minha direção. Parece ter resgatado a serenidade de criança. Sorri,

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mas agora cordialmente. E fala, mas agora novamente com voz de criança: - Você conseguiu. Me abraça. Eu amo muito você, me diz a pequena. Amo você e só queria que as pessoas fossem melhores. Amo você e só queria que você percebesse que não pode fazer nada. E é isso. Não vamos falar sobre você. Hoje não, não quero. Hora de voltar – a criança fala agora com um ar muito acolhedor e meigo. Quero voltar. Ambas fechamos os olhos. Estou deitada na cama, dormindo. E eu mesma, criancinha, estou também de volta e imóvel no porta retrato espelhado.

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Lar, doce lar

-Rorschach

O homem estava parado, de pé, olhando para a entrada do cemitério. O cachorro estava sentado a seu lado, com a língua pra fora, arfando por conta do calor. Fazia tempo que eles andavam juntos. Quanto, eles não sabiam dizer. Nenhum dos dois costumava contar os dias. O homem respirou fundo e resolveu finalmente entrar. Os dois perambularam lentamente por entre as lápides. Eles gostaram dali, havia muitas árvores, e a sombra era fresca. O lugar era muito mais agradável que a rua caótica lá fora. Lá dentro, aqueles rostos estampados nas lápides não tinham o olhar julgador que os de fora mostravam. O homem se sentiu acolhido.

De longe, eles viram um casal, num canto distante do cemitério. Eles estavam de costas, abraçados, olhando para uma lápide bonita, branca. Ao se aproximar, o homem notou que ela era muito menor do que as outras. O cachorro não gostava muito de pessoas, ficou pra trás, observando ao longe. Se o homem precisasse, ai então ele iria. Quando ele chegou mais perto, os dois sentiram sua presença (ou talvez seu cheiro), e se viraram para olhar. O homem, porém, não olhava de volta para eles. Ele olhava fixamente a foto pregada na lápide. Era um bebê. Ele não podia dizer se menino ou menina, devia estar naquela idade em que nem sabia andar ainda. Olhando para aquele rostinho, veio à sua cabeça a lembrança de quando era muito pequeno, de quando a mãe o obrigava a ir na igreja, de quando via aquele menino estátua que diziam ser Jesus. Os irmãozinhos que conheceu nunca foram assim. Esse tinha o rosto limpo, as bochechas gordas e rosadas, parecia saudável.

O homem estudou o restante da lápide. Era muito bonita. Tinha letras e números que ele não sabia decifrar. Em cima, um vaso de flores também brancas. Depois de um tempo assim, finalmente se virou para o casal. Ambos o observavam com jeito apreensivo, ambos com os olhos ainda molhados, a mulher com o rosto vermelho. O homem, sem expressão nenhuma, abriu a boca e perguntou “Faz tempo?”. Os dois pareceram meio confusos, olharam para ele por um tempo, ele indicou com a cabeça a lápide a seu lado. O marido respondeu que faziam 4 anos. “Quatro anos....”, o homem repetiu. Parecia muito tempo. “Cês vêm todo ano?”. Dessa vez, foi a mulher que respondeu: “Todo ano? Nós a visitamos todas as semanas”. O homem,

então, notou que ela segurava um vaso de flores que começavam a murchar, e ele, um pano sujo. Por isso a lápide estava tão lustrosa. O homem assentiu, e ficou observando atentamente, com uma intensa curiosidade, os rostos dessas pessoas que vinham todas as semanas chorar no cemitério. Eles começaram a parecer cada vez mais desconfortáveis, não podiam encará-lo de volta. A mulher finalmente disse que estavam indo, ao mesmo tempo em que dava uma leve cutucada no marido com o cotovelo. Ele entendeu o sinal, sacou da carteira uma nota de dois e a entregou ao homem dizendo “tudo de bom”, e se foram, caminhando de mãos dadas.

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O homem se sentou, aproveitando a sombra de frente à lápide. Enquanto observava aquele

rostinho, as últimas palavras do marido ainda ecoavam em sua cabeça. “Tudo de bom... o que significa isso? Tudo de bom para mim? Tudo? Tudo de bom?”. O cachorro finalmente chegou e se deitou a seu lado, se preparando para tirar o cochilo da tarde. Mas o homem não podia dormir, ele se sentia hipnotizado pela foto. Ele considerava aquele bebê a pessoa mais sortuda que ele já havia conhecido. Ele não precisou crescer, não precisou chegar a pensar, não precisou enfrentar as durezas da vida. Ele chegou, viu o mundo, conheceu o colo aconchegante de sua mãe e o sorriso caloroso de seu pai, e se foi. E, meu deus, essas pessoas ainda choram por ele, toda semana! Toda semana. Eles vêm, eles limpam, e eles choram. Ninguém nunca chorou pelo homem, nem quando ele ainda era um menino. Nem quando ele chegou no hospital com o braço quebrado por alguém. Marginal, disseram. Mereceu. Ninguém chorou quando ele saiu de casa. Nunca. Nem mesmo ele. Sim, esse bebê tinha tanta sorte.

A tarde foi indo embora. O homem e o cachorro viram o guarda passando ao longe. Ele deveria fechar os portões agora. Com a chegada da noite, o homem se aconchegou ao lado do bebê. O mármore de sua lápide já estava se livrando do calor do sol, seria agradável passar a noite ali. Fresco. O homem foi acordado por um barulho de passos. A lua já estava alta no céu. Com a luz dos postes do lado de fora da rua, pôde diferenciar o cachorro que chegava, a alguns passos de distância. Ele abanava o rabo, muito feliz, como quem dizia “Olha, arrumei comida!”. De sua boca pendia uma galinha preta. Ele chegou mais perto, com a galinha balançando à sua frente, e a deixou ao lado do homem, que caiu na gargalhada. “Cachorro, você é doido mesmo, roubando a galinha da macumba, ha ha ha” O homem pegou a galinha, ela ainda estava fresca. Ele tentou se lembrar de quando foi a última vez que comeu uma carne livre daquele leve cheiro de podridão das coisas tiradas do lixo. Ele não contava os dias, mas pareciam muitos. Afagou a cabeça do cachorro, que ainda abanava o rabo, enquanto dizia: “Eles deram essa galinha pra gente que não pode comer. Acho que ninguém vai ligar se um homem e um cachorro encherem a barriga com ela. Você é um bom cachorro”. Ele tirou do bolso aquele velho canivete que nem tinha mais fio. Quando os dois voltaram a dormir, agora foi um sono muito mais gostoso, o estomago não estava mais doendo.

O homem foi de novo acordado pelo cachorro, que agora estava rosnando. Um guarda vinha se aproximando, com cara de poucos amigos. O homem se sentou. O guarda parou a uma distância segura do cachorro. Ele gritou para que o homem saísse antes que ele chamasse a polícia, ali não era lugar pra dormir. O homem não se mexeu. O guarda viu as penas da galinha ali perto, a única parte que sobrou. Ele abriu um sorrisinho maldoso “Comeu a galinha da macumba? Agora você tá amaldiçoado. Ha ha ha. Vamos! Sai logo daqui!”. O homem, 60

calmamente, respondeu:


“Sair daqui? Do que que cê tá falando? Aqui é minha casa.” Por tanto tempo com medo de

entrar. Agora ele entendia. “Cê não tá vendo que eu já tô morto? Cê não tá sentindo esse cheiro? Eu ainda tenho fome, mas eu já tô podre. Amaldiçoado? Eu fui amaldiçoado no dia que eu cheguei nesse mundo. Eu comi essa galinha porque essa galinha é minha, ela foi é uma benção. Porque agora eu vi, eu tô mais morto que qualquer um nesse cemitério. Eu já morri muito mais que eles. Muitas vezes. Eu morri quando meu pai foi embora, eu morri quando minha mãe quebrou meu braço, eu morri quando eu fui pra rua, eu morri quando eu roubei, eu morri quando a polícia me bateu, eu morro todo dia. Ninguém chorou nenhuma vez que eu morri, nem eu. As pessoas vêm chorar pra esse bebê. Eu tô muito mais morto que ele. Essa galinha é minha, ela era pra mim. Cê tá falando pra eu sair da MINHA casa. Cê tá entendendo?”

Assim que o homem parou de falar, o cachorro avançou, mostrando os dentes, rosnando, canalizando todo o sentimento do homem em seus olhos de fúria. O guarda vacilou. Deu um passo pra trás. “Vou chamar a polícia!”. Ele se foi. O homem se levantou, afagou a cabeça do cachorro e disse: “Vamo embora, cachorro. Agora eu já sei onde é nosso lugar. A gente não posso morar aqui ainda, mas logo logo a gente volta. Não vai demorar nada.” Ele se despediu do bebê com um aceno de cabeça. E assim, homem e cachorro, foram esperar o dia que poderiam voltar pra casa.

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O cara do jogo - Wild Child Eu nunca me considerei o típico trabalhador, aquele muito bem retratado, um zumbizão em uma multidão indo trabalhar um dia depois do outro, do mesmo jeito, funcionando, como dizem, que nem uma engrenagem do sistema. Eu sou diferente. Gosto do meu trabalho, tenho um horário flexível pra sair, não tem sites bloqueados e o melhor de tudo, na sexta-feira eu posso trabalhar de casa. Eu consegui conquistar isso pra mim, não é pouca coisa.

Indo pro trabalho, o ônibus para a uma quadra de distância e é sempre o mesmo horário quando eu passo andando, nem de perto nem de longe, diante de uma fabriqueta que faz sei lá o que. Na porta sempre tá o mesmo sujeito fumando o mesmo cigarrinho com aquela cara dele, é o cara do jogo. Todo dia o meu pensamento ao me aproximar é cravado no desejo daquele cara não estar lá, o que nunca acontece, mas valeria tanto a pena que eu não desisto. É o maior constrangimento atravessar aquela fumaceira, se eu olho ou não olho, se ele tá olhando ou não tá, se eu vou ter que cumprimentar, ou como vou. Sempre é chato de um jeito, não acostuma, é incrível. Só estou sendo sincero, mas eu já desejei que ele morresse, que a fabriqueta explodisse, porque não tem jeito, só ele ali já é motivo pra dar aquela piorada no meu dia. Mas deixa eu contar bem rápido o porquê dele ser o cara do jogo.

Vou dizer, eu nunca fui fã de futebol, eu gosto de coisas diferentes. Mas teve uma época que um pessoal do trabalho, uns caras bem mais ou menos que torcem pro mesmo time ruim, acho que já foi bom, mas hoje é ruim... ahn, ah, certo, o pessoal do trabalho tava numa agitação por causa desse campeonato que o tal time tava indo bem de novo. Ficaram insistindo pra eu ir no jogo, que ia completar a van, ia ser dahora. Com tanta insistência, decidi ir pra agradar, pra fazer

algo diferente. Muito bem, no meio daquele monte de fanático, daquela bagunça, tava ele lá, o tal cara. Não troquei uma palavra com ele, não vi ele fazer nada, se desse tudo certo eu ia esquecer dele em dois dias. Só que, na segunda feira esse cara me aparece fumando na porta da fabriqueta. Claro, demorei uns dias pra entender que era o cara que tava lá no jogo, mas ele ali todo dia foi fazendo a memória voltar, devagar. Quando eu percebi, eu já tava amarrado até o pescoço nessa história de olha não olha. Ele já era o maldito cara do jogo.

Tá, daí ontem, uma bela sexta-feira, no fim da tarde, eu bem tranquilo fui dar uma passada no

bar pra curtir aquela tranquilidade. Fui andando, porque, veja bem, era um bar bem perto da minha casa, nada a ver com o trabalho, com a fabriqueta. Cheguei lá, aquele monte de cara 62

tomando uma cervejinha, falando bobagem. Fui direto pedir uma dose de uísque, sabe como é.


Bem na hora que eu pensei que seria foda ficar ali, na minha, apreciando o movimento, me aparece o tal cara do jogo, com sua cerveja e a fumaceira, falando. Demorei pra sacar que era comigo, ou pra aceitar. Mas era isso mesmo, ele chegou cumprimentando, já sentando. Perguntou se eu me lembrava dele, mandei aquela “hmm, pode crer, você é o cara do jogo lá, certo? Claro, é o cara do jogo, iai?”. Ele disse que sempre me vê passando, não sabia se eu lembrava, sempre se perguntou porque eu nunca apareço na sexta. Eu, pois é, pois é. Perguntei do time, porque eu sinceramente não tinha outra coisa a fazer, e isso é engraçado né, pensa bem, eu podia estar pensando e fazendo o que eu quisesse ali, mas ele tava ali me obrigando a perguntar do time, da desgraça do time. Pior foi daí ele achar engraçado ser chamado de cara do jogo, veio dizer que nem sabia de time, que foi no tal jogo com o primo, pra completar a van. Meu, foda-se, é o cara do jogo sim.

Aí o cara resolve começar com uma história, não vai beber? Não vai fumar? O cigarro ali murchando no dedo e ele contando história. O pai do cara morreu faz uns anos e no leito de morte inventou de pedir aquelas promessas. Meu, de onde saiu esse pai no leito de morte? Francamente, cadê meu uisquinho no bar, cara? Que merda de história é essa? Daí vem a promessa, o velho tinha daqueles papagaios grandes que ficam décadas na família, e que era o maior companheiro, e que vivia falando coisa, e veio pedir que, quando o bicho morresse, era pra enterrar junto com ele. Então, peraí, o cara tá ali morrendo e o que passa na cabeça é isso mesmo? Papagaio, meu? Aí eu tive que virar o uísque de uma vez e pedir outro, já vi que ia ficar caro, e tudo porque? O mesmo cara do jogo, o mesmo de todo dia, o mesmo, agora dando aquela piorada na minha sexta-feira. Daí ele disse que prometeu, achou que tava tudo bem. E que agora o tal papagaio morreu também, e que ele acabou de descobrir que isso não pode não, não pode enterrar o bicho junto, e que o corpo tá lá. Ah, é, jura? Eu nunca ouvi falar disso, que palhaçada, que desrespeito é esse? Era só isso que faltava mesmo, daqui a pouco vão querer que bicho vire cidadão também. Desculpa, mas essa também me obrigou a pedir outro, esse cara tava ali pra acabar com a minha vida.

Começou com um papo difícil, de que que é a vida, que essas coisas a gente promete sem pensar, se achando o máximo, que claro que vai dar certo, tem que dar, que Deus tinha que fazer dar, e o que o tal do pai ia sentir, falou de coisa de passar eternidade angustiado, sem o companheiro. Eu é que tava passando uma eternidade angustiado ali. O cara ia metendo um assunto no rabo do outro, por respeito próprio eu parei de ouvir aquela merda, e o desgraçado nem percebeu. Eu pensava só no quanto aquilo era esculachado, justo comigo? Justo comigo? Eu digo que que Deus fica pensando ao invés de ajudar a enterrar a porra do papagaio falante, ele fica pensando em me foder, ele fica ali inventando a coisa mais ridícula que ele consegue 63


enquanto pensa na alegria que vai ser jogar aquela bucha na minha cara. Eu queria morrer só pra tirar a graça da cara de Deus, deixar ele sem o que fazer, igual esse vagabundo do jogo. Olha só tudo que esse cara fez comigo, ele me fez ficar ali me sentindo um idiota por querer levantar e ir embora, mas não ter coragem. Ele me fez ficar ponderando se valia mais a pena torcer pra ele sair dali logo e tentar aproveitar um pouco aquele momento, ou desistir e ir embora. Mas a cada segundo que passava eu me sentia mais idiota por não ter ido embora, mas também pela ideia de ir sem ter ido antes. Ou seja, o cara me jogou num beco sem saída. Na real, eu não conseguia mais era pensar direito, aí que eu lembrei a grana que eu ia ter que deixar naquele bar, sem ter nem sentido o gosto do uísque. Aí deu, levantei, interrompi o cara e falei que eu tinha que ir, eu queria que ele tivesse entendido a mensagem, mas o cara me abre um sorrisão pra dizer até segunda...

Eu fui embora transtornado, aquele até segunda ia trançando o caminho todo. Com uma frase o cara estragou meu fim de semana, eu to aqui pensando, não paro de pensar, que que eu faço? Essa segunda parece o dia do meu fuzilamento, eu tenho certeza que é isso que os caras sentem. Eu já pensei de tudo, pensei em sair do trabalho, mas não é justo, não. Não vai adiantar rezar pro cara morrer, né? To aqui pensando em ir na missa, reconciliar, pra poder pedir. Não, bobagem. Porra, seria bom pra mim e pra ele, se ele morresse antes de pagar a promessa. Será que o pai não pensou nisso não? Ele podia ter morrido antes de ter que enterrar o papagaio, não ia ser culpa dele. Eu tenho certeza que ele só nasceu pra me foder, não é possível, é tudo muito combinado. Fala sério, Deus, ia resolver o meu problema e o dele. Tudo o que eu mais quero é nunca mais ter que ver o cara do jogo. Em nome do pai, do filho, do espírito santo, amém.

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