O Circulo vol.2

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VOLUME II


Editorial O Círculo continua! Nossa primeira edição foi um sucesso em cumprir nossos objetivos, o primeiro passo de uma sentinela que guarda o trabalho e a sensibilidade de seres humanos interessados em criar, se renovar e projetar boas ideias. Esta sentinela vai ficar de prontidão, à espera de compartilhar toda essa força com as mentes que desejarem se conectar conosco.

Notamos que nossa segunda edição traz uma aura geral de preocupação e interesse com o que

nos torna os seres que somos, com como somos afetados e afetamos os outros em uma rede de interações que nos define. Dizemos algo a respeito do sofrimento que nos une em espécie, como seres falhos, sujeitos ao acaso, que não têm tanto controle a respeito do que fazem ou pensam, mas testemunham as consequências, inescapavelmente, até a morte, que é certa.

Esta edição conta com a colaboração de 10 autores, em 13 textos divididos em colunas, literatura e textos independentes. Estamos felizes em poder disponibilizar este conteúdo, com a possibilidade de fazer uma diferença positiva na vida de alguém.

Se o nosso projeto mexeu com você em algum sentido, deixe-nos a sua opinião, venha participar conosco. Para entrar em contato, envie um e-mail para: textos.ocirculo@gmail.com. Para enviar dúvidas, opiniões, sugestões, etc, com a possibilidade de se manter anônimo, utilize o endereço: www.mepergunte.com/ocirculo. Lá iremos manter um mural com os comentários enviados e nossas respostas.

Saudações,

O Círculo.

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Índice

ÍNDICE

- Filos e Sofia: A culpa é do azarado (Wild Child) 04. 10. Como queríamos demonstrar: Uma aposta no presídio (Wild Child)

12. Compondo um sentido: Leitura e escrita musical – partituras (Sol) 31. O que nos faz humanos: Dissonância cognitiva (Rorschach) 35. Desconsolos do Ego: O ego expansionista e a máquina de ideias (Mononoke) 43. Método científico: Capítulo I – Galvão (W. N. Centauro)

50. Emergência! (Wild Child) 56. Desintegrado (Ponta esquerda) 59. Onde está o amor (Selfish light)

61. Declaração de um amor absurdo (Wild Child) 64. Feliz noite de natal (Melancolírico) 67. A odisseia terrestre ditada num sonho (Cão da morte) 71. As lágrimas de uma mãe (Bubble gum)

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A seção Filos e Sofia é baseada no formato do livro de Julian Baggini, O Porco Filósofo (The pig that wants to be eaten), em que o autor apresenta uma cena que instiga uma reflexão e segue com ideias e considerações a respeito da situação, deixando perguntas em aberto para o leitor. Aqui, vamos sempre contar algo que aconteceu nas agitadas vidas dos amigos Filos e Sofia e depois levantar questões sobre algo de interessante ou perturbador que se esconde por trás dos acontecimentos.

2. A culpa é do azarado - Wild Child Filos e Sofia estavam sentados na beira de um lago esperando pelo pôr do sol, quando Sofia teve a ideia de tentar lançar pedrinhas para quicar ao longo da superfície da água. Logo, estavam os dois com um monte de pedrinhas ao lado, aperfeiçoando a técnica. Obcecados como são, depois de alguns minutos já conseguiam quicar com bastante sucesso e jogavam suas pedrinhas alternadamente, agitando a água e se divertindo. A brincadeira continuou até que, em um momento de inspiração técnica, Filos promoveu um lançamento de extrema quicância. A pedrinha percorreu um longo caminho através do lago e acabou, por um grande infortúnio, atingindo a cabeça de um pato que vivia sua vida sobre o lago. O pato virou-se de cabeça para baixo, mergulhando na escuridão eterna, enquanto seu corpo permanecia, boiando, à vista de Filos e Sofia. Ela se apressou em dizer: Meu deus, Filos, qual é o seu problema? Você matou o pato! Eu não. Foi você quem começou com essa história de jogar pedra. Eu não tenho culpa de ter ficado tão bom. Não tem nada a ver! Você é quem devia ter visto que o pato estava lá. Eu não atingi ninguém. Mas como eu saberia, Sofia? O que eu preciso fazer pra prever esse tipo de coisa? A culpa é mais sua por inventar essa brincadeira macabra. Você me aliciou. Eu só tive azar. Não, Filos. A brincadeira não é macabra. Desse jeito qualquer coisa poderia ser. É tudo uma questão de você prestar atenção no que faz e nas consequências disso. Tudo bem. Você está certa, eu fui descuidado. Agora eu sei o quão importante é sempre prestar atenção em tudo.

Sofia estranhou o tom de seu amigo ao proferir sua rendição. Transtornada com a morte do pato, sem querer adentrar em uma discussão vazia, resolveu deixar Filos e ir embora. No caminho de sua casa, já nas ruas da cidade, Sofia observava o trânsito e pensava, questionou-se o quanto aquelas pessoas estariam atentas ao que poderiam causar com suas dinâmicas. Pelo resto do dia, ficou obcecada com tudo que aconteceu e foi dormir pensando sobre isso.

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Ao acordar, Sofia viu que havia recebido uma mensagem de Filos. Ela continha a notícia de uma pessoa que atravessava distraída a rua e não percebeu que vinha um carro em sua direção. O motorista desviou bruscamente e provocou um acidente que não envolvia o distraído. Sofia ficou confusa com aquilo, mas não deu muita importância, por se tratar de um movimento de Filos. Um pouco deprimida, Sofia comia quando percebeu a chegada de uma segunda mensagem. Dessa vez, a notícia era de uma pessoa vegetariana que desmaiou em um restaurante, culpando um indivíduo pela forma com que comia churrasco em sua frente. Sofia então perdeu o apetite. Durante a tarde, após voltar do mercado e sentindo-se exausta por prestar tanta atenção em todas as variáveis que pensava ser relevantes, Sofia visualizou outra mensagem do amigo. Esta dizia que, segundo a teoria do caos, o bater de braços de Sofia podia causar um furacão na lagoa e matar muitos patos. Ela ficou irada com Filos por sua insensibilidade, mas também se tornou um pouco mais paranoica a respeito das consequências de seus movimentos. No fim do dia, após algumas outras mensagens e muito cansada de tanta cautela, Sofia estava estática em sua cama, deprimida com a bagunça do mundo e se sentindo incapaz de se ver livre do crime de provocar consequências aleatórias na realidade. Ela não via saída senão

permanecer ali, vivendo dentro da calmaria de seus pensamentos.

Questões Δ Como atribuir a culpa pela morte do pato e avaliar a discussão dos dois? Δ Como estabelecer o limite para a nossa responsabilidade? Δ Quais as condições dos nossos conceitos que envolvem causalidade poderem se ajustar à realidade?

É bastante comum as pessoas tomarem para si a lei moral de que todos devem fazer o que quiserem, desde que não interfiram na liberdade dos outros. Este é um resultado consequente de uma ótima intenção, porém é bem perigoso parar por aí. Na prática, conseguir não interferir na liberdade dos outros é mais importante do que querer (ou dizer que quer). E isso é algo que exige capacidade, conseguir em muitos casos não é uma tarefa simples. Então, como seguir adiante e evitar crimes e ofensas por negligência? Certamente não podemos fazer como Sofia e cessar nossa ação. Precisamos resolver o problema de, ao fazer algo normal, mesmo dentro da lei, a princípio não-violento, provocar algum dano sem tal intenção. Uma questão de aprimoramento moral.

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Uma boa medida de capacidade para evitar a violação do espaço alheio é o quanto você está ciente do espaço alheio e de como suas atitudes podem perturbá-lo, sugerindo que você treine a consciência, atenção (awareness) a respeito dos acontecimentos à sua volta. No caso, tanto Filos quanto Sofia poderiam ter notado os patos e raciocinado que suas pedras poderiam atingí-los; isso poderia alterar seu comportamento de forma a evitar o acidente. Aqui faço a observação de que esta discussão se motiva pelo interesse em proteger o espaço alheio, sem considerar os aspectos de dever, então neste sentido digo que seria bom que os dois conseguissem, por meio do uso de mais consciência e atenção, evitar a morte do pato. Esta atenção se estende não só para consequências diretas, mas para a criação de estruturas. Neste caso, o argumento de Filos sobre Sofia ter culpa por dar a ideia se baseia em um ponto correto, é bom que tenhamos noção das coisas que podem se desdobrar das situações que criamos para poder criar algo mais seguro, incluindo medidas de prevenção de problemas.

Mas espera, parece meio absurdo treinar consciência para evitar acertar patos enquanto se joga pedrinhas na lagoa, essa discussão também parece específica, né? Se você se importa com os patos, isso não é absurdo. Você pode se transtornar como Sofia, então é sempre bom pensar em medidas para evitar problemas. Esta discussão não é específica, pois sua generalização tangencia inúmeras interações e atividades que temos diariamente, desde prestar atenção na placa de pare até expressar suas opiniões em qualquer mídia. Se você não se importa assim com os patos, ou acha que outras coisas são mais importantes de se fazer ou se preocupar, é bom então delimitar quais os elementos que vão ser beneficiados pelo seu nível de atenção, e em

qual ordem de reverberação você vai parar de se importar. Esse dilema a respeito da plausibilidade da cautela é importante. Neste ponto, precisamos estabelecer duas coisas; quem, para você, possui uma liberdade a ser protegida, e o quão responsável você será por algo que ajudou a causar. Sobre o primeiro aspecto, você, por sua própria filosofia, pode querer considerar outros seres humanos, alguns seres humanos, outros animais, alguns animais, obras de arte, trabalhos, patrimônios, etc. e critérios utilizados podem variar entre capacidades para o sofrimento, desperdício de tempo e energia, conservação de bens, merecimento, significância, etc. Sobre o segundo aspecto, você pode responsabilizar também Sofia pelo pato, ou somente Filos, ou nenhum deles. Há como justificar qualquer postura, pois as respostas dependem de uma escolha de consideração. De qualquer forma, não espero que alguém chegue a responsabilizar Sofia pelo furacão mencionado por Filos, caso ele aconteça (nem por seu tatatataraneto ser um homicida, por exemplo). Algo assim é demasiadamente indireto em relação às atitudes dela e está totalmente fora de seu alcance fazer algo para impedir. Este exemplo explicita que devemos decidir onde está o limiar de responsabilidade sobre um eixo com extremos bem esdrúxulos. O furacão está obviamente fora de sua responsabilidade,

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espancar alguém está obviamente dentro de sua responsabilidade. O que acontece no meio? Enfim, arrisco dizer que, apesar de justificável, nenhuma resposta estará correta, em uma base objetiva, pois a pergunta soa incompatível com a natureza dos eventos. Discuto mais sobre isso adiante; por ora, preocupe-se apenas em escolher seu limiar. Agora faço uma observação a respeito da atitude relativa a um dano ocorrido. O pato morreu (aqui pontuo a excêntrica assimetria da morte e a razão pela qual a morte é um gigante moral), mas o que poderia ser diferente caso ele sobrevivesse? Filos e Sofia poderiam se preocupar em reverter o dano causado, cuidando pela saúde do pato. Este é um comportamento importante de ser desenvolvido em um mundo onde a imperfeição é tão imperativa. Nós necessariamente vamos machucar e ofender alguém, eventualmente, não importa o quão atenciosos sejamos. Algo positivo para quem deseja se importar em não causar esse dano também é exercitar comportamentos para reversão desse dano.

Outro aspecto interessante dessa discussão, que até agora foi dado como determinado, é como classificar o que é ou não um dano. No caso de matar ou ferir alguém, ou quebrar algo, ou mais geralmente promover um dano físico em um sistema, estamos todos de acordo em dizer que há dano. Mas como avaliar outros tipos de ofensas? Como nos casos de alguém alegar uma ofensa moral ou um sofrimento de teor mental. Nada impede alguém de exagerar, a ponto de chegarmos novamente a um extremo absurdo como o furacão: a sua existência, leitor, me ofende; não há nada que possa fazer para remediar, além de deixar de existir. A minha alegação obviamente não pode ser levada a sério, mesmo que eu esteja sendo sincero (o ponto aqui não é

que eu estou mentindo com essa alegação, mas que estou fazendo uma exigência descabida). Então, mesmo que eu realmente sofra por sua existência, todos vão concordar que não estou sendo razoável, o problema está comigo; cabe mais até mesmo inverter a situação, dizer que eu posso te ofender ao pedir sua aniquilação por nada; eu passo a ser a pessoa agressora. Precisamos novamente colocar um limiar em algum ponto dessa reta, cabe a você avaliar onde está o seu. A questão pode ser objetiva; assumindo que as ofensas alegadas são sinceras (ou seja, tirando de discussão casos de calúnias), podemos adotar critérios como impessoalidade da ofensa (não deveria importar quem me xinga), possibilidade de evitar a ofensa, condição do ofendido acabar se tornando agressor, etc. Esta questão é, sozinha, capaz de gerar uma grande discussão, mas é importante ressaltar especialmente um aspecto: discutir a realidade da ofensa de outra pessoa é algo bem delicado e nunca pode entrar na frente de nossa intenção de que ela se sinta bem; isso é particularmente necessário em casos de violências sistemáticas como preconceito, racismo, opressões a minorias sociais, etc. Essa discussão pode ser necessária em qualquer contexto, mas é bom lembrar que estar alheio ao que os outros sofrem facilmente leva a egoísmos e a atuações sociais em vias contrárias ao bem comum.

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Tendo todos estes pontos em mente, tente avaliar o conteúdo das mensagens de Filos; mas pense com calma, pois pode não ser tão simples quanto parece, avalie todos os pontos discutidos aplicados às situações e tente não ser uma pessoa tendenciosa. Tratando da resolução de conflitos e atribuições de culpa, por exemplo em elaboração de políticas penais, avaliar essas situações é sempre muito delicado. Imagine que o pato era na verdade uma pessoa, seria correto que Filos fosse condenado por um homicídio negligente? Questões de sorte devem influenciar em condenações, assim como a intenção influencia? O que Sofia fez de diferente para não ser condenada, além de não ser a pessoa que acertou? Nos antigos fuzilamentos de prisioneiros, vários executores atiravam no condenado, mas somente uma das armas estava carregada, e ninguém sabia qual. Isso também sugere que as pessoas se importam com a realização do ato em si, mas qual o sentido dessa preocupação? Se você não concorda que Filos seja responsabilizado nesse caso, concorda que isso seja um acidente natural,

como alguém morrer em um terremoto? É estranho pensar nisso, pois abre brechas na aplicação da medida (fica mais difícil tratar aquele caso do oficial da lei que mata um jovem por confundir um pirulito com um fuzil). Deveríamos aceitar que o azar pode determinar até isso? Existencialmente isso não é nada, pois o azar pode nos fazer morrer a qualquer momento; só que é diferente pensar que nosso azar na verdade faz com que outras pessoas decidam nos limitar, é diferente por dar a sensação de que algo poderia ser feito, de que não precisaria ser assim. De qualquer forma, é mais um motivo para treinar a atenção (e suplicar a atenção alheia, pois morrer por acaso costuma ser pior do que matar por acaso).

Por fim, vamos motivar uma análise externa à realidade humana, voltando ao ponto considerado anteriormente a respeito da natureza dos eventos. Este tipo de discussão sobre como agir, como considerar posturas morais, analisar justiça, culpa, etc, faz parte de uma esfera de discussões motivadas pela necessidade que temos de conceitualizar, para o nosso entendimento e controle, processos que estão acontecendo na realidade. Esta realidade objetiva é independente da realidade de nossas mentes e não deve nada aos nossos conceitos, ou seja, não deve se adequar ao que conceitualizamos, e não se adequa. Nós, por exemplo, gostaríamos de ver a justiça acontecendo, mas isso não é argumento para que ela aconteça. O que cabe a nós fazermos é cavar conceitos sobre essa realidade na tentativa de minimizar os azares a que estamos sujeitos, indo em direção à nossa utopia conceitual, já supondo que nossas realidades mentais são algo em si, dotadas de ação (o que já é incompatível em vários níveis objetivos com nossa montagem material). Tudo bem, é o que fazemos. Mas é comum encontrarmos problemas de compatibilidade que fazem nossas tentativas parecerem logicamente insatisfatórias. Por isso, talvez não seja interessante para nós, ao sermos humanos tendo que escolher como agir, querermos estar objetivamente corretos na hora de estabelecer esses limiares mencionados no

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texto; nessa hora cabe muito espaço para nossas escolhas pessoais, até porque, mesmo dentro da lógica pura nos envolvemos em espirais infinitas de questionamentos, sem nunca chegar à base da verdade. Ou seja, incompatibilidades entre nossa visão da realidade e a nossa natureza de fato são somente alguns dos nossos problemas. Quando olhamos mais de perto para o que compõe uma pessoa e o que determina seu comportamento, nossos conceitos e selfs não existem mais; talvez nosso único momento de azar tenha sido o nosso nascimento e se importar com a ordem seja apenas um fetiche fictício de porções complexas de matéria. Diante de uma realidade assim, você se importa com o que você e os outros realmente são? Se importa em criar uma conduta? Enfim, como você escolhe se responsabilizar ou responsabilizar os outros pelos seus problemas e os problemas do mundo? O que você escolhe fazer para controlar o seu impacto na realidade? Quanto você teme o azar?

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Wild Child

~Desafio DO MÊS PASSADO Primeiramente, como a soma é limitada (se somarmos todos os termos, a soma da pi ao quadrado sobre seis), cada vez que Loki joga, a soma tem um valor máximo (caso ele some todos). A soma também é maior que o valor dos números já somados até a jogada anterior, então temos que a soma é limitada a um intervalo (a,b) toda vez que Loki joga. Então, agora escolhemos uma enumeração dos racionais, como por exemplo a dada na edição anterior. Se o

primeiro racional da lista não está no intervalo (a,b], Loki examina o próximo, e assim por diante, até encontrar um racional que esteja dentro do intervalo (a,b). Na vez de Loki jogar, suponha que ele jogue sempre de modo a retirar esse primeiro racional da enumeração de dentro do intervalo de possibilidades da soma, escolhendo n suficientemente grande (quanto maior o n que ele escolhe, o intervalo de possibilidade se torna menor, se aproximando cada vez mais de "(b,b)"). Então, caso o limite seja um número racional, este número está na enumeração de Loki, e em algum momento ele será retirado do conjunto de possibilidades para a soma; absurdo. Portanto, jogando desta forma, Loki consegue garantir que o limite será irracional e vence.

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Uma aposta no presidio No texto desse mês, vamos apresentar um interessante problema de lógica para os leitores tentarem resolver ao longo do mês e também o resolveremos na próxima edição:

Um presídio está lotado com a capacidade máxima e, como uma medida de liberar espaço e aumentar a diversão naquele lugar monótono, os diretores decidiram fazer uma aposta com os detentos. N deles aceitaram a aposta que consistia no seguinte: todos os N seriam colocados em uma sala para discutir um plano ao longo de um dia, depois cada um iria voltar para sua respectiva cela e eles não mais se comunicariam (é um presídio especial com apenas um prisioneiro por cela). Então, uma vez por dia, qualquer um deles será chamado aleatoriamente para estar por uns instantes diante de um interruptor de fora das celas, inacessível aos outros prisioneiros. Diante do interruptor, ele poderia escolher acioná-lo, mudando seu estado de desligado

para

ligado

ou

vice-versa.

O

prisioneiro chamado

poderia

se

repetir,

independentemente dos dias anteriores (e o interruptor ia se manter como deixado). Então, a qualquer momento, um dos prisioneiros poderia se manifestar e dizer que tem certeza que todos os prisioneiros já foram chamados para estar diante do interruptor. Se ele acertar, todos

estão livres; se errar, todos serão fuzilados.

Se você fosse um dos prisioneiros que aceitasse a aposta, qual deveria ser o plano discutido com os outros prisioneiros no primeiro dia para que vocês garantissem a liberdade?

Obs1: Não importa que eles saibam a posição inicial do interruptor, tente justificar o porquê.

Obs2: Depois de resolver o problema, tente calcular a média de dias que os N prisioneiros ainda ficarão encarcerados, após o início da aposta.

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Compondo um Sentido - Sol No Compondo um Sentido anterior, apresentei a Escala Pitagórica e através desta procurei transmitir ao leitor a intuição de que qualquer composição musical pode ser descrita através de uma combinação específica de um conjunto fundamental de 12 notas musicais, como uma espécie de alfabeto musical. Antes de iniciar nosso estudo musical teórico propriamente dito, precisamos aprender um sistema simbólico que nos permita ler e escrever qualquer composição musical existente, utilizando nossas 12 “letras” (notas) mencionadas anteriormente. É por essa razão que este mês falarei sobre Partituras, desmistificando a irreal complexidade desta representação. Através do entendimento delas, obteremos condições de realizar uma troca de informação sonora completamente precisa em forma escrita.

Talvez exista alguma resistência em continuar a leitura deste texto, devido ao fato de que, geralmente, o primeiro contato com uma partitura nos transmita a sensação de se tratar de um sistema muito complicado de se compreender. Contudo, ao contrário do que aparentemente indica o nosso senso comum, a linguagem por trás das partituras é um sistema muito lógico e intuitivo de se escrever qualquer composição musical, de maneira que o reconhecimento de cada símbolo empregado começa a se tornar cada vez mais natural e eficiente à medida que familiarizarmos com esta estrutura.

Por fim, do meu ponto de vista, a maior motivação pode ser encontrada usando novamente a analogia com os idiomas: pense a respeito do que é aprender a ler e escrever em uma língua qualquer. Você se depara com um conjunto de símbolos (as letras) que designam determinadas funções sonoras fundamentais, e através das mais variadas combinações destes, podemos transmitir graficamente qualquer mensagem verbal com grande precisão informacional. Quando iniciamos o aprendizado, temos dificuldade de reconhecer alguns símbolos, desenhar outros e até mesmo compreender alguns agrupamentos silábicos. Mas com algum treino, nossa

mente começa a reconhecer diversos padrões existentes nesta estrutura, e com um pequeno progresso já nos enxergamos capazes de ler qualquer palavra (mesmo que ainda nunca a tenhamos visto) ou redigir textos “fritados” como esse que você está lendo.

Espero que tenha encontrado motivação necessária para prosseguir com a leitura. 12


Leitura e escrita musical: partituras Atualmente, a linguagem de partitura é o sistema de escrita musical padronizado mundialmente. Como veremos a seguir, através dela é possível representar todos os elementos de uma composição musical, sejam estes de natureza sonora e/ou rítmica. Além disso, esta linguagem é extremamente semelhante àquela utilizada para redigir composições mais antigas, como por exemplo as de Bach e Beethoven, o que nos permite hoje ter acesso a grande parte destas composições com uma imensa riqueza de detalhes.

A imagem a seguir mostra um manuscrito original da primeira Sonata de Bach (séculos XVII e XVIII) para violinos. Se você já se deparou com alguma partitura em algum momento da sua vida, esta imagem deve parecer familiar. Caso tenha curiosidade, você pode ouvir diversas interpretações desta música no YouTube.

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Ao término deste texto, você terá boas condições de compreender esta partitura, e poderá até mesmo se aventurar corajosamente a tentar reproduzi-la em seu instrumento.

As partituras são escritas utilizando o pentagrama ou pauta musical, que é formado por 5 linhas espaçadas igualmente entre si. Cada linha ou espaço representa uma nota da escala natural, isto é, as notas da escala diatônica que não possuem ascendentes, ou simplesmente, Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si. As linhas são contadas de baixo para cima e no sentido das notas mais graves para as mais agudas. Além disso, o pentagrama se estende infinitamente tanto para cima quanto para baixo, de maneira que se desejarmos representar uma nota muito grave ou muito aguda, basta traçar pequenas linhas horizontais no ponto desejado, determinando quantas linhas acima ou abaixo dos extremos do pentagrama a sua nota se encontra.

As notas serão identificadas com símbolos colocados no pentagrama em suas posições correspondentes. Dessa forma, se estabelecermos que a primeira linha do pentagrama é uma nota Dó, podemos representar graficamente tudo que foi dito até então da seguinte forma:

Através desta imagem, podemos intuir como se dá a representação de passagem de tempo na partitura: as notas devem ser lidas da esquerda para a direita, de maneira que o eixo vertical da partitura corresponda às notas enquanto o horizontal corresponde ao tempo. Em decorrência disso, para indicar que uma ou mais notas devem ser tocadas simultaneamente, basta colocar todas em uma mesma linha vertical. Caso duas notas estejam muito próximas (apenas um grau de diferença), podemos deslocar uma delas um pouco para a direita de maneira a facilitar a distinção das notas:

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É importante lembrar que o pentagrama por si só não determina a correspondência entre as linhas e espaços com as notas da escala natural. Para que o sistema funcione, é necessário atribuir ao menos uma nota específica a uma linha ou espaço do pentagrama, exatamente como

fiz dois parágrafos atrás, quando estabeleci que a primeira linha do pentagrama deveria ser a nota Dó. De maneira geral essas escolhas podem ser arbitrárias, mas algumas delas são muito mais utilizadas. Representaremos essas regras específicas através de símbolos que acompanharão o pentagrama no começo da partitura. As figuras que possuem esta função recebem o nome de Clave. As Claves mais frequentemente utilizadas são a Clave de Sol, a Clave de Fá e a Clave de Dó.

- A Clave de Sol:

Provavelmente o símbolo mais conhecido referente a notação musical de partituras, esta clave estabelece que a segunda linha da partitura corresponde a uma nota Sol. As claves também são responsáveis por determinar quão graves ou agudas são as notas que se encontram no pentagrama, de maneira que a primeira nota Dó representada na figura corresponde à frequência do Dó central de um Piano. - A Clave de Fa´

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Nesta clave, a quarta linha do pentagrama é designada para representar a nota Fá. Dessa forma, o Dó central do Piano é identificado pela última nota Dó da figura. Isto é, onde ‘termina’ a clave de Fá, começa a clave de Sol. É por esta razão, que a clave de Fá está associada a representação

de sons mais graves. Em partituras de piano, as notas referentes a mão esquerda e direita do pianista estão separadas em dois pentagramas, respectivamente com claves de Fá e Sol. A imagem a seguir mostra um pedaço de uma partitura de piano (não se preocupe com os elementos que você ainda não conhece, em breve você conhecerá todos).

- A Clave de do:´

Uma clave um pouco menos conhecida e raramente é utilizada. Ela determina que a linha do meio do pentagrama corresponde a uma nota Dó. Era mais utilizada antigamente para representar vocais humanos, mas atualmente se encontra quase que completamente substituída pelas claves de Fá e Sol.

Até o momento só representamos as notas da escala natural. Contudo, sabemos que existem outras 5 notas musicais, que podem ser interpretadas como ascendentes das notas da escala natural. Para representar um ascendente que se encontra entre duas notas, digamos Sol# (que se encontra entre as notas Sol e Lá da escala natural), basta acrescentar o símbolo de sustenido (#) à esquerda da nota de menor altura, ou o símbolo de bemol (b) à esquerda da nota de maior altura: 16


Quando a instrução de sustenido ou bemol é dada, aquela linha adquire esta propriedade até que algum sinal especifique que ela deve retornar à sua regra natural. Este é chamado de bequadro. A figura a seguir exemplifica esta ideia, na qual está representada uma nota Ré# seguida de uma nota Ré:

´

Podemos ainda indicar no início da música, quais linhas e espaços deverão representar permanentemente as notas ascendentes (sendo necessário o uso do bequadro para indicar a nota da escala natural) utilizando o que chamamos de armadura de clave. Nesta, devemos colocar do lado da clave os símbolos correspondentes às modificações desejadas, tanto nas linhas quanto nos espaços. As figuras a seguir ilustram o processo em uma Clave de Sol: na

primeira figura, as linhas de Dó e Fá com símbolo sofrem a alteração de sustenido, enquanto na segunda figura, a nota Si sofre uma alteração permanente de bemol.

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As armaduras também são muito úteis para reconhecer diversos padrões e simetrias na partitura,

mas

voltaremos

a

falar

sobre

isso

em

textos

futuros.

Agora já sabemos como representar as notas na partitura. Contudo, para ler e escrever uma

composição musical com precisão, é necessário conhecer mais algumas ‘letras’ deste alfabeto, que dizem a respeito do caráter temporal da música, isto é, da duração das notas e dos silêncios (também conhecido como ritmo). A linguagem de partitura é eficiente neste sentido, pois ao invés de estabelecer tempos absolutos para cada figura, as definições irão envolver somente a relação de proporção entre o símbolos. Assim, a identidade musical será estabelecida pelo conjunto de notas e a proporção entre os intervalos de tempo em que estas se encontram espaçadas. Em outras palavras, uma mesma música continuará perfeitamente reconhecível mesmo se tocada em velocidades diferentes. Caso sua experiência musical cotidiana não tenha oferecido elementos suficientes para você acreditar de maneira intuitiva no que estou dizendo, tente pensar na analogia de uma pessoa que faz uma alteração em sua própria aparência, como um corte de cabelo ou uma maquiagem: ela certamente se encontrará diferente após as alterações, mas todas as

´

características fundamentais que fazem esta pessoa continuar indistintamente reconhecível ainda se encontram lá. Antes de apresentar as figuras rítmicas de notas, é conveniente distinguir 3 partes de sua estrutura gráfica fundamental. Isso ajudará o nosso cérebro a associar os símbolos com o seu conceito. As partes são cabeça, haste e colchete:

Geralmente a escrita de uma música em uma partitura se utiliza de 7 unidades temporais, atribuindo uma figura rítmica de notas (duração da nota que será tocada) e uma figura rítmica

de pausa (duração do silêncio) para cada uma destas unidades. Identificamos as unidades com os números 1,2,4,8,16,32 e 64. 18


1. SEMIBREVE

Esta figura rítmica possui a maior duração temporal. Sua figura de nota corresponde a apenas uma cabeça sem preenchimento. A pausa é representada por um traço orientado para baixo, na quinta linha da partitura.

´ 2. MINIMA

´

Possui metade da duração da semibreve. A figura de nota corresponde a uma cabeça sem preenchimento com uma haste. Convencionamos colocar as hastes orientadas para cima e a direita da cabeça quando esta se encontra na linha média do pentagrama ou abaixo da mesma. Caso contrário, colocamos a haste orientada para baixo e do lado esquerdo da cabeça. A pausa corresponde a um traço como o anterior, contudo orientado para cima e localizado na

terceira linha do pentagrama.

´ 4. seMINIMA

Como sugere o nome, possui metade da duração da mínima e consequentemente um quarto da duração da semibreve. Sua figura rítmica de nota corresponde a uma cabeça preenchida e uma haste. 19


8. colcheia

A colcheia possui uma cabeça preenchida, uma haste e um colchete. Possui 1/8 da duração de uma semibreve. Esta figura permite juntar os colchetes de colcheias sucessivas, formando assim um grupo de colcheias, que podem facilitar a leitura. A figura a seguir mostra alguns exemplos de agrupamento.

´

16. semicolcheia

Corresponde a 1/16 da duração de uma semibreve, ou metade de uma colcheia. As figuras seguintes apenas irão adicionar mais colchetes em suas hastes, tanto nas figuras de nota quanto nas de pausa. A partir daqui, todos os símbolos podem ser conectados por seus colchetes, formando qualquer agrupamento de figuras desejado.

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32. fusa

A fusa possui 1/32 da duração de uma semibreve, e suas figuras rítmicas possuem três colchetes.

64. semifusa

´

E por fim, a semifusa é a figura de menor duração, e possui 1/64 da duração de uma semibreve. A imagem a seguir ilustra a proporção entre as figuras rítmicas de nota. Imagine que cada um dos pentagramas a seguir corresponde à mesma passagem de tempo, digamos 64 segundos. Se

estabelecermos que este valor corresponde a uma semibreve, teremos:

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Dispomos agora de praticamente todos os elementos para ler partituras. Só precisamos adicionar as referências de leitura temporal. Assim como as notas nas linhas e espaços não estão completamente determinadas sem a adição de uma clave, o valor temporal dos símbolos também não está completamente definido se não adicionarmos um compasso.

Compasso ´ O compasso tem a função de dividir a música em blocos, levando em conta o ritmo, as repetições e a intensidade da mesma. Quando vemos algum artista contando “um,dois, três,quatro” antes de começar a tocar alguma música, ou dançarinos contando os passos de uma dança repetidamente com “um,dois,três,um,dois,três”, na verdade estamos observando a contagem das batidas de um compasso, as quais chamamos de tempo. Podemos incluir um compasso na nossa partitura colocando dois números no início da mesma, um em cima do outro e do lado direito da clave. O algarismo de cima determina o número de tempos de cada bloco de notas enquanto o número de baixo define qual figura de nota irá corresponder a uma unidade de tempo. O fim de um compasso é indicado por uma barra vertical.

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Podemos estabelecer um compasso para nossa música contando um determinado número de batidas consecutivas separadas por um mesmo intervalo de tempo. O compasso mais conhecido é o 4/4 (lê-se quatro por quatro), que segundo nossa definição, estabelece que cada compasso possuirá 4 tempos e que a semínima será a figura que corresponderá a uma unidade de tempo. Veja possíveis exemplos do preenchimento de um compasso 4/4:

Nesta figura, indiquei cada um dos compassos com números de 1 a 6. Vamos verificar que cada um dos compassos está preenchido com exatamente 4 tempos (pois é isso que determina um compasso 4/Y). No compasso 4/4 a unidade de tempo corresponde à figura rítmica de nota 4, isto é, uma semínima. Dessa forma, vemos através do compasso número 1, por exemplo, que são necessárias 4 semínimas para preencher o mesmo, pois 1+1+1+1 = 4.

O próximo compasso possui somente uma semibreve, mas como já dito anteriormente, esta possui uma duração 4 vezes maior que a de uma semínima, de maneira que apenas uma semibreve será necessária para ocupar toda a duração de tempo do compasso. O terceiro compasso possui uma nota na sequência de um acorde (isto é, um conjunto de notas tocadas simultaneamente). As figuras rítmicas são mínimas, de maneira que são necessárias apenas duas destas para ocupar os 4 tempos do compasso. Assim, no compasso número 3, teremos uma nota tocada por 2 tempos seguida de um acorde, o qual também irá durar 2 tempos.

No quarto compasso misturei um pouco mais as figuras. Temos em sequência uma nota colcheia (1/2 tempo), uma nota mínima (2 tempos) uma pausa colcheia (1/2 tempo) e por fim uma nota semínima (1 tempo), de maneira que 1/2 + 2 + 1/2 + 1 = 4, como deveria ser. Assim, neste compasso, tocamos uma nota com duração de meio tempo, seguida de outra que de 2 tempos, esperamos mais meio tempo para só então tocar a última nota do compasso, que irá durar 1 tempo. Como os símbolos sustenido, bemol e bequadro apresentados anteriormente não são de natureza rítmica, temos que estes não influenciam na contagem dos tempos do compasso. Isto pode ser verificado observando o compasso de número 5, no qual identificamos dois grupos de três notas colcheias separadas por uma pausa semínima. Assim, temos simplesmente que 3.(1/2) + 1 + 3.(1/2) = 4. 23


Por fim, no último compasso não há nada de novo: é exatamente como o compasso número 2, contudo ao invés do acorde, colocamos uma pausa semínima, de maneira que 2 + 2 = 4.

Outro compasso bastante utilizado, principalmente em valsas é o 3/4. Este estabelece que a semínima continua sendo a unidade de tempo, mas cada compasso possuirá somente 3 tempos. A figura a seguir mostra alguns exemplos.

Como anteriormente, a soma das durações de cada símbolo dentro de cada compasso deve corresponder ao número de tempos do compasso, que neste caso corresponde a 3. Desta forma, como a semínima continua sendo unidade básica de tempo (compasso X/4), temos que apenas 3 destas são necessárias para preencher um compasso 3/4 (1+1+1 = 3) , como podemos ver no compasso número 1 da figura. No segundo compasso da figura, existem dois acordes, um com duração de uma mínima (2 tempos) e outro com duração de uma semínima. Assim 2 + 1 = 3. O terceiro compasso possui uma mistura de diversas figuras rítmicas: uma nota semicolcheia (1/4 de tempo), uma pausa semicolcheia, uma nota semínima (1 tempo), uma pausa colcheia (1/2 tempo) e outra nota semínima, de maneira que 1/4 + 1/4 + 1 + 1/2 + 1 = 3. Os compassos 4, 5 e 6 devem ficar como exercício para você treinar a contagem dos tempos e memorizar melhor as figuras rítmicas. Vamos analisar um último compasso, para entender exatamente a diferença entre o número de tempos do compasso e a unidade de tempo que usaremos para contar os mesmos.

Veja mais um exemplo:

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Neste temos um compasso 3/8 , isto é, ele possui 3 tempos e cada unidade de tempo irá responder agora a figura rítmica 8, isto é, a colcheia. Dessa forma, cabem no máximo três colcheias dentro de cada compasso, o que está representado pelo compasso número 1. Além disso, como a semínima equivale ao dobro de tempo de uma colcheia, de maneira que uma colcheia e uma semínima somam 3 tempos. Em outras palavras, cada compasso 3/8 possui metade da duração de um 3/4 (e por isso a notação de frações é conveniente). Fica a encargo do leitor verificar que os outros 5 compassos desta figura somam todos 3 tempos. Uma vez que que a escolha de um compasso é feita, a mesma regra será aplicada a toda partitura, a menos que você enuncie a alteração dos compassos seguintes no meio da mesma. Os próximos compassos após a alteração devem seguir esta última regra. O processo está ilustrado nos compassos da figura a seguir.

A duração efetiva de cada nota recebe o nome de ‘andamento’ e simplesmente determina a velocidade com que as notas serão tocadas. Por exemplo, em um compasso 4/4, uma música executada na velocidade de 60 batidas por minuto (60 bpm), determina que uma batida (um tempo) ocorre a cada 1 segundo. Como neste compasso a unidade de tempo é representada por uma semínima, temos que a duração desta figura equivale a 1 segundo, a da mínima 2 segundos e assim por diante. O andamento em uma partitura geralmente é indicado em seu início, colocando-se o valor em bpm de uma figura rítmica acima da quinta linha do

pentagrama:

Como já mencionei anteriormente, a verdadeira identidade da música se encontra na diferença relativa de tempo entre as notas. Por isso é possível que você encontre muitas partituras sem estabelecer um andamento, deixando a critério do leitor executar a música na velocidade que desejar. 25


É importante notar que até agora, as figuras rítmicas foram definidas para determinar somente frações pares de um mesmo intervalo de tempo, isto é, não possuímos um símbolo que possa representar um intervalo de 3 tempos. Em um compasso 4/4, por exemplo, teríamos de representar 3 tempos com pelo menos duas figuras, que seriam uma mínima mais uma semínima. Para resolver este problema, introduzimos o conceito do ponto de aumento. O ponto de aumento é representado com um ponto do lado direito da figura (seja de som ou de pausa) e seu efeito corresponde a adição de metade da duração da própria nota. Dessa forma, podemos representar 3 tempos em um compasso 4/4 simplesmente como uma mínima pontuada, isto é, uma mínima com um ponto de aumento. Veja as figuras a seguir:

Vale ressaltar que na figura acima a igualdade somente é válida no que diz respeito à duração das notas, pois duas figuras de nota em sequência indicam que a nota deve ser tocada duas vezes, enquanto uma figura pontuada indica que a nota deve ser tocada apenas uma vez e

ressoar por mais alguns instantes. Com esse elemento, ganhamos mais liberdade para trabalhar os tempos dentro de um compasso. Verifique na figura a seguir que todos os compassos possuem 4 tempos:

Existe ainda mais um último elemento para tornar a escrita através de compassos completa. Note o que ocorre quando colocamos uma semibreve após três semínimas dentro de um mesmo compasso 4/4 :

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Como três semínimas somam o valor de 3 tempos em um compasso 4/4, ao adicionar uma semibreve (que possui 4 tempos) estamos excedendo o limite do compasso em mais 3 tempos. Para ajustar isso, devemos ‘empurrar’ o excesso de tempo para o próximo compasso. Em outras palavras: a nota será tocada no primeiro tempo de um compasso e só irá se encerrar três tempos depois no compasso seguinte. Representamos essa continuidade por um arco ligando a mesma nota de compassos distintos. Esse símbolo se chama “ligadura de duração”, e só pode ser feita entre duas notas de mesma altura consecutivas. Vale lembrar que as fórmulas de compasso são subjetivas, e simplesmente refletem uma escolha de organização dos tempos de uma composição. Qualquer escolha é válida e qualquer música pode ser escrita em qualquer compasso. A ideia de definir os compassos é escolher uma lente para ouvir a música que faça esta soar mais lógica em algum aspecto. Existem composições em que ocorrem mais de 100 variações de compassos para esta se tornar ‘lógica’.

Para exemplificar essa liberdade de escolha, observe o seguinte compasso 5/4:

Podemos reescrevê-lo como um compasso 4/4:

Como um compasso 3/4:

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Ou até mesmo como uma composição de um compasso 2/4 com um compasso 3/4:

E muitas outras possibilidades que você desejar explorar.

Essa liberdade em se explorar os compassos sugere separá-los em dois tipos: os simples e os compostos. Os compassos simples geralmente são definidos como sendo os compassos

fundamentais, como os compassos binário 2/4 e ternário 3/4. Algumas definições também levam o compasso quaternário 4/4 em consideração, apesar deste poder ser separado em dois compassos 2/4. Os compassos compostos são compassos derivados da combinação de compassos simples, como por exemplo os compassos 5/4, 6/8, 12/8 entre muitos outros. Essas divisões geralmente ajudam a interpretar o ritmo da melodia, pois procuram avaliar a intensidade das pulsações de uma composição musical. Por exemplo, o compasso 2/4 sugere um ritmo com duas batidas, uma fraca e uma forte. Já o compasso 4/4 sugere um ritmo de 4 batidas, sendo a primeira forte, segunda e quarta fracas e a terceira de intensidade

intermediária. Enfim, agora que a linguagem está estabelecida, ela pode adquirir complexidade infinita, da mesma maneira que as palavras podem produzir receitas de bolo ou textos de Kant. Ainda existem muitos símbolos que eu não apresentei aqui, como por exemplo o Rittornello, que tem a função de indicar os pontos finais e iniciais de um trecho da música que deve ser repetido uma vez:

Aplicado diretamente na partitura:

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Deixarei para mencionar outros símbolos à medida que for necessário utilizá-los em textos futuros. Contudo, caso seja necessário, não exite em pesquisar. Acredito que você já tem base para poder olhar para uma partitura e ter alguma ideia do que pode estar sendo representado ali. Como exercício final, vou a partitura do riff inicial da música ‘Sweet Child O’ Mine’ da banda Guns n’ Roses (fazendo uma pesquisa no google, concluí que este certamente se encontra entre os riffs mais conhecidos do mundo) para você acompanhar junto com a música original (são os primeiros 46 segundos da música). Identifique pela

partitura quais notas estão sendo tocadas, e tente contar o compasso utilizando 4 batidas, se preocupando e encaixar a primeira e última nota de cada compasso na primeira e na última batida. Tente também fazer a música encaixar em outros compassos, como por exemplo 2/4, 3/4, 4/8 e tente perceber se existe algum que soe mais natural que outro. Fique à vontade para explorar todas as dimensões que desejar com o seu novo alfabeto.

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Conclusão

Meu objetivo é que você chegue nesse ponto do texto tendo uma boa ideia de como é ler uma partitura. Não espere ser expert no assunto pois se tudo deu certo você acabou de ser alfabetizado, e portanto ainda será necessário muito treino para se ficar realmente íntimo do sistema de escrita musical. Mas espero ter conseguido diminuir sua estranheza com esses símbolos. E lembre-se que é como se você tivesse aprendido a ler e escrever um idioma, mas

ainda não fala fluentemente o mesmo, por isso é natural que você não consiga reproduzir qualquer partitura em um instrumento.

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o que nos faz humanos

O objetivo desta coluna é mostrar como são feitos experimentos em psicologia, assuntos interessantes que estão sendo estudados, e reflexões que podem ser feitas a respeito deles. A psicologia hoje é dividida em diferentes abordagens, que não passam de diferentes modos de interpretar os fenômenos psicológicos e intervir sobre eles. Aqui, não vamos usar nenhuma dessas abordagens, mas fazer uma interpretação independente de experimentos realizados pelas diferentes áreas.

-Rorschach

DISSONÂNCIA COGNITIVA No texto desta coluna, na última edição, escrevi sobre escolhas cegas. O texto de agora vai falar sobre um fenômeno muito complementar, chamado dissonância cognitiva. Você lembra do exemplo do Jerry? Bom, o que faz com que ele não possa ter certeza se colocou a camiseta ao contrário ou não é o fato de ter feito uma escolha cega, não ter prestado atenção e não ter usado critérios na hora de tomar a decisão. Mas o que faz com que ele acredite realmente ter escolhido e justifique essa escolha que ele não fez é o assunto do presente texto.

Segundo Leon Festinger, quem primeiro usou o termo, dissonância cognitiva é o sentimento negativo de um indivíduo que resulta da experiência de duas cognições diferentes, conflitantes, sendo que cognição é definida como qualquer representação mental, como uma atitude, crença, comportamento ou conhecimento do próprio comportamento. Para reduzir a magnitude desse

sentimento, a pessoa tende a pender para um dos lados opostos, alterando uma das cognições ou sua importância. Por exemplo, se eu menti, tenho uma memória e uma atitude conflitantes, o que pode causar desconforto. Para diminuí-lo posso acreditar que a mentira não foi tão grave assim (diminuir a intensidade) ou alterar minha memória sobre o ocorrido e passar a acreditar na minha mentira (alterar a cognição). Acredito que tudo ficará mais claro com o experimento realizado por Festinger e Carlsmith:

Os sujeitos acreditavam que estavam participando de um experimento sobre “medidas de

desempenho”. Eles chegavam individualmente a uma sala de espera, onde eram informados de que o procedimento duraria aproximadamente 1 hora e que depois eles teriam que realizar uma entrevista sobre o procedimento. Então, eles eram encaminhados para uma outra sala, onde realizariam as seguintes tarefas: por meia hora eles deveriam retirar objetos de uma bandeja para em seguida recolocá-los; na meia hora seguinte, eles deveriam girar pinos colocados em um tabuleiro 90º em sentido horário. Enquanto eles faziam isso, um experimentador observava em silêncio enquanto fazia anotações. Pareceu horrível? Bom, essa era a intenção. Os pesquisadores planejaram uma hora de tarefas maçantes das quais ninguém poderia ter uma

opinião positiva, porque depois que o participante passava por isso é que o experimento realmente começava.

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Os participantes foram divididos em 3 grupos. O primeiro, o controle, ao terminar as atividades, seguia direto para a entrevista. Para os outros 2, o pesquisador contava uma história, como se estivesse explicando o experimento; ele dizia que o procedimento contava com duas condições, o grupo A, que o realizava sem informações, e o grupo B, que receberia uma descrição do experimento previamente. Isso não era verdade, mas era parte necessária do experimento, já que a seguir o experimentador dizia que a pessoa que normalmente passava essas informações ao próximo participante era um estudante universitário que não pôde comparecer no dia, e pedia ajuda do estudante que ali estava, oferecendo um pagamento que poderia ser de 1 ou 20 dólares (assim fazendo a divisão dos dois grupos experimentais). O sujeito que aceitasse recebia o texto que deveria dizer à pessoa que estava esperando, que dizia “Foi muito agradável, eu me diverti bastante, eu gostei do que fiz, foi intrigante, foi entusiasmante”,e seguia para a sala de espera onde deveria executar a tarefa. Depois disso, eles seguiam para a entrevista.

Pode parecer um pouco complicado, não é? Bom, na verdade o experimento era simples: os experimentadores faziam os participantes passarem por um procedimento extremamente chato, e depois faziam com que dissessem à outra pessoa que na verdade ele era muito divertido, em troca de um pagamento. O que eles queriam verificar com isso era se a opinião dos sujeitos se manteria após serem expostos à condição experimental, e, para isso, eles faziam as seguintes perguntas na entrevista:

• As tarefas foram interessantes e agradáveis? • O quanto você aprendeu sobre sua habilidade de desempenhar tais tarefas? • Você acredita que o experimento e as tarefas estavam medindo alguma coisa de importante? • Você teria vontade de participar em outro experimento similar?

Resultado: o grupo que recebeu 1 dólar como pagamento teve uma avaliação significativamente mais favorável ao experimento nas perguntas 1 e 4 quando comparado aos outros grupos. Isso quer dizer que eles classificaram o procedimento como mais divertido e que teriam mais

vontade de participar de algo similar. Mas o que explica isso?

Bom, os dois grupos que mentiram sobre a tarefa experienciaram dissonância cognitiva. Eles descreveram como positiva (comportamento) uma tarefa que na verdade acreditavam ser chata (atitude), ou seja, experienciaram cognições opostas. Mas então o que explica a diferença no resultado entre os dois grupos? É simples: a justificativa. O grupo que recebeu 20 dólares estava mais tranquilo quanto a porquê mentir, afinal, eles receberam bastante dinheiro, valia a pena. Já 1 dólar talvez não fosse dinheiro suficiente para deixar uma pessoa animada para o que poderia 32


ser uma das horas mais entediantes de suas vidas, mas eles o fizeram mesmo assim, e isso causa desconforto. É importante ressaltar que esse raciocínio não é feito de forma consciente (mais adiante no texto falaremos sobre possíveis explicações para a dissonância), e assim, para amenizar esse sentimento negativo, as pessoas acabaram pendendo para o lado do comportamento, passando assim a realmente avaliar o procedimento como mais positivo.

Existem alguns modelos que tentam explicar como a dissonância ocorre. Eles são, de certa

maneira, parecidos, e só a introspecção pode dizer o que está acontecendo com cada pessoa (que pode inclusive ser uma mistura). Para tentar deixar mais claro, vou dar exemplos de pensamentos que poderiam ocorrer com nossos personagens.

1. Modelo de auto-consistência Quando um indivíduo age de uma maneira que conflita com o que ele acredita de si mesmo. A dissonância vem no sentido de gerar um sentimento de inconsistência. • Quanto maior a autoestima, mais fácil é minimizar o desconforto. • É normal que as pessoas que enfrentam esse tipo de dissonância aumentem seu comprometimento com a escolha inicial • Jerry: “Mas eu sempre me visto do jeito certo, não é possível que eu tenha errado, com certeza eu quis vestir a camiseta ao contrário, sim, eu gosto de me vestir assim!” • Participante: “Eu não costumo mentir para as pessoas, eu não gosto de enganar os outros, mas eu não estou mentindo, o experimento foi realmente interessante, sim, eu gostei de participar desse experimento!”

2. Modelo de auto-afirmação Quando um indivíduo age de maneira que poderia ferir seu auto-conceito positivo, sua autoestima. • As pessoas que enfrentam esse tipo de dissonância tendem a diminuir a importância da cognição destoante. • Participante: “Nossa, esse procedimento foi realmente chato, e eu ainda vou ter que falar pra essa pessoa que foi legal… mas que diferença vai fazer? Talvez até seja bom, pelo menos no começo ele vai estar animado. É, não tem problema nenhum mesmo.”

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3. Modelo de consequências aversivas Quando um indivíduo acredita que suas ações ou atitudes causam consequências negativas. • Jerry: “Minha camiseta está ao contrário? Mas assim todo mundo vai achar que eu sou um idiota! Não pode ser, com certeza eu coloquei de propósito. Sim, eu escolhi isso, usar camiseta ao contrário é muito legal.” • Participante: “Nossa, eu vou mentir pra essa pessoa e quando ela entrar lá vai ser a maior decepção! Que coisa horrível. Mas, ah, na verdade não é tão chato assim, até que eu gostei de participar. É, o procedimento foi legal sim…”

Normalmente, a cognição menos resistente é a que é alterada. Por exemplo, é mais fácil mudar uma atitude sobre uma memória do que a memória em si; é mais fácil mudar uma crença sobre alguma coisa externa do que uma crença sobre si mesmo. De novo, essas coisas não acontecem de forma consciente. Alguma coisa acontece na nossa cabeça de forma que nós não percebemos

a mudança, não é como se pensássemos “Ah, claro, a 5 minutos atrás eu acreditava em uma coisa, e agora acredito no oposto simplesmente porque sim, que normal…”. E, de novo, para que esse clique aconteça é necessário muita introspecção.

Conhecendo o fenômeno da dissonância cognitiva podemos ter mais controle sobre nós mesmos, podemos ser mais conscientes. Treinando para identificar momentos em que é provável que experienciemos algo assim, podemos aceitar esse desconforto, lidar com ele de forma racional, e não automática. Existem estudos que mostram que pessoas que sabem lidar melhor com responsabilidades também lidam melhor com a dissonância, impedindo que ela seja exterminada de forma inconsciente antes de ser racionalizada. Aprender a lidar com esse fenômeno não é só uma questão de auto-conhecimento, é uma questão de honestidade.

Referência:

Festinger, L., & Carlsmith, J. M. (1959). Cognitive consequences of forced compliance. Journal of Abnormal and Social Psychology, 58, 203-210.

Hinojosa, A. S., Gardner, W. L., Walker, H. J., Cogliser, C., & Gullifor, D. (2016). A Review of Cognitive Dissonance Theory in Management Research Opportunities for Further Development. Journal of Management, 0149206316668236. 34


Desconsolos O ego expansionista e a máquina de ideias do Ego -Mononoke Na edição anterior da coluna, Mononoke procurou introduzir Desconsolos do Ego atraindo a atenção para algumas características do nosso objeto de estudo, o ego. Falou do ego expansionista, por exemplo. Quem presente escreve essa coluna, também Mononoke por assinatura, quer rever algumas concepções lá sugeridas.

Incomoda-me um pouco na descrição de Mononoke, por exemplo, o uso do conceito de expansionismo para falar de um estado derivado do ego, que é o egocentrismo. Inicialmente, essa aproximação entre expansionismo e egocentrismo me parece uma contradição em termos, afinal, como pode algo que, por definição, se expande, ser comparado a algo que, por definição, se centraliza?

Tomarei a iniciativa, aqui, de estender essa noção a fim de compreendermos melhor o que Mononoke não deixou muito claro.

(Disso automaticamente surgirá o assunto dessa coluna: o ego expansionista e seus curiosos mecanismos, os replicadores).

De fato não há obviedade nenhuma entre egocentrismo e expansão. Se pensarmos que uma pessoa egocêntrica é uma pessoa que enxerga com certa nebulosidade aquilo que está a sua volta, consciente ou inconscientemente ignorando outras pessoas e os problemas do mundo, então a única coisa que essa pessoa não faz é expandir-se.

O raciocínio de Mononoke foi menos influenciado pelo conceito de expansionismo que o de egocentrismo, porque o egocêntrico, em algum sentido, impõe-se sobre o mundo com sua afirmação de “eu”. Em situações que claramente não cabem ao sujeito egocêntrico, ele tende a se colocar, a ver ali uma oportunidade de afirmação - “eu!”.

Um exemplo prático é oferecido pelo sociólogo estadunidense Charles Derber, que escreveu sobre a manifestação do egocentrismo em conversas cotidianas, identificando o que ele chama 35


de “narcisista conversacional” e distinguindo entre dois fenômenos recorrentes em conversas, a

“resposta de desfoque” e a “resposta de suporte”, cujas diferenças ficam evidentes abaixo:

João: Tô com bastante fome. Maria: Ah, eu acabei de comer. (resposta de desfoque) João: Tô com bastante fome. Maria: Quando foi a última vez que você comeu? (resposta de suporte)

João: Nossa, eu tô muito chateado com o Bruno.

Maria: É, eu também ando sentindo o mesmo por ele. (resposta de desfoque)

João: Nossa, eu tô muito chateado com o Bruno. Maria: Por quê? o que tem acontecido entre vocês dois? (resposta de suporte)

Nos exemplos de “resposta de desfoque”, fica clara a tentativa de Maria em alterar o foco da conversa iniciada por João e sobre João para ela mesma. Aqui, Maria é um exemplo de narcisista conversacional, isto é, egocêntrica. Seu desvio de foco faz com que tudo gire à sua

volta, até mesmo os relatos, histórias e observações de outros. Em outras palavras, um ato de centralização.

Mas também é um ato de expansão, uma vez que ela expande sua presença no mundo, colocando-se como protagonista da conversa dos outros. Ela torna aquilo dela, sobre ela, expandido até ela.

Assim como uma nação imperialista (expansionista), a fim de expandir-se, Maria deve também centralizar as atividades em torno de si mesma (as colônias perdem sua autonomia e passam a agir em função de um centro, de uma nação que se expande).

Curioso ou não, as próprias expressões comuns mencionadas por Mononoke para falar de egocentrismo - ego grande, ego inflado - nos intuem como funciona o movimento que expande em torno de um centro.

Num famoso experimento científico, uma voluntária é posicionada à mesa com sua mão esquerda fora de seu campo de visão. Na frente dela, uma mão de borracha muito parecida com a humana é posicionada onde supostamente haveria a verdadeira. Com um pincel, 36


pesquisadores acariciam, sincronicamente e na mesma direção, a mão escondida da voluntária

juntamente com a mão de borracha que está em seu campo de visão. Posteriormente, com uma agulha, ameaçam espetar de súbito a mão de borracha, ocasionando sustos e antecipação de dor na maioria das voluntárias.

Nesse mesmo experimento, pesquisadores escaneiam atividades do cérebro de voluntárias usando um aparelho de fMRI (ressonância magnética) enquanto acariciavam as duas mãos e ameaçavam espetar a de borracha, verificando atividade na região do cérebro responsável por antecipação de dor e planejamento de movimentos assim que a mão de borracha é

amedrontada com a agulha.

Isso prova que há efetivamente uma apropriação ilusória de objetos externos pelo corpo, como se fossem parte funcional do mesmo.

É certo que possuímos um esquema corporal em nosso cérebro; um modelo do corpo embutido em nossa mente. O modelo funciona por aproximação, recebendo pistas do ambiente e formulando sensações corpóreas, compondo o que experienciamos como nosso corpo.

O corpo, como comumente o consideramos, não é apenas o corpo comum, mas tudo que pode se unir a ele, por movimento de extensão e integração, expandindo a sensação de propriedade corpórea. Deficientes visuais, por exemplo, relatam forte sensação de possuir seus bastões guia como se fossem parte de seus próprios corpos, uma vez que o instrumento é essencial para a sobrevivência dos mesmos.

A flexibilidade do esquema corporal não é segredo para a evolução. Essa incorporação de instrumentos e ferramentas é profundamente necessária ao ser humano, mestre manipulador de objetos e altamente capaz de utilizá-los de maneira funcional. O uso de paus e pedras como ferramentas de proteção e trabalho marca as espécies ancestrais ao homo sapiens sapiens, demonstrando sua importância para a sobrevivência.

Não à toa, a cena que registra o salto na evolução humana no filme 2001 - Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, é justamente a de um chimpanzé fazendo uso agressivo de um pedaço de ossada de animal como instrumento de combate, esmagando tudo em sua volta. Emblemática, a cena representa um estágio fundamental de inteligência primata, e Kubrick, realizando o maior corte temporal da história do cinema, une a arma do macaco com a nave espacial do humano. A tecnologia, como vemos, não é propriamente externa, mas 37


absolutamente integrada ao senso de identidade humano. Não seríamos humanos sem algo

para segurar, manipular, usar ou dirigir com as mãos, sem algo para chamar de “nosso”, de “próprio”, seja um pedaço de pau ou uma espaçonave interplanetária.

Mais um salto é executado pela evolução humana quando nos apropriamos de coisas incorpóreas. A evolução cultural é profundamente marcada não só pelo uso, manipulação e criação de ferramentas concretas, mas também de ideias.

A autoconsciência, isto é, a sensação de saber que se está consciente do corpo e de tudo que se passa ao seu redor, a sensação de saber e sentir subjetivamente que se possui uma consciência, é, muito provavelmente, o fenômeno emergente que chamamos de ego.

Segundo o filósofo e pesquisador da consciência Thomas Metzinger, a autoconsciência, assim como o esquema corporal, é um modelo, um modelo interno circunscrito em nosso cérebro, que nos confere a sensação de identidade, de ser alguém, alguém único que chamamos de “eu”.

Buscando uma analogia, Metzinger cita a área de trabalho do sistema operacional em seu computador (o Windows, por exemplo): aquilo que vemos - o papel de parede, os ícones, a seta do mouse, a barra de ferramentas - são fenômenos emergentes criados por hardwares feitos de silício. O que vemos é uma ilusão, não há possibilidade de verificar a existência do ícone da lixeira ao abrir sua máquina, pois tudo que encontraremos são placas e fios.

O ego é uma ilusão. Também não podemos encontrá-lo abrindo o nosso crânio, nem decompondo o nosso cérebro. Tudo que encontraremos é matéria. O ego é uma interface que facilita o uso de nosso cérebro, uma interface transparente, segundo Metzinger, pois temos a sensação de que somos ela, e não um pedaço de massa encefálica que realiza processamentos complexos através do disparo de neurotransmissores por neurônios.

É inútil, evolutivamente falando, termos a consciência dos complexos mecanismos de nosso cérebro, assim como é inútil, para a interface do computador, exibir e acompanhar todos os processamentos rápidos que acontecem internamente na máquina.

Portanto, apenas sentimos os efeitos emergentes desses processamentos, aquilo que o cérebro virtualmente produz - a autoconsciência, a aparência de um eu, de um ego.

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Tal como o esquema/modelo corporal permite, o esquema/modelo do self (eu, ego) igualmente

se reconhece para além do que normalmente é percebido como “eu”. Assim como um cego pode reconhecer, na prática, seu bastão guia como parte de seu próprio corpo, o cego também reconhece o bastão guia como uma ideia, como um elemento incorpóreo que se soma à sua identidade.

Da mesma forma como Jimi Hendrix poderia reconhecer sua guitarra como praticamente uma extensão de seu corpo, dominando-a como ninguém, ele também poderia reconhecer seu instrumento musical como um aspecto de sua identidade.

Mononoke reconhece a si como anarquista. O anarquismo é uma abstração, não há nele elementos substanciosos, corpóreos, há apenas a ideia de anarquismo. Essa ideia, manifestada através de discurso linguístico, símbolos ou práticas, forma parte de sua identidade. O ego de Mononoke apropria-se da ideologia anarquista como parte constitutiva de si.

Assim todos somos com a arte. Há quem diga, numa balada, ao som de Sorry, de Justin Bieber, que aquela é sua música. Por diversas razões, o indivíduo pode se reconhecer na música, e

apropriar-se da ideia de que ela é sua, escutando-a, cantando-a, mencionando-a em rodas de conversa, tatuando sua letra na pele; em outras palavras, constituindo sua identidade.

Obviamente, a música, além de suas manifestações concretas (pelo som), não é algo que se pode apropriar corporalmente, mas experienciar subjetivamente a partir de estímulos físicos, e as ideias evocadas pela música (sua letra, sua melodia) só podem ser apropriadas abstratamente, como algo que se lembra, se pensa e se atua. Isso constitui uma identidade, algo que torna possível seu ego (esse fenômeno emergencial experienciado só por você, subjetivamente) ser apresentado ao mundo, de maneira captável aos outros. A identidade é basicamente uma performance.

Instigante e revelador é o caso dos colecionadores de arte. De acordo com a professora de arte Erin Thompson, que estuda o caso de muitos deles, a prática de colecionadores tem menos a ver com a preservação de obras artísticas e mais a ver com a expressão de identidades. Colecionar arte é uma atividade social, e o tipo de arte que se coleciona, pertencente a qual época e a qual artista, está intimamente ligada à expressão de identidade dos colecionadores dentro de seu meio social, de modo a conquistar algum tipo de status, de diferenciação. Assim como o garoto que exibe seu novo e original tênis de marca para o amigo no colégio, ou aquela cartinha rara do card game do momento, colecionadores de arte convidam amigos e 39


colegas para exibir suas galerias com o intuito de exibir a si mesmo, buscando se afirmar e se

definir nas caríssimas peças que colecionam.

É notável o fenômeno de personalização de objetos comuns. Atualmente, praticamente qualquer objeto que sirva a uma função específica, também pode ser um objeto de display: acoplada à sua função prática, há também uma ideia, esperando para ser somada a uma identidade. Bolsas não são apenas bolsas, objetos úteis para o carregamento de coisas, mas objetos de transmissão de identidade, de transmissão de ideias sobre a pessoa que a possui.

Depositamos nossa identidade em coisas, e isso é uma característica marcadamente humana. A evolução cultural, permitindo essa manipulação de ideias através de símbolos, obras de arte, objetos colecionáveis, bens de consumo, discursos, ideologias e religiões, se expressa através dos memes (cortesia de Richard Dawkins).

O meme, análogo do gene, mas pertencente à dimensão das ideias, é um replicador. Sofre o mesmo processo de cópia, variação e seleção, assim como os genes que compõem o nosso DNA. O meme se responsabiliza por selecionar e preservar ideias, ideias que satisfazem não a uma

necessidade de ordem biológica, digamos, mas mental, cultural. O meme tem como único objetivo sua própria replicação. E ele nos coloniza, para se replicar. Somos máquinas de memes, passando-os adiante.

A psicóloga e estudiosa da consciência Susan Blackmore eleva a ideia de replicadores a um terceiro nível: além dos genes e dos memes, ela postula a chegada de um terceiro tipo de replicador, chamado de teme ou treme, que está vinculado à evolução tecnológica.

Para Susan, já é perceptível um processo tecnológico que foge ao domínio humano, ainda que sofra sua interferência. Os t(r)emes podem também ser copiados, variados e selecionados pela tecnologia.

Qual a consequência prática, para nós, seres humanos, de uma provável evolução tecnológica semelhante à evolução biológica e à cultural?

Sabemos hoje o quão indissociável é a tecnologia da maioria de nossas atividades humanas. Muitos objetos eletrônicos, o smartphone principalmente, já estão, de certa forma, incorporados ao nosso esquema corporal e ao nosso modelo de self. 40


Não somos completos, tanto corpórea quanto mentalmente, sem um smartphone com acesso a

internet em mãos, para tirar fotos, comunicar com pessoas, compartilhar experiências e salvar todo tipo de informação preciosa a nós. Os smartphones já são extensões do nosso corpo e da nossa identidade.

No episódio da vingésima temporada de South Park, chamado “Skank Hunt”, a personagem Heidi Turner deleta seu perfil no Twitter, causando espanto e comoção em toda a cidade. A sacada irônica dos criadores Trey Parker e Matt Stone registra com maestria esse novo fenômeno atual: as páginas que mantemos em mídias sociais, como o Facebook, o Instagram e o

Twitter, já são extensões robustas de nossa identidade.

Uma atividade virtual tem quase que a mesma equivalência a uma atividade real. Na verdade, a dicotomia entre “virtual” e “real” está quase perdendo o sentido. No episódio, a cidade entra em luto com a saída de Heidi da internet. Heidi se mata virtualmente, mas o efeito é praticamente igual a um suicídio... biológico!

A distinção entre humano e tecnologia está ficando mais tênue. Por enquanto precisamos agir

sobre a tecnologia, mas igualmente a tecnologia está agindo sobre nós. A fusão entre humano e tecnologia é uma possibilidade já considerada pelos transumanistas. Mas aqui entramos num terreno um tanto especulativo, e é necessário frear por um tempo. Porém não se preocupe, o assunto não será abandonado.

De um ego expansionista, que toma espaço em conversas cotidianas, a um movimento de expansão memética e tecnológica em profunda interconexão com seres humanos, há muito que se digerir.

Questionar se a evolução tecnológica deve ser incentivada em vista de um terceiro e significativo estágio da evolução, que pode muito bem extinguir o homo sapiens sapiens como o conhecemos, é uma questão ética emergente, mas que dificilmente será resolvida definitivamente no tempo de uma geração.

Numa escala estritamente individual, a questão mais resolvível no momento é sobre o ego e seus efeitos na convivência humana imediata. Deixemos de lado, então, as especulações evolutivas por um instante, nos servindo somente das bases que as explicam para confrontar a ideia do egocentrismo. 41


O mecanismo expansionista que nos torna tão egocêntricos, ávidos a colonizar conversas

alheias afirmando nelas nossas experiências, nossas opiniões, nossas ideologias, isto é, nossa identidade, está de acordo com o interesse da evolução dos memes: quando eu digo que eu penso, eu quero, eu acredito, eu faço, eu, eu, eu, EU, estou agindo em favor de memes que querem ser passados adiante.

Essa constatação não deveria nos deprimir ou nos fazer desacreditar em nossas próprias ideias, nem nos diminuir existencialmente, como se fôssemos meras máquinas a serviço de genes e, desde muitas gerações ancestrais, também de memes. De fato somos essas máquinas, mas e daí?

Também não deveríamos adotar a função dos replicadores como imperativos morais a ditar e confirmar nossos comportamentos, considerando que somos máquinas a serviço dessas pequenas unidades de informação.

A constatação sobre os memes deveria, ao invés, nos incentivar um olhar crítico sobre nossa programação natural, e como, apesar dessa programação, podemos nos livrar de certos “vícios” inevitavelmente gerados para nos tornar reprodutores inconscientes de memes, ávidos para, em qualquer conversa que seja, colonizar as mentes de nossos interlocutores com afirmações

egocêntricas de EU, e perceber como, às vezes, o uso da palavra “eu” em interações cotidianas está satisfazendo apenas um impulso natural que é pouco efetivo para a realidade prática e imediata de nossas relações humanas atuais.

Somos máquinas propagadoras de unidades de informações - genes e memes -, unidades absolutamente egoístas, mas o egoísmo para nós, máquinas, não deve mesmo ser tomado como imperativo moral. De fato é um efeito de nossa programação o comportamento egoísta, fácil de observar em qualquer ser humano. Mas isso não nos impede de, indiretamente, burlar o egoísmo que nos aprisiona, abandonando comportamentos sedutores que nosso ego incita e deixando de alimentar um senso de identidade que se exibe como finalidade principal.

O desconsolo, sobrecarregado por tantas informações que mais parecem ficção-científica, deve ser um pouco menos ambicioso: queremos mesmo repetir comportamentos como os do exemplo da conversa entre João e Maria? Queremos mesmo ser essa máquina memética que, por mais brilhante e inteligente que seja com todas as crenças e argumentações que possui, está apenas preocupada em trazer o foco para si mesma e colonizar os outros com suas incessantes ideias? Queremos?

Desconsole se quiser. 42


MÉTODO CIENTÍFICO - W. N. Centauro

“ci·ên·ci·a sf 1 Conhecimento sistematizado como campo de estudo: “[…] precisa também aprender a usar bem o lazer que um dia a ciência, ajudada pela técnica, lhe há de proporcionar” (EV). 2 Observação e classificação dos fatos inerentes a um determinado grupo de fenômenos e formulação das leis gerais que o regem. 3 O saber adquirido pela leitura e meditação. 4 Soma dos conhecimentos práticos que servem a determinado fim. 5 Conjunto de conhecimentos humanos considerados no seu todo, segundo sua natureza. 6 Sistema racional usado pelo ser humano para se relacionar com a natureza a fim de obter resultados favoráveis. 7 Estudo focado em qualquer área do conhecimento. 8 Conjunto de conhecimentos teóricos e práticos canalizados para um determinado ramo de atividade: “Ó ciência difícil dos temperos! Ó arte sutil da ornamentação dos pratos. Um roast beef, sem o recamo da alface, é como a mulher sem meias” (CN). 9 FILOS Ramo específico do conhecimento, caracterizado por seu princípio empírico e lógico, com base em provas concretas, que legitima sua validade. ciências sf pl 1 Disciplinas que mantêm conexões sistemáticas, levando em consideração o estudo de certo tema. 2 Conhecimentos que abrangem o estudo sistemático da natureza ou o cálculo matemático.” - Dicionário Michaelis da Língua Portuguesa

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Ciência. Alguns dizem que se trata da maior conquista de nossa civilização. Alguns dizem que é o fim. Alguns dizem que é só o começo. Mas, afinal, o que é a ciência? O que a difere de todos os outros campos do conhecimento, como as artes, as religiões, as filosofias? Ora, é claro que o que a difere, e a torna muito mais robusta, consistente e confiável que toda outra forma menor de conhecimento, é a presença do Método Científico. Que seria da Ciência sem Método, ou melhor, sem O Método? Pois eu, que propus a questão, trato de responder: seria um conjunto de especulações vazias, sem evidências, sem o aval dos experimentos, uma balbúrdia esquisotérica regada a toda sorte de caos infértil. Em nada isso diferiria de uma crença. Por isso, nunca é demais comemorar a simples existência do Método Científico, essa arma mais poderosa que mil bombas atômicas, que nos guiou, pelas mãos do pai Galileu para longe da escuridão da igreja e das crenças, em direção à luz da razão. Muitos dos profissionais contemporâneos buscam respostas sobre o Método; é preocupante que alguns filósofos modernos questionem a existência desse Método. Mas eles têm o direito de estarem errados. Eles têm argumentos; nós temos evidências e fatos. E um cientista não precisa de muito mais que a verdade para fazer sua ciência. Nas próximas edições, conheceremos um pouco da intimidade da realização de alguns dos maiores cientistas que a humanidade já pôde conceber. Quais foram suas grandes obras? Como

aplicaram o Método? Que dificuldades enfrentaram? Que perseguições sofreram? Uma coisa é certa: “Pela Ciência, Vencerás.” Para os eruditos, eu sou um patife que não merece ser chamado pelo nome e prefere, covardemente, esconder-se no conforto do anonimato. Para todos os outros, eu sou W. N. Centauro, e você será julgado. Este é o Método Científico. Eis o primeiro capítulo.

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MÉTODO CIENTÍFICO

Capítulo I: Galvão

AVISO “...Finalmente, Este texto fictício contém certos temas (alusão a estupro, esquizofrenia, tortura, morte e uso de drogas) que podem sensibilizar algumas pessoas, e, portanto, não é recomendado a todo tipo de público. Cautela é fortemente incentivada aos leitores.

cansado

de

esperar

inutilmente, comecei a apertar e espremer os ganchos que estavam presos à espinha contra a grade de ferro, para ver se assim conseguiria estimular a contração dos músculos...” – Luigi Galvani

Assinado: O Autor. Mais um dia no Paraíso. Mais um dia acordado às quatro e meia da madrugada pra pegar o metrô lotado, fazer baldeação na Sé e descer até a puta que me pariu pra dissecar os malditos televisores de tubo e, com sorte, fazê-los voltarem à vida colorida e deleitar os gordos patéticos e as madames requintadas que muito bem sabem não ter dinheiro sequer pra pagar meia parcela da geladeira – mas que adoram vangloriar-se de seus filhos imundos que espalham a palavra da “gente de bem” por este mundão escroto e sem esperança. Escrevo códigos e fórmulas de eletromagnetismo num pedaço de qualquer papel pra ver o tempo ir embora junto com minhas águas magnesianas... Talvez daqui a pouco já seja o que agora parece não ser nunca. Talvez daqui a pouco o dia acabe e eu possa aproveitar a sensação de estar sozinho com meus monstrinhos nos fundos de casa... Talvez hoje, somente hoje, nenhum televisor esteja morto à espera da minha ressurreição induzida. Talvez eu volte logo pra casa. Talvez eu fique feliz por ter uma casa. Ah, minha casa, minha vida: Caindo podre aos pedaços, mas reconfortante todo fim de dia. Havia lá uma esposa, mas ela fugiu há tanto tempo que nem me lembro mais de como era o cheiro dela quando não tomava banho por semanas, e nem em minhas recordações mais remotas e adocicadas consigo reconstruir aqueles momentos; mesmo assim, sinto que ela ainda vive penetrada n’alguma das marcas que deixou com as unhas compridas na parede da sala, enquanto gritava, tomada por uma fúria que nos fugia à razão (mas que nunca fora manifestada injustamente) até explodir as cordas vocais, e chorava o sangue derramado por ela mesma num frenesi masoquista. Eu não tive culpa alguma de toda

aquela dor – minha única culpa foi tê-la escolhido há trinta e cinco anos. Ela se foi, mas continua viva... Mesmo invisível. Nós nos amávamos, e era um amor sincero e puro, como o dos nossos avós.

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O que me consola são meus bichos e meus monstros. Meus bichos são duas gatas e dois cachorros: Marta e Lulu, as gatas manhosas; Chico e Lilico, os cães pulguentos. Todo dia eles me esperam até que eu chegue desse mundo imundo do ofício de eletricista num bairro perdido desde o fim das imigrações, e fazem uma festa que só eles. Dormem comigo, almoçam comigo, não sujam a parte de dentro da casa, e ora ou outra me presenteiam com ratos e pássaros destroçados. Houve um tempo em que até esses restos eram bem vindos pra colocar no meio do meu arroz azedo misturado com cebola que sobrava da feira... Mas esses tempos se foram, e agora não passo mais fome. Ao fundo da casa, um quartinho. Simples, construído dois anos depois do resto da casa, e que

eu usava como depósito e quarto pessoal quando era casado com Maria. Ela gritava e quebrava as taças enquanto se agredia violentamente com paus, pedras, arames e ferro quente; bebia água fervente e batia a cabeça repetidamente contra a pia da cozinha. Eu já não podia ajudar, pois ela não queria ajuda. De que serviria ajuda de outro tão mais condenado? Ela, ao menos, ainda guardava um pouco mais da centelha da humanidade por dentro; eu era cada vez mais válvula, cada vez menos grito, cada vez mais cápsula e cada vez menos jantar. Minha consciência ficava tranquila quando eu me trancafiava no claustro das ferramentas e me distraía com o badalo dos alicates. Já era uma vida de merda, e, se Maria teve uma felicidade, com

certeza foi o momento em que deixou de ter um corpo, e de ter qualquer ligação com este mundo horrível. Assim que Maria se foi, tomei o quarto de dentro pra mim, sem qualquer receio dos possíveis espíritos amaldiçoados que ela pudesse ter deixado como lembrança. O quarto do fundo ficaria vazio muito tempo, não fosse a doce sorte que o destino me trouxe numa noite de quarta-feira: era dia de jogo do Timão contra o Vasco. Era meio da semana. Era noite, era inverno e eu me sentia solitário. Resolvi ligar para uma pizzaria qualquer e pedir uma Portuguesa. Naquela quarta-feira, por ser um dia com pouco movimento, havia uma confortável promoção, dessas em que, ao se pedir uma pizza, ganhamos borda recheada com requeijão cremoso, desses que sujam nossas mãos e nossos braços para além do solúvel em três banhos, além de uma garrafa de refrigerante diet. O entregador achegou-se por perto do portão estraçalhado (a criançada da rua insistia em usálo como gol), e lá eu estava esperando durante o intervalo do jogo. Naqueles idos, um a zero pro Vasco, gol do Edmundo, e além de tudo depois de um pênalti não marcado para o

Corinthians; isso havia me chateado um pouco. Disse ao entregador que meu dinheiro estava na mesa da sala, e convidei-o para entrar. Perguntei sobre futebol, e iniciamos uma breve conversa entre amigos desconhecidos. Não encontrando o dinheiro, prossegui em sua 46


companhia tão distinta até o quartinho dos fundos, dizendo que lá também havia uma mesa, e era muito parecida com a da sala, também tinha a tintura um pouco mais gasta que o desejado, e as pernas um pouco mais desniveladas do que o aceitável, e a madeira um pouco mais podre que o saudável, e que talvez meus cinquenta anos de idade pudessem ter se enganado de cômodo para se deixar os vinte e cinco reais. Acendi a luz do quartinho, e lá realmente havia uma mesa, redonda, de madeira velha. Mas não havia nada nela. Atrás dos alicates e das enxadas e dos martelos havia correntes. Numa das

extremidades de uma das correntes, a parede desgastada por ranhuras, rabiscos, rascunhos de efeito Joule e, principalmente, infiltrações. À outra extremidade, um vulto feminino, imóvel, inerte qual pintura vitruviana. Apenas leves sussurros, como se no vulto houvesse algo que o impedisse fisicamente de falar – besteira, era somente um vulto muito detalhado. O entregador, poucos centímetros menor que eu, e muitos quilos mais magro, com o típico peso negativo de toda uma vida que ainda haveria de acontecer, ordens de grandeza mais longevas que o pouco que vivera até então, e mesmo assim parecera eterno em sua dança hormonal e suas desventuras adolescentes, mudou completamente o semblante; começou a chorar, em desespero de sentir que algo muito, muito ruim se aproximava, e que ele, com todas as palavras que conhecia, não podia descrever. Ele me

confessou ter sido um criminoso há alguns anos, mas que havia sido solto por bom comportamento e agora queria levar uma vida tranquila, casar-se, ter filhos e educá-los de uma forma completamente diferente da qual ele havia sido, impedir a perpetuação do horror que ele mesmo vivera e conhecera tão bem. Ele queria ser um homem bom, não queria ser castigado. Já o fora na prisão, com todas as curras a que se submeteu. Sua dignidade já havia sido roubada, assim como aquilo tudo que ele roubava quando era livre. Ele não queria mais errar. Nem mais um centavo. Nem mais um cigarro. Nem mais uma raiva. Nem nada, apenas nada, só o vazio doce e inocente de quem acaba de nascer.

De minha parte, não existe, pra mim, um bem maior ao ser humano que a própria dignidade. Eu não admitiria uma vida em que minha dignidade me fosse negada. Não há vida sem dignidade. Aquele homem, rendido aos compromissos da terra, já não tem mais vida. É um rato entre tantos outros, correndo em círculos, bradando para si mesmo e pensando suficientemente alto sobre ser um bom cidadão, arcar com os compromissos, trabalhar honestamente, fazer sua parte para o mundo, contribuir um pouquinho para algo muito grande... Mas aonde foi sua potência? Como pode alguém ajoelhar e aceitar o próprio julgamento feito por um sistema tão falho? Para onde fugiu sua verdadeira liberdade de errar? ... Seu corpo agora era meu. Agora descobriria o cauteloso entregador de pizza que o destino é reto como uma régua.

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Ele não esboçou reação. Estava vencido. Estava vencido desde que entrou na cadeia. A vida havia vencido e havia fugido daquele pobre diabo. Sua sombra estava marcada pelo pecado, e agora estávamos nós dois num mundo em que o pecado não existia mais. Não existia religião, nem a falta dela. Não havia espaço, nem vazio. Não havia dor, mas ele ainda não podia acreditar. Não havia nada. Ali, com tudo aquilo, era o vazio, o mesmo vazio que me incomodava tanto desde que comecei a pensar no mundo e a abrir televisores para ressuscitálos.

Prendi-o às correntes, ao lado do vulto feminino vivo e imóvel. Agora ele também era um pedaço de carne com restos de consciência. Ali dentro daquele corpo sem vida, rabiscos de lamentação, remorso e medo se misturavam numa vontade de dar um fim a tudo e não poder. Era um televisor quebrado, sem cores, sem imagem, sem som... E eu precisava ressuscitá-lo. Peguei meus velhos equipamentos, chamei a bicharada e comecei o trabalho de bom eletricista que sou. Vinte anos de experiência, cursos técnicos, prêmios, um currículo de dar inveja até ao meu pai. Sei como ninguém o que fazer com um multímetro e dois conectores do tipo banana. Sei onde enfiar os jacarés, onde colocar os resistores, onde carregar os capacitores, e, acima de

tudo, sei o que acontece quando se enfia o dedo na tomada. Não era bom enfiar o dedo na tomada, e eu não recomendaria a quem quiser que esteja lendo isso a fazê-lo. Aprendi com um grande professor chamado Gustavo (in memoriam) que nós devemos saber do risco e da dor, mas fazer uma vez para provar a nós mesmos que realmente eram ruins certas coisas... Mas eu discordava. Sou crente, e acredito sem precisar de demonstração. Sou muito crédulo para um cientista, mas ainda sou cientista. Eu não só estudo a ciência; eu SOU a ciência. Abri, com tanta proficiência anatômica que pode ter um eletricista, a barriga do entregador e passei a procurar pelo tubo de vácuo. Encontrei, no lugar disso, um estômago, e talvez servisse. Liguei o circuito com três resistores de quinze ohms, dois capacitores em paralelo de alguns microfarads, e um gerador de corrente de 1,2 ampéres. Liguei e, para minha surpresa, o vi tentando se contorcer, como acontece com um televisor que quase liga mas já desliga outra vez. Precisava de mais uma alternativa... Oras, pensei comigo e Lilico, abanando o rabo e ensaiando um latido agudo, concordou, o problema estava nos tubos de imagem! Peguei minha série de lâmpadas vermelhas, verdes e azuis e posicionei dentro da garganta do entregador, e também não me esqueci das válvulas. Coloquei também um conjunto de espelhos cuidadosamente polidos para que pudessem refletir as luzes geradas até seus olhos, por dentro, e o meu amigo entregador pudesse acompanhar internamente qualquer filme que quisesse em sua nova existência. Escorria algum sangue e alguns outros fluidos pelo pescoço, pelo tórax e acabou sujando um pouco o chão, mas nós devemos ser corteses e perdoar inclusive estes infelizes que vêm à nossa casa e são mal educados e grosseiros. Devemos ter cortesia até para com estes que não tem dignidade alguma e sujam nosso chão com uma sujeira que sequer é nossa. 48


Liguei o circuito à alimentação, e lá estava. O corpo tremia, como estivesse com frio, mas era emoção. Era fluido galvânico, era eletricidade transformando os átomos em sonhos. As luzes brilhavam dentro da cabeça do entregador, e queimavam um pouco, mas isso era bom, pois cauterizava as feridas das incisões. Agora o vulto feminino brilhava ao lado do entregador que se retorcia. Ali estava ela, manifesta depois de ser somente sombra, com os olhos arregalados, querendo vomitar mas não podendo abrir a boca. Ali estava minha Maria, que, diante do homem-televisão, havia se curado de toda a loucura, e agora era a própria personificação da

sanidade. O entregador, agora transformado em uma televisão completamente funcional mas que tinha problemas de sintonia e som (só se ouvia ruídos de faíscas e ensaios de gemidos), estava pronto para servir à sociedade e ficar à disposição da justiça. Levaria alegria, entretenimento e cultura ao lar de um felizardo comprador de velharias e toda a sua família. Seria todas as descobertas científicas, todas as músicas, todos os shows e todos os jogos de futebol. Seria os gols do Romário, os domingos do Fausto e as câmeras escondidas do Kléber. Seria tudo aquilo dentro de si mesmo, minha obra-prima, o monstro que criei baseado em mim mesmo. Dias se passaram desde aquela quarta-feira. Meu Timão virou o jogo, em uma atuação sem antecedentes do mestre Viola. Minha vida, assim como a cabeça do entregador, agora tinha todas as cores. Maria agora fica feliz por ver seu ex-marido realizando um grande sonho e sendo um gênio que sempre quis ser, mesmo

que ela não possa expressar sua felicidade neste mundinho. E hoje com certeza ela está esperando por mim lá no quartinho, ao lado do homem-televisão, como eu sempre a quis enquanto era minha esposa. De alguma forma, em algum lugar, ela me vê, e aplaude. Meu nome é Galvão. Tenho cinquenta anos de idade, vinte e cinco só de trabalho como eletricista. Meu sonho de criança era ser um grande cientista, e meu caminho tracei com trabalho duro. Nessa vida já enfrentei todo tipo de dificuldade. Já passei fome, já fui vítima de

preconceito, já vi tudo o que tinha ser roubado e, com muito esforço e dedicação, recuperei cada centavo. O mundo tentou me engolir, mas eu fui mais forte. Eu sou brasileiro, e disso me orgulho. Minha vida é agora, mas estou preparado para o futuro. Estou sempre ligado em duzentos e vinte. Que tal um filminho?

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EMERGÊNCIA !

- Wild Child

Desde que eu era criança e aprendi sobre átomos, me espanto muito com os números associados a eles e como essas informações confrontam com a nossa experiência. Eu ouvi coisas do tipo: o átomo é composto pelo núcleo e os elétrons “orbitando” em volta; se o átomo fosse do tamanho de um estádio de futebol, com os elétrons “orbitando” o interior, o núcleo seria uma ervilha no meio do campo; se compactássemos todas as pessoas vivas, retirando esse “espaço vazio” do átomo, a humanidade caberia em uma caixinha de fósforos; se eu tivesse um centavo para cada átomo em uma xícara de café e gastasse um bilhão de reais por segundo, eu demoraria mais de cem mil anos para gastar tudo; etc. Eu me perguntava como nós vemos as coisas sendo tão sólidas, se é tudo tão vazio.

Hoje eu sei que os átomos não se penetram por causa de forças repulsivas muito fortes relacionadas com as nuvens eletrônicas e isso dá conta de sustentar a impenetrabilidade da matéria. Mas o “espaço vazio” é real no seguinte sentido: algo do tamanho do núcleo atômico “enxerga” o átomo como um lugar praticamente vazio, talvez de uma forma equivalente a como enxergamos o sistema solar como uma grande vastidão espacial. E o estranhamento continua: a matéria é tão exótica, existem muitas cores, muitos tipos, muitas propriedades diferentes; como os átomos fazem isso? Será que tem a ver com a sua espantosa quantidade? Eu sei que uma molécula de água não é água, mas trilhões de trilhões de moléculas devem ser, não é? Mas como?

Espero que esta introdução motive bem o tema desse texto, que é a emergência de estruturas na natureza. A ideia é conseguir mostrar que estruturas complexas surgem de uma grande

organização de muitas unidades simples, ou seja, unidades que não possuem as propriedades que a estrutura emergente possui. Os átomos não possuem cores nem consistência, mas uma pintura pode ser feita de muitos deles, e esta pintura guarda informação que não está em nenhum átomo. Agora vamos tentar construir os detalhes dessa ideia através de um exemplo. Imagine uma grade com pontinhos brancos e pretos. Se eles estão dispostos aleatoriamente, vemos um ruído como aqueles de televisão sem sinal. Mas se eu possuir uma imagem e organizar estes pontinhos de acordo com uma regra de forma a reproduzir esta imagem, a grade de pontinhos pode ficar assim: 50


Constatamos várias coisas com este exemplo:

1. Se eu tivesse uma grade com quatro pontinhos, eu não seria capaz de construir esta imagem com eles; isso indica que quantidade é essencial para gerar algo mais complexo. A medida de complexidade tem a ver com informação e combinatória. Para se construir uma estrutura ou

executar uma ação, regras ou leis precisam ser consideradas e essa consideração se sustenta por uma discriminação de diferentes possibilidades (algo como “escolher” o que a regra pede dentre todos os possíveis). O número de interações entre componentes cresce exponencialmente com o número de componentes, com grandes números conseguimos gerar muitas possibilidades e guardar muita informação (bits).

2.

A imagem resultante existe e não é feita somente de pontinhos, ela também é feita da

organização deles e guarda uma informação que o ruído não guarda. Independente de definirmos com precisão o que é informação, alguém que olha para a imagem consegue extrair conteúdo a respeito dela, mesmo sendo os mesmos pontinhos que formam o ruído (isso ficaria ainda mais explícito se a imagem resultante fosse um texto). Isso indica que o todo é maior do que a soma das partes no sentido de que a organização das partes também compõe a atuação do todo em sua existência e propriedades novas podem surgir. Isso porque toda a informação dessa forma considerada pode ser utilizada para formar novas regras, ou seja, mais complexidade gera mais informação coerente que gera mais complexidade.

3. Se cada pontinho fosse uma bola de praia e organizássemos a imagem em um campo aberto, precisaríamos estar relativamente distantes, em um helicóptero, para que a observássemos. Alguém que estivesse ao lado da imagem, no nível dos pontinhos, não conseguiria vê-la. Isso acaba sendo uma consequência dos grandes números e indica que a construção de estruturas mais complexas envolve saltos dimensionais, aumentando escalas de magnitude. Regras, leis e propriedades podem existir em escalas maiores e não existir em escalas menores; um exemplo 51


disso é a segunda lei da termodinâmica, que surge a partir de sistemas com um grande número de partículas, mas não existe a nível microscópico. Outro excelente exemplo são as fases e estados de sistemas físicos e a existência de transições de fases.

4. Essa imagem de pontinhos existe porque uma pessoa a criou, então poderíamos pensar que esse tipo de fenômeno acontece quando há alguém externo organizando um sistema. Porém, uma característica muito presente em sistemas complexos é a auto-organização, capaz de promover a execução de regras e leis, criando estruturas maiores a partir de um sistema, com a movimentação do próprio sistema. O algoritmo evolutivo é uma excelente forma de promover auto-organização na matéria e definitivamente acontece desde níveis moleculares. Nós mesmos somos gerados por este processo e, aos olhos do universo, em um sentido bem sólido, nossas próprias criações são um resultado de auto-organização desta grande dinâmica evolutiva. Nós não somos agentes externos e, mesmo que eles existam, aparentemente não são necessários para gerar nada nos níveis que por enquanto pudemos conhecer.

5. Geramos esta imagem apenas considerando a disposição de pontinhos em lugares e com uma quantidade relativamente (ou muitíssimo) pequena de pontinhos. Podemos pensar que, se os pontinhos possuíssem interações e arranjos mais complexos entre si e fossem muito mais abundantes, poderíamos criar algo muito mais fascinante, quem sabe um jogo ou até um animal.

6. Seguindo estas ideias, podemos pensar que os próprios pontinhos são, cada um, estruturas compostas pela organização de unidades menores vivendo em escalas abaixo dos pontinhos. Vejamos como enxergamos o nosso universo: ignorando coisas acima, nos vemos em uma galáxia, feita de sistemas de astros, envolvendo planetas que abrigam seres vivos compostos de diversos módulos e sistemas feitos de células, feitas de estruturas e organelas compostas de moléculas, que são organizações de átomos, por sua vez compostos de partículas elementares, que são elementares porque, sem escolha por enquanto, ignoramos coisas abaixo. Observe que

cada uma destas coisas é ininteligível a partir de outras escalas (sabemos o que são planetas, estrelas e galáxias e temos uma imagem disso somente por termos exemplos dessas estruturas situados a uma grande distância de nós; e temos noção do que são as escalas menores por traduzir a informação proveniente de sondas que habitam aquelas escalas, mas não conseguimos apreender sua realidade).

7. Saber como é também é bem diferente de compreender, no sentido de conseguir explicar ou 52


prever. Quando muitos componentes compõem uma dinâmica, nós perdemos a noção do que acontece entre eles, tanto pela nossa capacidade limitada de visualização e processamento, quanto pela dificuldade de tratarmos mesmo matematicamente dinâmicas complexas em seus detalhes. Usualmente descrevemos propriedades novas em termos de médias de efeitos, a posteriori. Podemos falar de comportamento médio por causa da própria natureza coerente destas dinâmicas que produz estas propriedades em primeiro lugar. É o que fazemos, por

exemplo, na termodinâmica, definindo grandezas de média como temperatura e pressão ao invés de tentar explicitar as trajetórias de cada partícula (não conseguimos, e mesmo se conseguíssemos, nos perderíamos em meio a tantos dados). Falar em termos de médias indica a própria forma que encontramos de compreender esta espécie de fenômenos como algo novo e representa a mesma lógica de olhar para a imagem feita de pontinhos e especularmos a respeito de suas cores, dos objetos que a compõem, como uma pessoa ou um chapéu, etc. Ou seja, reescalamos nosso discurso para a linguagem das médias (e assim temos física, química, biologia, sociologia, economia, etc, em um mundo, para nós, “essencialmente” construído de átomos e suas dinâmicas).

O exemplo dos pontinhos e as considerações feitas ajudam a construir com detalhes a ideia de emergência de estruturas, mas algo importante a este respeito ainda fica de fora. Não conseguimos ainda ter uma boa intuição a respeito de algumas coisas emergentes; parece que o todo não é somente maior do que a soma das partes, ele também é diferente da soma das partes, no sentido de que as propriedades e comportamentos que surgem podem não lembrar em nada as unidades componentes e as regras que as organizam. Podemos tentar reduzir os fenômenos complexos que observamos a consequências de regras cada vez mais fundamentais; voltando aos átomos, podemos explicar as exóticas propriedades coligativas de interação entre moléculas e as forças de ligação entre átomos com base em forças fundamentais que atuam desde partículas elementares. Dizer que essas forças explicam a existência desses fenômenos emergentes delas não é tudo, também faz parte entender como isso foi possível. Falar das médias e levar o discurso para os termos do fenômeno emergente vale até certo ponto, até porque isso é feito a posteriori; estou falando aqui de justificar a existência do fenômeno a partir das unidades básicas e do relacionamento entre elas. Aí já temos um problema muito difícil para físicos e químicos; então o que seria tentar entender a existência de um animal ou de uma sociedade dentro deste escopo, a partir de leis fundamentais? Estamos muitíssimo longes disso. E antes de se discutir como justificar estes comportamentos emergentes, devemos saber se eles são mesmo justificáveis.

Imagine novamente a estrutura esdrúxula de um átomo e como ela é capaz de se manifestar na dimensão em que vivemos. São tantas camadas de inúmeras unidades coerentes entre ai que o 53


que acontece nessa dimensão chega a ser praticamente um outro universo, independente do que acontece lá embaixo. Da mesma forma, ao olharmos para nossa atividade, tão dinâmica, na Terra, por uma perspectiva galáctica, nós seremos irrelevantes, invisíveis, e nossas práticas e anseios tão complexos serão praticamente independentes de coisas que acontecem naquelas proporções. Se todo o universo que somos capazes de observar estiver contido em uma bola de bilhar ultra-universal que é constantemente rebatida e desviada em uma mesa, nunca

saberemos, não sentimos seus efeitos. Da mesma forma, talvez um ser ultra-universal pudesse ficar tentando realizar experimentos super-microscópicos na tentativa de detectar um bóson mediador de forças que para ele são fundamentais, mas que, para nós, não passaria de uma sonda espacial enviada a outro planeta na tentativa de colonizá-lo (por favor, não leve a especulação tão a sério, ela serve a um efeito de ilustração). Ou seja, como nós mesmos deveríamos nos comportar diante de forças que chamamos de fundamentais? Talvez sejam somente a fronteira atual escondendo um buraco sem fundo. Parar pra pensar a respeito das coisas que existem e das coisas que podem estar por trás do que sabemos e que não temos a menor noção é um exercício infinito de imaginação e assombro.

Esta propriedade de emergência de novos “universos” em escalas maiores não é determinada somente por escala ou aglutinação de inúmeras unidades. Se empilharmos zilhões de pontinhos, o resultado provavelmente não passará de uma pilha gigante de pontinhos. Mas observamos que o acúmulo de complexidade é capaz de gerar novos universos, e não necessariamente em escalas maiores (por exemplo, se temos diversas formas de organização das mesmas moléculas, poderemos ter diferentes corpos de diferentes níveis de complexidade habitando a mesma escala espacial, exibindo “universos” diferentes, com propriedades diferentes). Na nossa experiência humana, temos diante de nós um excelente gerador de complexidade, que inclusive nos gerou: o algoritmo evolutivo. Este foi o conjunto de regras que, partindo da hipótese de este ser um espaço de recursos finitos e de execução imperfeita de regras (flutuações são banais em grandes números), levou uma simples entidade autocopiadora a gerar células complexas, indivíduos multicelulares, sociedades de indivíduos, etc. Dentro desta história evolutiva existem vários saltos de complexidade que possibilitaram a existência de mundos novos com regras novas.

No fim desta história, participando do topo atual da complexidade gerada pela evolução, estão as nossas mentes, e juramos sermos capazes de experienciar a realidade. A nossa capacidade de experienciar a realidade vem antes de qualquer dilema a respeito do que é ou não ser consciente, se nós controlamos ou não nossas ações ou se nossa experiência consciente reflete o que realmente acontece em nosso cérebro (ou é baseada em muitas ilusões). Podemos ser simples arranjos complexos de matéria, mas somos uma matéria que se percebe, que contempla 54


a matéria. De alguma forma esta propriedade da matéria de se observar emergiu da organização em múltiplas camadas de inúmeras unidades básicas de matéria. Como algo assim poderia ser previsto a partir de uma camada mais básica? E por outro lado, o que poderia surgir da organização coerente de inúmeras mentes como as nossas? Será que a nossa mente seria sequer capaz de conceber estruturas acima em complexidade? Talvez os “seres” acima olhassem para nós da mesma forma que olhamos para os peixes em um aquário, certos de que

não temos a complexidade necessária para habitar seus mundos.

Pode ser que não estejamos tão distantes de criar entidades novas em termos de complexidade, o desenvolvimento da inteligência artificial e o avanço da complexidade dos espaços virtuais nos surpreende a cada dia. Isso sem contar o que já fizemos, criando ordens globais, grandes centros urbanos e sistemas integrados de comunicação e trocas,que parecem mais um organismo coerente dotado de intenção, funcionando segundo regras que nós tentamos entender com dificuldade. Quais tipos de coisas poderão emergir da futura exploração da complexidade? Sabemos de uma coisa; elementos novos simplesmente brotam em nosso universo e, apesar de nossa intuição a princípio ser a de que, empilhando camadas sem fazer nada diferente, uma hora a riqueza de comportamentos se satura, nos deparamos com o oposto disto, sendo nós mesmos os maiores exemplos.

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Desintegrado

- Ponta esquerda

Este é um texto sobre o luto, e sobre coisas horríveis.

O luto nos une, como espécie, como uma coisa só, numa egrégora gigantesca, e, em toda a tristeza e lamentação, bela. Além do tempo, emerge algo superior a qualquer ontologia, trespassa questões vãs, torna a busca por motivos algo momentaneamente irrelevante, e sobra apenas a lição – que pode ou não ser aprendida, conforme ordenar a vontade e o sentimento de cada um de nós.

Hoje tem sido um dia muito triste. Eu não esperava ter lido, logo de manhã, logo depois de acordar, sobre a tragédia que ocorreu com a equipe do Chapecoense, e todos os outros profissionais presentes na aeronave que caiu na Colômbia. Minha primeira reação foi como uma negação; lembrei-me, talvez para afastar os pensamentos que viriam mais tarde, de quaisquer outras coisas relacionadas à equipe, e à equipe adversária colombiana. Claro que isso não durou mais que alguns minutos, até que eu visse a repercussão, e as notícias oficiais sobre o episódio.

Não é comum um avião cair, apesar de haver sempre muito alarde quando um cai. E, de fato, há motivo para toda essa impressão grotesca que nos causa a queda de um avião tripulado. É

uma cena horrível, muito menos pela parte visual, muito mais pelo que não podemos ver, nem ouvir, mas sabemos que está lá, e não conseguimos fugir disso, por mais que tentemos.

Acredito que a morte (ou a vida) que segue depois de um acidente desse tipo é um dos tipos mais horrendos. A menos que seja por algo breve como uma explosão inesperada, o terror que deve se passar pela cabeça de um ser humano que tem completa consciência, assim como todos ao seu redor, de que não há o que fazer, de que todo o poder se foi, e que a única coisa que resta é esperar, em desespero, tentando recordar e resolver tudo ao mesmo tempo, até que o chão

chegue, e aí então ter o requinte de crueldade de contemplar, em poucos segundos, si mesmo e todos os outros perdendo pedaços, e sofrendo, e murmurando, e morrendo, e implorando antes de desmaiar para sempre; isso tudo é horrível, e, como toda coisa horrível, é um convite a pensar sobre nós, sobre cada um, sobre o que existe de humanidade, e o que há de bom. É um convite a aprender o tipo de coisa que não se aprende quando está tudo bem.

Essa não foi a primeira vez que senti essa coisa triste, esse luto. Já perdi pessoas próximas a mim, mas ou eu era muito pequeno para saber disso tudo como sei hoje, ou não pude 56


acompanhar de muito perto todo o processo de cruzamento do rio que liga nosso mundo ao mundo de lá. Mas quando tenho contato com algo desse tamanho, eu me vejo obrigado, como ser humano, a pensar sobre essas coisas. A usar o tempo que se costuma destinar ao luto não somente para ficar triste, mas aprender muitas coisas que eu finjo ter aprendido, tempo após tempo, mas que só nesses momentos é que percebo se tratar de algo maior.

Talvez a experiência parecida com essa que eu me recorde há mais tempo seja de quando morreu o Dio, em 2010. Eu não era o maior fã alucinado do Dio, embora gostasse muito das

músicas dele e do Rainbow. A notícia da morte, em si, não me comoveu tanto quanto o que li nos dias seguintes, durante a semana toda, sobre como gente do mundo todo, gente que eu conheço, gente que eu escuto, gente que eu admiro de alguma forma genuína, gente de todo tipo, lamentava em conjunto a perda, e celebrava os feitos e as boas memórias relacionadas àquela morte, e me apresentava coisas sobre o Dio que eu nunca ia imaginar. É esse ponto que consegue entrar em mim de uma maneira inacreditavelmente bela, e ao mesmo tempo, triste. É essa sensação de união, muitas vezes não declarada, que talvez aqueles que tenham vivido guerras e períodos de violência extrema conheçam até melhor do que nós, que nos resumimos a

uma filosofia post mortem que, embora tenha seu valor, ainda é vazia. Isso tudo nos aproxima,

nos faz perder toda a crosta de vergonha inútil que temos, e, enfim, podemos ficar perto uns dos outros, e lembrar-nos de que estamos vivos, e que muitos dos que amamos também estão, e que, conosco, está tudo bem.

Eu também não era torcedor do Chapecoense, nem nada assim, apesar de ter achado muito legal no último ano que eles tenham vencido times grandes, daqui e do exterior. A notícia do desastre com o avião já fora pesada, por causa de tudo o que já disse relacionado ao desastre aéreo. E aí então li as repercussões, e então veio essa sensação pesada.

As coisas que nos afligem durante os dias em que tudo está bem, as coisas que mais nos incomodam, talvez muitas delas sejam vãs. Talvez não haja motivo para muito do que perdemos nosso tempo para fazer. Talvez as coisas realmente importantes sejam as que ignoramos por termos certeza de que elas estarão sempre lá, quando quisermos, conforme precisarmos. E não é bem assim. O mundo não se dobra ao que achamos que queremos. De hora pra outra, de uma madrugada pra outra, acontece algo assim. A gente perde, e sabe que nunca mais vai ter de volta. E não está sob nosso controle.

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Você, leitor e leitora, e eu, e todos nós, vamos morrer, e também irão morrer todos os que amamos, e todos que odiamos, e principalmente aqueles que nós não queremos que morram. E eu desejo que nossas mortes sejam tranquilas, cercadas por tempos bons e calmos, e que sejam solitárias ou bem acompanhadas, conforme o desejo mais íntimo de cada um (eu sempre digo

que, quanto à minha, minha vontade é que eu esteja são, e que haja gente ao redor, anotando coisas, escrevendo e desenhando coisas, e que eu vá triunfante, e não definhando, e que eu cruze a ponte quando eu souber que é tempo, e não lamente nem seja forçado a ir... É claro que isso é bobo; eu tampouco tenho controle algum sobre como será, e todos os meus pensamentos e desejos são meras fantasias de alguém que está de luto).

Que nossa vida seja concreta, inteira. E que as tragédias nos sejam para aprender e ensinar, e nunca para apenas sofrer.

#ForçaChape

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Onde esta´ o amor

-Selfish light

"Porque você é assim?" "As coisas já não são as mesmas". "Tá tudo muito monótono". "Alguma coisa mudou entre nós".

Pra você que está em alguma espécie de relacionamento, essas frases são bem familiares. A primeira coisa que vem à cabeça é relembrar como era no começo, onde tudo era tão bonito e maravilhoso. Qualquer coisa era motivo de felicidade.

Desde um simples boa noite, até uma declaração fofinha. Tudo era muito colorido. Agora nada mais é do que um borrão em tons de cinza.

Os diálogos ficaram monossilábicos, vazios. É só "Como foi seu dia?" "O que fez de bom hoje?" Onde foi parar o frio na barriga?

Os sorrisos? Os longos e quentes abraços banhados por ternura?

É nesse ponto que a maioria das pessoas vai pensar que a culpa é dx parceirx, que elx não está tentando o suficiente pra fazer dar certo. Mas na verdade, se isso aconteceu é porque o SEU amor acabou. Não o delx. Nesse ponto é você que está erradx na história e que ignora todas as tentativas de felicidade do outro.

E aí começam as brigas. E elas vão fazendo parte da rotina do casal. Ok, brigar sempre é sinal de obstinação na maioria das vezes.

Aquela coisa infantil de querer mudar a outra pessoa. Isso acontece com todo mundo, você acha elx perfeitx no início, mas acaba vendo que não é bem assim. Então você tenta mudar elx aos poucos, fala com segundas intenções e coloca ideias subjetivas.

E não percebe que isso é o início do fim. É completamente inviável mudar alguém por vontade própria.

Elx também tem amor próprio e sabe muito bem o que é melhor pra elx. Se elx não mudou aquela coisinha que você disse é porque simplesmente não quer. Vamos parar de insistir nos pequenos defeitos, porque você está deixando o seu muito grande. 59


Se tem alguma coisa errada no seu relacionamento, o único jeito de resolver isso (se for realmente o que você quer, se não pode fazer do jeito simples e terminar antes que isso se desenvolva e fique mais confuso) é na conversa. Parece bastante clichê, mas na maioria das vezes a conversa foi a responsável pra que aquele casal de velhinhos que você viu andando na rua de mãos dadas não se separasse na juventude.

Amor é feito de mudanças, de concessões. Ele muda a cada gesto diferente, a cada visual incomum, a cada nova atitude.

As mudanças são necessárias para o bom desenvolvimento. E tem de se mudar porque quer, e não pela vontade do outro.

Não adianta ser só bom pra você, isso é egoísmo sentimental. É um ciúmes, onde só você vê sua felicidade e o resto que se foda. Parece idiota não é?

E você deve estar pensando que jamais faria ou fez esse tipo de coisa, mas acontece sem que

percebamos.

Quando nos damos conta já falamos e acredite, não existe desculpa que possa curar um coração machucado.

Principalmente se a causa dessa dor for da pessoa que você entregou seu coração.

Agora pense bem, se você já não fez alguma coisa que possivelmente machucou seu par por

egoísmo. Se a resposta for sim, é melhor preparar um pedido de desculpas e uma surpresinha porque com certeza elx não esqueceu. Isso sim é amor.

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Declaração de um amor absurdo Eu espero muito que você compreenda a profundidade em que eu me encontro dentro de mim para poder dizer essas coisas, com um nível de sinceridade tão grande, deixando de lado toda a intenção de fantasiar o que eu realmente sinto na tentativa de fazer algo romântico ou bonito. Eu espero que, reconhecendo essa profundidade, você possa sentir coisas positivas ao entender que, lendo isso, você estará mais perto de mim. Talvez não haja nada novo, além do fato de eu dizer que isso não é brincadeira, que é o que eu realmente sinto em relação à vida, por baixo de

todo esse caos, às vezes bom e às vezes estranho, que é o que eu sou.

A vida, a existência, pode, no fim de tudo, ser algo interessante, empolgante, e com bastante sentido. Mas isso é irrelevante para a nossa perspectiva, porque não temos a menor pista a respeito desse sentido da vida e somos forçados a viver à deriva, carregando a maldição de saber que essa é a nossa condição. No balanço total das coisas, eu sempre tendo a achar que a vida é uma coisa miserável, principalmente quando eu consigo dissolver um pouco a barreira entre mim e as outras coisas. Eu tenho menos a lamentar do que a maioria das pessoas, mas o

ponto é que isso em si é um lamento muito grande. A princípio, a vida ser finita poderia ser algo bom, poderia ser um direito garantido de que, diante de um extremo cansaço, temos a chance de deixar de participar desse circo do absurdo. Mas a miséria da vida se estende à sua finitude; pular fora desse circo é impensável, porque isso pode ser pular fora de tudo, para sempre. E nós sempre somos encharcados pela esperança de viver algo além dessa miséria, porque tudo está mudando, sempre de uma forma tão incompreensível e forte. Assim cresce dentro de nós um espaço para um sentimento vibrante de que em algum momento no futuro uma confluência de fatores nos leve a uma alegria plena, aqui nesse mesmo palco de todos os horrores.

Esse sentimento de esperança não é banal ou ingênuo. Muitas vezes, coisas que consideramos boas podem acontecer conosco, coisas que nos dão um vislumbre desse mundo diferente que esperamos, um vislumbre da nossa utopia. Digo que é só um vislumbre, porque, sendo este um mundo de horrores, a realidade miserável e caótica sempre vai nos atingir de frente, por qualquer motivo incompreensível. Nós mesmos somos feitos dessa matéria miserável e caótica, nós mesmos servimos como nossas próprias misérias. Por isso a felicidade é só uma brecha, só um vislumbre da utopia. Mas ainda assim suficiente para alimentar esse sentimento de esperança. 61


Esse é o ponto em que você aparece. A sua presença na minha vida é a minha maior fonte de esperança, de longe. As coisas que conseguimos fazer e ser, juntos, constituem a melhor cor da minha utopia. Isso é tão bom, é tão forte e constante, que a utopia sobe à cabeça, e nos dá a prepotência de acreditar que o imaginável em si é alcançável. Nós esquecemos que o mundo é absurdo, que é miserável e caótico. Nós podemos achar que qualquer miséria que possa

obscurecer nossa tentativa de utopia é nossa culpa, nós podemos tentar achar motivos e interpretações, para no fim somente acabar cansados e ainda mais confusos. Porque, na verdade, a miséria não tem causa; ela é o estado natural dessa existência absurda. As coisas boas e com sentido que possuem causas, essas que são compreensíveis. Nós devemos nos preocupar em analisar o que causa os nossos momentos felizes; devemos permear as interpretações do porquê de nos sentirmos tão bem um com o outro, e queremos tanto o bem do outro. Se, ao invés de tentar entender porque sou tão falho, eu parar para justificar o meu sentimento de querer o seu bem, de me importar com o que você acha de tudo, de querer causar orgulho em você, de querer ficar te obrigando a entender o que se passa comigo, de não querer sair de perto de você, de gostar de planejar todo o meu futuro com você, de sentir coisas gostosas diante de inúmeros gestos seus, de te fazer o centro da minha utopia, eu vou conseguir compor a definição de amor. A causa de tudo isso é a minha intenção de desviar da miséria e do absurdo, construir vislumbres de utopia. Pensando bem, até que não faz mal subir à cabeça, desde que eventualmente percebamos que esse amor é o que faz sentido, e não a miséria, que é apenas o padrão, é apenas o momento em que não conseguimos nos desviar. Não faz mal.

Quero justificar o porquê de o amor fazer sentido. Ele começa como o crescente apego a alguém por essa pessoa parecer ser sempre uma personagem essencial dos seus momentos de vislumbre de utopia. Mas como isso começa? Qual o ponto de início dessa reação em cadeia? É o ponto em que, desesperados com o absurdo da existência e desejosos de encontrar abrigo em uma terra de misérias, nos vemos diante de um espelho. Um espelho que traz calor e conforto,

porque te faz perceber que você não está sozinho. Existem outros indivíduos sofrendo nesse grande absurdo, muitos outros, e faz parte do absurdo olhar à sua volta e perceber que ninguém é como você, apesar de a aparência enganar tanto. Claro que alguns até se comunicam com você, mas de uma forma muito insuficiente, em muitos sentidos. Mas quando você finalmente encontra alguém que verdadeiramente se corresponde com você, se consegue encontrar, você consegue ver a sua essência sofredora projetada diante de você, e só aí sente o conforto de não estar sozinho no circo do absurdo. Passar a ter momentos com esse indivíduo, no caso de uma correspondência mútua, necessariamente leva a uma reação em cadeia, e é o 62


que faz sentido chamar de amor. Eu não sei porque a constância dessa correspondência desfaz o absurdo, nos aproxima da utopia; não precisava ser assim, nesse mundo de caos. Mas estou feliz que é. E mais feliz ainda por ter você exercendo esse papel na minha vida absurda.

Nos seus momentos de avaliação da sua vida absurda, eu cruzo os dedos em uma esperança febril de que chegue às mesmas conclusões que eu, e que eu também seja o seu espelho em meio ao absurdo. Mesmo que, sendo filhos da miséria, passemos muito do nosso tempo juntos sendo miseráveis. Espero que reconheça que esses momentos sejam os momentos de falhas, em que simplesmente não conseguimos nos desviar do padrão. Eles não precisam de causa ou justificativa, eles são o que o mundo tem a nos oferecer de graça. Eu fico feliz por conseguirmos sair deles tantas vezes, por nosso próprio mérito. Agradeço a você por ser o centro da minha utopia em um mundo miserável, por ser o meu espelho diante do absurdo, por atravessar comigo o caos da existência e por suportar comigo o constrangimento de ter que viver uma vida como essa, em que somos feitos de problemas, medos e inconsistências. Mas, ainda mais que tudo isso, obrigado por, mesmo dentro de uma existência como essa, se juntar comigo nessa reação em cadeia que abastece a minha vontade de continuar. Eu não acho que a esperança seja correta e que a utopia seja alcançável, mas tenho certeza de que, no fim, a coleção de vislumbres ao seu lado terá sido motivo mais do que suficiente para suportar tantos anos de miséria e absurdo.

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feliz noite de natal

-Melancolírico

Três curtas histórias natalinas. Véspera de natal. Já é noite e o fluxo de carros e pessoas na rua começa a diminuir. Elas se concentram com seus familiares e amigos em suas casas. Outras ficam sozinhas. Outros vão pra festas ou bares. Outros dançam na rua, como em outra noite qualquer.

Primeira parte Um homem no quarto de seu pequeno apartamento sentado na beirada da cama conversa consigo mesmo, meio desolado. - Esse é o limite. Desligando a televisão! Desativando facebook, whatsapp, instagram! Tinder eu

nem

tenho

mais,

ainda

bem.

Apagando

a

luz!

Eu

não

aguento

mais...

Ele deita a cabeça no travesseiro e os olhos se fecham, mas não de verdade. Ele sabe que precisa sair. - Caralho, ainda não é suficiente! Esse é o meu limite... Uma ideia desesperada de uma alternativa usada algumas vezes no passado irrompe sobre o calor da ansiedade e ele vai até o hipermercado próximo a sua casa. Entra. Já são 21:30. O hipermercado fecha às 22:00. - Como é bom voltar a andar em corredores como esse, em um horário como esse e principalmente nesse horário! Que ingenuidade achar que não precisava mais. Que não precisava ver essas últimas pessoas irem embora comemorarem suas ceias e me deixarem sozinho com os poucos funcionários repondo coisas nas prateleiras gigantes pras pessoas comprarem depois de amanhã. Que não precisava ver esses mesmos funcionários me deixando sozinho nesses corredores longos entre prateleiras gigantes até algum segurança meio puto perguntar se eu tô bem de uma forma meio grossa e falando que tenho de ir embora, com receio de que eu atrapalhe a noite de natal dele. Uma voz feminina diz no microfone: “21:55. Nossas atividades se encerrarão em cinco minutos! Feliz natal a todos!”

O homem sente. - Não vejo ninguém. Só muitas coisas que não preciso em prateleiras gigantes e paira esse ar gostoso. Meio gélido na verdade, por causa do ar condicionado, mas gostoso. Esqueci a blusa, foda-se! Tô melhor. Penso se um dia rola me isolar numa floresta, tipo aquele cara daquele

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filme, “Na natureza alguma coisa”. Mas ele ficou meio doido, morreu. Parece ser muito pra mim... De repente ele fica parado, com o olhar voltado pra baixo e os olhos fechados. Abre os olhos, mas agora com um semblante preocupado. - Não tô pronto pra uma nova recaída... Chora um pouco. Sai do hipermercado antes do segurança pedir. Caminha pela rua. Trovoa e

uma chuva natalina pouco reconfortante ameaça cair.

Segunda parte É meia noite, oficialmente natal. Uma dançarina performática surge dançando as luzes coloridas de fogos de artifício, dançando os barulhos, dançando a arquitetura noturna da cidade. - Estar aqui na rua, à noite, sozinha. Alívio. Respiro. Isso sim é vida. – pensa. Ela percorre as ruas do centro da cidade ou caminhando ou dançando. Na maior parte das vezes dançando. Dançando a partir de estímulos que a própria cidade lhe dá: luzes de postes ou pisca-piscas natalinos; barulhos de carros e fogos natalinos; arquitetura de casas, prédios, construções e enfeites natalinos. Transpõe todos esses estímulos em movimentos. Passa ao lado de uma praça bonita e bem enfeitada onde vários mendigos dormem espalhados pelo chão, meio quietos e mortos. Não consegue traduzir aquele quadro com o corpo, em um movimento, e nem a sensação que isso lhe trás. Se sente mal, e pensa algo consigo mesma. - Às vezes dá vontade de escrever alguma coisa. O corpo fala tudo, mas às vezes demora pra

entender como falar alguma coisa. Então aí é melhor escrever mesmo. Tira um bloco de notas e tenta descrever a sensação que teve ao ver aquela imagem instantes atrás. Mais tarde iria tentar transformá-la em coreografia. Continua dançando e relembra como respondeu uma amiga que perguntou se ela não tinha medo de sair dançando à noite e sozinha. - É claro que sim! Mas me conforta saber que as pessoas que me veem na rua sentem mais medo do que eu. Porque pra sociedade o artista é louco. Pro mendigo ou pro empresário, o artista é louco. E todo mundo tem medo de gente “louca”. Gente que um dia experimentou dançar de madrugada na rua e não conseguiu mais parar.

E ela segue dançando, desenhando bonitos e expansivos movimentos pelo meio fio de uma avenida principal da cidade. As avenidas e ruas vazias eram o seu momento. Começa a chover forte. Ela não para e segue dançando com a chuva, atravessando o escuro da noite de natal. 65


Terceira parte Já são 1:00 da manhã. Um jovem acaba de sair às pressas do bar onde comemorava a virada natalina com amigos e desconhecidos. Um bar lotado. Bebeu um pouco. Está dirigindo enquanto chora, as lágrimas escorrem pelo rosto e depois pelo volante. Está desapontado, sente-se traído. Havia alguém que ele amava no bar. - Nãooooooooooo. Que raiva, não, não fez isso! Não! Eu não vou voltar! Eu quero, mas não.

Agora tenho que aguentar. Foda-se! Chove forte e ele não enxerga bem a avenida vazia pela qual segue. As ruas estão desertas. Luzes coloridas natalinas e amareladas de postes brilham fortes e belas através do para brisas todo molhado de chuva. Enfurecido, chora mais. - Nunca mais. Nuncaaaaa maaaaais! Eu preciso ficar sozinho, eu preciso ficar sozinho, eu preciso... Segue pela avenida, dirigindo meio mal. Zigzag. -

Última parte Chove mais forte. O homem depois de ir embora do hipermercado e caminhar umas duas horas por ruas da cidade está cansado, ensopado pela chuva e agora anda mais lentamente. Não quer ainda voltar pra casa. Enquanto atravessa uma faixa de pedestres de uma avenida, um carro freia de longe, perde muita velocidade, mas desliza um pouco e o acerta. O jovem desce do carro, assustado. Não entende claramente o que houve, está levemente

bêbado. Se aproxima do homem no chão que se levanta , vai em sua direção e o abraça, como que pedindo algum tipo de auxílio, mas sem conseguir falar. O jovem o segura e ambos meio que se abraçam, desajeitados, girando, caindo, levantando-se, caindo de novo, e segurando-se um no outro. Essa movimentação estranha se mantém enquanto a dançarina performática observa, estática, de longe, sem conseguir se mexer. Sua imobilidade ainda sim é uma dança, a melhor dança que executou durante toda a noite. O jovem e o homem se mantêm estranhamente abraçados e cambaleando no meio da faixa de pedestres. Tudo é molhado pela chuva com exceção de um

presépio em frente a uma farmácia na esquina da faixa de pedestres onde toca uma música natalina em monótono. O homem e o rapaz continuam dançando.

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A odisseia terrestre ditada num sonho -Cão da morte

Comecemos do meio, para depois retornarmos ao começo, apenas para fins metalinguísticos.

Contentai-vos em conhecer as obras de Deus; pois,

se os homens tivessem podido conhecer todas as coisas, teria sido inútil o parto de Maria; e os vistes desejar, sem resultado, conhecer a causa das coisas, tanto que a insatisfação de seu desejo constitui, eternamente, a sua pena. Dante Alighieri, A divina comédia – Purgatório.

Este verso de Dante nos cai bem como reflexão sobre o seguinte conto, confabulando sobre a eterna insatisfação do homem. Gosto de pensar que o universo se contorce insatisfeito desde a primeira faísca, se comprime e se vasta perguntando-se sua existência, partindo daí criou a vida, criou a palavra, para que haja a pergunta inicial: O que quero de mim? O que faço de mim? Segue irrespondível.

...

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Eternamente antes, o silêncio.

Súbita – uma explosão cósmica de amplitude imensurável, superior a Deus; formam-se as

estrelas varrendo com o caos o anterior vácuo universal. Que era por si mesmo, incompreendido. Formam-se as galáxias, arquitetam-se as constelações. Há choque atômico e fusão. Vão guerras e colisões. Equilibram-se os planetas, caem cadentes, sustentam nebulosas, pilares, astros, surge uma célula que se chama de vida para enfim, não no fim, perguntar-se por quê.

E por que depois de tantas revoltas em inércia do universo, frente a essa dádiva, chega um dilema à boca de um homem latino-americano de classe média, que não disse em palavras, nem supôs a frase em vigília: Por quê homens constroem bombas para matar homens que constroem bombas para matar homens que...? E a pergunta se espirala.

Ele, José, não tinha o repertório científico categórico para teorizar. Se estava no itinerário da primeira explosão cósmica a odisseia humana? Resta tanta incerteza filosófica quanto certeza matemática. Vasto foi por certo, aquele sonho que teve; extenso além do que pode ser escrito à frente, resumirei em pequenos galopes oníricos a experiência que teve José. A maneira pela qual obtenho a informação, o leitor sinta-se livre para confabular.

Era setembro; em algum ano da década de noventa, ocidente. Ninguém saiu de casa naquele dia para ver o presidente discursar a respeito da guerra. Feito o anúncio em todas as transmissoras, a comoção foi observada nos rostos tolos, tão inexpressivos quanto uma palma de mão. Breve, um alvoroço de compreensão surgiu ali e aqui, já se ouvia os vizinhos todos comemorando, “a guerra, a guerra vai mudar! ” Gritavam os átrios vazios dos corações de quem se ajeitava para ouvir aquele santo de terno dizer que já sabia das intenções da Coréia, e

revidaria antes. A bomba-H havia sido testada com sucesso pelos aliados, chamavam sua versão mais aprimorada de a bomba-humor.

D-E-V-A-S-T-A-D-O-R-A, garrafais nas manchetes! A quilômetros da cratera de impacto, depois do rugir cogumeloforme e a nuvem espessa colorida, com urgência fora necessário socorrer até mesmo os generais que autorizaram o apertar do botão do lançamento, caindo ao chão na sala de reuniões num riso mortal, bravo e violento. Juste en France! Aquelas pessoas amarradas que nem se dão o bom dia!

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A convenção de Estocolmo de 95 acontecia, e os países orgulhosos do seu dever de casa ambicionavam na frente de todos seus novos e ampliados arsenais: A Bélgica declarou que estaria apontando seus lança-flores para bombardear as cidades quando chegasse a primavera, chovendo com graça, flores dos céus. De semelhante maneira na gelada Alemanha. Aviões espalhariam as capitais com rosas, tulipas, begônias, margaridas, girassóis. A síria, por sua vez, declarou que homens do exército invadiriam as casas de todo o mundo, enviando seus soldados vestidos palhaços, com os coletes preenchidos de doces, mais flores, livros e histórias fantásticas como este sonho.

O mundo todo concordou durante a convenção, sim! Sim, SIM! Cá e lá! As metralhadoras seriam substituídas pelas novíssimas metralhamores. Poetas arremessariam seus poemas nas vidraças. As únicas pistolas utilizadas pelo ISIS seriam as de água. E as minas explodiriam confetes. Os caças no céu em seus rasantes desenhariam a palavra P-A-Z em branco e colorido. Talvez, a única guerra que haveria seria de bexigas d'água quando retornasse o verão.

Já nesse parágrafo, José acordou tão rápido quanto o cochilo pegou-o de surdina em sua

poltrona; agora seu corpo devolvia-lhe a vigília solitária, seria um pequeno tapa na palma do pé suficiente para arrastá-lo afora da dimensão onírica, como se fosse volátil demais o estado de felicidade dentro de um sonho e um mero desconforto externo figurasse um leve gotejar de tristeza, suficiente para manchar o véu alegre e infantil; e dois pensamentos adiante, se perguntava quantos megatons de explosão atômica necessitava para expurgar-se deste outro plano que era a vida vivida, que bem que poderia estar dentro de outro sonho.

José que na verdade poderia ser bem chamado de Saloth Sar, Pinochet e derivados tirânicos,

mas que José lhe caia bem ao fim da vida; vasto simples; fora general penta estrelado, comandante do 38º batalhão da Luftwaffe, na noite em novembro de 1940 quando a blitz bombardeou Londres; também ordenou e desordenou no Camboja, ano de 1975, Phnom Penh a cidade massacrada; a ficha suja de sangue mas lavada pelas condecorações de guerra e aquele prêmio memorável em plena convenção em Belgrado durante a década de setenta, discursou bonito em um dos maiores palanques do mundo sobre a arma moderna por envenenamento tóxico e radioativo. Não se pode afirmar convicto que de fato tenha ordenado os ataques, as guerras e os massacres, carecem os relatórios oficiais, apagados, suporíamos que indiretamente um dedo dele ou as ambas botas estariam sobre as costas dos comandantes, ajoelhados curvos e se perguntando por quê. 69


José não tinha as respostas para suas perguntas no final da vida; apenas rememorava um ditado falado sempre por seu avô acamado Marechal Dório Sabatella, dias antes da morte num aposento que ostentava toscos papéis de parede amarelo pastel, “dê a um homem uma tarefa árdua e má, uma justificativa e ele a fará sem pensar duas vezes”; no entanto, agora, restava ele sem um nome, sem título nem patente, sem a justificativa, as únicas estrelas que pendiam sobre seus

ombros eram as do céu noturno, equidistantes, distantes; sem a mesma intenção do avô, sua tarefa – cuidar dos seus; sua justificativa – que não repetissem seu errado destino.

Cá agora estava José, José de qualquer coisa, espiralado pelo destino, sua história repetia a da geração anterior, esquecido num quarto tosco sem nome e sem amigos, e sem as palavras na boca antes de morrer. O tempo lá fora perscrutava uma intermitente guerra mundial, e a sua cidade se encontrava na zona de bombardeio; logo, se ouviu à tarde, pelas frestas do quarto antes mesmo do soar da sirene, Boom Boom! Bang Bang! E muitas pessoas gritando horrores com a surpresa, não pelos palhaços, nem pelas flores; era fogo que chovia, um fogo inapagável, eterno enquanto queima, tornando dantesca a tragédia antevista e arquitetada por um homem, cujo nome, endereço e data de aniversário ninguém se lembrava.

Devo salientar que José morreu sem amigos.

Devo salientar que morreu esquecido.

Devo salientar que jamais tornaremos a saber os motivos do universo.

Amarelo pastel, e todas essas cores felizes estavam no cômodo em que José se matou. Subiu em cima de um banquinho, laceou o pescoço, e leu todos os seus crimes em voz alta. E o epitáfio que escreveu, para que alguém se lembrasse, mas ninguém se lembrou. Nem foram lá para vêlo discursar no maior palanque do mundo. Nem mesmo depois da chuva. Se fosse ao menos o seu aniversário que tivessem esquecido... Mas pobre José. Mas pobre foi José. Esqueceram mesmo da vida; e a morte companheira de fardo foi sua última lembrança, não deixando aquelas insolúveis perguntas lhe saírem garganta afora: Por que foi José; e por que o fez, José? ... uma célula que se chama de vida para enfim, já no fim, perguntar-se por quê.

Eternamente depois, o silêncio.

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~ As lagrimas de uma mae ´ - Bubble gum Sua grande frustração era nunca estar sozinha para chorar. Mãe de três filhos – Mateus, Marcos e João – ela fazia parte do vasto número de mães fortes e sozinhas. Mas era única. Era divorciada. Tinha um marido covarde, que insistia em fazer dela sua escrava particular; tudo ficou pior quando ele perdeu o emprego e começou a se distanciar – não apenas dela, mas dos filhos - até o dia em que ela o flagrara com outra mulher em sua cama. Veio o fim.

Nessa época, o filho órfão-de-pai-vivo mais velho tinha 8 anos e o mais novo pouco mais de 10 meses de idade. Foram tempos difíceis, principalmente no começo. Aquele filho da puta com quem dividia cama agora está casado com a amantezinha – e não manda um único centavo. Entrar na justiça tornou-se só mais um motivo pra ter dor de cabeça. E ela era uma mulher forte, daria conta sozinha.

Ela, então, acordava cedo, com a cabeça pesada, com seu filho mais novo deitado no

berço ao lado da cama e o filho do meio dormindo ao seu lado no que seria um espaço vazio na cama king size – esse filho era aquele que tinha medo do escuro (pode procurar, toda família tem um). Acordava carinhosamente o filho mais velho, e começava a correr: troca de roupa, penteia cabelo, procura as coisas da escola, arruma a lancheira dos moleques, entra no carro, ele demora a funcionar (carro à álcool é uma merda), deixa os dois mais novos na creche e leva o mais velho consigo para a escola em que leciona.

E assim acaba sua primeira hora do dia. Todos os dias.

O resto do dia segue esse mesmo cronograma, já que ao meio-dia ela tem que sair de uma escola e ir para outra, do outro lado da cidade e, em meio do caminho, ainda

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deixar o filho mais velho na creche com seus dois irmãos. Odiava o fato de ter que

deixar seus três filhos fora de casa o dia todo enquanto trabalha, mas não havia outra opção - afinal só havia ela para cuidar de seus, e somente seus, filhos. Depois das seis da tarde, após sair da escola e buscar os pequenos, ou rumava direto para casa, ou passava no supermercado ou em alguma padaria. Comiam alguma coisa para disfarçar a fome e então ela ia, como boa mãe que era, para a cozinha. Preparava o jantar e o que seria o almoço do dia seguinte. Apesar dos esforços diários e da rotina assustadoramente conturbada, ela via prazer naquilo, pois ali, naquela hora, e somente naquela, chorava.

Seu dia era tão corrido que não dava tempo para chorar, apesar de sentir o tempo todo aquele vazio, que não é no peito – é um pouco mais pra baixo. Quem sofre sabe o que é. Aquela sensação de vazio que nem a melhor das notícias pode preencher, nem a pior das tragédias pode desvendar. É algo pessoal, seu – ninguém entenderia e por isso, toda descrição de sua dor a qualquer um parecia vaga e de mínima importância. Chorava; não de desespero, mas tinha nos olhos aquelas lágrimas frágeis da desesperança – da sentença certa de que as coisas são assim e que talvez elas nunca mudem. E sofria um pouquinho a cada dia, sempre na cozinha.

Já havia tentado chorar em outros lugares, como no chuveiro ou na cama, mas como dormia com uma criança curiosa que já começava a entender o sentido das coisas, não correria o risco do pequeno Marcos perceber e contar de novo para a “tia da creche”. Tem coisas que só nós mesmos podemos saber. Todo mundo tem algo a esconder. Chorar no chuveiro também era uma missão difícil, já que seus banhos duravam pouco

mais de 5 minutos, já que quando não era um que chorava, era outro que estava fazendo bagunça. Além disso, era obrigada, obviamente, a tomar seus banhos de porta aberta. Novamente, não é uma sensação agradável ter de submeter-se todos os dias às portas sempre abertas; às vezes o que é preciso é somente um pouco de paz, de silêncio, e de uma porta fechada.

A solução então, nada óbvia, era chorar enquanto cortava cebolas. Já havia adquirido esta prática mesmo quando seu marido não era ex, mas aperfeiçoou-a e fez dela algo

cotidiano, quase artístico. Todas às vezes que um de seus filhos perguntava porque a mamãe estava triste, ela respondia a mesma sentença: “não estou triste, filho. Eu choro porque corto cebolas”. Na verdade, ela cortava cebolas porque chorava, mas assim como tem coisa que ninguém tem que meter o nariz, também tem aquelas que para 72


serem explicadas precisam de certa dose de distorção – explicar a realidade não é fácil.

Não se incomodava com o lacrimejar espontâneo de seus olhos por causa da cebola, porque não sabia separar o que era irritação e o que era tristeza. Decidiu então que tudo seria tristeza – a coceira nos olhos, o sentimento e a própria cebola eram tristes. Todos os dias, por 5 minutos, chorava discreta, mas impiedosamente. Enxugava então o rosto e terminava o jantar/marmita do almoço. Graças a esse disfarce, somente ela sabia que seu choro era algo mais. Seus filhos deliciavam-se com o que aprenderam a sentenciar “a melhor comida do mundo”.

Mateus, o maior, cresceu apreciando essa comida que realmente considerava a melhor do mundo e cujo principal tempero eram as lágrimas de sua mãe. Gostava especialmente, por ironia do destino talvez, de “arroz e feijão com o bife acebolado que a mamãe faz”: apreciava cada abocanhada. Sentia o cheiro de onde estivesse – no seu quarto, na sala, no banheiro, no quintal – e não independente se havia ou não acabado de comer, o cheiro sempre lhe despertara água na boca.

Quando finalmente completou 10 anos de idade, algo mudou. Não só por finalmente realizar seu pequeno sonho de ir no banco da frente no carro à álcool que usavam, mas também porque sua mãe conhecera um homem, o sr. Carlos, professor de educação física transferido para sua escola. Sua mãe via o sr. Carlos, na escola ou eventualmente em sua própria casa - daquelas visitas sem graça, que exigiam uma desculpa pra simplesmente poderem se ver por mais de 5 minutos na sala dos professores. Inexplicavelmente, quanto mais via esse homem, pior a comida que sua mãe lhe fazia. O ápice da coisa toda ocorreu quando ela aconchegou o pequeno Mateus em seus braços e disse que, apesar de pequeno, ele já havia idade para entender as coisas e que queria muito que as coisas dessem certo entre ela e sr. Carlos, seu novo namorado. Ali, Mateus percebeu de imediato, as coisas não seriam mais as mesmas. Parou finalmente de sentir o cheiro delicioso do jantar sendo preparado, apesar de ainda ser servido todos os dias, preparado diariamente por sua mãe. Não sentia mais o mesmo gosto e já não se empolgava com os pratos especiais que sua mãe às vezes (leia-se: quando o dinheiro dava) lhes preparavam. Passou, como fazem as crianças e os idiotas, a odiar a causa

aparente

do

problema

sr.

Carlos.

Odiava-o com sua alma, apesar de vagamente lembrar-se o que era alma (ouviu uma ou duas vezes na aula de educação religiosa). Mas sabia o que era pecado e sabia que queria cometer um, qualquer que seja, contra o homem que roubou dele o gosto da comida de sua mãe.

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Um dia, entrou correndo na sala onde sua mãe assistia TV com o sr. Carlos e mordeuo no braço, tirando dele uma fatia de pele e um pouco de sangue. Era um crime hediondo para uma criança inocente. É claro que sua mãe lhe deu uns tapas – ele já sabia que isso estava por vir e resistiu. Depois de mais calma, ela colocou-o em seu colo e perguntou por que fora tão violento com o homem que finalmente conseguiu entrar na vida deles, depois de seu pai sair. O garoto prestou-se somente a responder: “eu não gosto dele e nunca vou gostar – ele tá roubando você da gente”.

Sua mãe então deu boa noite ao garoto e o colocou para dormir. Na noite seguinte, depois de toda a correria a que já estava acostumado, Mateus lia um gibi na sala, ou melhor, passava pelas figuras sem nem mesmo prestar-lhes atenção. Percebeu então que um cheiro delicioso perpassava por suas narinas e inundava a casa o destilar do sabor em forma de fumaça. Ele respirou fundo, apreciando cada segundo daquele delicioso cheiro e se emocionou. Sua mãe voltara a cozinhar a melhor comida do

mundo. E agora tudo estava bem.

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