O Círculo

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Editorial A revista ‘O Círculo’ nasceu com um intuito geral de promover a produção local de conteúdo, funcionando como uma ferramenta de aprimoramento e prática criativa, e ser um veículo de sustentação para ideias e pensamentos construtivos, divergindo de conteúdos inférteis e do ócio que são tão comuns na internet. Nossa intenção é construir um círculo ativo de troca de ideias e experiências entre os colaboradores, incluindo também todos os interessados em acompanhar nossas produções. Participando deste projeto, estamos aprendendo, criando, compartilhando, e assim nos

tornando melhores escritores, pensadores e pessoas, e estamos unindo forças para ajudar a produzir uma sociedade mais capaz e consciente. Todos que quiserem fazer parte podem entrar em contato conosco e passar a colaborar com o projeto; nem mesmo constância é necessária. O círculo será um reflexo da nossa capacidade de fazer algo como conjunto. Nós acreditamos que todos possuem algo interessante para contar e que a habilidade de contar está ao alcance de todos. Na prática, nossa revista é uma coleção mensal de textos independentes, com temas e níveis técnicos variados, unindo-se pelo interesse de quem escreve em transmitir aquelas ideias, experiências ou sensações, naquele momento. Criamos pseudônimos para desvincular nossas ideias das pessoas que somos, exercitando a quebra de propriedade e promoção de quem escreve, ao mesmo tempo em que promovemos a criação de uma personalidade idealizada que serve como portadora do conteúdo e acolhedora da identidade daquele que escreve, no momento da criação. Nesta primeira edição, introduzimos diversas colunas mensais que vão tratar de temas como filosofia, música, matemática, psicologia, etc, portanto estes assuntos serão recorrentes nas próximas edições. Contamos com 11 colaboradores e com 13 textos escritos, 6 deles em colunas temáticas. Se o nosso projeto mexeu com você em algum sentido, deixe-nos a sua opinião, venha participar conosco. Para entrar em contato, envie um e-mail para: textos.ocirculo@gmail.com. Para enviar dúvidas, opiniões, sugestões, etc, com a possibilidade de se manter anônimo, utilize o endereço: www.mepergunte.com/ocirculo. Lá iremos manter um mural com os comentários enviados e nossas respostas.

Saudações,

O Círculo.

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Índice

ÍNDICE

04. Filos e Sofia: O Robô Assassino (Wild Child) 09. Como queríamos demonstrar: Qual o tamanho do infinito (Fermath)

14. Compondo um sentido: A escala pitagórica e as notas musicais (Sol) 24. O que nos faz humanos: Escolha cega (Rorschach) 31. Desconsolos do Ego: Ego? (Mononoke) 34. A viagem das viagens: Considerações necessárias para questionar (Bubble gum)

37. PEC 241/2016: Um breve entendimento, suas motivações e consequências (Sr. Y) 44. O Ponto Zero (Wild Child) 51. A localização espacial da verdade ({S, ε, B}) 63. Princípio da honestidade (Wild Child) 69. Gloriosa Libertação – O caminho para o eu divino (Aurora Ankh)

72. O ser humano por trás do monstro (Selfish Light) 74. Suspensão (Melancolírico)

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A seção Filos e Sofia é baseada no formato do livro de Julian Baggini, O Porco Filósofo (The pig that wants to be eaten), em que o autor apresenta uma cena que instiga uma reflexão e segue com ideias e considerações a respeito da situação, deixando perguntas em aberto para o leitor. Aqui, vamos sempre contar algo que aconteceu nas agitadas vidas dos amigos Filos e Sofia e depois levantar questões sobre algo de interessante ou perturbador que se esconde por trás dos acontecimentos.

1. O ROBÔ ASSASSINO

- Wild Child

Um dia Filos foi dormir animado por ter aprendido a programar. Não conseguia pegar no sono pensando nas infinitas possibilidades que tinha à sua frente com aquela nova ferramenta. Sem sucesso, resolveu se levantar e passou a madrugada fazendo um programinha que recebia um número inteiro e o quebrava em fatores primos. Sentiu-se imediatamente orgulhoso, seu programa fatorava números enormes em um segundo. Pela manhã, foi direto se gabar para sua amiga Sofia. Chegou com o seu computador e disse: “Sofia, veja minhas capacidades, diga um número inteiro que eu calcularei seus fatores primos instantaneamente!” Sofia, que era muito competitiva, duvidou e lançou um número enorme. Um segundo depois, Filos recitou seus fatores, olhando para a tela do computador. Ela objetou: “Você acha que sou idiota? Você não fez estas contas, o computador fez!” Mas Filos já tinha a resposta preparada: “Ah, claro, mas eu fiz o programa. Ele faz o que eu mando e eu fui capaz de produzir esse resultado.” Sofia, raivosa, saiu correndo com a intenção de aprender a programar também e fazer um

programa ainda mais impressionante. Depois de alguns dias, eles se encontraram novamente e ela lhe apresentou seu computador. “O que é isso?” Filos perguntou. “Esse é o meu programa.” “E o que ele faz?” “Você digita qualquer palavra e ele sabe a tradução dessa palavra para 15 línguas e sua definição no dicionário, é inteligentíssimo!”

“Pois com licença, Sofia, vou fazer algo melhor.” E assim começou uma corrida intensa em que eles sucessivamente apresentavam projetos computacionais cada vez mais elaborados, consequentes de aprendizados incessantes. 4


Filos fez um relógio que registrava hábitos e despertava automaticamente. Sofia fez um bichinho virtual que tinha fome e cantava músicas. Filos fez um robozinho aspirador que detectava sujeira e limpava. Sofia fez um robô que era um monitor com braços capaz de jogar xadrez e mexer as peças. Isso intrigou Filos: “Como ele faz isso? Como ele joga xadrez?” “Eu passei várias semanas implementando incansavelmente estratégias de xadrez em seu código, ele analisa o tabuleiro e detecta a melhor jogada em um segundo!” Diante disso, Filos sumiu por alguns meses, o que fez Sofia se sentir vitoriosa. Mas um dia, para sua surpresa, ele surgiu acompanhado de um robô humanoide que gentilmente a cumprimentou: “Olá, Sofia, muito prazer.” Ela perguntou a Filos, desconfiada: “E o que é que isso aí faz agora?” Então o robô interveio: “Minha cara, eu não sou nenhum ‘isso’, meu nome é Ral e eu tenho sentimentos.” Sofia não acreditou naquilo, considerou-se ainda vitoriosa e chamou Filos de impostor. Disse que era impossível implementar sentimentos e pediu para que ele dissesse o que ele realmente fez.

“Eu não vou dizer, tente me provar que eu sou um impostor, conviva com ele”. Então, Sofia interagiu com o robô por um tempo até desistir; o robô era assustadoramente humano. Parecia que Filos havia ganhado esta corrida. Depois de tudo, Filos se sentiu incomodado com a ideia de desligar seu robô, isso parecia errado. Então, deixou que ele ficasse vivendo com ele até decidir melhor o que fazer. Com o passar do tempo, o robô ficava cada vez mais estranho e assistia a muitos documentários. Também passava as tardes gritando na rua sobre conspirações. Eventualmente também resolveu apunhalar o prefeito e voltar para casa.

O escândalo resultou na prisão de Filos, que recebeu a culpa pela morte do prefeito. No tribunal, Filos apresentou sua defesa, desesperado: “Vocês têm que me ouvir, eu construí o robô sim, mas eu não programei nada do que ele fez! Só implementei módulos gerais de experiência e aprendizado, a culpa é dele! Ral é o culpado, ele planejou o assassinato sozinho!” A polícia também capturou Ral e analisou seus códigos, provando a defesa de Filos. Diante disso, os jurados não souberam o que fazer com Filos. Seria este um crime sem culpados?

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QUESTÕES Δ Filos é o autor dos cálculos de fatoração como diz que é? Δ É possível que um robô como Ral possa existir? Δ Como discernimos a intenção do robô com a de seu criador? Δ Filos fica ou não preso?

Quando Filos reivindica a autoria da fatoração, nos perguntamos em que sentido ele considera essa autoria; certamente ele não executou em sua mente os processos,

mas se apoia no fato de que, se a autoria fosse atribuída a alguém, deveria ser a ele. O programa não é alguém, assim como tudo que construímos para nos auxiliar. Se você dirige um carro, você comanda as ações do carro, mas as ações são dele. Seu corpo sozinho não consegue adquirir a velocidade que o carro consegue. Ainda assim é bem natural entender que o carro não age e que tudo que o carro faz é de autoria de quem o está manipulando, como uma ferramenta. Tanto os criadores do carro quanto o motorista podem ser autores de suas diferentes façanhas. Para nós, também, a autoria possui um status especial no sentido de que somente o autor consegue explicar o ato de criação. “O que isso faz?”, no caso de um artefato,

ou “Por que você fez isso?”, no caso de uma ação, são perguntas direcionadas aos autores. Esta questão também tangencia a ideia de fenótipo estendido; evolutivamente, pensamos que as garras de um tigre ou os dentes de um tubarão fazem parte das estratégias de seu corpo para garantir sobrevivência, fazem parte do seu fenótipo. Mas e as conchas de um caranguejo-eremita ou as teias de uma aranha ou até mesmo os ninhos de um pássaro? Essas são estratégias mediadas por uma ação, que não fazem parte do corpo, mas fazem parte do fenótipo, das características geneticamente programadas; são fenótipos estendidos. Os seres humanos construíram linguagem e um ambiente cultural a partir de características evolutivamente programadas e, desde então, utiliza estas ferramentas para compor outras e se aprimorar. No nosso processo de educação e desenvolvimento, somos atualizados com um grande pacote de fenótipos estendidos. Então, quando dirigimos um carro, acoplamos aquilo ao nosso corpo e ganhamos novas habilidades. Assim, usamos aquilo que já foi entendido e aprendido e nossa capacidade para entender e aprender para criar coisas que podem crescer cada vez mais em complexidade e eficiência. Então, à medida que entendemos como o nosso cérebro funciona, vamos nos tornando capazes de criar artefatos inteligentes da forma que somos? Ou seja, o robô de Filos poderia eventualmente ser criado? Esta é uma ideia que ultimamente vem se concretizado de 6


forma assustadora. Há décadas, vemos computadores fazendo coisas incríveis, executando tarefas que nós sozinhos não conseguiríamos (uma simples calculadora pode fazer isso). Mas isso não tem nada a ver com o nosso cérebro, esses computadores são como o jogador de xadrez de Sofia; fazem coisas incríveis, mas fazem somente aquilo que foi programado por nós. Sofia teve que incorporar na programação tudo o que ela queria que o computador soubesse fazer no xadrez, desde regras até seu “senso estratégico”. Essa é a programação por trás do Deep Blue, o programa de computador que enfrentou o campeão Garry Kasparov no xadrez. Mas essa não é a programação por trás do AlphaGo, uma inteligência artificial que joga go (muito mais complexo que o xadrez) e derrotou o jogador Lee Sedol, ranqueado como 9p, o mais alto título profissional (o que fez com que o AlphaGo fosse oficialmente reconhecido como 9p). AlhpaGo foi programado com redes neurais e seu código basicamente o dizia para aprender com dados, treinar e aprender com o que já aprendeu. Este sim é o nosso modo de fazer as coisas; do outro lado, a neurociência se aproxima cada vez mais do consenso de que nossos comportamentos mais complexos também são emergentes de muitos conjuntos de pequenas computações cerebrais, circuitos de neurônios. Por avanços desse tipo, estamos bem seguros de estarmos próximos de implementar em ótima medida o nosso tipo de comportamento. Já estamos em uma região estranha, em que nossas criações começaram a fazer

mais do que o proposto, a fazer coisas que não foram programadas. Assim como Ral, o robô de Filos. Isso nos leva ao status de engenheiros competentes, mas sem compreensão; ou seja, criamos inteligências que podem fazer o que queremos, mas não dominamos a forma com que fazem isso, não precisamos saber para que elas saibam. Coloco nestes termos para nos comparar ao outro bem conhecido engenheiro competente, mas cego. O próprio algoritmo evolutivo, que, vejam só, é o nosso projetor. Com tudo isso, podemos acreditar na plausibilidade de Ral. Mas o que é Ral? Ele

pode nos imitar muito bem, mas não tem consciência, é um simples robô, né? Então, espero com essa discussão pelo menos motivar você a questionar o status da nossa consciência. Qual a propriedade que temos para negar a consciência a algo que faz o que fazemos, com a mesma sensibilidade? Principalmente considerando que nós mesmos fomos moldados no processo de evolução, sendo gradativamente melhores em processar informação e resolver problemas, até o ponto em que “adquirimos consciência”, nos tornando... humanos? No caso da história, nos esbarramos em um problema de intencionalidade. Ral quebra a ideia de que a intenção do artefato é a de quem o projetou. Não podemos mais

entender que sua intencionalidade deriva da intenção original de Filos (assim como entendemos 7


que a intenção de seu despertador, ao programar acordá-lo, deriva de sua intenção original de que isso seja feito). Se considerarmos que, então, Ral tem intenções e a culpa é inteiramente dele, isso nos deixa com uma sensação estranha de caos. Até onde isso poderia chegar e quantas brechas não seriam abertas para retirar a intenção e a culpa dos projetores? E o quão angustiante é começar a nos assemelhar com nossas criações, quem sabe sermos ultrapassados por elas? O que acontece com a nossa moral? E a nossa preciosidade? E se considerarmos que Filos é o culpado? Ele deveria ter a responsabilidade sobre o que ele criou. Uma pessoa não pode soltar algo com tanto potencial na sociedade e simplesmente assistir-lhe se tornar um monstro, né? E isso é diferente de culpar os pais pelos atos de um filho, porque o filho é uma pessoa, ok? Ok. Isso pode mesmo resolver o problema, separamos o que é uma pessoa e o que não é. Um dos nossos é aquele que é biologicamente um ser humano e só estes são passíveis de intenção e culpa. Mas essa decisão nos deixa com o ônus de provar o sentido dessa divisão. Nós precisamos concluir seriamente que nós temos intenção e Ral não tem. E a dificuldade vai além da nossa semelhança comportamental, é difícil também separar nossas origens. Dentro dessa perspectiva, estamos perigosamente próximos de acabar aceitando que nem mesmo nós possuímos essa intencionalidade que queremos nos dar. Questionamos a existência do autor que vive dentro de nossa maquinaria. A nossa

intencionalidade original é, em si, derivada da intenção evolutiva que criou nosso corpo, nosso sistema nervoso, e por fim até mesmo nossa capacidade de falar e aprender; a evolução gerou nossas mentes e nosso espaço cultural (e podemos argumentar que continua agindo dentro desses espaços, pois o algoritmo evolutivo não se restringe à evolução genética e o nosso material genético não é a única forma de replicador). O que é a intenção e, daí, como ela surgiu na história evolutiva? Sem essas respostas, o que acontece com a nossa moral? E a nossa preciosidade? Para você, Filos seria ou não preso? Sob qual pretexto?

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Qual o tamanho do infinito? -Fermath Certa vez, vi no meu facebook uma postagem com uma citação de um livro, que era mais ou menos assim: “existe uma quantidade infinita de números entre 0 e 1. Tem o 0,1 e o 0,12 e o 0,112 e uma infinidade de outros. Obviamente, existe um conjunto ainda maior entre o 0 e o 2, ou entre o 0 e o 1 milhão. Alguns infinitos são maiores que outros”. Logo chamei a pessoa que postou isso para conversar e falei para ela que de fato existem infinitos maiores que outros, mas que entre 0 e 1 existem tantos números quanto entre 0 e 2. Mostrarei uma maneira simples de ver que entre 0 e 1 (isto é, no intervalo (0,1)) há “tantos números” (para os mais criteriosos, me refiro aos números reais) quanto no intervalo (0,2). Para isto, basta montar a seguinte tabela: x

2.x

0,15

0,30

0,000001

0,000002

0,0235

0,0470

0,999

1,998

0,75

1,5

0,3333333...

0,666666...

0,5

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Na coluna da esquerda desta tabela, colocamos os números entre 0 e 1, e na coluna da direita multiplicamos esses números por 2. Observe que todo número entre 0 e 2 terá um correspondente entre 0 e 1, e que este será único. Da mesma forma, cada número entre 0 e 1 terá um número associado entre 0 e 2, que será único. Ou seja, formamos “pares” de números, cada par com um número entre 0 e 1 e um número entre 0 e 2, sem nenhum número se repetir nos pares (matematicamente falando, há uma bijeção entre (0,1) e (0,2)). Então se para cada número entre 0 e 1 existe um número entre 0 e 2, eles devem existir na mesma quantidade.

Também é possível demonstrar isso

geometricamente. Imagine dois segmentos de reta, um de tamanho 1 e um outro de tamanho 2. Vamos mostrar que ambos possuem a mesma quantidade de pontos. Para isso, disponha as retas da seguinte maneira:

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Os segmentos de tamanho 1 e 2 são os pretos. A partir do ponto da esquerda, traçamos segmentos de retas (vermelhos) que terminam no segmento maior. Observe que cada um desses segmentos vermelhos vai passar por um ponto do segmento de tamanho 2 e por um ponto do segmento de tamanho 1, de modo que eles associam, um a um, os pontos do segmento maior com os pontos do segmento menor, o que prova que eles existem em mesma quantidade. Da mesma forma podemos mostrar que existem tanto números entre 0 e 1 quanto entre 0 e 1 milhão. Além disso, com algumas adaptações podemos ainda mostrar que existem tantos números entre 0 e 1 quanto entre

-infinito e + infinito!

Mas a citação do livro não está completamente errada, ainda existem infinitos maiores que outros. Consideremos o infinito dos números inteiros positivos, isto é, o conjunto {1,2,3,...}. Todo conjunto que possui o mesmo tamanho que este, isto é, que podemos “montar pares”, como fizemos nos exemplos anteriores, com os números inteiros positivos, é chamado de enumerável. Por exemplo, os números inteiros maiores que -30, isto é, o conjunto {-29,-28,-27,...} são enumeráveis, já que podemos montar os pares da seguinte maneira: (-29,1),(-28,2)(-27,3),... . Fica como desafio mostrar que o conjunto dos inteiros (incluindo negativos) é enumerável. Um dos conjuntos enumeráveis particularmente interessantes é o conjunto dos números racionais, isto é, o conjunto dos números que podem ser escritos como frações de números inteiros (com denominador diferente de zero). É interessante notar que o conjunto dos números racionais aparenta

intuitivamente ser maior que o conjunto dos inteiros positivos ( o que

implicaria não ser enumerável), já que entre 2 números inteiros sempre existirá uma infinidade de números racionais. Porém, um jeito de enumerar os racionais é arranjando eles da seguinte forma: 10


Após isso, enumeramos os racionais de acordo com a ordem das flechas. Ou seja, os pares serão (1,1/1), (2,2/1), (3,1/2), (4,1/3), (5,2/2), ... . Alguém pode ainda dizer que alguns racionais repetem, por exemplo temos 1/1, 2/2, 3/3, etc. Neste caso esta enumeração nos mostra que temos talvez até mais inteiros do que racionais, já que “sobram” alguns inteiros sem nenhum racional associado, como por exemplo o 5 que não estaria associado com nenhum número, já que o 2/2=1/1 já está associado com o 1. Para corrigir isto com uma enumeração mais precisa, basta pular os números que já

apareceram na lista e continuar nossa contagem, por exemplo teríamos o par (5,3/2) ao invés de (5,2/2), já que a fração 2/2=1/1 já apareceu anteriormente. Dito isto, vamos ver que existem conjuntos infinitos que não são enumeráveis, isto é, conjuntos com os quais não é possível montar esses pares com os números inteiros positivos e que portanto são “maiores” que o conjunto infinito dos números inteiros positivos. O conjunto de todos os números (reais) é um exemplo deste tipo de conjunto. Outro exemplo, que dessa vez iremos provar não ser enumerável, é o conjunto dos números reais entre 0 e 1, formados apenas pelos algarismos 0 e 1. Estão neste conjunto, por exemplo, os números 0,01010101010101... e 0,10110111011110... . A prova que este conjunto de números não é enumerável é atribuída a Georg Cantor, com o famoso processo da Diagonalização de Cantor. Funciona assim: Suponhamos que os números entre 0 e 1, formados apenas pelos algarismos 0 e 1, sejam enumeráveis (note que supomos o contrário do que queremos provar, fazemos isso para tentar encontrar alguma consequência contraditória e concluir que o que supomos é falso) e seja S1, S2,S3, ... uma enumeração qualquer desse conjunto (por exemplo, se S8 =0,11, temos o par (8;0,11) ). Vamos mostrar que pelo menos um número do nosso conjunto está fora dessa enumeração. Para isso, primeiro colocamos S1, S2,S3, ... numa coluna, conforme a figura a seguir:

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Depois disso, pegamos os elementos da diagonal dessa coluna e invertemos seus algarismos 0 e algarismos 1 para encontrar o elemento S, assim como no exemplo. Note

que s não pode estar nessa enumeração, já que se s estiver na enumeração, algum algarismo seu estaria na diagonal considerada e, portanto, esse algarismo deveria ser igual a ele mesmo invertido, o que é uma contradição. Portanto nossa suposição de que este conjunto é enumerável é falsa. Isto mostra que o infinito dos números entre 0 e 1, formados apenas pelos algarismos 0 e 1, é de certa forma maior que o infinito dos números inteiros. Além disso, sabe-se que ele é do “mesmo tamanho” que o infinito de todos os números reais.

Conclui-se, então, que a grande maioria dos números na reta dos reais é irracional (vimos que os racionais são enumeráveis e os reais não). Outro fato curioso é que os números não transcendentes, ou seja, aqueles que podem ser raízes de polinômios com coeficientes reais (ex: 5, 7, sen(15°), etc.) são enumeráveis. Ou seja, a grande maioria dos números da reta real é transcendente e raramente os representamos (o mais famoso é o 3,1415..., representado por π). A grande maioria dos números na reta real está então no anonimato: nunca foram/serão representados ou tiveram alguma utilização prática. A Hipótese do Contínuum é uma ideia que diz que não existe nenhum infinito que seja ao mesmo tempo maior que o infinito dos números inteiros e menor que o infinito dos números reais. Durante mais de 60 anos, saber se a hipótese é verdadeira ou não era um dos principais problemas dos matemáticos da época, senão o principal. Em 1938, Kurt Gödel provou que é impossível provar que a hipótese é falsa, e finalmente em 1963, Paul Cohen provou que é impossível provar também que a hipótese é verdadeira (com os axiomas matemáticos que utilizamos). Pode parecer estranho, mas sempre existirão 12


afirmações matemáticas que são impossíveis de provar quando definimos nossos axiomas matemáticos, isto é, quando definimos as regras da matemática. Quem sabe isso seja assunto de algum texto futuro. Para quem se interessou pelo assunto, deixo um problema que envolve essa ideia de enumeração de conjuntos e de infinitos maiores que outros:

O que acontece é o seguinte; a soma s começa vazia. Ao escolher n1, Thor coloca na soma todos os números a partir de 1/n1. Ao escolher n2, Loki elimina da soma os números a partir de 1/n2. Os dois jogam infinitamente (tente retirar esta interpretação a partir do enunciado). Pergunte-se: existem mais números racionais ou irracionais? Como escrever este fato para poder utilizá-lo no problema? Um fato que talvez seja útil saber é que n=1∞1n2 = π26 . Na próxima edição, vamos resolver esta questão; até lá.

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Compondo

um Sentido

ó -Sol

Geralmente quando nos interessamos por estudar música, é natural procurar algum instrumento musical do nosso interesse e gastar a maior parte do nosso esforço tentando minimizar a dificuldade física relacionada à utilização do mesmo. Não existe nenhum problema relacionado a isso, mas um fenômeno que ocorre sistematicamente é a forte negligência ao aprendizado de teoria musical. Isso acontece porque muitas vezes subestimamos o poder deste estudo, seja por não conseguirmos visualizar como essas ideias podem se conectar com o nosso progresso no aprendizado do instrumento, ou até mesmo porque a informação buscada se

encontra dissolvida em muitos textos de linguagem geralmente avançada, ou com uma sequência lógica obscura entre os temas. Contudo, o estudo de teoria musical não deve ser subestimado, pois é através dele que podemos traçar um direcionamento lúcido a ser atingido nesta área. E a grande beleza disso é que não é necessário se tornar um músico profissional para começar a compreender o tipo de raciocínio empregado na composição de uma música: com pouco tempo de estudo, já é possível apreciar muito mais qualquer tipo de música que você já gosta. Além disso, o conhecimento estrutural em música é equivalente a uma ferramenta de linguagem (isto poderá ser notado

através do texto deste volume!), de maneira que obter um certo domínio sobre este tipo de recurso possibilita a abertura de uma nova dimensão criativa para ser explorada por sua mente. Esta coluna tem como principal objetivo expor ideias referentes ao campo da teoria musical, de maneira bem acessível e com uma sequência de artigos que permitirá ao leitor aprender um pouco mais sobre o assunto a cada novo volume desta revista. É muito comum que uma pessoa, ainda que não possua nenhum conhecimento teórico musical, saiba que músicas são geradas através de um conjunto limitado de ‘sons’ (ou mais precisamente frequências) que são conhecidos como notas musicais. Contudo, uma questão inerente deste

entendimento e que levanta grande curiosidade é: como é possível escolher alguns entre diversos ‘sons’ possíveis, para compor um sistema básico que funcione como uma espécie de alfabeto musical? Ainda que esta pergunta soe complexa, como veremos a seguir, é possível entender grande parte da fundamentação matemática de toda a nossa estrutura musical sem a necessidade de nenhum conhecimento específico nestas áreas. No texto a seguir, explicarei o que é a Escala Pitagórica e a partir disso, mostrarei como se obtém o conjunto de notas musicais atualmente utilizado nas mais diversas composições musicais. 14


A Escala Pitagórica e as Notas Musicais Para se explicar e compreender as possíveis origens do nosso sistema musical atual, é conveniente recorrer ao entendimento de escalas musicais. Uma escala corresponde a um conjunto limitado de notas, que são produzidas através de uma nota de referência a partir da aplicação de uma determinada regra. Geralmente as regras que produzem as escalas são pautadas nas diferentes maneiras de se combinar diferentes sons. Diremos que dois sons serão diferentes, isto é, teremos a sensação de ouvir barulhos diferentes, quando estes possuírem frequências diferentes. A Escala Pitagórica é conhecida por gerar as notas musicais presentes no sistema musical ocidental. A compreensão das regras desta escala pode ser realizada através da análise dos diferentes sons produzidos por um instrumento musical denominado monocórdio. O monocórdio corresponde a uma ferramenta simples de se produzir som: uma corda livre para sofrer vibrações, presa a duas extremidades fixas. Nossa experiência cotidiana certamente já nos proporcionou interações com objetos semelhantes a monocórdios, uma vez que uma boa maneira de se entender este instrumento é pensar nele como um violão de apenas uma corda. A medida que se altera o comprimento da corda de um monocórdio, diferentes frequências serão emitidas. Assim, imaginemos que Pitágoras montou seu monocórdio com uma corda de comprimento específico, de maneira a produzir um som que soasse agradável aos seus ouvidos. Vamos considerar que a nota que Pitágoras considerou agradável seja a que atualmente entendemos como o som produzido pela nota musical Dó. Evidentemente não tenho condições de afirmar que o som utilizado como referência por Pitágoras equivale ao som da nota Dó. Contudo, como veremos adiante, a construção desta escala independe da nota musical escolhida como ponto de partida. Chamarei a nota de referência de Dó, simplesmente porque esta irá gerar a escala de notas musicais que é tradicionalmente conhecida por todos: Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si.

O processo consiste em reduzir o comprimento da corda de maneira a encontrar frequências que ‘combinem’ com a nota fundamental. Como todas as notas serão derivadas relativamente à nota tomada como referência, e como estamos interessados somente em frações do comprimento inicial da corda que emite a frequência da nota Dó, vamos estabelecer por simplicidade que essa corda possui comprimento equivalente a uma unidade:

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A ideia é investigar as frequências produzidas quando se divide a corda em tamanhos de mesma proporção (o que pode ser feito pressionando o dedo em determinado ponto da mesma, impedindo que este ponto oscile quando uma vibração for produzida na corda). Reduzindo inicialmente a corda em duas partes iguais, observa-se que o som agora produzido por esta é muito parecido com aquele produzido pela corda em seu tamanho original. Pela grande semelhança destes sons, determinou-se que ele deveria representar a mesma nota Dó, porém um pouco mais aguda que a primeira. Dessa forma, podemos entender que a fração 1/2 nos dará a proporção da corda original que irá produzir a mesma nota. Dizemos que esta nota Dó corresponde a um ‘intervalo de oitava’ (logo mostrarei que a escala natural possui 8 frequências/notas, de maneira que a oitava nota corresponde à primeira, reiniciando o ciclo).

Continuando o processo, podemos dividir a corda em três partes iguais. Retirando-se uma dessas partes do comprimento total da corda, estaremos produzindo uma nota diferente, cujo som parece tão ‘forte’ quanto o primeiro. Devido a esta compatibilidade, atualmente reconhecemos essa frequência como sendo a nota musical Sol, e usualmente a caracterizamos como sendo a nota dominante da escala. Através da figura, vemos que a fração do comprimento da corda em que encontramos essa nota equivale a 2/3 enquanto a distância entre as notas Dó e Sol corresponde 1/3. Geralmente denominamos esta última fração de ‘intervalo de quinta’. Usualmente, chamamos a nota produzida por um intervalo de quinta como sendo dominante da escala.

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Para finalizar o ciclo, dividimos novamente a corda em 4 partes iguais, e em analogia ao caso anterior, obteremos a nota Fá, que corresponde a fração 3/4 da corda, que corresponde à fração

da responsável por produzir um ‘intervalo de quarta’, que neste caso corresponde a uma distância de 1/4 de comprimento da nota inicial. É relevante ressaltar que apesar de termos dividido a corda em quatro partes para obter um intervalo de quarta, isso não passa de uma mera coincidência. Como veremos em sequência, a segunda nota da escala, por exemplo, irá corresponder a uma fração da corda de 8/9, mostrando que não há uma simetria deste tipo entre as divisões na corda e a sequência de notas na escala obtidas desta maneira.

Apesar de todo o método parecer abstrato, levando em conta a todo momento a audição de Pitágoras para dizer que um determinado som ‘encaixa’ ou é ‘compatível’ com outro, posso te tranquilizar dizendo que estes padrões são de fato muito nítidos. Quando ouvimos duas frequências muito próximas entre si, devido a um fenômeno físico denominado batimento, escutamos uma espécie de ruído que geralmente atribuímos a alguma sensação de desconforto. Dessa forma, dois sons devem possuir frequências um tanto espaçadas para que você os ouça simultaneamente e os interprete como um som ‘não problemático’. Caso possua um instrumento à base de cordas, recomendo que você tente encontrar para cada uma delas, através somente do som produzido pelas vibrações na corda, qual casa do instrumento corresponde aos intervalos de quarta e quinta da mesma corda solta. Você provavelmente perceberá que sua cabeça faz com que a questão não seja tão subjetiva quanto se parece. Antes de continuar, a partir de agora irei me referir às proporções entre as notas em termos de frequência ao invés de comprimento. Iniciei a explicação através da ideia de comprimentos porque considero que esta é a maneira mais natural de se imaginar a situação: alterar o comprimento da corda produz vibrações com frequências diferentes. De qualquer forma,

podemos construir todo o raciocínio utilizando qualquer uma das grandezas, basta saber que as frequências são inversamente proporcionais ao comprimento da corda. Isso pode ser facilmente verificado com um instrumento qualquer de cordas: à medida que você reduz o comprimento da corda que está tocando (o que equivale a avançar nas casas do instrumento), o som vai

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ficando cada vez mais agudo, o que mostra que a frequência está aumentando. Discutirei mais detalhadamente a relação da frequência com o comprimento da corda em textos futuros desta

revista. Com isso, se assumirmos que a nota Dó tem frequência 1, temos por analogia aos casos anteriores que a nota Sol corresponderá a 3/2 da frequência da nota Dó, enquanto a nota Fá corresponderá a 4/3 desta mesma frequência. Da mesma forma, um intervalo de oitava deve corresponder ao dobro da frequência original. Assim, podemos obter todas as outras notas musicais dessa escala, em função da frequência da nota Dó, simplesmente obtendo os intervalos de quarta e quinta para cada uma das novas notas obtidas. Aqui vou usar a nota Sol, mas você pode se considerar livre para executar o mesmo procedimento com a nota Fá. Agora podemos encontrar as outras notas usando encontrando as notas correspondentes a intervalos de quarta ou de quinta das notas Fá e Sol. Note que para obter a frequência da corda relativa a nota Sol, basta multiplicarmos frequência da corda correspondente a nota Dó (que fixamos como 1) pelo fator 3/2 e com isso, obteremos uma nota ‘a direita’ da nota Dó inicial. Da mesma forma, se quisermos retornar a nota Dó partindo da nota Sol, basta dividirmos o valor da frequência da corda Sol (3/2) pela fração da frequência da nota que corresponde a este intervalo, isto é: (3/2)÷(3/2) =1.Dessa forma, podemos caminhar tanto para direita quanto para esquerda na escala simplesmente multiplicando ou dividindo pelos valores dos intervalos correspondentes. A figura a seguir ilustra este processo.

Vamos começar pegando a nota correspondente a um intervalo de quarta para frente da escala da nota Sol, que equivale a: (3/2).(4/3) = 12/6 = 2. Isso revela que não descobrimos nenhuma nota nova, pois como vimos, esta frequência corresponde à nota Dó, uma oitava à frente da frequência inicial (que corresponde a fração 1/2 em termos de comprimento da corda). O mesmo não ocorre se pegarmos um intervalo para trás na escala, isto é: (3/2)÷(4/3) = 9/8, que corresponde à frequência da nota que identificamos como Ré. As figuras a seguir ilustrarão o processo que estou descrevendo: as setas verdes indicam o sentido da escala e o tamanho do intervalo que estamos avançando, enquanto a reta vermelha representa a fração da corda que será vibrada para produzir a nota em questão com a frequência correspondente.

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É interessante notar que a distância de um intervalo de quinta na direção aguda da nota Sol também irá produzir uma nota Ré, pois (3/2).(3/2) = 9/4, que corresponde à frequência

equivalente a um intervalo de oitava acima da nota Ré anterior, pois 9/4 = 2.(9/8).

A partir daqui, irei completar a escala somente na oitava correspondente à nota Dó de referência (primeira nota Dó representada nas figuras). A nota que dista um intervalo de quinta da nota Ré é dada por: (9/8).(3/2) = 27/16, que representa a frequência da nota Lá:

Voltando um intervalo de quarta da nota Lá obtemos: (27/16)÷(4/3) = 81/64, que representa a nota Mi:

E finalmente, a ‘última’ nota musical pode ser obtida avançado um intervalo de quinta da nota Mi: (81/64).(3/2) = 243/128, que corresponde a frequência da nota Si.

Dessa forma, identificamos através deste processo as sete notas musicais que estamos familiarizados, cujas frequências relativas à nota Dó correspondem às frações: Dó = 1, Ré = 9/8, Mi = 81/64, Fá = 4/3, Sol = 3/2, Lá = 27/16 e Si = 243/128. Uma questão interessante a ser analisada é: qual fração da frequência inicial deve ser multiplicada a cada uma das notas para se obter a nota posterior da escala obtida? Para isso, basta calcularmos a razão entre cada uma das

frequências:

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Frequência do intervalo entre Dó e Ré:(9/8)÷1=9/8; Frequência do intervalo entre Ré e Mi:(81/64)÷(9/8)=9/8; Frequência do intervalo entre Mi e Fá: (4/3)÷(81/64)=256/243; Frequência do intervalo entre Fá e Sol: (3/2)÷(4/3)=9/8; Frequência do intervalo entre Sol e Lá: (27/16)÷(3/2)=9/8; Frequência do intervalo entre Lá e Si: (243/128)÷(27/16)=9/8; Frequência do intervalo entre Si e Dó: 2÷(243/128)=256/243. E assim podemos contemplar mais um resultado da escala pitagórica: existem somente dois

tamanhos de intervalos entre as notas da escala, sendo estes 9/8-1=1/8 e 256/243 -1 = 13/243(como já mencionado anteriormente, quando obtivemos a nota Sol da escala pela primeira vez), os quais vamos nomear de tom e semitom, respectivamente. Devido a este fenômeno, esta escala de apenas dois intervalos entre as notas também é conhecida como escala diatônica. A partir daqui também já é possível compreender porque poderíamos ter iniciado a aplicação do método usando qualquer outra nota como base, pois a escala é definida a partir dos intervalos entre as notas, os quais são medidos através de uma nota adotada como referência,

seja ela qual for. Esta minha escolha simplesmente me permitiu nomear as notas obtidas em concordância com as que conhecemos atualmente. Se tivéssemos elegido a nota Si como referência, por exemplo, teríamos que sua nota dominante corresponderia a uma nota de frequência que equivale à nota F#, com a qual ainda não estamos familiarizados. Contudo, a fração da frequência Si que nos retorna a nota F# continuaria correspondendo a 3/2, como é de Dó para Sol. Apesar de ter identificado as frequências entre as notas como ‘tom’ e ‘semitom’, deve-se observar que na escala pitagórica, o semitom pitagórico não equivale a 50% de um tom desta mesma escala, e sim na verdade a aproximadamente (13/243)÷(1/8)=42,8%. Como veremos a seguir, isso irá gerar alguns problemas de fechamento nesta escala e irá nos sugerir uma redefinição dos valores do tom e semitom da escala diatônica. Como nem todas as notas estão espaçadas pelo menor intervalo de um semitom, é natural esperar que existam outras notas fundamentais entre as notas que se encontram separadas por um tom. Para isso, vamos continuar a investigação pelo mesmo processo utilizado até aqui. Como paramos na nota Si (243/128), podemos obter uma nova nota dentro da mesma escala voltando um intervalo de quarta nesta nota: (243/128)÷(4/3) = 729/512, que identificamos como sendo a nota Fá Sustenido, ou simbolicamente Fá#

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Como esta nota se encontra entre as notas Fá e Sol, é pertinente calcular o intervalo entre F# e as últimas para analisar se de fato podemos assumir o semitom definido anteriormente como o menor intervalo possível entre notas da escala diatônica. Assim: Frequência do intervalo entre Fá e Fá#:(729/512)÷(4/3)=2187/2048; Frequência do intervalo entre Fa# e Sol:(3/2)÷(729/512)=256/243. Dessa forma, verificamos que o intervalo entre Fá# e Sol corresponde exatamente a um semitom, contudo, a distância entre Fá e Fá# corresponde a um valor diferente, um pouco maior

que a fração da frequência da nota de referência correspondente a um semitom (1 semitom = 256/243 ~ 1,0534 enquanto o intervalo obtido corresponde a 2187/2048 ~ 1,0678). A consequência imediata deste fato é que a escala diatônica definida desta maneira não é fechada, isto é, jamais conseguiremos determinar um ciclo finito de notas fundamentais. Isso ocorre, como já mencionado anteriormente, devido ao fato de que o semitom pitagórico não equivale exatamente a metade do tom pitagórico, de maneira que após um ciclo de repetições do método descrito acima, não chegaremos na mesma nota inicial de partida, e sim em uma nota de frequência um pouco maior.

Para ilustrar isso, imagine que pelo mesmo processo descrito anteriormente, partimos da nota Dó e varremos todas as outras notas, sempre avançando no sentido agudo, em intervalos de quinta. Como já descrito anteriormente, a primeira nota obtida seria a nota Sol, depois a nota Ré e assim por diante, até percorrermos um conjunto de 12 notas de frequências diferentes (durante este processo, aparecerão outras 4 notas, além das 8 já encontradas, que identificamos por C#, D#, G# e A#) até por fim retornar novamente a uma nota Dó algumas oitavas acima. A figura a seguir representa uma parcela deste processo, em um intervalo de apenas 3 oitavas da nota Dó:

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Neste processo, podemos observar que a cada dois intervalos de quinta percorridos correspondem a pouco mais que um intervalo de oitava (dois intervalos de quinta sucessivos corresponde a percorrer uma fração da frequência Dó inicial equivalente a (3/2).(3/2) = 9/4 ~ 2,25), de maneira que a nota Dó obtida ao fim desta longa jornada se encontrará 7 oitavas acima

da frequência da nota Dó inicial. Como o intervalo de uma oitava representa o dobro da frequência da nota na oitava anterior, temos que a nota Dó sete oitavas acima daquela tomada como referência possui uma frequência de 1.(2)7=128. No entanto, avançando 12 intervalos de quinta da nota Dó, obtemos a nota de frequência 1.(3/2)12=531441/4096. E assim, a fração correspondente ao intervalo entre estas notas corresponde a: Razão entre a Frequência dos Dós = (531441/4096)÷128=531441/524288∼1,0136. o que o mostra que as notas possuem frequências ligeiramente diferentes. Uma vez que o fechamento das notas através deste método não ocorre por muito pouco, e é

decorrente de uma escolha da proporção de caráter literalmente matemático, é razoável assumir que de fato podemos criar um sistema de 12 notas musicais fundamentais, espaçadas igualmente entre si. Como após uma oitava a nota deve possuir o dobro da sua frequência inicial, podemos definir uma nova escala onde o intervalo de um semitom corresponda a: 122∼1,05946(isto é, multiplicando esse valor por ele mesmo 12 vezes, obteremos o valor 2!). Esta escala é conhecida como Escala Temperada, e é tradicionalmente conhecida como aquela empregada em pianos, que dispõem de ciclos de 12 notas musicais, igualmente espaçadas pelo valor da frequência fundamental de um semitom. Esta escala de frequências corresponde ao sistema básico de notas ocidental, com o qual é possível descrever praticamente qualquer composição musical existente!

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Conclusão Espero que, de alguma forma, eu tenha conseguido esclarecer, ao menos um pouco, a origem, compreensão e padronização do nosso sistema

musical. Apesar do método de Pitágoras

apresentar um pequeno problema, ele é fundamental e completamente suficiente para compreensão do padrão de notas e escalas que usamos atualmente, pois a diferença presente entre o tom e semitom pitagórico em relação aos estabelecidos pela escala temperada é muito pequena, validando assim toda a intuição extraída do procedimento. Gosto de pensar na música como mais uma ferramenta de linguagem, que possui como um alfabeto as 12 notas musicais aqui apresentadas. Considero este estudo importante, pois conhecer e dominar as diversas maneiras com que ‘as letras musicais’ se combinam se mostrará como uma importante ferramenta para acessar diferentes níveis de comunicação e perspectiva de realidade (assim como qualquer outra ferramenta de linguagem). Afinal, a música pode ser tão abrangente como um alfabeto tradicional, que pode ser utilizado para descrever desde o choro de um recém nascido até o extenso epitáfio de um ser humano terrivelmente amargurado.

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o que nos faz humanos

O objetivo desta coluna é mostrar como são feitos experimentos em psicologia, assuntos interessantes que estão sendo estudados, e reflexões que podem ser feitas a respeito deles. A psicologia hoje é dividida em diferentes abordagens, que não passam de diferentes modos de interpretar os fenômenos psicológicos e intervir sobre eles. Aqui, não vamos usar nenhuma dessas abordagens, mas fazer uma interpretação independente de experimentos realizados pelas diferentes áreas.

-Rorschach

Escolha cega Para exemplificar o assunto tratado nesse texto, vou usar o meu episódio favorito de Rick and Morty (se você nunca assistiu a esse desenho, recomendo), que é o episódio 1 da segunda temporada. -ALERTA DE SPOILER- no episódio anterior , o Rick, o Morty e a Sam congelaram o tempo para todas as outras pessoas. Como

Querido, vestiu sua camiseta ao contrário?

eles demoraram para voltar, precisaram fazer uma certa manutenção nos corpos dos pais deles, e com isso, o Morty acabou colocando a camiseta do Jerry (o pai dele) ao contrário. Bom, a cena em que eu queria chegar é

Sim, eu gosto assim. Não sou estúpido.

quando a Beth, mulher do Jerry, repara e o questiona sobre a camiseta. É um momento de confusão, ele também não tinha visto, afinal, para ele, a 5 minutos atrás a camiseta estava normal. O esperado é que ele acharia muito estranho e não saberia o que tinha acontecido, mas não, ele dá uma explicação, ele se justifica. Você pode pensar que isso foi uma piada, que o desenho colocou isso só como mais uma demonstração de como o Jerry é. No entanto, nada é por acaso nesse desenho (de verdade, ele é incrível). Essa cena demonstra dois fenômenos psicológicos muito interessantes - o que vamos

comentar hoje é o chamado Choice Blindness (escolha cega), do outro vou falar na próxima edição. O que acontece é que Jerry prestou tão pouca atenção no que ele estava fazendo que ele realmente considerou ser possível ter colocado a camiseta ao contrário, e além de tudo, justificou uma escolha que ele não fez. Fazer uma escolha cega é fazer uma escolha sem critérios. Sabe aquele típico “Ah, eu não pensei” ou “Não sei o que eu estava pensando” quando você questiona alguém sobre uma atitude qualquer? O que é interessante é que, dependendo de como a situação é construída, a pessoa não consegue perceber que ela “não pensou” ao fazer a escolha, mas passa a acreditar que ela na verdade fez a escolha oposta, assim como o Jerry no exemplo. Agora, você pode até 24 acreditar no que eu estou falando, mas provavelmente pensa que isso é uma coisa de gente de


certo modo “desprovida de muita inteligência”, como o Jerry, não é? Bom, para testar o fenômeno, alguns pesquisadores da universidade de Lund, na Suécia, fizeram um experimento muito interessante. Se você fosse um participante, o que veria desse experimento era o seguinte: o experimentador te mostraria 15 pares de fotos de mulheres; para cada par, você pode olhar as fotos por um tempo, depois elas são viradas para baixo e você tem que dizer qual achou mais bonita e então o experimentador te mostra a foto escolhida. Para alguns dos pares, você tem que justificar a sua escolha, e depois de terminados os 15 pares, você tem que responder algumas perguntas sobre a tarefa realizada. Muito simples, não é? Mas você deve estar se perguntando o que isso tem a ver com escolha cega. Bom, o que os participantes não sabiam, era que em 3 dos 15 pares de fotos de mulheres, o experimentador mostrava a foto que o participante não escolheu (ver imagem). Usando um truque de mágica (de ilusão), ele conseguia trocar a foto sem que o participante notasse. O objetivo desse experimento era analisar se os participantes perceberiam quando a foto mostrada não era a foto que ele escolheu, e, caso não notasse, como seriam as justificativas dadas, sendo que eram pedidas justificativas para todas as fotos manipuladas

e algumas das não manipuladas. Em estudos de psicologia é muito importante que quaisquer fatores externos sejam anulados, para que os fatores a serem estudados sejam os únicos a variar de um participante para o outro. Para tomar esses cuidados, os pares de fotos foram sempre apresentados na mesma ordem, e sempre os mesmos três foram manipulados. Dois fatores foram manipulados para testar sua influência

Curiosidade: ele virava cada uma das fotos com uma mão, e tinha a outra foto escondida na manga da blusa. Assim, na hora de virar a foto ele conseguia trocar a foto escolhida pela que estava em sua manga.

na percepção da troca de fotos: o tempo que o participante tinha para analisar as fotos e o quão parecidas entre si eram as mulheres. No fator tempo, alguns participantes tinham 2 segundos para olhar cada par de fotos, alguns tinham 5 segundos e alguns não tinham limite de tempo. Quanto à semelhança, os experimentadores construíram uma escala de 1 a 10 em que 1 significa baixa similaridade e 10 significa alta similaridade e, para classificar a foto na escala, eles publicaram um questionário online em que as pessoas deveriam classificar cada par de fotos, e então eles usaram a média dessas respostas. Vamos aos resultados: 120 pessoas participaram do experimento (sendo 70 mulheres) e foram realizadas 354 tentativas manipuladas, das quais apenas 46 (13%) foram detectadas na hora, sendo que algumas pessoas disseram ter notado a troca na entrevista depois de encerrado do experimento, totalizando uma média de aproximadamente 25% de detecção. Não houve diferença nos resultados separando grupos por sexo ou por idade. Quanto ao tempo que os 25


participantes tinham para analisar as fotos, não houve diferença significativa comparando 2s com 5s, mas quando os participantes não tinham limite de tempo, o índice de detecção foi maior do que quando o tempo era fixo, mesmo que todos os participantes tenham dito na entrevista final que tiveram tempo suficiente para analisar as fotos. Isolando todos os grupos possíveis para fazer comparações, o índice de detecção não passou de 27%, mesmo quando os participantes tinham tempo livre e estavam comparando fotos avaliadas como de baixa similaridade. Outro ponto interessante é que, quando um participante detectava a troca pela primeira vez, se tornava muito mais provável que ele detectasse as outras 2 trocas. Assim, se analisarmos somente a primeira detecção de cada participante, o índice máximo não passa de 20%. Tipo

Definição

%

Exemplo Ela é radiante. Eu Uso de preferiria conversar com Confabulação características 13,3 ela em um bar do que específica únicas da foto com a outra. Eu gosto de manipulada. brincos. Eu acho que ela parece Espacífica mas Confabulação uma tia minha, ela com alto nível 17,3 detalhada parece mais simpática de detalhes. que a outra. Específica mas Confabulação É, sim, (risada) ela está com alto nível 9,3 emocional muito gata nessa foto. emocional. Justificativa que poderia Confabulação O formato do rosto dela é servir para 10,8 simples bonito, e o queixo. qualquer uma das fotos Eu achei que ela tinha Confabulação Comparação 21,3 mais parsonalidade, de racional não específica. certa maneira. Incerteza Autoexplicativo. 11,6 Eh... Eu não sei. Ah, (risadinha) por que Reflexão sobre a Relato dinâmico 5,2 eu escolhi ela? Ela própria escolha. parece bem masculina. Uso de características únicas da foto Porque ela estava Escolha original escolhida (não 11,2 sorrindo. presentes na foto apresentada).

Outro aspecto bem interessante analisado neste experimento é a relação entre a escolha e o relato de introspecção (ou a justificativa) que os participantes dão de sua escolha. Como essas respostas são subjetivas, os experimentadores criaram categorias a partir de padrões de resposta e, para

classificar

cada

resposta

nessas

categorias, foram usados 3 juízes (para cada relato) que não sabiam se a justificativa que eles

estavam

avaliando

era

de

uma

tentativa manipulada ou não (para ver as categorias de respostas com exemplos, consulte

a

tabela).

justificativas

dadas

Comparando para

as

escolhas

manipuladas ou não manipuladas, foram avaliados os seguintes aspectos: número de não respostas (quando os participantes diziam não saber justificar); tempo verbal

(passado ou presente, ex: ela parece mais simpática ou ela parecia mais simpática); tamanho do relato; quantidade de risadas durante o relato (sendo que a risada é indicativo de nervosismo ou stress). Não foram encontradas diferenças em nenhum desses aspectos. Os experimentadores também classificaram os relatos quanto a emocionalidade, especificidades (quantidade de detalhes) e certeza (ou confiança com que o participante relatava). Os resultados também não mostraram diferença quanto a esses aspectos, e tampouco quanto à classificação mostrada na tabela. O único aspecto em que houve diferença foi o uso de relato dinâmico(quando o 26


participante fala da escolha, e não da foto) no relato de tentativas manipuladas, mas mesmo assim, esse recurso só foi usado em 5% das justificativas. Conclusão: uma parte muito pequena dos participantes chegou a notar a manipulação das fotos, e os que não notaram justificaram as escolhas que eles não fizeram exatamente da mesma maneira com que justificaram as que fizeram. Está demonstrado que a escolha cega é um fenômeno que acontece com muita gente, e não só com gente “tipo o Jerry”. Agora, você pode estar pensando: “Mas claro, essa não é uma tarefa importante, assim como o Jerry vestindo a camiseta, as pessoas não estavam se preocupando em fazer a melhor escolha

possível, elas não estavam prestando atenção”. Essa é uma observação muito válida, é totalmente compreensível que não prestemos atenção em algumas coisas. Nós somos limitados nesse aspecto, é impossível prestar atenção em tudo. E realmente, escolher qual é a mulher mais bonita em um experimento de psicologia não parece muito importante mesmo. Então a questão que fica é: o que é importante? Onde está a linha que separa as tarefas em que prestamos ou não atenção? Que tipo de escolha está imune à nossa cegueira? Os psicólogos da Universidade de Lund também se perguntaram essas coisas, e assim, realizaram o seguinte experimento: O princípio era o mesmo do experimento anterior, mas ao invés de classificar fotos, os

participantes deveriam escolher, em uma escala de 1 a 9, o quanto concordavam com princípios e questões morais. Princípios são elementares (ex: “É mais importante para a sociedade promover o bem estar social que proteger a integridade pessoal”) e as questões seriam aplicações práticas dos princípios, usando temas relevantes na Suécia naquele momento (ex: “Vigilância governamental em larga escala de e-mails e internet deve ser proibida como o meio de combater o crime internacional e o terrorismo”). Depois que os participantes preenchiam o questionário, eles deveriam ler algumas de suas respostas em voz alta e justificar a escolha. Mas, assim como no experimento da foto, algumas das frases que os participantes teriam que justificar tinham sido manipuladas. Eu particularmente achei genial a maneira como os pesquisadores conseguiram fazer isso. Os participantes recebiam uma prancheta com o questionário de duas páginas que deveriam responder. Na primeira página, o quadro com as frases na verdade tinha duas camadas, a que está colada por cima é a que os participantes viram e o que usaram para responder. Na parte de trás da prancheta havia uma cola; assim, quando o participante virava a página para responder o restante das perguntas, esse quadro de cima grudava na parte de trás, deixando à mostra algumas frases que passavam a dizer o contrário do que o participante havia lido ao responder. Nos exemplos acima ficaria assim: “É menos importante para a sociedade promover o bem estar social que proteger a integridade pessoal” e “Vigilância governamental em larga escala deve ser permitida como um meio de combater o crime internacional e terrorismo”. 27


Vamos aos resultados: 77% dos princípios e 50% das questões manipuladas não foram detectadas. No geral 69% dos 160 participantes aceitou (e justificou)

pelo

menos

uma

das

respostas

manipuladas. É importante ressaltar que nenhum participante

percebeu

o

truque

usado

no

experimento, todos os que notaram o erro disseram que não haviam lido direito ou que haviam interpretado errado na primeira vez que leram. O quanto os participantes acreditavam terem fortes convicções morais não fez diferença para os resultados, e tampouco gênero, idade ou o tempo gasto para responder ao questionário.

Porém, o quanto os participantes se classificavam como politicamente ativos se correlacionou com a detecção das questões morais. Também houve uma correlação positiva entre o quanto o participante concordava ou discordava com a probabilidade de detecção da manipulação (quanto mais ele concordava mais provável era detectar a manipulação). Assim como no experimento das fotos, os pesquisadores analisaram as justificativas dos participantes. Para isso, eles usaram os juízes imparciais, que deveriam ler a justificativa e avaliar na mesma escala usada no questionário o quanto ela concordava ou discordava da questão ou princípio. Na média, a avaliação dos juízes ficou muito próxima da resposta

assinalada nos questionários, ou seja, se uma pessoa assinalou 7 para determinada questão, isso quer dizer que ela concorda parcialmente, e ela dá uma justificativa que corresponde a uma concordância parcial. Porém, se essa é uma questão que foi manipulada, isso quer dizer que a pessoa originalmente discordava dessa frase, mas que de qualquer forma ela justificou de acordo com o que viu assinalado, e não com o que realmente pensou sobre a afirmação. Acredito que todos concordamos que essa foi uma tarefa bastante relevante, afinal, estamos falando de moral, das regras que regem (ou deveriam reger) nossas atitudes, nossos comportamentos, nossas crenças, etc. E mesmo assim continuamos observando esse mesmo fenômeno, 70% das pessoas continuam justificando uma escolha que elas não fizeram, na verdade, a escolha oposta da que elas fizeram. Estudando sobre escolha cega, fica claro que todos estamos sujeitos a esse fenômeno, somos muito suscetíveis a ele. Então o que temos que nos perguntar é: o que diferencia esses 30% de pessoas que conseguiram detectar as manipulações nos experimentos? Aqui vou inserir 2 novos termos para a discussão: elaboração e força de atitude. Esses conceitos normalmente são usados para estudar persuasão, ou resistência à persuasão, o que não deixa de ser o caso dos fenômenos acima. A todo momento podemos estar realizando escolhas cegas, mas não é a todo momento que estamos expostos às suas consequências; normalmente, isso acontece quando alguém está tentando nos convencer de algo. Pode ser em uma discussão, 28


podem ser questões políticas, e principalmente propagandas e outros mecanismos de marketing. O que aconteceu nos experimentos acima não passou de uma pessoa dizendo para a outra que ela prefere algo que na verdade ela não escolheu. Se não temos claro o que queremos, no que acreditamos, é muito fácil sermos persuadidos. Bom, vamos aos conceitos. Elaboração quer dizer o processamento mental que uma pessoa emprega para pensar sobre um assunto, incluindo critérios, conhecimento prévio e informações evocadas da memória. A elaboração pode ser medida pela quantidade de pensamentos diferentes (abordagens e pontos de vista que podem ser usados para pensar sobre um assunto), pela validade e pela complexidade dos argumentos usados, e pela concordância que a pessoa mostra com suas atitudes à respeito do assunto (por exemplo, se eu afirmo acreditar que pontualidade é essencial, mas sempre chego atrasada, quer dizer que eu não elaborei o suficiente sobre o assunto, porque minha atitude não está condizente com a minha suposta crença). A elaboração é variável com a capacidade e a motivação da pessoa. Capacidade não é uma coisa pré-programada, ela varia com nossos estados mentais (se estou com sono ou com raiva, sou muito menos capaz de elaborar do que quando estou tranquila) e com prática e treino (precisamos aprender a abordar assuntos de maneiras diferentes e a construir argumentos válidos). Motivação está relacionada com o contexto em que determinado assunto é abordado e

a relevância dele para a pessoa. Associada com a elaboração está a atitude resultante. Essa atitude pode ser medida a partir de sua força com os seguintes critérios: constância (vou ter sempre a mesma atitude ao enfrentar situações similares); confiança (ou segurança ao tratar do assunto); resistência à persuasão; e influência sobre outros assuntos e comportamentos. Os experimentos de psicologia demonstram que, quanto mais elaboração, mais forte será a atitude resultante. E não só isso, a consciência da elaboração aumenta a força da atitude, ou seja, se eu sei que já pensei muito sobre um assunto, sei que tenho segurança sobre ele, minha atitude em relação a ele será mais

forte. No primeiro experimento, por exemplo, se eu já pensei sobre o que significa uma pessoa ser bonita, o que faz uma pessoa ser bonita, seria muito fácil olhar para uma foto e saber que essa não é a que eu escolhi, porque eu usei critérios claros e pré-estabelecidos para fazer a minha escolha. Um fato bem interessante que aconteceu no experimento da moral foi que as questões manipuladas foram muito mais detectadas que os princípios, e isso é curioso já que são os princípios que regem as questões. Então é como se as pessoas tivessem uma opinião forte sobre alguma coisa e se importam com isso a ponto de perceber a manipulação, mas não sabem o que está por trás dessa opinião, o porquê dela. Se alguém tem uma opinião muito forte e muito firme sobre algo, mas não sobre as coisas que estão por trás desse algo, me atrevo a dizer que essa pessoa não elaborou o suficiente sobre o assunto. 29


Fazer escolhas cegas nos deixa vulneráveis a manipulações. A elaboração não só pode nos proteger dessas situações, como também é uma ferramenta de autoconhecimento, de construção e consolidação da nossa personalidade. Ter atitudes fortes significa ter constância, ser pertinente, ser honesto. Existem várias técnicas para praticar elaboração, algumas coisas sobre isso podem ser lidas nesta mesma edição da revista. E, para começar, há uma pergunta muito

simples e ao mesmo tempo complexa que podemos nos perguntar a todo momento: por que eu estou fazendo o que estou fazendo?

Referências: Hall L, Johansson P, Strandberg T (2012) Lifting the Veil of Morality: Choice Blindness and Attitude Reversals on a Self-Transforming Survey. PLoS ONE 7(9): e45457. doi:10.1371/journal.pone.0045457 Barden, J., & Tormala, Z. L. (2014). Elaboration and attitude strength: The new meta‐cognitive perspective. Social and Personality Psychology Compass, 8(1), 17-29. Johansson, P., Hall, L., Sikström, S., & Olsson, A. (2005). Failure to detect mismatches between intention and outcome in a simple decision task. Science (New York, N.Y.), 310(5745), 116–9. doi:10.1126/science.1111709

*As imagens ilustrativas dos métodos foram retiradas dos respectivos artigos.

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Desconsolos do Ego

Ego?-Mononoke

Todos os dias, de todas as formas, uma noção abstrata, conceitualmente remota, mas sensivelmente muito presente nos cerca: o Ego. Todos sabem o que é o ego: emprestado do grego "eu", o ego é um conceito que caiu no senso-comum. Ego grande, ego cheio, ego inflado

são denominações coloquiais do egocentrismo - a mania de enxergar a si mesmo como uma criatura selada ao redor da qual tudo orbita. Curioso como expressões coloquiais do conceito do egocentrismo denotam principalmente sua imaginável forma de algo que se dilata, que se expande. Expandir é um conceito especialmente bom para apreendermos, junto com uma possível forma, também uma função característica do ego (quando em condição de egocentrismo): expandir é, melhor do que dilatar, verbo que sugere ação autônoma: o ego é culpadamente expansionista, e expandi-lo só pode ser em detrimento de outros egos, igualmente mecanismos expansionistas. Se passarmos o ego por uma leitura evolutiva, como é interessante que seja, devemos refletir em cima das potenciais vantagens que a seleção natural viu no mecanismo do ego - que, para alguns pensadores, é a própria consciência, enquanto que, para outros, é na verdade um aporte dela, uma adaptação complexa e avançada que tornou nossa espécie, a espécie humana, única em nosso planeta. Somos todos portadores de um ego. Nesse sentido, podemos acreditar que o ego seja um objeto, algo localizado não se sabe onde em nossa mente. Mas é fato que não existe um correspondente anatômico do ego em nosso cérebro, isto é, uma região do cérebro responsável pela produção do objeto ego. Não existe, e o ego não pode ser um objeto. O ego está mais para um verbo disfarçado de substantivo; está mais para um fenômeno que acontece e que experienciamos enganosamente como uma “coisa”, mas que na verdade é uma ação. Quem age é o nosso cérebro, agindo em ego. O ego pode estar para a autoconsciência assim como o esquema corporal está para a consciência do corpo e o sistema imunológico para o organismo. Enquanto o esquema corporal delineia as partes do corpo, criando uma imagem integrada do mesmo e demarcando suas fronteiras em

relação à de outros corpos e do mundo, semelhantemente o sistema imunológico age ao definir quais células do corpo devem ser tratadas como pertencentes ao corpo e quais devem ser tratadas como intrusas, criando, da mesma forma, fronteiras. O ego, igualmente, delineia o que é o “eu” e determina as fronteiras da nossa individualidade num outro nível de inteligência e complexidade.

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Além da ciência, o ego é extensamente debatido na filosofia oriental. Há milênios, desde Buda, a tradição oriental nos leva a questionar os efeitos do ego. E é certo que apesar de filosófica e mesmo religiosa, a perspectiva budista e também a zen não devem muito às descobertas atuais da ciência no que tange a natureza do ego e suas características. Nos estudos sobre personalidade, por exemplo, é aceito que somos seres extremamente elásticos - por mais que os genes nos pré-determinem e a cultura nos molde, nossas personalidades são aquosas, estamos sujeitos a alterações radicais de estado dependendo das circunstâncias, mudanças de crença, atitude e até nosso cérebro apresenta qualidades plásticas. O estímulo à investigação do ego, provindo da filosofia oriental e animada também pela

ciência, nos dá muito chão e diversos recursos para entendermos cada vez melhor o que significa ter um ego, quais suas consequências práticas e suas origens - e, quem sabe, como podemos evitar cair em suas armadilhas. Sabemos como o ego é dotado de vícios. São compulsões próprias de sua natureza que não necessariamente nos permitem ter orgulho de portá-lo. Mas o ego é um fato da subjetividade, muito sondado, mas só um pouco desvendado, e devido a isso, o interesse e a curiosidade por explorá-lo se justificam.

O que desconsolar no ego? A presente coluna não se interessa apenas na investigação filosófica e científica do ego. Razões evolutivas, experimentos psicológicos, reflexões filosóficas, descobertas da neurociência e questionamentos budistas entrarão na coluna como assentamento de nossas elucubrações, mas pretende-se aqui, como força inspiradora e finalidade, colocar em jogo questões de ética prática. O que significa ter um ego? Quais as responsabilidades éticas e morais que nós, enquanto seres humanos, dotados de um ego, seres intrinsecamente egoístas, mas perfeitamente capazes de atuar altruisticamente e capacitados à avaliação própria, temos para com o mundo e outros egos? Como entender o ego pode fazer com que burlemos alguns de seus efeitos indesejáveis? E por que esses efeitos são indesejáveis? E através de que fato ou postura filosófica julgamos esses efeitos indesejáveis? Qual seria o nosso desejo para o ego? O que desejamos com o ego? Essas e outras questão serão adentradas e não com muito carinho. Às vezes, questionar coisas do ego é a pior forma de consolo. É o desconsolo puro. E como não se quer aqui obscurecer nem conceder impunidade às potenciais perversidades do ego, pretende-se, essencialmente, criar desconsolo. Idealmente, o leitor sairia da coluna saboreando descobertas interessantes, mas sentindo o cheiro de carniça do ego em suas narinas. Como investigação filosófica, ainda que escorada em descobertas de vários campos, a coluna vai brincar muito com a língua: analisar algo tão complexo, entranhado e rarefeito quanto o ego exige um instrumento preciso e ao mesmo tempo vago, e portanto com a língua expandiremos algumas analogias aqui começadas e testaremos ainda outras.

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O ego como verbo disfarçado, o ego como um equivalente do sistema imunológico, o ego como

mecanismo expansionista. A coluna cuidará para que essas analogias mais clarifiquem do que obscureçam. Mas teremos de ser lúdicos e um pouco tolerantes com a experimentação das palavras. Por trás dos intentos investigativos e éticos está também uma vontade enorme de aprendermos não só intelectualmente, mas também como agentes imperfeitos e incompletos numa constante busca por crescimento e capazes de articular mudanças práticas no mundo. O que podemos aprender com o ego, considerando suas consequências inevitavelmente sociais? Certamente que as mudanças de pensamento e atitude em relação ao ego podem nos mudar de boas formas. E antes que o viés moralista comece a se pronunciar, é esperado apenas que o autor julgue a si mesmo, e o leitor, ao ler, ache o que achar, e vista a carapuça se servir.

Desconsole se quiser.

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A viagem das viagens

001 – Considerações mínimas necessárias para questionar. - Bubble gum

A meu pedido, este periódico tem desde o primeiro volume, uma seção dedicada exclusivamente à cannabis e seus efeitos: textos sobre a famigerada maconha. Senhores passageiros, permaneçam em seus assentos e afivelem os cintos. Se você é uma das pessoas que tiveram o impulso de fechar o texto, mas continuam aqui... este texto é para você. Não pretendo

te agredir ou desrespeitar; tudo o que eu peço são alguns minutos para realizarmos um exercício de hipótese e, em seguida, um breve raciocínio lógico. Nada envolve o uso da substância. Faça, mesmo que seja só por curiosidade.

Vamos começar: Eu peço ao leitor que se desprenda de tudo o que envolve o conceito “maconha”: dos estereótipos, preconceitos, imagens e infrações que o conceito produz. Esqueça por um minuto que ela é proibida, esqueça que ela “faz mal”, esqueça que ela é “a porta de entrada para outras drogas”. Agora vamos ver o que acontece... Você sabe quando e como a cannabis foi proibida? A primeira proibição da venda e consumo da maconha aconteceu com Napoleão em 1798, ano que ele conquistou o Egito. Segundo o general, a maconha deixava os egípcios mais violentos. O Brasil seguiu a mesma prerrogativa com a população negra, proibindo-a em 1830. Alguns eventos envolvendo o processo de criminalização nos Estados Unidos se sobrepõem. Lá, a proibição aconteceu pela associação da erva aos mexicanos, como forma de controle dos imigrantes latino-americanos (dos quais você faria parte). Também está relacionada ao cânhamo (um tipo de erva com baixíssimo teor de THC, próximo da maconha) e à produção de celulose (papel) – este cânhamo mostrou-se uma opção muito mais lucrativa que o eucalipto, o que poderia prejudicar importantes empresários do setor. Estes investiram em uma forte campanha de difamação do uso, mesmo medicinal. Por fim, no Brasil, associou-se à imagem da maconha, o negro – já que a criminalização da substância poderia criminalizar também a pessoa, utilizando a cannabis como meio de controle social e encarceramento. Ora, as razões para a criminalização são todas voltadas à economia e ao controle social. Cabe perceber também que nenhuma delas cita a saúde como motivo de proibição. Em dois casos, inclusive o brasileiro, criminalizou-se a maconha para o exercício da xenofobia e do racismo, utilizando a proibição para perseguir determinadas etnias. Temos ainda a herança desta 34


associação – as pessoas pretas são as mais presas por tráfico – em disparado. Se não podemos basear a criminalização em fatos xenofóbicos e racistas, muito menos em empresários que só o fizeram para obter seu lucro. E mesmo lá atrás, Napoleão equivocou-se ao associar o uso da erva à violência. Se não podemos argumentar a favor da proibição pelo seu início, talvez possamos utilizar argumentos atuais, como a questão da saúde, dos efeitos e da dependência. Mas lembre-se: sem pré-julgamentos – esse era o acordo firmado lá em cima. A maconha causa, sim, dependência. Os níveis de dependência variam entre 5 e 8% dos usuários. Os níveis são considerados baixos se comparados a drogas como a nicotina, a cocaína e a heroína. Os dados com relação ao álcool também são baixos, já que o nível de dependência ao álcool é de 11,2% dos que bebem – entre os homens é de 17,1%. Ou seja, dentre todas as drogas, inclusive as legalizadas como a nicotina e o álcool, a maconha é aquela que causa menos dependência. Sendo assim, não faz sentido lógico criminalizá-la com este argumento. A maconha faz mal à saúde? Depende. Estudos dos mais variados lugares mostram que a cannabis pode ser usada de forma medicinal, curando ou melhorando o rendimento das pessoas através do THC – a substância presente na erva. Ela auxilia no tratamento de câncer, glaucoma, esclerose múltipla, asma, age como ansiolítico, etc. Por outro lado, o uso recreativo da cannabis gera alguns efeitos adversos. A questão é que tais efeitos são mínimos se comparados aos de outras substâncias. Por exemplo, o uso intenso da maconha produziu, em estudo, uma baixa na capacidade pulmonar depois de 10 anos de utilização. Em até 7

anos de uso não se percebeu mal algum. Veja bem, uso intenso – 6 a 7 vezes por semana - por 10 anos. A nicotina faz isso em muito menos tempo e continua legal. A maconha, além disso, não oferece risco de overdose e é 144 vezes mais segura que o álcool. Para enterrar o assunto, é o álcool, e não a maconha, a porta de entrada para outras drogas. Por que, então, a maconha é ilegal e essas outras substâncias são totalmente legais, inclusive com propagandas na mídia? Se pensarmos bem, a legalização da maconha pode ainda ser um benefício à sociedade com a redução do tráfico e da violência – traficantes e policiais continuam se digladiando em prol de uma política de guerra às drogas que não produz

resultados. A experiência do Uruguai de legalização reduziu a zero o número de mortes devido ao tráfico de drogas, por exemplo. Reduzir a violência e contemplar uma parcela da sociedade que gostaria da liberação: não é racional contemplar pessoas que bebem e fumam cigarro – drogas que trazem mais malefícios – e ignorar as reivindicações democráticas (por decisão do STF) pela legalização. A partir de experiências próximas e pessoais, gostaria também de opinar sobre o tema. Eu observo de um lado um(a) bêbado(a) e de outro um(a) chapada(o): ou o bêbado, depois de passar seus limites, está tropeçando, ou vomitando, ou mandando WhatsApp para quem não 35


deveria – pega o carro e corre o risco de se machucar ou aos outros. A pessoa que fumou o famigerado baseado pode estar rindo, conversando, simplesmente contemplando alguma coisa ou escrevendo um texto sobre maconha. Ah, e chega uma hora que tudo isso se torna apenas fome. Comer nesse caso torna-se extremamente prazeroso. Vou tirar um dos textos pra escrever sobre

isso (e talvez cada um dos efeitos). Mas, acredite, não é nada incontrolável. A responsabilidade não se evapora junto com a fumaça da maconha, ela fica mesmo quando alguém é usuário. A reivindicação pela legalização é também uma reivindicação para que levem em consideração o desejo dos usuários, uma forma de demonstrar que eles sabem o que estão fazendo e têm completo controle da própria vida. Quem fuma trabalha, estuda, lê, conversa... tem o mesmo cotidiano que qualquer pessoa – os efeitos podem trazer inspiração, inclusive, para os mais diversos tipos de arte. Ela relaxa e, no caso das mulheres, auxilia a amenizar a dor de cólicas menstruais. Dores musculares e enxaquecas também são tratadas assim no cotidiano. Assim, gostaria de deixar um pedido: pense sobre o assunto. Mês que vem eu pretendo fazer um texto mais caseirinho, contando um causo ou algo assim – tudo relacionado à marijuana. Peço que reflitam sobre os argumentos, busquem informação e questionem. Procurem conhecer melhor e conversar pessoalmente com quem fuma ou já fumou (você certamente conhece alguém, mas sem inferiorizar nem brigar por isso). Para você que cumpriu o acordo realizado no começo do texto: espero ter ao menos fornecido informações sobre o tema para reflexão. Somente fazendo as perguntas certas encontramos certas respostas.

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PEC 241/2016:

Um breve entendimento, suas motivações e consequências.

-Sr. Y Olá, leitor! Eu, Sr. Y, serei uns dos escritores dessa revista que se inicia; meus assuntos de interesse são política, economia, história, sociologia e tecnologia, no entanto não se assuste ao ver outros temas ou formas artísticas de minha autoria, minha curiosidade insaciável pode ser mais vasta do que você

imagina. No mais, para a primeira edição dessa revista, apresentarei um assunto muito comentado recentemente, visto sua importância na vida de muitos brasileiros e do sistema político/econômico da nação.

O que é uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) A Proposta de Emenda à Constituição é um recurso oferecido pela Constituição promulgada em 1988 (Artigo 60 da Constituição Federal) e que possui a finalidade de alterar partes da constituição sem a necessidade de convocar uma Assembleia Constituinte, isto é, sem reformular uma nova Constituição. Quem pode apresentar uma PEC, segundo o Art. 60, são: Presidente da República; 1/3 da Câmara dos Deputados; 1/3 do Senado; Maioria dos membros das Assembleias Legislativas das unidades da Federação; Após a proposta ser formulada, ela passa pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ), onde se estuda a legalidade da PEC. Se aprovada, cria-se uma comissão especial na própria CCJ para estudo e possíveis alterações na proposta. Ao finalizar esse processo, a Proposta de emenda à Constituição é enviada para a Câmara dos Deputados para a revisão e votação, onde é necessário o voto afirmativo de 3/5 dos parlamentares, em dois turnos. Em seguida, a PEC é enviada para o Senado, ocorrendo o mesmo esquema que

ocorreu na Câmara dos Deputados. Se em algum momento o texto for alterado, ele deve ser verificado pela CCJ e votado novamente pelas duas casas, até que se aprove o mesmo texto. Caso a Proposta tiver sucesso, ela entra na fase de promulgação e publicação, não havendo intervenção do poder executivo, como geralmente ocorre em leis comuns. Com a publicação no Diário Oficial da União, a PEC é anexada à Constituição. Uma Proposta de Emenda à Constituição não pode alterar tudo que se encontra na constituição. Dentre o que não pode ser alterado, encontram-se: I. O próprio artigo 60 da constituição que retifica a emenda constitucional, assim como a forma

utilizada no processo; II. A emenda não pode sobrepor o poder que já existe nos artigos da constituição; III. As chamadas Cláusulas Pétreas, direitos e normas da constituição inalteráveis, como os direitos individuais, a forma federativa, entre outros;

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Para mais informaçþes, como as outras clåusulas que proíbem uma PEC, consulte o próprio Artigo 60 da Constituição Federativa de 1988.

PEC 241/2016 Como funciona? A PEC 241/2016 tem como objetivo instaurar um Novo Regime Fiscal das contas públicas, a fim de conter a despesa primåria do governo (Primåria significa que são açþes de origem não financeira, retirando pagamento/recebimento de juros, aumento de dívida pública, etc.).

Segundo a emenda, haverĂĄ o congelamento dos gastos que compete ao ĂłrgĂŁo federal administrar pelos prĂłximos 20 anos. Isto ĂŠ, todos os gastos que o governo faz para manter a administração pĂşblica, assim como investimentos e repasses sociais, ano apĂłs ano, serĂŁo os mesmos estipulados em 2016. No entanto, para nĂŁo sofrer a diminuição do poder de compra devido Ă inflação, a cada ano, serĂĄ acrescentada a inflação correspondente ao perĂ­odo anterior, divulgada pelo IPCA - Ă?ndice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – e serĂĄ nesse esquema apresentado: đ??ˇđ?‘’đ?‘ đ?‘?đ?‘’đ?‘ đ?‘Žđ?‘Žđ?‘›đ?‘œđ?‘Žđ?‘Ąđ?‘˘đ?‘Žđ?‘™ = đ??ˇđ?‘’đ?‘ đ?‘?đ?‘’đ?‘ đ?‘Žđ?‘Žđ?‘›đ?‘œđ?‘Žđ?‘›đ?‘Ąđ?‘’đ?‘&#x;đ?‘–đ?‘œđ?‘&#x; + đ??źđ?‘›đ?‘“đ?‘™đ?‘Žçãđ?‘œđ?‘Žđ?‘›đ?‘œđ?‘Žđ?‘›đ?‘Ąđ?‘’đ?‘&#x;đ?‘–đ?‘œđ?‘&#x; Por exemplo, se o gasto pĂşblico em 2016 fosse de R$100 bi, e a inflação, segundo IPCA, ao ano girasse

em torno de 10%, logo: Ano Atual 2017 2018 2019 . . .

Despesa Ano Anterior (em bi de R$) 100 110 121 . . .

Inflação Ano Anterior 10% 10% 10% . . .

Despesa Ano Atual (em bi de R$) 110 121 133,1 . . .

Pode parecer simples, no entanto as despesas primĂĄrias da UniĂŁo cresceram de tal maneira que ultrapassaram a quantidade arrecadada:

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Nem tudo será mudado Diante desse congelamento, a proposta visa que certos gastos deveriam ser retraídos para que no

final as contas cheguem no patamar desejado. Porém, por motivos que ferem a constituição ou ferramentas estratégicas, algumas áreas de repasse do governo não poderão ser alteradas pela PEC 241/2016, sendo que outras, por receberem parte obrigatória da receita defendida pela constituição, não poderão cair abaixo desse limite inferior. As áreas de repasse que não serão alteradas: I. A maioria da arrecadação de impostos repassada aos estados e municípios pela federação deverá seguir com a porcentagem definida na constituição; II. Crédito concebido quando há despesas urgentes provenientes de desastres naturais, calamidade pública, guerras; III. Despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização de eleições; IV. Despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes;

Para saúde e educação I. Montante mínimo repassado para a saúde, no valor de 15% da receita líquida, não será alterado pela PEC 241/2016. Além disso, os investimentos relacionados à saúde serão congelados a partir de

2018, utilizando gasto de 2017 + Inflação no período como base. II. O valor mínimo repassado para a educação, no valor de 18% da receita líquida para instituições federais e 25% para instituições estaduais e municipais não será alterado. O mesmo cálculo atribuído para a saúde será feito. O resto dos encargos públicos terá cortes a fim de garantir o teto das despesas públicas, salvo aqueles por direito inalienável, como veremos na questão previdenciária.

Sanções caso extrapolem o teto Segundo a emenda, cada órgão federal terá seu orçamento individual para a realização dos gastos calculado com base nos custos funcionais de 2016. É proibida a obtenção de recurso por crédito que ultrapasse esse limite. A questão interessante é que a Proposta define uma grande quantidade de sanções para aqueles setores que não cumprirem o teto dos gastos públicos. As mais relevantes, levando no âmbito de proibição caso gere despesa, são: Criação de empregos e cargos públicos, assim como suspensão de concurso público que não seja de reposição de cargos já existentes, admissão ou contratação de pessoal, criação ou majoração de auxílios e bônus. Criação de despesa obrigatória, além da adoção de medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação.

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Efetividade da PEC

Para os defensores da PEC dos cortes de gastos, a proposta tem como objetivo frear o acúmulo da Dívida Pública, a Inflação e trazer o crescimento do PIB a um patamar desejado. Analisando a estimativa de retenção de gastos, há uma projeção feita no artigo: ORÇAMENTO EM DISCUSSÃO: Breve análise sobre a PEC 241/2016, que altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para instituir o Novo Regime Fiscal, de Daniel Veloso Couri e Paulo Roberto Simão

Bijos.

Esta projeção esquematiza que com a implantação da PEC 241/2016, os gastos da União serão mantidos em curto prazo, e ao longo dos anos abaixará de acordo com o Novo Regime Fiscal brasileiro. Na parte das Receitas, visto que foi contido o rombo dos gastos, dará ao Brasil maior credibilidade em vista do mercado financeiro, atraindo mais investimentos e alavancando o PIB. De acordo com a meta atingida, isso acarretará em uma possibilidade da União de reduzir a taxa de juros que remunera os Títulos da Dívida Pública, diminuindo os valores da mesma. Representado no gráfico abaixo:

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Pensando na forma de estruturação das contas públicas, o tempo de 20 anos se faz necessário para trazer a confiança do investidor para aplicar seu capital no Brasil por períodos mais longos, dizendo nas entrelinhas financeiras que o país não irá se afogar em dívidas e conseguirá pagar todos seus encargos financeiros pelos próximos anos de exercício.

Possíveis problemas A proposta divide vários pontos entre os especialistas, todas em relação à forma que serão feitos os cortes e quais as áreas mais afetadas.

A questão previdenciária Hoje, mais de 40% dos gastos públicos são com a Previdência, e esse é um dos gastos que mais evolui com o passar do tempo e possivelmente o mais difícil de ter as despesas contidas, visto que, por direito Constitucional, todos os cidadãos brasileiros têm direito a aposentadoria, sendo impraticável deixar de pagá-la. Uma possibilidade viável para a previdência será a Reforma Previdenciária. Não há como sustentar um regime previdenciário que já começa a desmoronar antes mesmo da população idosa atingir

níveis de países desenvolvidos. Deve ser mudado, mas em escalas de um futuro próximo, pois mesmo que seja reformulada para os próximos anos, a proporção dos gastos continuará.

Educação e Saúde No início da formulação da PEC, os artigos referidos não afirmavam o respeito da parte mínima das receitas líquidas da saúde e da educação, constituídos por lei. A pressão foi tão grande em relação a essas áreas que uma nova proposição ocorreu, protegendo o limite mínimo de investimento e concedendo uma carência de um ano. Pode parecer que o problema já foi resolvido; no entanto, ambos os setores necessitam mais do que essa parcela para funcionar. Se esse teto for o limite dos repasses nos próximos anos, o Conselho 41


Nacional de Saúde calcula em mais de R$ 400 bilhões as perdas para a saúde nos próximos 20 anos com a PEC. Na educação, cerca de um terço dos recursos precisarão ser cortados para respeitar o teto a partir de 2018, estima um estudo técnico da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados. Os segmentos mais afetados serão aqueles que recebem diretamente o repasse da União, sendo eles escolas e universidades federais; construção e compra de equipamentos hospitalares e intuições de ensino. Em outras partes do segmento educação e saúde não haverá alterações drásticas, pois esses segmentos recebem grande parte de investimentos pelos governos estaduais e municipais, e esses, por lei, não receberão cortes no repasse federal. Mesmo se a PEC não conseguir sua promulgação, com a queda das Receitas primárias do governo e do PIB, o repasse que já ocorre se tornará cada vez menor, inviabilizando o crescimento desses setores.

A Duração da Emenda O Novo Regime Fiscal tem como duração 20 exercícios, ou seja, 20 anos a partir de 2017. Além disso, declara em seu artigo 103 que a emenda não poderá ser alterada pelos próximos 10 anos, e após isso, o presidente da república terá apenas uma alteração por mandato político. A polêmica é grande nesse quesito, a maioria dos economistas, como a professora Cristina de Mello, da PUC-SP, afirma que 20 anos, ou mesmo 10, é um tempo muito longo para medidas rígidas demais. Os problemas são inúmeros; entre eles, possíveis mudanças abruptas no sistema acarretam o aumento de despesas, como, por exemplo, o número de doentes no sistema de saúde. Outra questão é que a base utilizada para os cortes nos gastos é sobre as despesas datadas de 2016,

onde se encontra o pior ano para a economia. Colocar um patamar tão alto para o congelamento de gastos implica em uma possível instabilidade quando a arrecadação for menor que o esperado, e imediatamente cada setor extrapolará seu orçamento, e consequentemente sofrerá as punições da emenda.

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Como no gráfico, devido aos limites por lei adquiridos na saúde e educação e a obrigatoriedade do pagamento dos benefícios previdenciários, ocorrerá o enforcamento de todas as outras despesas compreendidas como demais despesas, e analisando a distribuição dos gastos primários em 2014 acima, todos os outros segmentos serão cortados; e, com a justificativa da insustentabilidade financeira, a solução será a privatização em massa desses setores.

Conclusão O Brasil encontra-se sim em uma péssima situação financeira e fiscal, é insustentável manter as coisas como realmente estão, necessitam-se urgentemente medidas para o controle e geração do crescimento. A cada ano que a arrecadação diminuir, todo o sistema se tornará mais precário. Devido ao alcance de meu conhecimento, me ausentarei na proposta de soluções, ficará para pessoas mais qualificadas. No mais, reconheço que as medidas encontradas na Proposta de Emenda à Constituição possuem caráter muito grosseiro no que se trata das necessidades e manutenção da União, visando o escopo financeiro e deixando a sociedade desamparada.

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O ponto zero - Wild Child Um momento de “super-lucidez” é um evento relativamente raro que acredito que todos nós já tivemos; é aquele momento em que, no meio da vida agitada e mundana a que estamos constantemente presos, desprendemos de repente, involuntariamente, para uma dimensão além, e temos uma estranha sensação de observar o universo pelo lado de fora. Neste momento, inevitavelmente olhamos para nós mesmos e o que fazemos e pensamos “espera, como eu cheguei

aqui? O que eu sou? Qual o sentido disso tudo? Meu deus, o universo é realmente estranho, por que as coisas são assim? Por que eu faço o que eu faço?”. E por alguns instantes absorvemos sensações um tanto inefáveis que estas perguntas nos trazem. Reconhece? Muito bem, não acredito que temos a oportunidade de capturar a profundidade desse momento enquanto somos crianças, então aquela pergunta de como chegamos aqui, crescidos neste presente, sempre vai estar lá incomodando. Desde a nossa primeira lembrança de “super-lucidez”, estamos profundamente marcados por toneladas de coisas que aprendemos e que nos foram enfiadas, doutrinadas. Ou seja, nós surgimos nessa realidade e somos metralhados com coisas que nos moldam e só vamos ser

capazes de questionar esses processos depois de muita bomba. Mesmo a nossa própria construção, desde o início de nossa existência, já é um molde específico (inclusive, ser de um jeito específico, com diversos vínculos, já é uma consequência direta de existir).

Você pode, dessa forma, se descobrir já adolescente, crente em uma religião local, conflitando com sensações que surgem em seu corpo, ou sendo punido por várias coisas e sendo obrigado a se confinar em uma perspectiva de mundo e em uma rotina que foram as únicas apresentadas; e

então, já maduro o suficiente para receber os sinais de lucidez, e começando a incorporar outras fontes de informação, que você buscou, você vai naturalmente desconstruindo as doutrinas e vícios de comportamento e modestamente construindo sua própria identidade. Este texto está aqui para ajudar na sistematização dessa desconstrução/construção, melhorando nossas chances de fazer isso até a última gota e constantemente, na expectativa de utilizar mais e ter mais domínio sobre essa “super-lucidez”; queremos ter mais clareza a respeito do que somos, o que queremos e como podemos construir o caminho para os nossos desejos, tendo sempre cada vez mais noção do que está por trás dos contextos que nos envolvem e dos processos que nos trouxeram ao presente. Em resumo, queremos ser donos de nós mesmos o máximo que conseguirmos.

Antes de continuar, faço apenas um comentário em relação a esse tipo de abordagem, de se especular a realidade de conceitos dentro da nossa mente, argumentando que eles “existem por 44


inspeção”, por exemplo quando dizemos coisas como “sabe aquela sensação que temos quando acontece isso ou aquilo?” Sabemos que a temos porque a sentimos. Investigações a respeito da realidade da mente quase sempre nos levam a contestar a existência observável de diversos estados mentais como são sentidos por nós, mas aqui me utilizo da liberdade de tratar o subjetivo como uma provável ficção, mas que produz resultados comportamentais coerentes. Se eu digo que tenho uma consciência e estou sentindo raiva, você sabe do que estou falando porque você sabe o que essa tal consciência e essa tal raiva fazem, mesmo que não sejam diretamente observáveis. Essa nota pontua que tratar o comportamento desta forma subjetiva que estou fazendo não necessita da hipótese da existência objetiva destes estados subjetivos, apenas de suas consequências no comportamento. O tratamento subjetivo é bom, pois é uma excelente forma de entendimento; independente da realidade objetiva do que sentimos “dentro da mente”, nossos relatos são concordantes e podemos usá-los para o entendimento mútuo (e, afinal de contas, quando falo com você, quem está falando e quem está entendendo? Mesmo se

somos ficções em algum nível, somos tudo o que temos).

Continuando; o que está acontecendo durante esse processo de desconstrução de quem você é? De forma consciente ou não, você está questionando suas crenças, opiniões e comportamentos e os reavaliando, como por exemplo “eu não acho que faz sentido ter essa religião, eu só estou nisso porque é assim que fui educado e já superei isso” ou “sempre me ensinaram que eu não podia gostar de futebol, mas eu acho que gosto, vou incentivar esse gosto”. Muito do que fazemos nessa direção acontece aos poucos, ao longo dos dias, dos anos, e, mesmo quando

conscientemente, não paramos para “radicalizar” o processo. Bom, vamos definir o ponto zero: feche os olhos, entre na sua mente, negue todas as suas crenças e opiniões (o máximo que conseguir), tente conscientemente negar tudo que te compõe; exercendo isso, um lugar começa a aparecer pra você, detalhando-se aos poucos, um lugar em que você tem condições de olhar para as estruturas de suas crenças e rotinas de baixo para cima, a partir de sua forma mais primitiva; este lugar é o que eu chamo de ponto zero.

Claro que isso não é uma mágica, o segredo está na palavra ‘exercer’. Exercer a desconstrução

de suas crenças até o nível mais fundamental é trabalhar o seu relacionamento com a negação dessas crenças, acostumar-se a considerar o que você não acredita ou desacredita. Por exemplo, “eu acredito que aquela pessoa é uma idiota”; acostume-se de que você não acredita nisso e você com o tempo passará a adquirir mais sensibilidade às informações que se opõem a essa crença (isso tem uma razão psicológica, baseada em vieses cognitivos). No ponto zero você faz isso com tudo, então quando pensa, por exemplo, “eu acredito que as pessoas não podem ser violentadas”, você pode desfazer essa crença dentro de sua mente e reagir ao que você tem por trás dela. Espero convencê-lo de que isso não é uma apologia à violência, mas o contrário, pois 45


um dos objetivos de estar no ponto zero é analisar a estrutura de suas crenças, desfazer os dogmas

e, com isso, fortalecer crenças boas e abandonar crenças sem fundamento (não

violentar pessoas vem de uma crença muito boa, mas só sabemos que ela é muito boa quando a capturamos em sua totalidade, e não porque fomos condicionados a não violentar; por que você acha que as pessoas eventualmente dão uma escapulida dessa crença e violentam os outros? Porque eles não a respeitam em seu comportamento, porque eles não a entendem, porque ela é no máximo um dogma).

À medida em que vamos nos tornando habilidosos em transitar no espectro de cada crença,

começamos a dominar o medo que vem das doutrinações. Um exemplo bem comum é quando alguém resolve esbarrar no espaço do ponto zero relativo a tabus sociais; quando você pensa “eu acredito que sou heterossexual, claro, absolutamente”, se você está dominado pelo tabu, seu corpo se desespera diante da possibilidade de explorar a negação dessa crença (antes que me insultem, estou falando do ponto zero! Explorar a negação da crença é somente pensar no que poderia ser o contrário para você, para poder analisar os reais motivos que te fazem ter essa crença). Tabus são pragas terríveis sob esta perspectiva, eles atrapalham a lucidez e, paradoxalmente, a própria solidez das crenças que incorporam (alguém que incorpora a

sexualidade em um tabu definitivamente não tem propriedade para falar sobre sexualidade, essa pessoa por definição não pensou sobre isso, não dissecou suas crenças e desejos a respeito disso). Tabus talvez tenham vantagens históricas, de grupo, mas já chegamos em um ponto de capacidade cognitiva em que conseguimos lidar com esses raciocínios.

Aqui, enfatizo um aspecto dessa abordagem. Você poderia argumentar que a sexualidade, por exemplo, não é uma crença, é um “fato biológico” (independente se de fato é ou não, em algum sentido). Você não se imaginaria dizendo “acredito que sou um ser humano” e brincando com a negação disso, isso simplesmente não é uma crença. Eu digo que é, só é uma crença bem forte, por si. Um exemplo, “eu acredito que a Terra é redonda”; é um fato físico bem robusto, né? Mas você vai se surpreender com a negação mental disso, porque você vai chegar na conclusão que não tem muitos argumentos para justificar isso, e, quando tem, são argumentos que você não tem tanta certeza assim se pode afirmar ou estão baseados em crenças bem menos robustas (por exemplo, “ah, eu já vi imagens da Terra na internet”). Essa separação é bem simples, as coisas podem ser fatos (até mesmo aquela religião que você negou na adolescência), mas você se relaciona com esses fatos através da expressão da sua crença, e é só com isso que estou trabalhando. A propósito, trabalhar a negação da crença “acredito que sou um ser humano” é uma viagem mental divertida (começando pela exploração do conceito de um humano). 46


Espero ter conseguido dar a intuição de que essas atividades mentais, e estar no ponto zero, são meros artifícios (ficções), mas que são importantes por serem boas ferramentas para adquirir lucidez, que é uma propriedade de saber como os processos se dão, nos bastidores daquilo que é obviamente percebido; no caso, falo da nossa própria constituição mental. Recapitulando, estamos radicalizando a “faxina” de crenças que somos obrigados a fazer enquanto crescemos e nos damos conta de que somos feitos de muitas coisas que parecem invariavelmente embutidas, mas não são; então chegamos a um lugar em que as crenças se dissolvem e podem ser reconstruídas da forma que quisermos. Com o tempo, seguindo estas práticas, exercendo a desconstrução das suas crenças e aprendendo a pensar sobre elas sem barreiras e sem medos, você vai conseguindo perceber o ponto zero como um lugar dentro da sua cabeça. De lá, você é capaz de analisar, selecionar e reparar suas crenças, utilizando habilidades mentais adquiridas no processo de desconstrução e outras que você já tenha desenvolvidas.

Você vai perceber que todas as coisas que te compõem estão ali naquele lugar. Então, como nós somos restritos pela nossa formação material, fisiológica, mesmo ali sentimos coisas surgindo dentro de nós (além de termos restrições também a respeito do quão nítido o ponto zero pode ser, ou seja, do quão zero pode ser, mas não é preciso pontuar essa restrição, só temos a ganhar

pecando pelo excesso no que diz respeito à liberdade de nossas mentes); estas coisas que surgem podem ser desejos, desconfortos, impulsos, quaisquer coisas que aconteçam com você, sendo ou não em resposta a um estímulo externo discernível (aqui, generalizo a percepção como qualquer coisa que afeta os estados internos, e não apenas o que é ideia comum, baseada na experiência sensorial; nós mesmos somos uma grande fonte de percepção, sempre executando rotinas internas, brincando com o conteúdo que já possuímos, “inconscientemente” ou não). Então aqui consideramos outra propriedade importante de habitar um bom ponto zero; estando ali, estamos o máximo que conseguimos nos bastidores de nossas crenças, hábitos

e rotinas mentais e comportamentais, então somos capazes de nos relacionar de forma assustadoramente limpa com essas coisas que surgem.

Durante a vida, mesmo tendo uma identidade bem própria e sendo espertos, nos enrolamos psicológica e sentimentalmente por não sabermos direito o que estamos fazendo com nossas vidas e se nossas escolhas vão nos levar à satisfação que buscamos, mesmo se tudo “der certo”. Meu ponto é que isso se deve principalmente à nossa falta de preparo em nos relacionar com essas coisas que surgem dentro de nós, por vivermos muito na superfície. Sermos bons em nos despir das crenças nos faz ter ferramentas para tratar esses desejos e incômodos. Por exemplo, você tem a brilhante ideia de que precisa viajar, então resolve juntar muito dinheiro para que isso possa acontecer, então se envolve em diversos processos que podem gerar múltiplas frustrações e perdas de tempo; claro que talvez realmente seja bom viajar, mas é possível que 47


sua maior fonte de necessidade urgente seja algum desconforto que você sente lá no fundo porque você talvez tenha vários conflitos consigo ou com o ambiente da sua casa, ou da sua rotina como um todo. Podem ser múltiplas causas, o ponto é que você não soube identificar, porque havia muito ruído entre você e o seu ponto zero. Talvez uma reestruturação interna fosse suficiente para eliminar o desconforto e promover a qualidade da sua vida, mesmo sem a viagem.

Meu argumento agora tem dois pilares fundamentais: relacionamento e experimentação. No ponto zero, nos bastidores dos processos, você consegue isolar o desejo ou desconforto do contexto de sua vida, então pode se relacionar bem com ele, transformá-lo em uma variável, que você pode manipular. O relacionamento com ele não será óbvio, só de estar ali; admito que o sucesso dessa etapa vai depender de muitas habilidades que deverão estar no seu repertório (a mais importante delas é a honestidade, que vai servir para que você possa confrontar o desconforto ou o desejo com as estruturas que habitam seu ponto zero e chegar a uma conclusão coerente com ele). Depois, quando você já pegou nas mãos o desejo ou desconforto, você pode emergir para fora de si e criar experiências para incorporar aquilo em um processo da sua vida e se satisfazer. Isolando tão claramente a origem de uma sensação dessas, temos

condições de experimentar com o intuito de discriminar os efeitos daquela experiência na satisfação da sensação. A experimentação é fundamental para otimizarmos a nossa capacidade de realização de desejos e fuga de desconfortos, mas exige muita coragem (uma medida de enfrentamento de viéses de fracasso) e também honestidade. Porém, acredito que, estando habilidosos em habitar o ponto zero, seremos muito mais capazes de exercer coragem e honestidade.

Aqui considero outra nota a respeito do que significa o pensamento atrás das crenças. O ponto

zero absoluto, espero ter indicado, é uma espécie de utopia. Entenda essa descida pelas profundezas da mente como um espectro contínuo de lucidez crescente. É dificílimo se despir de todas as crenças, mas vemos que quanto mais pelados estamos, mais contato conseguimos ter com nossas sensações; e também vemos que as crenças possuem hierarquias. Acreditar que um mais um é igual a dois é uma coisa muito simples se você deseja apoiar seu pensamento em um tipo de lógica; acreditar que um mais um é um e a separação está no julgamento é uma outra crença, de outro contexto, que é bem simples dentro de um escopo de pensamento apoiado em outro tipo de lógica. Essas crenças mais básicas são muito menos capazes de gerar problemas, elas são menos complexas e, por isso, coisas desse tipo podem ir ficando para trás (é difícil imaginar o problema de se assumir sem pensar que um mais um é dois na hora de fazer uma escolha). A forma de considerar o pensamento é algo, você perceberá, que vai sendo experimentado e escolhido por você também no processo de consideração das sensações. Se 48


você não se sente à vontade em raciocinar de uma forma, enamore-se com outra. Formas de pensar surgem do corpo conceitual que você tem “instalado” na sua mente, isso tem correspondência com a forma com que o cérebro processa informação; as palavras e argumentos que você usa, como você entende essas palavras e esses argumentos, tudo isso compõe sua forma de pensamento (sua “voz” interior, que “fala” ou “projeta imagens” na sua cabeça, que é o que eu chamo de você, o indivíduo que habita lugares na mente; é um corpo conceitual emergente). A melhor forma de pensar depende do contexto em que você se insere, pois o que você sente depende do contexto, a eficiência em se obter aquilo que se quer também depende. Para não deixar a construção cíclica, esclareço um detalhe de como estou usando um conceito e uma crença (para evitar a ideia de que, no fim, os conceitos se fazem de crenças e as crenças de conceitos); uso os conceitos como unidade básica de pensamento, as próprias “imagens” que constituem o que você é dentro de si, as coisas que surgem na experiência mental quando você tenta pensar, enquanto as crenças são afirmações geradas pela

composição dos conceitos. No ponto zero, nos bastidores das crenças, você está em maior contato com seus conceitos (e os seus conceitos muitas vezes não são o que você entende por eles na hora de agir na superfície, isso que define o que é ter mais ou menos contato com eles; independente do que você queira considerar, os seus conceitos são coisas que surgem para você, ou melhor, surgem compondo você). Esse “não saber” a respeito dos conceitos que compõem a própria forma que você poderia usar para saber ou não de algo é precisamente a medida de lucidez, isso é uma coisa bem estranha a princípio. Mas saber dissecar a composição conceitual de um pensamento é algo bem difícil, e todos esses exercícios servem

também para a formação de conceitos que são competentes justamente para avaliar pensamentos! (talvez seja produtivo tomar um tempo para absorver o que isso tudo significa; outro detalhe, conceitos sim são uma bagunça e uns podem ser feitos de outros, de formas caóticas e entrelaçadas, exatamente como o cérebro de fato processa informações). Encerro esta nota antes que a empolgação gere um texto dentro de outro.

Enfim, enfatizo que a importância desses processos como ferramentas está na constância, no hábito. Tudo começa com o hábito da introspecção, habitar a mente, conhecer e tratar os

espaços mentais como lugares, onde você faz coisas de verdade, onde você se comporta. Depois, o hábito de não aceitar blocos de crenças, não aceitar o viés, mesmo em coisas simples; quebrar as crenças, as rotinas de pensamento que reforçam tendências de escolhas, é uma medida de fuga do piloto automático. Sensibilizar-se com a negação das crenças é poder sentir o significado delas cada vez que você é levado a usá-las em uma escolha ou comportamento; otimizar esse uso é ser mais cauteloso, preciso e versátil, e possibilita mais clareza no sentido de conseguir avaliar melhor as decisões das outras pessoas e os processos que regem as coisas que percebemos. Estar nessa posição privilegiada de dominar o uso das crenças te leva a 49


conseguir sentir o que é não tê-las e, nesse santuário interior, ergue-se o ponto zero; só ali dentro você sente de forma pura, isolada, o que acontece com você, é mais capaz de intuir de onde vem alguma sensação, com quais crenças ela se relaciona, quais crenças participam de sua causa ou que podem ser usadas nos objetivos que vão a envolver. E habituando-se a este relacionamento, ouso dizer que é praticamente natural a vontade de experimentar, de buscar

processos que você sabe que vão ressonar com aqueles desejos ou incômodos, construir as coisas que você vai ter na sua vida; não porque parecem certas ou são o usual da sociedade, mas porque você tem a noção de que elas ressonam com os desejos que pulsam em você. Enquanto não for assim, várias crenças vão conseguir ditar escolhas e ideias, proporcionando vieses que vão “palpitar” sobre o que é melhor para você, colocando você em um emaranhamento de processos difusos que serão uma barreira entre você e a lucidez. Não se esqueça que você começou sem ter a menor noção do que precisa, não se engane com a ilusão de competência que más crenças sugerem.

Espero ter deixado clara a pertinência dessas práticas e, acima de tudo, ter conseguido fundamentar a realidade desses processos, que muitas vezes podem parecer fantasias imaginativas, mas que, como todos os pensamentos habitáveis, são as ficções que geram nossas atitudes e nos proporcionam as experiências que tanto nos importam em nossa saga de existir. Espero também que tenhamos cada vez mais momentos de “super-lucidez” e, estando experientes em entender nossos processos, sintamos ainda mais a intensidade de vislumbrar a estranheza e a familiaridade do universo que nos contém.

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-{S, ε, B}

Introdução Aquilo que faz com que seja possível dizer a verdade, seja como uma entidade simples, ou como alguma coisa instanciada por uma entidade simples, é um problema recorrente desde os filósofos pré-socráticos.

Afinal, “ser verdade” é uma propriedade a ser instanciada por outras entidades mais simples? Se for, qual é a “cola” que liga a propriedade de “ser verdade” com aquilo que a veicula? Poderia ser a própria capacidade de pensar que nos garante a possibilidade de veicular a verdade naquilo que a carrega?

Outra possível alternativa é considerar que “ser verdade” não é uma propriedade a ser veiculada, mas uma categoria que une entidades discursivas que têm “algo” em comum. Não seria o caso de haver uma classe de proposições verdadeiras?

Afinal, se considerarmos a “verdade” como uma classe de categorização, o que irá nos garantir que esta escolha de categoria não é arbitrária?

E se a verdade é uma “propriedade” a ser instanciada, onde esta propriedade se encontra? Ela está nos jatos de ar que expelimos quando realizamos o discurso? Ou seria alguma forma de entidade cuja existência depende da existência de um complexo de outras entidades? O que apresentarei como solução para estes problemas fugirá da natureza das proposições e tocará teorias filosóficas recentes sobre a natureza do mundo e das propriedades de seus objetos.

Alguns filósofos contemporâneos apostam que a verdade das proposições não está em um complexo de coisas, ou na mente dos indivíduos que enunciam proposições. A verdade seria

“produzida” por elementos simples e localizados espaço-temporalmente – de maneira análoga (mas não idêntica) aos átomos do atomismo de Leucipo e Demócrito de Abdera. Estes “átomos” recebem o nome de “tropos”. 51


Antes de entrarmos na discussão dos tropos propriamente ditos, gostaria de pedir sua paciência

para conversarmos sobre discussões satélites que serão úteis para a exposição da tese dos tropos.

Hipótese da identidade entre o pensamento e a realidade Um ponto de partida aceitável para a nossa discussão é a pressuposição de que deve haver alguma forma de correspondência entre a realidade do mundo e a forma de nosso pensamento. Negando esta pressuposição, tão somente descartamos qualquer possibilidade de filosofar. Aquele que nega a própria filosofia não pode, por princípio, argumentar contra nossa hipótese inicial. Se não houver mínima correspondência (ou identidade) entre o “pensar” e o “ser”, nenhuma verdade poderá ser dita – assim como nenhuma falsidade. Teremos apenas sons e sinais sem sentido algum. Sabemos não ser este o caso.

Uma conclusão razoável que podemos tomar com a pressuposição acima, é que o pensamento “espelha” a realidade. Os processos que levam à reprodução do mundo em nosso pensar

poderiam ser os mais variados e não vem ao caso discuti-los aqui. Desta forma, sem realizar extrapolações, podemos concluir uma condição ontológica para a realidade:

“... Pois o mesmo é a pensar e a ser.”

Como se encontra no fragmento 3 do poema “Sobre a Natureza” de Parmênides. Finalmente a veracidade do pensamento racional está garantida. Aquilo que “há” é, necessariamente, pensado. Aquilo que pensamos e que faz sentido, necessariamente “é o que há”.

A formulação proposta por Parmênides sobre a natureza do pensamento e da realidade parece ser a “salvação” da filosofia contra argumentos que impossibilitem o discurso verdadeiro. Por outro lado, a identidade entre o pensamento e a realidade nos leva a um sério problema. Admitindo a Identidade, admitimos a impossibilidade de aprendermos algo novo sobre a Natureza. A impossibilidade de aprender algo novo nos impede de expressar proposições que tenham valor filosófico.

Uma vez que garantimos a identidade entre o pensamento e a realidade, também delimitamos aquilo que existe como aquilo que pode ser pensado. Nosso pensamento está preso naquilo que “é”. Aquilo que “não é” tão somente não pode ser pensado. Nada pode ser expresso que represente o que “não é”.

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Pensar na distinção entre as entidades que compõem a realidade seria pensar naquilo em que eles diferem. As entidades diferem justamente no âmbito de “não-ser”. Ora, se não podemos fazer esta distinção, toda a categorização se mostrará falha. Afinal, o que distinguirá um objeto “A” de um objeto “B”?

Uma vez que as coisas difiram pelo “ser”, elas tão somente não diferem entre si. Se as coisas diferem pelo “não-ser” e que o “não-ser” não pode existir, então as coisas não diferem entre si. Desta forma, Parmênides argumenta a impossibilidade de pensar em distinções reais. A realidade, para o filósofo, é o Uno eterno e imutável. O ser tão somente “é” e nada pode ser pensado ou dito além dos limites do Uno.

Dos resultados da natureza Una da realidade, dois paradoxos imediatamente surgem. Seguem os paradoxos:

1) O Paradoxo do Verdadeiro: Suponha A e B. Se dissermos que <A é B>, e que tal proposição seja verdadeira, então A é idêntico a B. Se A é idêntico a B, então <A é B> é idêntico a <B é B> e a <A é A>. Sendo assim, toda a tentativa de expressar propriedades não é nada mais que expressar uma identidade. Ou seja, dizer que <A neve é branca> é idêntico a dizer que <a neve é a neve>, que <o branco é o branco> e que há identidade entre “Neve” e “Branco”.

2) O paradoxo do Falso: Suponha A e B.

Se dissermos que <A é B>, queremos expressar algo que “é”, uma vez que a proposição deve fazer sentido. Ora, se <A é B> for um discurso falso, então ele não fará sentido. Mas para que o discurso tenha sentido, ele deverá ser verdadeiro. Ao ser verdadeiro, voltamos ao Paradoxo do Verdadeiro.

E agora?

Estávamos seguros de que a garantia da identidade entre o pensamento e a realidade nos

permitiria falar a verdade sobre o mundo. Os paradoxos mostram que podemos falar verdades sobre o mundo, mas nunca a verdade que nos interessa. Toda a verdade é tautológica.

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Os veridadores (truthmakers) e a Teoria da Correspondência Nem todos os filósofos ficaram satisfeitos com a forma que Parmênides resolveu o problema. Uma boa parte do trabalho dos filósofos ocidentais foi o de encontrar formas seguras que garantissem a identidade do pensamento com a realidade sem entrar em paradoxos de Parmênides. Muitos filósofos tentaram garantir a existência desta entidade, o “Uno”, enquanto garantiam a possibilidade de veicularmos informações novas dentro do discurso.

Não nos desviaremos muito do curso indo atrás de cada resposta. Vamos aos debates que nos interessam.

O deslize que nos leva aos Paradoxos do Falso e do Verdadeiro, apontarão alguns filósofos posteriores, é que o “ângulo” por qual ela olha o mundo é uma confusão. A identidade entre o pensamento e a realidade é intermediada por uma possibilidade de “sim” ou de “não”. A “verdade” fundamental não é a verdade sobre a realidade, mas a verdade sobre as próprias proposições. Esta verdade é a que as proposições, antes de estarem refletindo a forma do

mundo, estão refletindo a possibilidade da forma do mundo ser. Por outro lado, é impossível uma proposição guardar sentido se não representar alguma das possibilidades da realidade ser.

E o que viria a ser esta “possibilidade” da realidade ser? Afinal, a realidade é uma, e ela deve ser tal qual nós a presenciamos.

Wittgenstein, em seu Tratactus Logico-Philosophicus, nos mostrará – segundo o que ele mesmo diz – que todas as proposições se encontram naquilo que ele chama de “Espaço lógico”. Tudo aquilo que pode ser dito se encontra neste Espaço. Tudo o que pode ser dito são proposições que figuram a forma dos objetos do mundo estarem organizados, ou a negação desta organização. Aquilo que não figura uma possibilidade (de ser ou de não ser) de organização entre os objetos, simplesmente não pode ser dito. Estas “entidades” que não podem ser ditas, conforme diz Wittgenstein, podem ser “mostradas”. Aquilo que expressamos sobre a natureza das proposições, como a filosofia, não é “dito”, mas “mostrado”. Esta forma de conhecimento não está na esfera nem do “sim” e nem do “não” – Não são verdadeiras e nem falsas. As proposições que figuram bem a organização no mundo são aquelas que chamamos de “verdadeiras”.

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Da proposta dada por Wittgenstein é possível dizer que há uma espécie de entidade que é independente das proposições e dos objetos. Esta entidade é aquilo que chamamos de “organização entre os objetos”, ou, de forma canônica, “Estado de Coisas”.

O Espaço Lógico que contém os “Estados de Coisas” não pode ser idêntico à realidade dos objetos. O Estado de Coisas também não pode ser idêntico às proposições, uma vez que as proposições representam possíveis Estados de Coisas. A existência desta entidade garante a verdade da proposição verdadeira. Basta que exista o Estado de Coisas que corresponda ao mundo dos objetos (realidade) à proposição, que teremos uma proposição verdadeira.

Por outro lado, não podemos dizer que esta entidade “causa” a verdade da proposição verdadeira. Se este Estado de Coisas “causar” a verdade de uma proposição verdadeira <p>,

precisaríamos ter outro Estado de Coisas¹ que causasse a verdade de <p>¹ que afirma <O Estado de Coisas causa a verdade da proposição <p>>. Assim sucessivamente, em uma redução ao infinito. O que podemos dizer é que há uma “correspondência” entre a verdade das proposições e aquilo que lhes garante a sua verdade. Tal problema é evitado ao manter o Estado de Coisa independente das proposições, ao mesmo tempo em que não a identifica com os objetos da realidade.

O Estado de Coisas, na forma que já conversamos, é uma entidade que está na categoria do que

muitos filósofos chamam de “Truthmakers” (ou, como chamaremos de agora em diante, “veridadores”). Veridadores são entidades que garantem a verdade das proposições verdadeiras. De alguma forma, temos que supor que exista alguma correspondência entre as proposições e os fatos, quem “intermedia” esta correspondência é o veridador.

O que foi dito acima pode ser resumido e melhor compreendido pela formulação que segue:

Seja <p> uma proposição verdadeira. Então deve existir pelo menos uma entidade – distinta de <p> - cuja existência garanta a verdade de <p>.

Problema de instanciação Demos um grande passo ao sair da aporia causada pela identidade do pensamento com a realidade, ao mesmo tempo em que podemos ter uma saída para dizer que existe alguma verdade que justifique a existência de proposições verdadeiras. 55


Por outro lado, o nosso problema não foi resolvido por completo. Afinal, o que nos parece pela observação direta, é que o veridador do Estado de Coisas sofre de certa incompletude. Quando pensamos nestes “estados”, podemos pensar naquilo que os filósofos chamam de “Relações Internas”. Com “Relações Internas” queremos falar das relações que os objetos mantêm entre si, como relações de distância e posição. Na realidade parece haver mais relações do que aquela entre os objetos particulares. Observe a diferença entre as duas proposições:

1) <p>: <A neve é branca> 2) <f>: <O livro está sobre a mesa>

Estamos dispostos a falar que o veridador que garante a verdade de <p> é da mesma natureza que o veridador que faz a verdade de <f>? O veridador de <f> corresponde à proposição com a posição de dois objetos particulares. O veridador de <p> faz correspondência de um objeto com “algo” que dificilmente diríamos que está “acima” ou “abaixo” de outra coisa.

O que queremos é uma ontologia simples. Veridadores que correspondam complexos com proposições sem apelar para entidades além das que encontramos na nossa realidade. Certamente, economia não é argumento de verdade. Por outro lado, evitar entidades além das que precisamos pode diminuir a chance de erro.

Poderíamos alegar que determinadas relações são feitas entre objetos que instanciam “entidades”

existentes

em

uma

realidade

alternativa.

Um floco de neve seria um objeto de nossa realidade, mas o “branco” seria uma entidade que

existiria fora de nosso mundo. O floco particular “instanciaria” aquele “branco” geral em sua forma particular captada por nossos sentidos. O “branco” existiria além do floco de neve, e seria independente deste.

Outra possibilidade clássica é a de que os objetos instanciam estas “entidades” que se encontram no próprio objeto, ainda que estas mesmas “entidades” sejam compartilhadas por outros objetos. O “branco” teria existência naquele floco de neve particular, ainda que fosse instanciado por outros objetos particulares. O “branco” existiria, mas sua existência depende da

existência dos objetos.

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No primeiro caso, temos que considerar toda uma nova realidade para justificar o complexo que mantenha o veridador. Na segunda hipótese, perdemos o sentido do que é um objeto – Uma vez que nossa experiência captaria apenas estas entidades instanciadas (cores, formas, texturas e outras propriedades); sendo assim, a necessidade proposta para a existência do objeto particular seria um ad-hoc.

Outra possibilidade é desconsiderar a existência de entidades além das dos objetos particulares. Proposições como <f> não dariam um complexo entre entidades, mas diria que a neve pertence a uma classe (a classe das coisas brancas). O “branco” seria uma classe criada a partir da observação da semelhança entre os objetos. Porém, o que seria a “semelhança”? Não seria ela uma entidade que existe independentemente dos objetos e das classes? Afinal, a “semelhança” não pode ser dividida em classes; dado que a “semelhança” entre dois objetos não é de classe diferente que a “semelhança” entre outros dois objetos. A tentativa de evitar a existência de entidades distintas da dos objetos nos trouxe a existência de outra entidade abstrata. Outro problema que temos é a ambiguidade na posição do Estado de Mundos (do veridador). Nas

visões que consideravam a existência das propriedades, o veridador correspondia a um caso no mundo. Agora, o caso do mundo se confunde com a noção de classes. Trocamos um complexo entre entidades reais para assumir um complexo entre objetos e artefatos teóricos (como “classe”) não localizados no espaço e no tempo. Onde estão os fatos da realidade?

Proposta da teoria dos tropos Várias propostas de solução para estes problemas foram levantadas ao longo da história da

filosofia. Não podemos nos deixar enganar em dizer que apenas uma questão problemática seja capaz de derrubar uma teoria madura. Porém, as dificuldades levantadas contra teorias filosóficas abrem margem para que novas teorias surjam.

Uma das propostas contemporâneas para ocupar o lugar do Estado de Coisas é a postulação de certas entidades chamadas de Tropos. Os tropos assumiriam o papel de veridador.

Os tropos, com certa “liberdade poética”, mantêm semelhanças com a visão atomística de Leucipo e Demócrito. São entidades particulares, discretas, que substituem as propriedades instanciadas pelos objetos. Na verdade, a realidade seria toda composta de agrupamentos de tropos. Os objetos particulares seriam compostos de entidades particulares simples. Os tropos seriam como “substâncias” 57


que agem como se fossem “propriedades”. Ou seja, aquilo que chamamos de “propriedade”, “gênero” ou “classe” são objetos particulares. Cada “branco” de cada “floco de neve” é um objeto tão particular quanto o próprio floco de neve particular. Considere o exemplo:

<w>: <O tropo α é B>

A proposição <w> não faz sentido. Tropos são entidades simples que não instanciam propriedades.

A primeira vista, esta noção parece estar simplesmente varrendo o problema para debaixo do tapete. Porém, até então, os filósofos oponentes da teoria dos tropos não conseguiram mostrar condições em que seja “absurdo” considerar as propriedades como objetos particulares. Muitas críticas baseiam-se somente na crença de “parecer absurdo”.

Os tropos contornam os diversos problemas de instanciação. Não é necessário postular a

existência de um plano de realidade distinta da nossa, assim como a existência dos objetos particulares deixa de ser ad hoc. A “semelhança” de algo que não podíamos definir, agora será visto como algo intrínseco à natureza das entidades que compõem a realidade.

Tropos enquanto veridadores. Se os tropos forem veridadores, devemos descartar a visão dos complexos formados por objetos e propriedades instanciadas. Problemas como justificar a unidade entre objetos e propriedades

são imediatamente solucionados. A correspondência entre a proposição, a realidade e o Estado de Coisas se torna uma correspondência entre o pensamento e a localização espaço-temporal de objetos particulares. A referência misteriosa das proposições:

<a>: <João escuta Maria> <b>: <Maria vê João> <c>: <Maria é mulher>

Se torna localizável na realidade.

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A localização e a individualidade dos veridadores. Mas onde estão estes veridadores? Ou ainda, o que significa dizer que eles estão “neste lugar”? Para encerrarmos nossa exposição, gostaria de falar brevemente sobre como a diferenciação numérica entre tropos nos leva à hipótese da localização espaço-temporal dos tropos.

As hipóteses concorrentes à teoria dos tropos postulam uma espécie de igualdade entre as propriedades. Esta igualdade assume que uma parte de um objeto deve ser idêntica a uma parte de outro objeto. Desta hipótese, temos dois resultados interessantes.

O primeiro resultado nos diz que diferentes veridadores devem garantir a verdade de proposições distintas. A proposição que afirma que a “<neve é branca>” pode ser verdade para diferentes veridadores, uma vez que as condições físicas podem ser distintas e ainda assim gerarem “neves” que são “brancas”. Ss condições que garantem a verdade das proposições podem ser “diferentes” até que ponto? Ora, a classe ou a propriedade da “branquidão” é sempre a “branquidão”. Ou seja, temos uma “ambiguidade” para resolvermos aqui.

O segundo resultado nos diz que a identidade não está nos objetos mesmos. O que faz uma propriedade idêntica à outra – o “branco” de uma “neve” ser distinta do “branco” de outra – não depende da “neve”. A igualdade depende das propriedades serem iguais. A igualdade é tautológica e irredutível. “<<A = B> ⬄ <B = A>>”.

Se tivermos de considerar que a identidade entre propriedades é irredutível, devemos também considerar que uma parcela da realidade não tem dependência espaço-temporal. Evitando esta

negativa contra-intuitiva, os tropos são individualizados espaço-temporalmente. Dois tropos idênticos são distintos se estiverem localizados em regiões distintas do espaço no mesmo intervalo de tempo. Em outras palavras, o “branco” da neve de um lugar é numericamente distinto do “branco” da neve de outro lugar, ainda que sejam qualitativamente semelhantes. Certamente, poderia ser dito, que sendo os tropos objetos particulares, eles deveriam permutar de posição. Mas esta é uma condição que acrescenta informações desnecessárias à metafísica. Aceitar que tropos idênticos qualitativamente permutem espacialmente, para garantir sua particularidade, é problemático – Uma vez que não pode ser percebida, pela experiência, a

permutação de qualidades. Um argumento de defesa é a necessidade de extensividade para a existência do movimento, e, portanto, da permutação espacial. Alguns tropos não têm

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extensividade e precisam se agrupados com outros para que possam se mover pelo espaço. O tropo da “branquidão” da “neve” particular depende do tropo da “forma extensa” daquela neve, para que possa alterar sua posição no espaço. O movimento é resultado da alteração da posição de objetos, um em relação ao outro e, por isto, dependente de sua extensividade.

Outra possibilidade seria a necessidade de aceitar a possível existência de uma “força metafísica” que alterasse a posição de tropos qualitativamente idênticos. A aceitação desta força ameaça a teoria dos tropos, uma vez que sua realidade poderia ser postulada por mudanças irrelevantes causalmente. Afinal, o que poderia negar que uma “força” permutasse dois tropos idênticos qualitativamente e distintos numericamente que estão em “agrupamentos” diferentes? Ora, para que haja a permutação, é necessário que ela seja feita entre objetos distintos numericamente. Porém, o tropo mais próximo em semelhança de outro tropo deve compartilhar até mesmo a posição relativa a outros tropos. Então, os tropos idênticos devem ser aqueles e suas contrapartes em outros mundos possíveis. Desta forma, a contraparte de um tropo em um mundo possível é o mesmo tropo que os seus correspondentes nos diversos mundos possíveis. Assim, excluímos a possibilidade de permutação. Se uma força permuta tropos idênticos, ela deve permutar tropos distribuídos em diferentes mundos possíveis. Se as contrapartes são os mesmos tropos, então a permutação ocorreria entre um tropo e ele mesmo. Permutação de um objeto com ele mesmo simplesmente não é uma permutação.

Daqui desfaremos a ambiguidade que resulta da independência entre veridadores e proposições. Da individualidade dada aos tropos por sua localização, e da identidade de um tropo com suas contrapartes em mundos possíveis, podemos dizer que não há ambiguidade em garantir a verdade de proposições distintas com os mesmos tropos. Proposições logicamente independentes podem ter os mesmos tropos. Afinal, a “distinção” e a “semelhança” são relações entre entidades primitivas. Sendo os veridadores os próprios tropos, proposições independentes podem ter o mesmo veridador. Considere o exemplo:

<m>: <o tropo da branquidão é o tropo da vermelhidão> <n>: <o tropo da branquidão é o tropo da branquidão>

Na visão clássica de veridadores, as verdades de <m> e <n> devem ser garantidas por veridadores distintos. Temos que nos lembrar de que, na hipótese dos tropos, estamos nos referindo não a complexos – Pois tropos não têm propriedades. Eles são propriedades 60


particulares. Desta forma, o veridador de <m> e <n> é tão somente os tropos. Basta observar o tropo em particular e garantir qual das duas proposições é a verdadeira, pois proposições independentes podem ter o mesmo veridador. Ora, na consideração de classes, a “semelhança” pode ser confundida com “identidade” – A maneira que a verdade da proposição é garantida se torna confusa. As situações de mundo que tornam um objeto semelhante para com outro podem ser distintas qualitativamente. Os tropos garantem a independência destas situações de mundo, uma vez que eles mesmos são particulares e primitivos.

Conclusão Imagino que corri o risco de ter banalizado o assunto ou fugido do que realmente a discussão sobre os tropos localizados no espaço se propõe a nos dizer. Por outro lado, espero ao menos ter mostrado que ainda existem discussões sobre ontologia e que esta área da filosofia continua movendo várias áreas de estudo – Neste caso, vemos a interligação entre problemas ontológicos e epistemológicos.

Outra coisa que gostaria que concluíssemos é que a metafísica não é desenvolvida pelo pensamento desregrado, como se toda a especulação fosse vaga e ocultada por jogos de palavras. Existe esforço por parte dos filósofos em formular claramente suas objeções e defesas sobre determinadas teorias.

Além disto, ainda que eu não tenha cumprido minha promessa em localizar a verdade espaçotemporalmente, acho interessante que a discussão sobre a verdade das proposições pode nos

mostrar soluções que estão bem embaixo de nossos narizes. A verdade das proposições pode ser garantida por fenômenos que acontecem à nossa volta.

61


Sugestão de leitura e referências Introdução aos tropos e a teoria de propriedades. - Rodrigo

de

Alexandre

Figueiredo

(2009).

Introdução

à

metafísica

de

propriedades.

http://criticanarede.com/propriedades.html - Tropes. http://plato.stanford.edu/entries/tropes/ - Donald Cary Williams (1953). Dos Elementos do Ser. (traduzido para o Português por Osvaldo Pessoa Jr.)

Identidade do pensamento com a realidade. - Luiz Henrique Lopes dos Santos. A Harmonia Essencial. (A Crise da Razão). - Karl Popper. The World of Parmenidez (Essay 3: How the Moon might shed some of her light upon the Two Ways of Parmenides).

Tropos e veridadores. - Julian Dodd. And Indentity Theory of Truth (Trurthmakers, facts and States of Affairs: a Critique of Correspondence).

62


´ da Principio

HONESTIDADE

Honestidade?

- Wild Child Quando estamos diante de um conceito familiar, sempre temos a noção de que entendemos aquele conceito, pois interagir com um conceito é ativar algo em nosso pensamento (algo além do próprio conceito) e atribuir o entendimento a esse ‘algo’ (por exemplo, agora eu, sem saídas, confio no entendimento do leitor ao interagir com os conceitos que estou expressando com palavras no texto, eu confio que algo irá surgir como justificativa para a pessoa que reconhece as palavras ‘conceito’ e ‘pensamento’ como conceitos e irá corresponder em boa medida ao que eu intenciono transmitir). Além disso, nós nos comunicamos com nós mesmos e com outros através da expressão de conceitos, que sempre são estes pacotes com coisas dentro, coisas que

são ativadas no nosso pensamento em resposta ao estímulo do conceito, e a nossa intimidade com eles muitas vezes pára por aí. Ou seja, estamos satisfeitos em olhar para aquela caixa, que percebemos estar preenchida com algo, e dizer que aquilo compõe o nosso entendimento do conceito. O ponto central da série ‘princípio’ vai ser a tentativa de eliminar essa satisfação e vasculhar as caixas. O objetivo é conectar o mundo conceitual com o que acontece na prática, claro, porque só o que acontece tem importância no fim. A razão de usarmos conceitos é para representar algo que ‘está acontecendo’, e representamos como uma ferramenta para produzir mais coisas que acontecem. Por exemplo, vemos um carro passando na rua e usamos o conceito de velocidade para poder dizer “nossa, que rápido”, e queremos nos atentar a isso porque é um acontecimento que, por exemplo, pode nos matar. Parece besteira, mas é impressionante o quanto essa ponte se perde à medida que vivemos e vamos incorporando conceitos em cima de conceitos. Sem a ponte, nos limitamos muito e corremos sérios riscos de sermos inefetivos ou pior, inconsistentes. Muito bem, neste primeiro texto vamos explorar a honestidade.

Se alguém te perguntar o que é honestidade, o que você irá responder? Você provavelmente irá interagir com suas noções de honestidade (a sua caixa da honestidade) e poderá dizer “ora, honestidade é... ser honesto é ser justo, não fazer coisa errada, não mentir também… a pessoa desonesta trapaceia… tipo isso”. Ótimo, você entende honestidade, se alguém usar esse conceito em uma frase, para você essa frase é inteligível, parar por aí é suficiente, dá pra viver. “Olha, aquele cara recebeu troco a mais, ele viu, e não falou nada; ele é desonesto”, você responde “claro, concordo, agora não gosto mais dele” e a vida segue. Mas agora você quer ter certeza de que consegue definir conceitos com precisão, então pode aprender com o dicionário. 63


O michaelis diz que honesto é aquele: (1) Que possui e demonstra dignidade e se rege por valores morais e éticos elevados; digno, honrado. (2) Que tem seriedade; decente, íntegro, probo, reto.

Perfeito, é mais ou menos o que você pensa, só tem mais pompa. Porém, está na cara que esta definição reside sobre as nuvens; ela é dependente de sistemas de ética, moral, justiça, honra, coisas terríveis que não são de fácil entendimento. Como podemos dizer que entendemos um conceito que depende de coisas super complexas? Ainda assim dizemos isso porque é fácil violar essas coisas complexas, eu posso muito bem ir ao mercado e comprar o meu sistema moral, ele pode ser cheio de coisas ou simplório, barato ou caro, não interessa. O que interessa é que é o meu e eu entendi isso também, então posso usar coisas que estão acima. Mas como pode

cada um ter o seu e nós podermos julgar outras pessoas ou mesmo nos entender com essa base? É possível promovermos isto? Se sim, estaremos ou não sendo honestos? Difícil responder; e já estou atribuindo uma precisão rara, pois muitas vezes nos preocupamos no máximo com o que parece, instância por instância, sem tempo para ir ao mercado. Então chegou a hora de analisar o que está acontecendo; vamos tentar construir uma ponte e chegar ao princípio da honestidade.

Nada mais confortável do que partirmos do ponto zero (um conceito explorado em outro texto deste mesmo volume), que é basicamente o nosso lugar mental onde conseguimos construir um estado em que estamos nos bastidores das crenças, e estamos em contato direto com inclinações básicas percebidas. Estando ali, vamos construir uma rotina que explora a importância de se definir uma honestidade. Muito bem, eu estou no ponto zero, existindo, tenho um corpo e estou sentado, de olhos fechados. Percebo um desconforto, acho que eu quero algo que não tenho, talvez eu esteja inclinado a sentir uma sensação ou um conjunto de sensações, ou também talvez desejo eliminar um incômodo, uma necessidade, não sei. Preciso investigar. Eu sei, por experiência, que não sou dono dessas inclinações, elas acontecem comigo. Então, a princípio eu tenho a escolha de investigar ou não o que eu possa estar querendo; e supondo que fiz isso e consegui identificar algo que possa ser o que eu estou buscando, eu tenho a escolha de aceitar que quero isso ou reprimir isso. Mas, é possível também que eu tente identificar e não consiga, o que me deixa com a necessidade de construir essa capacidade. Escolher rejeitar/reprimir uma inclinação é um conflito com ela, é um conflito com você, pois muito provavelmente ela não vai parar de te incomodar, muito menos se você nem conseguir descobrir o que é.

A minha proposta é que essa situação pode ser tratada com um conceito de honestidade interna, dependente de capacidade. Nesse sentido, ser honesto com você mesmo, com seus estados internos, em relação a uma inclinação, é conseguir identificar como ela se expressa e 64


aceitá-la. Se você não consegue ou não aceita, você está sendo desonesto com aquela inclinação.

Desta forma, a honestidade interna é uma prática, é uma capacidade. Pode parecer pesado considerar que alguém está sendo internamente desonesto por não conseguir nem identificar o que quer, mas essas coisas são necessárias para se definir a praticidade do conceito. Não conseguir identificar e não continuar tentando, resolver ir fazer outras coisas e deixar aquilo ali gera efeitos semelhantes a ignorar e rejeitar uma inclinação. Exercer a honestidade interna é buscar dentro de si a expressão da sua intenção; quanto mais, melhor. Suponha que você esteja em um bingo e você acha que seria muito bom ganhar aquele prêmio, e a cada bola lançada, um sujeito com uma risada irritante inconvenientemente comemora, “eu tenho”, “tá no papo”,

“essa bolada é minha”, “linha”, “bingo!”; e você não marcou nada. Quando ele pega o prêmio e diz “esse vai junto com os outros hohoho”, aquela bomba fervente estoura em seu peito. Se você, por incapacidade ou conveniência, pensa “que dia ruim, coisas ruins ficam acontecendo comigo”, “como é possível alguém ser tão inconveniente? esse cara é tão chato que me dá raiva, como pode alguém ser tão sem noção?”, você está sendo desonesto. Ele podia ser chato do mesmo jeito ou pior e você poderia sim ter essa opinião sobre o dia ou sobre ele, mas se você ganhasse, você não sentiria essa raiva, desse jeito; ou se ele não ganhasse sempre. Ser honesto é poder dizer com todas as palavras “eu queria ganhar, estou me sentindo muito contrariado porque não gostei que ele ganhasse, o jogo foi ruim porque eu não marquei nada, ainda por cima o cara ganhando incita esse sentimento de raiva em mim com o seu comportamento”, “cheguei a ter vontade de bater nele quando ele ganhou”, “não achei justo, eu devia ter ganho, ou pelo menos não ele”, “eu sinto que a realidade é particularmente injusta comigo; não quero mais ter dias assim, não quero mais ter azar”. Só assim você tem condições de entender que sentir isso é meio bobo, constrangedor, e naturalmente trabalha e repara o sentimento dentro de si. Do contrário, você transmitiria aquela raiva cega em cascata pelo resto do seu dia e até mais. Se você não se simpatiza com os jogos de azar, pode pensar em quando a sua internet fica caindo, quando só você vai mal na prova, monte seu exemplo. É possível que você seja elevado o suficiente para não se identificar com nenhum exemplo, mas nesse caso, generalizando a situação, você inevitavelmente se reconhecerá, seja agora ou no seu passado.

Podemos admitir uma conclusão a mais com o exemplo: honestidade é uma ferramenta de autoconhecimento, e isso é muito importante. Falar de autoconhecimento é falar de qualidade de vida, de prazer, capacidade e liberdade. Para que serve uma ferramenta que você não sabe usar? E é chato que nós mesmos somos uma ferramenta que nascemos sem saber usar e somos educados sem aprender a usar direito. A verdade é que não somos muito bons em buscar prazer; somos acostumados a aceitar e repetir hábitos que parecem corretos, mas não temos a menor ideia do que se esconde por trás daquilo que não é praticado. Exercer honestidade sobre 65


aquele incômodo de fundo que sentimos também é aprender a descobrir em quais coisas a felicidade se encontra e a ter intimidade e parceria com seus desejos. Eu dei um exemplo de uma situação elaborada, com efeitos relativamente grandes, mas permita-se refletir sobre o conceito; você verá que pode exercer honestidade interna a cada pensamento, a cada movimento ou a cada escolha. Com o tempo, você se torna proficiente em ser honesto consigo e sabe identificar e manipular as coisas que causam suas intenções e atitudes; então você conseguirá mais se libertar do que parece o melhor a fazer por qualquer motivo externo a você e passará a ser capaz de traçar uma linha reta entre você e o que você realmente quer sentir ou ser.

É fácil generalizar essa honestidade para o meio externo. Ser honesto com outras pessoas é basicamente ser capaz de transmitir a elas suas conclusões honestas internas quando se trata de um processo que as envolve. Claro que você não está sendo desonesto por estar no seu canto e omitir suas razões; então a desonestidade fica reservada para quando você omite suas razões a alguém que está ali no seu canto, junto com você. Não estou dizendo para você se levantar e dizer ao sujeito do bingo que sentiu raiva dele, a menos que ele vá participar de suas atitudes que se seguem à constatação desta raiva; é desta forma que estou definindo processos. E se for

participar, ser honesto com ele não é ter que contar a história da sua raiva, mas somente o que for capaz de produzir um efeito (é para a honestidade ser uma ferramenta, lembre-se que o objetivo é produzir efeitos na realidade). Vamos supor que você combinou de se encontrar com alguém em um determinado horário e esta pessoa atrasa; por motivos variados era muito importante para você não se atrasar naquele momento e a pessoa não sabe. Mesmo assim você a ofende, dizendo “eu odeio gente que atrasa, isso é uma falta de respeito, você me fez perder um compromisso, tome jeito”. Então depois você consegue ser honesto consigo e pensar “eu fiquei contrariado por atrasar, senti raiva por isso não ter sido minha culpa, mas da outra pessoa…

mas sei que nós todos estamos sujeitos a isso e sempre temos nossas razões; é mentira que eu odeio gente que atrasa, nem existe um tipo de gente assim, todos podem atrasar por motivos que são externos…”. Vamos supor então que você sente vontade de se retratar, porque chegou na conclusão de que foi injusto com a pessoa. Então você vai até ela e diz o que está se passando dentro de você, esclarece os motivos da raiva ter surgido e se retrata. No fim, a pessoa pode ter se atrasado por simples desconsideração (e isso é um problema que ainda pretendo abordar em textos), mas isso é independente da sua atitude, tente se convencer de que é.

Voltando ao exemplo do troco, então se aquele cara pensa “estou com vontade de pegar esse troco”, seja porque ele acha que seu benefício será maior do que o prejuízo do outro lado, ou seja porque ele não acha nada, ele está sendo honesto consigo, se acredita mesmo nisso. Mas ele está sendo desonesto com a outra pessoa, se não passar a ela estas informações. Com isso, fica a 66


a pergunta, nos casos que envolvem conflitos de interesses, como entra a honestidade? Por que eu quero exercer honestidade com quem se opõe a mim? Primeiro, pontuo, sem justificar neste texto, que acredito ser sempre pior e sempre evitável iniciar um conflito com alguém e que minha lógica não se estenderá a essas situações (entendo conflito em um nível fundamental, se alguém está agindo de forma prejudicial e você conflita com a pessoa para tentar fazê-la parar, o conflito é dela; se você está sendo essa pessoa, seu objetivo é fazer o máximo para conseguir não ser, isso também é conteúdo para outras discussões). Então, se há alguém se opondo ao seu interesse em algo, você pode tentar fugir. Se não tem como ou se você não quer, e se depois de todas as análises você conclui que o lado dela não é desejável, aquela pessoa não está envolvida no seu processo, então não confidenciar a ela o seu interior não é desonestidade (neste ponto, o interessante é entrar em uma rotina de dissolução do conflito, em que você também exerce a honestidade interna para deixar bem claros os pontos e objetivos pelos quais você é obrigado a manipular informação para a outra pessoa). Isso é usar uma ferramenta de sobrevivência. No

caso do troco, da forma como mencionei, o cara que pega o dinheiro é o iniciador do conflito. Claro também que outras pessoas se opõem a você em alguns processos, não inteiramente; então vale considerar honestidades seletivas dependentes dos processos considerados. E por padrão temos processos fundamentais em conjunto com todas as outras pessoas, os nossos processos de sermos humanos, que conseguem se comunicar, existindo em um mesmo espaço e buscando felicidade, em qualquer sentido. Podemos conflitar nos detalhes, mas existe um nível em que a honestidade pode se universalizar, o que em princípio é bom para todos. É, por exemplo, você exercer o pensamento “eu conflito com você, mas no fundo sei da sua árdua fuga

do desespero e do sofrimento e espero mesmo que considere a minha”, e dizê-lo. Isso pode ser usado para dissolver conflitos.

Nos casos em que você deve se confidenciar com alguém para ser honesto, isso quer dizer exercer a honestidade para se aproximar de um objetivo, da mesma forma que você exerce a honestidade interna (ainda com mais graus de liberdade ao se resolver considerar a expansão dos objetivos para os da outra pessoa também).

Outra questão que surge com o texto; como manipulamos inclinações se elas simplesmente acontecem? Esta é uma questão complexa de se explicar, eu gostaria muito de tentar, mas não vou fazer isso aqui. Vou apenas indicar o que quero dizer com isso através de um exemplo. Vamos supor que você pense “poxa, comer pizza é legal”. Se você estiver, por exemplo, cheio de comida, ou se estiver acabado de acordar, você não vai sentir vontade de comer (e muitas vezes você pode desonestamente pensar que quer comer pizza, mas não vai ser especialmente prazeroso porque você confundiu a vontade; isso é comum). E às vezes, você pode estar andando na rua, pensando em balões, e é atingido por um “preciso de pizza”, ou 67


principalmente em todos os instantes em que você está condicionando sua alimentação, em um regime. As inclinações são assim. Mas se você entra no mundo da pizza, fica vendo imagens de

pizza, aprende sobre receitas novas, melhorias e sabores, fica sentindo cheiros, simplesmente vai fazer sentido querer pizza, e a vontade vai acabar batendo forte, repetidas vezes, em espaços curtos de tempo. Desta forma nós somos capazes de avançar em complexidade a respeito das inclinações e manipular sua geração, de formas indiretas.

Espero ter conseguido passar o que é a ferramenta da honestidade e o seu efeito prático, ou seja, a razão de se utilizar o rótulo de honesto (que é definir um estado desejável que permite a realização de coisas mais elaboradas do que as possíveis fora desse estado). Uma coisa importante sobre a honestidade definida desta forma, é que ela é muito basal; como já enfatizei, essa condição vai permear a maioria de suas tentativas de ser alguém melhor e servir de sustentação para vários outros conceitos elaborados (assim como aquelas coisas feias são bases da honestidade do dicionário). E é preciso prática e aceitação! Ah, pois bem, voltando à definição original, etérea... vemos vários pontos de concordância, claro, estamos falando de honestidade; mas você percebe o quão difícil é encontrar uma utilidade consistente para ela? Separar pessoas em grupos? Apontar um julgamento apenas para condenar? E, condenando, com bases particulares? Com certeza, um conceito obsoleto, que deve ser reservado ao passado da humanidade, para quando ainda não tínhamos condições de suportar maiores consistências.

Mas, e se conseguíssemos criar sistemas éticos, morais, etc., universais? Poderíamos chamar de honestos aqueles que os seguem, com consistência. Mas enfatizo novamente, não há como separar. Todos nós estaríamos sujeitos aos dois lados, em momentos diferentes (ou todos estariam sempre em um mesmo lado). Esta questão nos leva à própria condição de nossa

montagem. Não vou justificar aqui, mas acredito por razões evolutivas que não há como estabelecer sistemas morais e éticos universais que sejam funcionais e consistentes em produzir julgamentos de valor sobre atitudes e eventos. Por isso também, para mim, desonestidade é apenas não exercer honestidade, e o efeito disso é medido só com consequências práticas, em termos de complexidade e resolução de problemas. Eu não vou deixar de gostar do cara do troco por isso e não vou achá-lo um alienígena; ele é meu semelhante, eu o entendo. Mesmo se foi o meu dinheiro que ele pegou; vou me opor à sua atitude, não à sua pessoa. Se ele fizer isso constantemente, vou me opor ao padrão de atitudes, mas isso não é nem de longe tudo o que ele é.

68


Gloriosa Libertação

O caminho para o eu divino -Aurora Ankh

*A palavra ego tem sentidos diferentes para pessoas diferentes, mas aqui significa um falso eu interior, criado por uma identificação inconsciente com a mente.

“Basta um pedaço qualquer deste mundo e nós já caímos de joelhos ao anticristo, porque nós ainda estamos no poder do anticristo. Satanás não é uma pessoa, o anticristo não é um indivíduo, o anticristo é a mentalidade coletiva deste mundo: o nosso ego. O mundo está dominado pelo ego humano e não conhece ainda o Eu Divino. E nosso divino está totalmente escravizado pelo nosso ego humano. Nós não estamos aqui para proclamar nossa independência espiritual, não estamos aqui para decretar a abolição da lei da escravatura espiritual. O que podemos é criar uma consciência nítida, inabalável, de que somos realmente escravos. Quem não está consciente de sua escravidão, não pode se libertar de sua escravidão. No princípio, gostamos do nosso cárcere. Temos fome de ego e escravidão. Pouco a pouco, a fome se transforma em fastio. Sentimos dolorosamente nossa escravidão. Então, já começa o prelúdio de nossa libertação. O fastio da escravidão é o prelúdio para a libertação.” (Huberto Rohden)

O anticristo habita dentro de nós, somos seres imperfeitos, em busca de uma luz aparentemente inencontrável. Até quando? O divino é um pequeno fragmento dentro de nós, silenciado pelo barulho de nosso ego. Nossa visão do sol é ocultada pelas nuvens cinzas de nossa inconsciência. Estamos dormindo mas demoramos para ter ciência disso. Estamos vagando guiados pelas vontades do ego. Tudo o que fazemos é liderado pelo ego. O ego nutre-se através da vontade de poder. Todos os pecados vêm do ego, somos errantes pois deixamos que ele comande nossas vidas. Não estamos verdadeiramente vivendo até que acordamos dessa ilusão.

Questione seus atos. Cada pensamento seu. Quem em você pensa tudo isso? O quão prisioneiro de seu ego é você? O ego necessita de uma identidade. Ele faz com que sua mente esteja sempre no passado ou no futuro, mas nunca no momento presente. Ele faz com que suas vivências dolorosas o transformem em quem você acha que é. O ego quer que você jamais pare de buscar poder material. O ego é pura matéria. É um instrumento de trabalho, mas nós somos escravizados por nossa ferramenta. Somos reféns da matéria grosseira. Até quando? 69


O ego está sempre preocupado em manter vivo o passado, porque pensa que sem ele não seríamos ninguém. Ele não quer que você viva o único momento em que você tem poder e autonomia: o agora. Ele te distancia do que realmente importa e o leva para o irreal. Utiliza o presente como mero meio para obter o fim desejado. É a história da pessoa que deixou de ser feliz agora, dizendo que seria feliz quando conseguisse algo. A pessoa que será feliz quando tiver dinheiro. Que será feliz quando se formar. Quando for quem deseja ser. Mas pare. Você já é. E isso é tudo. Sentir o momento presente é mágico. Habitue-se a viver no agora e só assim você poderá sentir a benção de simplesmente existir.

“Só de ouvir o vento passar já vale a pena ter nascido” (Fernando Pessoa) – o contentamento é simples. O momento é aqui e agora. Não foi ontem quando você era mais jovem, não será amanhã quando você estiver formado.

Há uma forte resistência dentro de nós nos impedindo de viver o momento presente. Observe seu apego ao sofrimento. Observe como é estranho ter prazer em ser infeliz. A resistência deixará de existir se você torná-la consciente. Seja o observador de sua mente doentia e estressada. O ego é muito inseguro e sempre se sente ameaçado. O simples fato de você se colocar como o observador de sua mente o faz tremer. O faz ficar alerta. Ele ficará mais difícil de ser resistido, irá querer que você se desvie do presente, mais do que nunca. Colocará afazeres, medos e inseguranças em você. E será difícil continuar sendo apenas o observador que vive o presente. Mas lembre-se: viver o presente é a maior dádiva que foi dada a você. É o caminho para acessar sua divindade.

Enquanto formos guiados pelo ego seremos infelizes, incompletos, insatisfeitos com tudo. Exceto por breves períodos, quando tivermos um desejo material satisfeito. O ego precisa ser

alimentado a toda hora, suas vontades precisam sempre ser satisfeitas, e essas vontades são incessantes, doentias. O ego precisa se identificar com posses materiais, ideais políticos, aparência física, etc. Um dia teremos que abrir mão de todas essas coisas. Parece irreal? A morte virá para todo mundo. Não faça dessas coisas passageiras sua importância maior. Aceite que tudo isso um dia irá, aceite que você não é nem precisa de nada disso. Você é. E isso já basta. Morra antes de morrer. Você terá que se despojar de tudo que você não é. Habitue-se a isso. Ou quando a morte se aproximar isso será impossível demais.

“Feliz aquele que superou seu ego.” Feliz aquele que é pleno no agora.

Mas não se engane. Esse é um caminho longo e árduo. Quanto tempo levaremos para despertar o divino em nós? Quanto tempo levaremos para estarmos livres da escravidão do ego? Eu não sei. Estamos muito longe disso.

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Precisamos refletir sobre o ego. Precisamos refletir sobre em que momento estamos vivendo. Precisamos ter vontade de acabar com nossa escravidão. Precisamos perceber que somos pobres escravos, mesmo que ainda não tenhamos nos libertado. A consciência já é o prelúdio para a libertação, a libertação vem mais tarde. A libertação leva anos, séculos, vidas. Mas o principal não é chegar ao fim da libertação, e sim ao começo da libertação, que é querer se libertar. O nosso ego é um tirano adorado, Quando paramos de adorar nosso tirano e percebemos que ele nos escraviza, então estamos no começo de nossa libertação.

5 passos para dominar o ego: 1. Nunca se ofenda, nem se sinta ofendido; 2. Livre-se da necessidade de ter de ganhar sempre; 3. Livre-se da necessidade de estar certo e ter razão; 4. Livre-se da necessidade de ser superior perante todos; 5. Livre-se da necessidade de ter mais.

71


´

O SER HUMANO POR TRAS DO MONSTRO -Selfish light Numa madrugada qualquer, de um dia qualquer, em um lugar qualquer.

- Foi mesmo como ela disse que foi?

Com os olhos lacrimejando, ele responde:

- Sim, foi. Talvez não exatamente... Meu pai era o cara mais violento que eu já conheci. Vivia bêbado e descontrolado. Minha mãe mal podia limpar o próprio rabo, porque passava a maior parte do tempo dopada por conta dos remédios que tomava. Lembro como se fosse hoje. Nós éramos tão próximos. Éramos como duas crianças se educando. Nós só tínhamos um ao outro. Passávamos todo nosso tempo juntos. Apenas aconteceu... Sabe, ela era mais do que uma irmã pra mim. Ela era o meu mundo, a minha vida. Eu a amava. Infelizmente não se pode escolher quem ama. Mas ela era mais esperta que eu. Ela entendeu as coisas. Um dia ela chegou em casa e disse que era errado, que não podíamos mais.

Sua voz começa a embargar, como se estivesse libertando algo ha muito tempo preso e que precisava sair:

- E a forma como ela me olhou... Eu senti que não podia respirar...

O choro finalmente começa a sair:

- E eu não podia deixa-la! (Vira uma garrafa de Uísque e dá três goles bem grandes) 72


- E eu me odiava por ter feito isso. Eu sei que não mereço, mas queria poder me desculpar. É tudo o que eu quero. Ela não precisa me perdoar, eu só quero dizer pra ela que eu sinto muito antes que eu não tenha mais a chance.

Alguns dias depois eles se encontram, depois de anos sem se ver. Se olham por um tempo. Ela apesar do medo olha fixa e profundamente nos seus olhos, como se revivesse o trauma novamente na sua cabeça. Ele parece não acreditar no que vê. Os dois começam a chorar torrencialmente. Ajoelha-se aos pés dela, em um total descontrole. Os dois desabam. Ela não consegue dizer sequer uma palavra. Ainda está em choque com toda a situação. Aquilo tudo é demais pra quem ate então, não conseguia sequer ouvir o nome dele. E ele só consegue chorar e dizer:

- Mil perdões,

Mil perdões,

Mil perdões,

Mil perdões,

Mil perdões,

Mil perdões,

Mil perdões,

Mil perdões...

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Suspensão -Melancolírico As escadas com carpete bege escuro nunca foram um obstáculo ao menino que as subia sempre brincando. No mínimo cantarolando entre soluços nos raros momentos em que estava chorando e triste, por conta de alguma bronca do papai ou da mamãe. Eram só seis aninhos, mas sempre enérgicas e animadas as subidas. O resultado era estar quase sempre com os joelhinhos ralados por raspá-los velozmente no carpete. Queimava! As canelas com marquinhas roxas das batidas de

quina. Naquela época, ainda era só isso o que doía. Infância. É cedo ainda.

Nesse dia, como em outros vários dias - infinitos dias, na verdade, que a infância parece reservar -, o menino pôs-se a subir velozmente as escadas com carpete. Entrou no quarto, fechou a porta. Papai trabalhando e mamãe longe de casa até à noite.

Guarda-roupa embutido na parede cheirando à madeira velha. Carrinhos e hominhos em prateleiras de plástico na parede. Quadro do Buzz Lightyear voando em direção à janela do quarto,

o encorajando a qualquer coisa. A fazer alguma coisa com a janela.

As cortinas do Mickey e um sol cansado de fim de tarde compõem a partitura frente ao olhar curioso do menino. Olhar de investigação. E ele olha como se fosse a primeira vez, essa deslumbrante e cobiçada capacidade de criança. Então vem a subida na cama, devagar. E após isso a escalada tranquila na janela, e se senta. É alto dali até o chão. Faz balancinho pra frente e pra trás.

O menino vivia praticamente sozinho. Brincava sozinho. O brincar é a forma da criança aprender e descobrir o mundo. Então com ou sem amiguinho, o brincar basta e abre o sorriso nos lábios vermelhos e vivos do menino. Ele era feliz, porque a casa era um infinito labirinto de descobertas. Atira um olhar curioso pra baixo em direção ao chão, sentado lá em cima à beira da janela. Um vizinho bêbado o vê. Parece que o menino vai saltar.

O pequeno investiga a ideia de morte, ou o que quer que isso signifique dentro de sua cabecinha. Mantendo seu balancinho na janela, imagina-se caindo, batendo leve no chão como uma pena, flutuando por segundos num espaço vazio de escuridão e depois abrindo os olhinhos em um lugar bonito. Um lugar que todo domingo de manhã ensinavam pra ele que era o céu.

O vizinho aperta a campainha, bate no portão repetidamente e grita com sua voz tremida e desacreditada de bêbado. Várias pessoas passam na calçada, mas ninguém o escuta, ninguém o vê. 74


O menino ignora a barulheira do bêbado e continua tranquilo com o que interessa, seu estudo da não vida. E apesar da estranha historinha do céu soar bonita, segura firme na borda da janela. Mantém o balanço que faz com o corpinho tomando constante cuidado pra não cair, não tem e nunca teve nenhuma vontade de pular. Não agora, e nem das outras várias vezes que escalava a beira da janela, escondido. E agora ele descobriu que, quando suspenso, é gostoso ficar chutando o vento com os pezinhos.

O menino, sem querer, aceita o risco e se deixa mergulhar em um questionamento que incomoda, que traz insegurança. Coisa que o adulto ignora e não aceita. Ser criança é buscar a suspensão, é tornar o risco amigo e enfrentar com simplicidade e leveza tudo que é pesado e provoca medo. É preciso voltar a ser como é o menino! E enquanto concluo isso ele dá uma desequilibrada na janela.

Mamãe chega e não vê o menino na sala, onde ele costuma jogar vídeo game e brincar durante a noite. Sobe as escadas pesarosamente com o cansaço acumulado dos dias de adulto: excessiva busca por segurança, medo do risco, medo do medo. Abre a porta do quarto, e vê o menino deitado na cama, assistindo desenho. Se aproxima, lhe dá um beijo e o abraça. Pergunta se brincou muito e diz que o vizinho bêbado estava meio desesperado e a incomodando na rua como em outros dias. O menino sorri, se mantém abraçado à mamãe, diz que brincou muito. É cedo ainda. Até agora ele foi e está feliz.

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