Histórias restauradas de um tempo perdido (Versão digital) rev. 2022

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50 De médico e de louco todo mundo tem um pouco A patomimia que marca a existência humana parece se manifestar mais intensamente nos aglomerados urbanos – as grandes cidades.

Maria, a pobre louca Na infância daquela época, ninguém precisava eventos programar. Ao seu tempo e ao acaso as crianças se ajuntavam para brincar. Na rua ninguém era dono de nada, nem se agia de antemão. Livres, as pipas empinavam, bolas jogavam e ali rodavam pião. Nas ruas escuras da alpina vila certo marasmo logo surgia, depois da agitação diária quando então a noitinha caía. Após o jantar apressado, no campinho os meninos se ajuntavam para quebrar a apatia. Ali, as coisas mais loucas maquinavam. A única luz acesa era a da farmácia - bem para lá afastada! Na calada da noite, escondida na mata, a perversa molecada arrastava por um fio de pipa a réstia de cebola encharcada, qual serpente molhada. O rastro medonho a rua cruzava. Pavoroso grito aflito fez-se ouvir! E a vizinhança logo acudir. A moça que vira a cobra apenas gaguejava, já quase rouca. Mas, ninguém se importava e para casa voltava, dizendo: - Era apenas a Maria Louca! "- Um sentir é o do sentente, mas o outro é do sentidor." Dito por Riobaldo (protagonista) de Grande Sertão: Veredas, livro de Guimarães Rosa escrito em 1956.

O sertão vai virar mar, e o mar virar sertão, na terra de Carcará¹ Migrante de Sobradinho* (BA) onde perdeu tudo o que podia amar, enquanto lá vivia acreditava na profecia, que o sertão iria virar mar. De baixa estatura e de alta indignação, pela vida seca de então sofrera a desventura de ver o seu amor virar sertão. Pela vida desvairado, e desprezado por viver em completa solidão, andava pelas ruas daquela alpina vila como alguém sem compaixão. Subindo o Morrinho com seu cavalo carregado com um porco que jazia, sôfrego de dura sina aos pedaços ali vendia para a piedosa freguesia. Espíritos de porco se apoderavam da gurizada logo que o homem vinha. Ele então se descontrolava ao ouvir seu apelido nas bocas depravadas. Com a peixeira na cintura com destreza empunhada, logo se avexava pelo tremendo acinte dito por aquela molecada: - Botininha!! Aquele rixoso apelido tinha origem em seu indefectível botim, que já gasto o acompanhava desde a época de Sobradinho. Porém, nada justificava o preconceituoso e tremendo desatino. Não dele, desesperançado nordestino, mas dos endiabrados meninos! ¹Carcará, do tupi karaka'rá (Caracara plancus) é uma espécie de ave de rapina da família dos falconídeos.

(*) Sobradinho – nas vozes de Sá, Rodrix & Guarabyra.

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34min
pages 2-5, 8-15

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pages 2, 12-15

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‘Chega de Saudade’: é a vez da Bossa Nova

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Imagens de uma época da infância de Bel (cont

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Homenagem ao poeta João Cabral de Melo Neto e Lasar Segall

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50. De médico e de louco todo mundo tem um pouco (poesia

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Mensagem Final (2015

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51. Lá em cima daquele Morrinho ninguém podia morrinhar (poesia

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Referências e Mensagem aos leitores

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49. Brincadeiras de rua, coisas de criança feliz (poesia

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48. A culpa é da Nestlé /Sentimento latente se tornando explícito (poesia

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43. Ao mestre, com carinho

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44. Profissões reconhecidas publicamente

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41. O quintal da Tita, onde todos brincavam

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40. As pessoas já eram o que deveriam ser

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