Rede Divam

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Clínica, política e afeto

Zine Clínicas de Borda

Coletivo de Psicanálise de Santa Maria

Coletivo de Psicanálise de Santa Maria, 2025

Editora n-1, 2025

Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.

Editores Chefes

Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes

Coordenação editorial

Gabriel de Godoy

Projeto gráfico

Isabel Lee

Organização da coleção

Andréa Guerra e Linnikar Lima

Coordenação da coleção

Andréa Guerra

Comissão editorial das Zines

Andréa Guerra

Gustavo da Silva Machado

Jairo Carioca de Oliveira

Linnikar Lima

Luis Henrique Mello

Luísa Ribeiro Lamardo

Marcela de Andrade Gomes

Maria Elisa da Silva Pimentel

Maria Izabel dos Santos Freitas

Miguel Pinheiro Gomes

Renata Santos Cravo

Vanessa Solis Pereira

Edição e revisão

Luis Henrique Mello

A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio impresso ou eletrônico, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessária a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores.

1ª edição | Novembro, 2025 n-1edicoes.org

Zines Clínicas de Borda

Coleção:

1. Coletivo de Psicanálise de Santa Maria (Santa Maria/RS)

2. Pontes da Psicanálise (Recife/PE)

3. Dispositivo de Escuta Periphérica Xica Manicongo (Campo Grande/RJ)

4. QUIMERA: Circulando afetos (Niterói/RJ)

5. Psicanálise na Praça da Alfândega (Porto Alegre/RS)

6. Coletivo de Psicanálise Itinerâncias (Porto Alegre/RS)

7. Atêlie das Migrações (Florianópolis/SC)

8. Rede DIVAM (São Paulo/SP)

9. Coletivo psicanalítico Café Borromeano (São Paulo/SP)

10. Coletivo escuta do Monte Verde (Florianópolis, SC)

COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS

Freud modifica seu olhar sobre o inconsciente ao longo de sua obra: se, no início, o pensou como profundidade, ao fim nos indica que o inconsciente pulsa nas margens. É desse lugar que nasce a Coleção de Zines das Clínicas de Borda Brasileiras, aberta a novos fascículos, fruto da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadxs com as respostas de sua clínica e de sua formação diante da realidade nacional marcada pela brutalidade e pela violência estrutural. Reúne experiências múltiplas e plurais, sem reduzi-las a um “mínimo comum”; ao contrário, afirma o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, e nos próprios caminhos de formação.

Nasceram da resistência dos movimentos plurais e das vidas teimadas nas periferias, favelas, praças, margens, estações, ocupações e quilombos. Erguem-se como resposta aos genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, às violências do racismo e do desamparo, aos deslocamentos migratórios forçados.

Seu fazer é da rua e com a rua: uma psicanálise que transgride as normas burguesas, sustenta o laço transferencial onde a vida pulsa e dá nome, com tempo e presença, a corpos apagados no cotidiano.

Reinstituem o necessário na teoria e na prática ao revisitar as clínicas públicas e populares desde os gestos inaugurais do campo freudiano, agora reviradas pela experiência da Améfrica Ladina. Em elipse, viram o espelho ao avesso, atravessam fronteiras disciplinares e urbanas, e marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos arranjos de partilha e presença. Saem do consultório individual burguês para ocupar praças, escolas, centros comunitários e plataformas digitais, recebendo analisantes online e em cadeiras ao sol, escutando o sofrimento onde ele se enuncia.

Colocam o pagamento em xeque e não mais no cheque. Trazem a marca do território, da língua, dos sotaques e das gírias que fazem o Brasil múltiplo, redistribuem-se em cada canto do país e tensionam a circulação do capital e as respostas do inconsciente diante das violações diárias. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica e a lógica excludente da formação do psicanalista, recolocando a psicanálise na polis: atravessada pelas margens, comprometida com o comum e responsável perante as vidas que insiste em escutar.

Elas não estão todas reunidas aqui; esta coleção permanece aberta, chamando novas presenças para seguir escrevendo esta história.

Debates Integrados pela Valorização e Atendimento das Mulheres

Clínica, política e afeto

Dedicamos essa colcha textual àquelas que confiaram a nós da Rede DIVAM sua intimidade, seus segredos, seu silêncio, sua voz, sua presença, sua esperança e seus desabrochamentos.

“Tecendo fios de memória, vou alinhavando retalhos de vida. Cada ponto é uma história que não se apaga”.

Conceição Evaristo, Poemas da recordação e outros movimentos.

História da Rede DIVAM

A Rede DIVAM nasceu em 2017, fruto do encontro entre duas mulheres que compartilhavam um mesmo desejo: transformar o acesso à saúde mental em uma ferramenta política de enfrentamento à violência de gênero. Mayara Ferreira, recém-chegada de um período de estudos na Espanha sobre políticas públicas de combate à violência contra as mulheres, voltou ao Brasil com a

mulheres para se tornar uma construção coletiva, formando uma equipe diversa e implicada com a transformação social.

Os encontros eram mensais e presenciais na Casa das Mulheres, e o coletivo ainda não tinha um nome. O nome DIVAM – Debates Integrados pela Valorização e Atendimento das Mulheres foi criado coletivamente a partir das discussões em torno da importância da articulação do olhar crítico e político dos feminismos para a visibilização das estruturas de poder e dominação na nossa sociedade, com as ferramentas de escuta das psicanálises, pautadas na ética do inconsciente e na singularidade e pluralidade do sujeito, forjado da e na intersubjetividade.

Reconhecendo que as violências estruturais acontecem nos diversos âmbitos da vida das mulheres, potencialmente até em espaço clínico, tivemos como foco a construção de uma clínica que não as revitimizasse. Foram realizadas leituras de artigos, partilha de experiências e pesquisa dos serviços oferecidos e com isso obser vamos que nos serviços públicos de enfrentamento à violência de gênero em São Paulo a lógica de encaminhamento era muito presente, com pouco espaço para a escuta. Nomeamos de mento o dispositivo de chegada das mulheres interessadas em fazer acompanhamento com a Rede DIVAM, realizado através de plantões semanais na Casa das Mulheres.

A primeira divulgação ampla da clínica da Rede DIVAM deu-se na marcha 8M, em razão do dia internacional da mulher, em 08 de março de 2018, na avenida Paulista, através de panfletos e estandarte.

Uma importante constatação do coletivo logo no início foi de que a divulgação de atendimento às mulheres em situação de violência dificultava a chegada daquelas que não se reconheciam enquanto tais. Foi assim que deci dimos nos posicionar como um grupo de atendimento a mulheres, compreendendo que ser mulher na nossa estrutura social é sofrer algum tipo de violência.

Oferecer um atendimento psicanalítico acessível, com olhar feminista e interseccional significou para nós não se limitar à clínica tradicional. A Rede nasceu com a convicção de que saúde mental é um direito, e que as práticas clínicas, muitas vezes elitizadas, precisam ser reinventadas para alcançar as mulheres e pessoas

LBTQIAP+ em contextos de maior vulnerabilidade social.

O público prioritário do projeto são justamente aquelas pessoas que mais sofrem com a violência de gênero e que, ao mesmo tempo, encontram maiores barreiras para acessar o cuidado em saúde mental. Democratizar o acesso significa não apenas oferecer atendimentos gratuitos ou a preços acessíveis, mas também criar um espaço que reconheça e acolha o sofrimento das pessoas, entendendo que ele é resultado de diferentes opressões e desigualdades relacionadas a gênero, raça, classe social e sexualidade.

Hoje, a Rede reúne um grupo interdisciplinar que já atendeu centenas de mulheres e pessoas LBTQIAP+, consolidando-se como espaço de escuta qualificada e de acolhimento político.

A pandemia de Covid-19 ampliou ainda mais essa atuação, permitindo que o coletivo chegasse a outras regiões do país por meio de atendimentos online e grupos de terapia virtuais.

A criação da DIVAM respondeu a uma urgência: inventar um espaço onde clínica e política não estivessem separadas. Garantir o acesso à psicoterapia não bastava, era preciso construir um projeto comprometido com a luta feminista e com o enfrentamento das violências estruturais que atravessam a vida das mulheres. Assim, a Rede consolidou-se como coletivo que assume posicionamento político explícito e que entende a clínica como ferramenta de resistência. Cada atendimento é também um gesto de afirmação: afirmar que todas as pessoas têm direito a uma vida digna, livre de violências, e que a escuta pode ser instrumento de fortalecimento e autonomia. A violência contra mulheres e a população LBTQIAP+, razão central da existência da Rede, é compreendida como um fenômeno estrutural que só pode ser enfrentado

quando reconhecido em sua dimensão política. A escuta feminista praticada pela Rede DIVAM permite nomear essas violências, romper silenciamentos e abrir caminhos de reconstrução subjetiva. O impacto do projeto pode ser medido não apenas em números – mais de 400 mulheres e pessoas LBTQIAP+ já foram atendidas nesses últimos oito anos de atuação – mas também na profundidade das transformações produzidas. Muitas chegaram ao

O que começou como um encontro entre duas mulheres cresceu para se tornar um coletivo de muitas, atravessado por afetos, lutas e compromissos comuns. A Rede DIVAM é hoje referência em democratização da saúde mental com perspectiva feminista e interseccional, atuando não apenas na escuta individual, mas também na construção de redes de apoio e de resistência contra a violência de gênero. Sua história demonstra que a clínica, quando se abre ao social e ao político, pode ser um território fértil de transformação.

Fundamentos teórico-clínicos

Como a construção do próprio coletivo, os fundamentos teóricos da rede foram se constituindo organicamente a partir da história pessoal e desejo político de cada integrante e também da escuta clínica e suas lacunas e necessidades. Partimos do livro Vastas confusões e atendimentos imperfeitos: a clínica psicanalítica no ambulatório público (1997), de Ana Cristina Figueiredo, para pensar na atuação da psicanálise em contexto público, fora dos consultórios. A lógica neoliberal da individualização do sofrimento psíquico e o trabalho da psicanalista, que pode ser muito solitário, foram inquietações que aproximaram as integrantes do coletivo em

Como um coletivo formado majoritariamente de mulheres psicanalistas cis e brancas, começamos nosso percurso com o desejo de aprofundar letramento do campo dos feminismos. (1949), de Simone de Beauvoir, e logo entendemos os limites desse olhar sobre a mulheres, o quanto ele era aproximar das especificidades e complexidades das mulheres brasileiras, público Casa das

Mulheres e nas nossas clínicas. A partir da escuta clínica e da práxis propiciada por esse espaço fomos nos deslocando do conhecido por nós, violências sofridas por mulheres brancas de classe média, para encontrar essas mulheres recebidas com vivências de violências diversas, movimento que nos levou a estudar para que pudéssemos escutá-las nessas diversidades e vulnerabilidades.

Construímos então um percurso formativo a partir do feminismo interseccional, que considera os determinantes sociais de raça, classe, gênero, diversidade sexual e corporal como centrais para o entendimento do sujeito na sua relação com o outro e o mundo.

A violência de gênero é relacional e multidimensional, é na relação do singular com o coletivo, do intrapsíquico com o intersubjetivo e na articulação das diferentes linhas da psicanálise com pensadoras feministas que visamos a prática de uma psicanálise plural, de uma escuta feminista interseccional e de uma clínica política.

Desde o início do coletivo sustentamos espaços de grupos de estudos, nos quais lemos Silvia Federici, Angela Davis, Grada Kilomba, Lélia Gonzalez, Rita Segato, Neusa Santos Souza, Paul Preciado, Karen Horney, Juliet Mitchell e Jessica Benjamin. Ao longo desse percurso, aproximamo-nos de autoras/es feministas que dialogam com o campo da psicanálise, além de estudarmos autores mais clássicos da psicanálise que nos pareceram essenciais para a compreensão da violência e seus efeitos subjetivos que

encontrávamos na nossa clínica, dentre eles, Freud, Ferenczi, Lacan, Melanie Klein e Winnicott, em diálogo com autores contemporâneos como Rene Kaës, André Green e Roussillon. Como coletivo, construímos uma importante compreensão: a de que reconhecer a violência é essencial no manejo clínico — algo que emergiu tanto do nosso percurso de estudos feministas quanto da psicanálise. O silêncio do analista diante do relato de violência pode ser reviolentador. É necessário que diante de uma realidade de violência estrutural, que é a brasileira, na qual mulheres e pessoas LBTQIAP+ vivem cotidianamente cenas violentas, sejam elas da ordem física ou simbólica, a/o/e analista possa nomear e reconhecer a violência vivida. Além do reconhecimento, a compreensão das consequências psíquicas da violência é essencial para a prática clínica. Como Ferenczi (2020 [1933]) teoriza, o sujeito vítima de violência tem seu eu despedaçado, cindido, misturando-se com o eu do agressor, e é a partir dessa compreensão que podemos organizar nossa escuta e manejo para construções conjuntas em análise, produzindo um espaço de acolhimento e contorno que propicie uma possibilidade de elaboração e reconstrução de uma subjetividade invadida pela violência. Esse manejo requer da analista tato, como pudemos aprender com Ferenczi (2020 [1928]), isto é, uma certa postura flexível e paciente necessária para propiciar um espaço potencial para que a paciente possa entrar em contato consigo mesma e se movimentar subjetivamente em seu próprio tempo. Neusa Santos Souza (2021 [1983]) aponta que acolher o paciente implicaria aceitar o imprevisto, suportar o tédio, desejar sem exigir e esperar sem expectativa. Esse é um cuidado necessário e essencial para um grupo de analistas feministas atendendo mulheres em situação de violência, uma vez que diante das identificações e também das transferências, muitas vezes surge o desejo de salvar essas pacientes dessas realidades de violência, no entanto, a verdade que encontramos na construção

O que se inventa

A covisão é um dispositivo criado no início da Rede DIVAM, justificando-se a princípio pela percepção de que a escuta da violência contra mulheres, por mulheres, pode por vezes resgatar memórias de violências vividas por nós mesmas, sendo necessário então um espaço de acolhimento coletivo e escuta das reverberações dos casos clínicos atendidos nas analistas. Covisão é uma derivação da palavra supervisão em que o prefixo “super”, que caracteriza uma relação hierárquica, é substituído pelo prefixo “co”, que pressupõe um trabalho coletivo.

A ideia da criação desse dispositivo se deu a partir do questionamento da proposta de uma psicanalista integrante da rede, de que os casos clínicos da Divam de integrantes com menor experiência clínica e acadêmica fossem supervisionados por integrantes com maior experiência nesses dois campos, algo muito comum entre instituições de formação psicanalítica. No entanto, queríamos criar espaços horizontais no nosso coletivo, uma vez que nos questionamos sobre a estrutura do modelo hierárquico da psicanálise e seus limites.

Nesse novo dispositivo criado, todas as integrantes da rede que atendem se encontram semanalmente para uma troca clínica entre pares. Cada semana uma analista leva um caso clínico e suas questões relacionadas a ele e trocamos impressões clínicas em roda sobre elas. Durante um período a covisão foi dividida por linhas teóricas (inglesa e francesa), com o tempo, no entanto, em criação coletiva, compreendeu-se que a principal importância da covisão seria de escutar os casos clínicos com uma atenção à interseccionalidade de gênero, raça, classe, diversidade sexual e corporal e deficiência. Dessa forma, a centralidade das diferenças de linhas teóricas da psicanálise foi se diluindo para abrir lugar para a importância da construção de uma clínica política feminista. Isto é, a escuta e a práxis que guiam nossos caminhos teóricos e não o contrário,

transversalidades impostas por raça, classe, gênero e pela organização social neoliberal, como já descrito anteriormente.

Temos assim desenhado a construção de uma ética feminista da escuta, que alia uma expansão da teoria psicanalítica com outros campos do conhecimento para melhor escutar e acolher nossas pacientes em suas especificidades, trabalhando pelo desenvolvimento de autonomia diante de uma realidade de violência estrutural.

Sobre o funcionamento organizacional desse espaço, no início as covisões aconteciam quinzenalmente com encontros de 1h30 e eram presenciais, no entanto, após a pandemia elas tornaram-se online, o que permitiu a entrada de novas analistas residentes de outras regiões do Brasil. Com essa expansão, a partir dos encontros remotos, foi possível descentralizar a atuação e a escuta, incorporando outras vivências de território, que antes eram concentradas apenas no município de São Paulo.

Com a expansão do corpo clínico e dos casos atendidos, ampliamos também o espaço de discussão clínica e a covisão passou a acontecer então com frequência semanal. O último encontro do mês é reservado para discussão teórico - clínica feita a partir de leituras que ampliem o pensamento clínico e promovam aberturas para impasses clínicos apresentados.

Uma importante contribuição desse espaço formativo, que é a covisão, foi a construção de um contorno prático para a rede em termos de possibilidades financeiras. No início, atendíamos mulheres conforme suas possibilidades, inclusive gratuitamente, sem limitação de vagas. Conforme o coletivo foi crescendo e recebendo grande demanda, alcançamos uma inflexão: as analistas não conseguiam mais absorver a demanda, uma vez que eram em sua totalidade mulheres de classe média ou baixa em início de clínica. Para dar conta desses limites e não reproduzir uma desvalorização do trabalho feminino presente em nossa sociedade patriarcal, entendemos a importância da organização financeira das vagas abertas pela rede.

Atualmente, para cada analista que entra na rede é proposta a dinâmica de acompanhamento de 3 pacientes pagantes para 1 não pagante, salientando que mesmo as pacientes pagantes ainda assim não chegam a atingir, em sua maioria, um valor proposto, por exemplo, pelo Conselho Regional de Psicologia, e tampouco pelo que se cobra no mercado da Psicanálise e Psicologia.

Atuar em coletivo é se dispor a um organismo vivo em constante transformação e revisão do nosso compromisso ético-político, dentro e fora da clínica. A covisão, portanto, é este espaço vivo, que nos permite elaborar sobre os casos e sobre nós mesmas, estar em constante formação e também refletir sobre a própria manutenção da instituição e seus pontos cegos.

As rodas teórico-clínicas surgiram a partir da prática e de experimentações das integrantes durante muitos anos com a formação de grupo de estudos na Rede DIVAM. Ao longo do percurso,

o saber em um fluxo coletivo que articulava as relações entre psicanálises e feminismos.

Em 2024, começamos a pensar novas configurações e criações de atividades formativas para a Rede DIVAM. Queríamos inovar, criar um dispositivo formativo baseado na nossa práxis horizontal, mantendo em perspectiva a ampliação do pensamento clínico psicanalítico implicado politicamente a partir da práxis e dos estu dos feministas. Queríamos ter um espaço para a construção do pensamento e da escuta clínica a partir de uma ética feminista, de forma horizontal, coletiva e ativa. Com isso, em 2025 surgiram as Rodas Teórico-Clínicas, na tentativa de expandir as proposições para pessoas interessadas na interlocução entre psicanálises e feminismos.

As Rodas Teórico-Clínicas são espaços horizontais que esti mulam, sobretudo, a participação ativa de todas as integrantes, construindo novos saberes a partir das confluências e divergências dos pensamentos críticos e clínicos.

Em sua primeira edição, iniciada em março de 2025, escolhe mos começar esta nova modalidade com textos de Freud sobre técnicas de manejo clínico, em articulação com textos de mulheres psicanalistas e/ou feministas para embasar o debate crítico da psicanálise freudiana. Dos encontros saíram debates frutíferos e questionadores sobre: a posição de poder da/o/e analista; as resistências da/o/e analista; as limitações da escuta na clínica; trans ferências interraciais; o lugar do dinheiro na clínica, da gratuidade ao valor cheio; ser mulher e analista; as implicações de gênero no ato de se autorizar a ser analista.

Além disso, foi nosso intuito alimentar as rodas através da arte como forma de desobediência capilar como lugar de cri-ação. Por isso, levamos produções artísticas com a intenção de estimular o olhar clínico por essa via. Incentivamos, também, que as participantes representassem o conteúdo apreendido nos encontros com méto dos tradicionalmente não acadêmicos e livres, como vídeos, poemas

Rotina, práticas, atos, casos e efeitos da clínica

As práticas e a rotina da Rede DIVAM são constituídas por atividades clínicas, ativistas, administrativas e de formação teórico-clínica.

Todas as propostas e atividades realizadas são discutidas de forma coletiva e democrática pelas integrantes do corpo administrativo da Rede DIVAM. As associadas são psicanalistas, psicólogas e uma médica de saúde da família e comunidade que se reúnem semanalmente online para pensar e discutir os projetos teóricos e clínicos em andamento e encaminhar novas ações. Além disso, mensalmente ocorre uma reunião administrativa presencial, que tem caráter deliberativo. Todas as reuniões são pautadas pela singularidade do grupo e pela horizontalidade nos encaminhamentos. Temos também integrantes que compõem o corpo clínico da rede; elas participam das covisões, da supervisão institucional, dos grupos de estudos e rodas teórico-clínicas, e recebem pacientes da rede.

A Rede DIVAM atua presencialmente na cidade de São Paulo e, de forma remota, em diversas regiões do Brasil, tanto em áreas centrais quanto periféricas. Os atendimentos clínicos ocorrem desde 2017 e o público atendido é composto majoritariamente por mulheres em situação de violência de gênero, especialmente aquelas com renda de zero a 3 salários mínimos. Também atendemos pessoas LBTQIAP+.

Entre as pessoas atendidas, há diversidade de raça, classe, gênero, corpo, sexualidades, geração e território, com parte significativa vivendo em condições de vulnerabilidade econômica em

formulário on-line e a chamada se dá pela ordem na lista de espera. Atualmente a Rede DIVAM possui doze analistas que compõem o corpo clínico da rede. O primeiro atendimento, denominado acolhimento, é gratuito, e ele se diferencia das tradicionais anamneses, pois, para além da escuta da história da pessoa atendida e compreensão da sua situação socioeconômica, entendemos como central, nesse primeiro contato, o acolhimento. Sabemos a dificuldade que muitas dessas mulheres enfrentaram para chegar nesse espaço, uma vez que ele não é em sua maioria acessível, nem entendido como espaço pertencente à grande camada pobre e preta da população brasileira. Assim, o reconhecimento do movimento subjetivo pela procura de um espaço de cuidado se torna essencial para o acolhimento dessas pessoas. Os atendimentos subsequentes podem ser individuais ou

Além da clínica psicanalítica, a Rede DIVAM atua com a formação de psicanalistas feministas, dentre os dispositivos que compõem esta formação estão a covisão e a supervisão clínica. A primeira consiste em um espaço seguro para que as analistas vinculadas à rede discutam os casos clínicos da Divam. Já a supervisão clínica é um espaço em grupo que as integrantes da Rede DIVAM oferecem para estagiários de Psicologia, psicólogas e psicanalistas que tem interesse em exercer uma clínica política e feminista, mas que não compõem a rede e querem conhecer o nosso trabalho formativo e clínico. Nesse espaço também prezamos pela construção de horizontalidade, no entanto, por se tratar de um espaço aberto, e de primeiro contato com o trabalho da rede que possui suas especificidades clínicas, teóricas e políticas, ele ainda conserva uma qualidade processual, isto é, é na construção por meio do tempo e da vinculação que vamos criando coletivamente as possibilidades de horizontalidade. É inclusive por meio desse espaço que convidamos novas analistas a compor o corpo clínico da rede, e também de onde surgiram novas associadas do corpo administrativo.

Por isso, a prática da supervisão consiste em compartilhar os casos clínicos, sempre com muito cuidado, sigilo e ética, a fim de construí-los e discutir as implicações das estruturas sociais como patriarcado, racismo, heteronormatividade etc., na vida dessas pacientes, pela ótica da interseccionalidade.

Em 2022, algumas participantes do grupo de super visão realizado enviaram relatos anônimos sobre esta experiência e apontaram a contribuição desta prática para seu manejo e pensamento clínico:

A supervisão foi conduzida de forma ética e acolhedora com todos os participantes, sendo possível levantar novos olhares para a experiência clínica dentro de uma perspectiva feminista. Os encontros da Rede DIVAM foram essenciais para o meu período final de faculdade, proporcionando trocas e novos olhares para a atuação clínica. Desde o início me senti extremamente acolhida no espaço de supervisão da Rede DIVAM, foi uma experiência nova e enriquecedora para a minha formação onde pude construir um novo olhar para a atuação clínica e a psicanálise.

Todas se mostraram prestativas e com experiência sobre a prática clínica. Na minha limitada experiên cia as supervisões foram extremamente produtivas.

No eixo formativo, também existem os grupos de estudos, que é um dispositivo presente desde o início. Decorre da necessidade de mantermos um estudo contínuo e aprimorar o conhecimento e as reflexões acerca das articulações entre feminismos e psicanálises. No início, os grupos de estudos eram somente com as integrantes. Com o tempo, ao amadurecer nossa prática de estudo e enxergar a Rede DIVAM como um espaço formativo para nós,

decidimos expandir o potencial formativo para outras pessoas com o mesmo interesse em clínica política feminista.

Atualmente, os grupos de estudo são abertos, mediante inscrição, com contribuição financeira e oferta de bolsas. Funcionam por edições, cada uma dedicada a uma temática ou autora de base.

A abertura dos grupos expandiu o alcance da DIVAM, aumentou as oportunidades de troca e vínculos, transformando-se em uma das portas de entrada para outras interessadas em compor a rede. Reconhecemos a DIVAM como um espaço potencial de formação, que deu base e substrato tanto para as integrantes iniciais quanto para tantas outras que chegaram, aprimorando seus saberes políticos e uma escuta clínica apurada.

A fim de demonstrar os impactos dessa prática nas pessoas que já participaram das edições anteriores do grupo, seguem dois

Participar do grupo refletiu diretamente nos meus estudos e no meu trabalho. O grupo aconteceu nos momentos finais do meu curso de Psicologia, o que proporcionou no meu trajeto pessoal, tornar da Lélia Gonzalez uma referência nas pesquisas, estágios e seminários.

(Carla, 5ª edição, dedicada ao estudo de Lélia Gonzalez)

O grupo é um momento de fortalecimento do feminino com teoria e falas empoderadas para nosso conhecimento e principalmente, encontro de mulheres potentes! Maravilhoso e necessário estes encontros.

(Mariana, 6ª edição, dedicada às leituras de Rita Segato e Neusa Santos Souza)

No eixo clínico, funciona outro dispositivo de grupo, os terapêuticos. A ideia de grupo surgiu por uma questão de ordem prática, como uma alternativa para atender a alta demanda por atendimento e acolhimento. Mas também de um desejo das integrantes de conduzir um trabalho terapêutico que acontece na grupalidade.

Os grupos terapêuticos não possuem temas pré-estabelecidos e têm a proposta de unir mulheres com origens e histórias distintas, num espaço grupal em que todas sejam acolhidas e escutadas, e que dores individuais possam coletivizadas, considerando o papel desempenhado pela intersubjetividade na configuração tanto do sujeito quanto dos grupos. Para que então possam pensar nos caminhos de elaboração e superação dos sofrimentos de forma compartilhada. Em um grupo de mulheres, nossa intenção é promover identificações, exercitar a alteridade e criar espaço para que as vozes das integrantes ecoem coletivamente,

rompendo silêncios históricos e reconhecendo na outra uma companheira que também precisa ser escutada.

Finalizamos um dos grupos, realizado em 2020, pedindo que

supervisão institucional é espaço fértil que conteúdos difíceis de serem pensados possam vir a tona por meio da cadeia associativa grupal, para que a diferença apareça e tenha lugar. O espaço também tem intuito de integrar o corpo clínico e corpo administra tivo, para composição do corpo institucional da rede DIVAM.

O trabalho em grupalidade envolve observar processos que tem origem tanto na relação com as atendidas quanto na relação das integrantes entre si e com a instituição. Requer disponibi lidade para reconhecer pontos cegos nas nossas práticas, para reconhecermos umas às outras e a si mesmas, em um processo constante de rever-se e refazer-se.

Outra atividade da DIVAM são as rodas de conversa. As primeiras foram realizadas em 2018 na Casa das Mulheres, localizada na Barra Funda. Elas foram criadas com o intuito de promover debates e reflexões políticas feministas acerca dos espaços sociais que as mulheres, em sua diversidade, e pessoas LBTQIAP+ estão inseridas. As rodas são abertas ao público e gratuitas.

Por essas rodas, a DIVAM já teve o prazer de receber mulheres como Amara Moira, para falar sobre feminismo e literatura; Sâmia Bomfim e Erika Hilton falaram sobre ser mulher e trans na política; Amarílis Costa, para falar sobre feminismo e direito; Karen Dolores e Magrela, artistas visuais, relataram sobre ser mulher no grafite; Renata Conde e Natália Parolin falaram sobre feminismos e psicanálises. Tivemos também rodas sobre masculinida des, aborto, sobre a sobrecarga da mulher no papel de cuidado, entre outras.

Em relação ao nosso compromisso com o ativismo político, participamos desde 2017 do Ato Internacional pela Luta dos Direitos das Mulheres, que ocorre anualmente no dia 8 de março. Desde

2022, participamos também do Ato pela Luta Antimanicomial. Além disso, direcionamos nosso conteúdo das redes sociais para abordar assuntos políticos e promover ativismos nas redes sociais. Com intuito de formar rede, buscamos tecer parcerias com outros coletivos, organizações/instituições e indivíduos que tenham propostas que dialoguem com nosso posicionamento ético e político, tais como realização de grupos terapêuticos para o coletivo de advogadas feministas (DeFEMde), escritas sobre prática feminista (TamoJuntas). Nossa parceria mais longa é com a Casa das Mulheres, na Barra Funda; e hoje, com a Casa Movimento, na República, que viabiliza espaço físico onde realizamos nossas reuniões e atividades presenciais, o que sustenta em grande parte o trabalho da Rede. Na confecção de nossa roupagem inaugural, contamos com a parceria criativa da designer Elisa Pessôa Firmino, que deu forma à identidade visual da Rede DIVAM — vestimenta simbólica que seguimos usando como meio de comunicação. Firmamos, também, parceria com a The Body Shop que financiou atividades, como grupos de psicoterapia e de estudos. Durante nossa trajetória, na consolidação de nosso processo formativo enquanto coletivo, contamos com apoio de supervisão clínica de Fabiana Villas Boas e de analistas do Grupo de Estudos e Trabalho em Psicanálise e Feminismo. Ademais, ao longo de nosso percurso, temos realizado produções acadêmicas, apresentações em congressos, publicações em revistas, participação em veículos de comunicação como podcasts, prestação de serviços a instituições de ensino e colaboração em cursos e capacitação com temática acerca do cuidado da saúde mental das mulheres e pessoas LBTQIAP+.

Agradecemos todas as mulheres que construíram coletivamente a rede DIVAM, aquelas que já estiveram, aquelas que estão e aquelas que virão!

“Até para atravessar a rua ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro”.
Clarice Lispector, A hora da estrela.

Integrantes da Rede Divam

Ana Elisa Bettarello

Beatriz Barbosa Fejgelman

Bianca Vince Lauria

Carolina Lacerda Dias

Danielle Sales Oliveira

Júlia Ribeiro Lamardo

Luísa Ribeiro Lamardo

Marina Leonel Soares

Mayara Ferreira da Costa Patrão

Mayara Machado Bichir

Monique Scapinello

Renata da Silva Santos

Tatiane Ramos

Edição e Revisão

Luis Henrique Mello

Luísa Ribeiro Lamardo

Mayara Machado Bichir

Imagens

Beatriz Barbosa Fejgelman

Tatiane Ramos

Contato @rededivam

rede.divam@gmail.com

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