Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, a n-1 edições não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de linguagens e a especificidade de cada obra publicada.
Editores Chefes
Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes
Coordenação editorial
Gabriel de Godoy
Projeto gráfico
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Organização da coleção
Andréa Guerra e Linnikar Lima
Coordenação da coleção
Andréa Guerra
Comissão editorial das Zines
Andréa Guerra
Gustavo da Silva Machado
Jairo Carioca de Oliveira
Linnikar Lima
Luis Henrique Mello
Luísa Ribeiro Lamardo
Marcela de Andrade Gomes
Maria Elisa da Silva Pimentel
Maria Izabel dos Santos Freitas
Miguel Pinheiro Gomes
Renata Santos Cravo
Vanessa Solis Pereira
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1ª edição | Outubro, 2025 n-1edicoes.org.
Zines Clínicas de Borda
Coleção:
1. Coletivo de Psicanálise de Santa Maria (Santa Maria/RS)
2. Pontes da Psicanálise (Recife/PE)
3. Dispositivo de Escuta Periphérica Xica Manicongo (Campo Grande/RJ)
4. QUIMERA: Circulando afetos (Niterói/RJ)
5. Psicanálise na Praça da Alfândega (Porto Alegre/RS)
6. Coletivo de Psicanálise Itinerâncias (Porto Alegre/RS)
10. Coletivo escuta do Monte Verde (Florianópolis, SC)
COLEÇÃO DE ZINES DAS CLÍNICAS DE BORDA BRASILEIRAS
Freud modifica seu olhar sobre o inconsciente ao longo de sua obra: se, no início, o pensou como profundidade, ao fim nos indica que o inconsciente pulsa nas margens. É desse lugar que nasce a Coleção de Zines das Clínicas de Borda Brasileiras, aberta a novos fascículos, fruto da experiência compartilhada de psicanalistas inconformadxs com as respostas de sua clínica e de sua formação diante da realidade nacional marcada pela brutalidade e pela violência estrutural. Reúne experiências múltiplas e plurais, sem reduzi-las a um “mínimo comum”; ao contrário, afirma o vigor da práxis psicanalítica na transformação de sujeitos, processos, espaços públicos, modos de pertencimento e participação, e nos próprios caminhos de formação.
Nasceram da resistência dos movimentos plurais e das vidas teimadas nas periferias, favelas, praças, margens, estações, ocupações e quilombos. Erguem-se como resposta aos genocídios, suicídios, chacinas, feminicídios e homicídios, às violências do racismo e do desamparo, aos deslocamentos migratórios forçados. Seu fazer é da rua e com a rua: uma psicanálise que transgride as normas burguesas, sustenta o laço transferencial onde a vida pulsa e dá nome, com tempo e presença, a corpos apagados no cotidiano.
Reinstituem o necessário na teoria e na prática ao revisitar as clínicas públicas e populares desde os gestos inaugurais do campo freudiano, agora reviradas pela experiência da Améfrica Ladina. Em elipse, viram o espelho ao avesso, atravessam fronteiras disciplinares e urbanas, e marcam, em ato, o cinismo e a indiferença contemporâneos com novos arranjos de partilha e presença. Saem do consultório individual burguês para ocupar praças, escolas, centros comunitários e plataformas digitais, recebendo analisantes online e em cadeiras ao sol, escutando o sofrimento onde ele se enuncia.
Colocam o pagamento em xeque e não mais no cheque. Trazem a marca do território, da língua, dos sotaques e das gírias que fazem o Brasil múltiplo, redistribuem-se em cada canto do país e tensionam a circulação do capital e as respostas do inconsciente diante das violações
diárias. Interrogam os fundamentos da própria noção de clínica e a lógica excludente da formação do psicanalista, recolocando a psicanálise na polis: atravessada pelas margens, comprometida com o comum e responsável perante as vidas que insiste em escutar.
Elas não estão todas reunidas aqui; esta coleção permanece aberta, chamando novas presenças para seguir escrevendo esta história.
História do coletivo: um ato de fundação
O Coletivo Psicanálise na Praça da Alfândega, passa a existir a partir do desejo de psicanalistas em dar voz à cidade após o assassinato e silenciamento de Marielle Franco (vereadora, mulher, lésbica, política) ocorrido no dia 18 de março de 2018. Esse foi o marco para estes psicanalistas, a partir do trabalho de Marielle, que denunciava a violência policial nas favelas, atuação de milícias e o racismo estrutural, bem como a violência de gênero.
O silêncio, para a psicanálise, é um fenômeno complexo com múltiplas funções e significados. Mas aqui estamos falando de um silenciamento, de um ato violento, com efeito de calar a todos que ela representava. Assim, poder dar voz aos que ocupam a cidade foi uma forma de possibilitar que o que ainda precisa ser dito tivesse um lugar de escuta. Um modo de sustentar a presença dos que, historicamente, foram apagados das narrativas oficiais. Diante do silenciamento que recaiu sobre Marielle Franco, e sobre tantos outros corpos e vozes, escolher escutar, dar espaço à palavra, é também um ato político. É afirmar que a fala pode atravessar o trauma, resistir à tentativa de apagamento e reinventar laços. Nesse gesto, a psicanálise encontra uma função ética: não calar diante da violência, mas abrir brechas para que algo do sujeito possa emergir.
Foi diante do cenário que coloca em risco a democracia do país que duas colegas psicanalistas, Cândice Damé e Fernanda Vial Costa, questionaram-se sobre o que mais poderiam fazer, além do que vinham fazendo, para dar conta desse “sufocamento das palavras” vivido. As colegas receberam amparo para pensar e des-sufocar num coletivo de colegas psicanalistas de São Paulo, que realizam trabalho na Praça Roosevelt levando a escuta analítica às ruas, e que se mostraram totalmente disponíveis a ajudá-las. No dia 16 de julho de 2018, um mês após a experiência em São Paulo, nascia o Coletivo Psicanálise na Praça de Porto Alegre.
O coletivo, inicialmente, foi composto por treze psicanalistas com diferentes percursos de formação. Ao longo dos sete anos de existência, inúmeros psicanalistas compuseram o coletivo e em agosto de 2025 os integrantes são: Ana Paula Aprato, Camila Menoncin, Germano Pedroso, Luccas Pippi, Renata Cravo e Thomas Crepon.
Desde o início a marca é de um coletivo independente, sem vínculos institucionais e recebendo psicanalistas das mais diversas formações, valendo-se do tripé psicanalítico (análise pessoal, supervisão e estudos teóricos) para fundamentar o trabalho, funcionando de forma horizontal.
Território do trabalho: Praça da Alfândega
A Praça da Alfândega foi escolhida porque ela carrega, em sua própria configuração, os sentidos que atravessam nossa proposta: é um lugar de abertura, resistência e encontro. Ali convivem o comércio informal e os museus; os trabalhadores em descanso e a população em situação de rua; o trânsito apressado e o tempo de pausa. Diferentemente de praças como as do bairro Moinhos de Vento ou a Praça da Matriz, ainda que tão próxima, a Praça da Alfândega não se deixa capturar por uma ideia de higienização. Ela resiste, escapa, mesmo com diversas tentativas dos governantes, da sociedade e da polícia.
Historicamente, a Praça da Alfândega é território de luta política, pois também é considerada um marco importante da cidade. A área da praça foi um ponto crucial para a chegada e saída de mercadorias, com a construção do píer em 1783. Havia uma praça em frente ao píer onde comerciantes e quitandeiros se reuniam com as suas barracas, e se chamava, naquela época, Praça da Quitanda. Em 1820, o primeiro prédio foi erguido e os comerciantes foram obrigados a se mudar para a Praça do Paraíso, hoje chamada de Praça XV de Novembro. Houve resistência dos comerciantes e quitandeiros e no retorno para a praça foram autorizados a ocupar o lado oeste. Com o passar dos anos, houve diversas transformações, como aterramentos para afastar o Lago Guaíba, reformas, construções,
projetos paisagísticos e prospecção arqueológica. Desde 1955, na segunda quinzena de outubro, ocorre a Feira do Livro de Porto Alegre, que atrai milhares de visitantes todos os anos.
Esse lugar convocou e segue convocando o coletivo por sua heterogeneidade, sendo composto por um cenário de democracia, onde o povo circula, conversa e ocupa. As pessoas que passam por ali podem ter ou não acesso ao consultório privado, considerando a diversidade que transita pela praça. O território é composto por trabalhadores e frequentadores do Museu de Artes do Rio Grande do Sul (Margs), do Memorial do Rio Grande do Sul, o Santander Cultural, o Clube do Comércio, o Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul), a Caixa Econômica Federal, o Shopping Rua da Praia, os escritórios de advocacia, e muito perto do Mercado
Público de Porto Alegre, do Palácio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, a Casa de Cultura Mario Quintana, a Prefeitura de Porto Alegre, o Palácio Piratini e a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
No entorno da Praça da Alfândega se estabelecem bancas de revistas, peças de artesanato, carpintaria, mesas de xadrez, exposições de arte, romances, intervalos de almoço, uso de substâncias, manifestações políticas, turismo e escuta. Nessa multiplicidade de camadas que compõem a praça é que também se dá a textura da relação do nosso trabalho com aquilo que compõe o território.
A PRAÇA DA ALFÂNDEGA NÃO SE DEIXA CAPTURAR POR UMA
IDEIA DE HIGIENIZAÇÃO
Nos situando onde pisamos, o próprio calçamento da Praça da Alfândega é um mosaico de pedras portuguesas que marcam nossa herança colonial. Nessa linha, temos também as estátuas de Barão do Rio Branco e General Osório. Em frente ao Margs, temos uma escultura feminina chamada A fuga. Na entrada da praça, no chão, em meio às pedras coloniais, está a Pegada Africana, que faz parte do Museu do Percurso Negro. Em um dos bancos laterais, temos as figuras esculpidas de Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana, representando a prosa dos literários que também circulavam pela praça algumas décadas atrás.
Além de sua arquitetura, espaços de socialização também compõem a praça. Tem a praça infantil, os bancos que são usados das mais diversas formas, as mesas de xadrez. Algumas das histórias narradas no livro Os Anos Dourados na Praça da Alfândega: o bom humor e a irreverência
da fauna noturna de Porto Alegre (1995) na década de 1950 contam sobre as relações de frequentadores assíduos deste espaço. Até hoje, inúmeras pessoas se reúnem em torno das mesas com tabuleiros quadriculados pintados em sua superfície, nas quais as peças feitas de tampinhas de garrafa se movimentam sem parar. Senhores e rapazes de diferentes classes sociais que se amontoam para acompanhar as partidas, enquanto outros sentados nos bancos leem notícias em folhas de jornal impresso. Cabe ressaltar que a praça tem suas dinâmicas próprias, mas ela é também a rua, espaço de disputa e que denuncia toda desigualdade e violência sociopolítica. No mesmo espaço que tem alguém passeando, tem alguém passando fome. E nessa configuração diversa que se apresenta e se impõe, há uma fissura que emerge sob o mesmo solo: um coletivo de psicanalistas.
E nos dias de chuva?
O trabalho na Praça da Alfândega tem uma questão: a impossibilidade de atendimento em dias de chuva e durante a realização da Feira do Livro. A busca por outro espaço nos levou a um ponto simbólico da cidade, ainda no Centro Histórico, a Praça da Matriz. Pela proximidade, foi a opção pensada para o período da Feira do Livro. Ao visitar a praça e seu entorno nos deparamos com um espaço diferente da Alfândega, mas com tanto movimento quanto, um espaço que recebe a maior parte das reivindicações políticas, por estarem ali localizados, além da sede do Governo do Estado, a Assembleia Legislativa e o Palácio da Justiça. Percebeu-se que o saguão externo do Palácio da Justiça seria um local suficientemente adequado para os atendimentos em dias de chuva. Como se trata de uma área, ainda que pública, de uso da Secretaria da Justiça, foi realizada uma solicitação formal para ocupação do espaço, que foi atendida naquele momento.
Após alguns anos, com a pandemia, o fechamento do saguão para impedir o acesso às pessoas em situação de rua e a intensificação das chuvas por conta do aquecimento global, percebemos a necessidade de buscar outro espaço para atendimentos em dias de chuva. Demorou até
que se concretizasse a possibilidade de atendimento no Mercado Público de Porto Alegre. Diferentemente da solicitação formal aprovada ante riormente, o pedido de utilização do espaço foi feito à Prefeitura de Porto Alegre, porém nunca obtivemos resposta. Assim, os atendimento aconte cem nas mesas dispostas no segundo andar ou durante caminhadas ao longo do mercado. Passamos a encontrar os analisantes da praça organi camente neste espaço, um ponto que enfatizou e demonstrou o acerto de nossa escolha.
Vale também o registro da memória do mês de maio de 2024, onde diversos municípios do nosso estado foram afetados pelas enchentes e algumas regiões ficaram submersas pelas águas, como foi a situação do Centro Histórico de Porto Alegre. Combinando o cenário de emer gência climática com a negligência de uma gestão pública, esse foi um tempo de suspensão do nosso trabalho em território, havendo a neces sidade e a possibilidade de migrarmos nossa escuta para o espaço virtual ou para os abrigos que acolheram as pessoas que tiveram suas casas invadidas pelas águas.
Funcionamento dos atendimentos & o trabalho em coletivo
Inicialmente, as escutas ocorriam aos sábado, mas que atualmente ocorrem às sextas-feiras, das 11h30 às 13h30, de forma individual, gratuita, por ordem de chegada, sem horário marcado ou reserva de vagas. A mudança de dia ocorreu principalmente porque alguns analistas relataram que trabalhar aos sábados comprometia seu descanso.
FORMANDO UMA EXPERIÊNCIA COMPARTILHADA DE ESCUTA
A decisão perpassou um debate sobre o horário comercial das atividades em torno da praça, a jornada 6x1, o horário de almoço dos trabalhadores da região e o fato de que os analistas pensam os atendimentos como parte da sua jornada de trabalho. Além disso, muitos dos componentes atuais vêm de cidades do interior do Rio Grande do Sul, o que exige deslocamentos nos finais de semana.
As cadeiras e os próprios bancos da praça compõem o dispositivo clínico em território. Além dos atendimentos individuais, também ocorrem escutas coletivas em formato circular, com a presença de mais de um analista, formando uma experiência compartilhada de escuta, quando assim os analisantes solicitam.
Para cada membro do Coletivo Psicanálise na Praça da Alfândega, tudo começa com um desejo e um valor compartilhado. A escuta psicanalítica é entendida pelo coletivo como um direito de todos.
O trabalho é sustentado por essa ideia e o “pagamento” é justamente a convicção de que se está alimentando essa ideia através desse projeto, apostando num trabalho que pode dar a possibilidade da psicanálise se aventurar até espaços na cidade aos quais ainda não chegou, e até pessoas que, por diversas situações, nunca teriam tido acesso a uma análise de outra forma.
A inclusão para ser membro do coletivo se dá após o convite para participar das reuniões do coletivo às segundas-feiras e da observação do trabalho na praça, às sextas. É preciso viver, sentir o coletivo e se sentir capaz de sustentar o trabalho, nas semelhanças com outros membros, mas também nas próprias singularidades.
Uma característica notável do coletivo é a pluralidade dos membros. Esse fator traz uma riqueza de experiências e visões que, inegavelmente, enriquece a capacidade de elaborar as situações clínicas que surgem na praça. Isso se aplica também às observações do espaço que ocupamos – a praça, a cidade – e nas conversas que temos nos intervalos, no pré-grupo, no pós-grupo, nas reuniões das segundas-feiras e nas nossas supervisões.
O trabalho na praça, nas sextas-feiras segue uma cronologia, um pequeno ritual com a ida ao território. Nesse dia, tudo se inicia no grupo de WhatsApp, que ganha vida por volta das 11 horas com as primeiras mensagens:
Indo pra garagem!
Chegando, gente! Estacionar tá complicado, mas já tô quase aí. Pessoal, vou me atrasar um pouquinho, mas já estou indo. Eu também!
O ponto de encontro é uma garagem onde armazenamos nosso equipamento: sete cadeiras e a placa de identificação do coletivo. As três primeiras pessoas a chegar se encarregam de levar o material até a Praça da Alfândega, uma caminhada de cerca de 250 metros.
Anteriormente, nosso ponto na praça ficava mais próximo do antigo Correio. Agora, optou-se por um local mais central, perto da estátua do General Osório. Essa escolha não foi por acaso; buscou-se mais proximidade dos passantes e das pessoas que já aproveitam o espaço da praça, ampliando as oportunidades de interação.
Um atendimento muito marcante para todos os membros do coletivo aconteceu no dia em que o grupo foi abordado por uma mulher que parecia extremamente agitada e expressava ideias suicidas. Ela dizia precisar urgentemente de uma escuta, que esta seria, para ela, uma condição para não executar o ato autodestrutivo. Todos os membros se entreolharam assustados e perplexos, questionando-se sobre quem assumiria aquela escuta tão importante e desafiadora. Uma mistura de curiosidade e medo atravessou o coletivo.
Finalmente, foi escolhida a realização de uma escuta em grupo. As cadeiras foram posicionadas em círculo e o atendimento se iniciou. Durante a escuta, esta mulher endereçava suas palavras, um tanto desorganizadas, ora para um membro do coletivo, depois para outro, dividindo assim a carga afetiva da transferência. Cada membro do coletivo exerceu a função de ouvinte e de borda. Este trabalho em equipe abriu espaço para que essa mulher pudesse se expressar, compartilhar suas inúmeras dificuldades, desabafar, descarregar e, gradualmente, se acalmar. Ao final, ela parecia mais tranquila. Essa foi uma experiência marcante no coletivo.
O coletivo mostrou ser uma equipe de psicanalistas unidos, um grupo que demonstrou apoio mútuo, comunicação aberta, compromisso e confiança.
O mapa
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(E nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita, Tanta nuança de paredes, Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei (E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses, Poeira ou folha levada
No vento da madrugada, Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar Pareça mais um olhar, Suave mistério amoroso, Cidade de meu andar (Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso…
Mário Quintana
O que é psicanálise?
A psicanálise é uma prática clínica e um campo teórico fundado por Sigmund Freud no final do século XIX. Mais do que um método terapêutico, trata-se de uma forma radical de escuta e de produção de saber sobre o sujeito. A psicanálise se sustenta na ideia de que o sujeito não é inteiramente consciente de seus atos, pensamentos e desejos, há um inconsciente que opera, atravessando sua história, seu corpo, seus sintomas e suas repetições. Escutar esse sujeito, em sua singularidade e sofrimento, é a tarefa da psicanálise.
Conceitos fundamentais & ética da escuta psicanalítica
Nosso trabalho parte de alguns conceitos fundamentais da psicanálise: o inconsciente, que se manifesta em atos falhos, sonhos, sintomas, e que constitui o sujeito para além da razão; a repetição, que marca os enredos que insistimos em viver, muitas vezes de forma dolorosa; a pulsão, que aponta para uma dimensão do desejo e que nos movimenta de maneira singular; e a transferência, que estrutura a relação entre analista e analisante, relação em que algo da história do sujeito se reinscreve. A associação livre, a partir da qual o sujeito é convidado a dizer tudo o que lhe vem à cabeça, sem censura, é um dos pilares técnicos do trabalho, pois permite que o inconsciente se manifeste.
A psicanálise aposta na escuta e na possibilidade de o sujeito construir outras saídas para o seu sofrimento. Há éticas da psicanálise que nos orientam, não se trata de normatizar a vida, mas de possibilitar um cuidado de si que se sustenta no desejo singular de cada um. Essa ética se opõe a uma lógica de mercado que instrumentaliza o sofrimento e transforma o cuidado em produto. Atuamos no sentido oposto: apostamos na escuta como ferramenta de resistência e produção de vida.
Formação & atravessamentos: um coletivo de psicanalistas
Como psicanalistas, nos reconhecemos por aquilo que nomeamos como tripé analítico: análise pessoal, supervisão clínica e estudo teórico. Cada integrante do coletivo trilha seu percurso na psicanálise em diferentes instituições e espaços formativos. Somos diversas formações, escolas e experiências, e é nessa pluralidade que nos constituímos enquanto coletivo. O que nos une é o compromisso com a escuta, com a intervenção clínica em espaços públicos.
Estar na praça é também posicionar-se contra os dispositivos que privatizam o sofrimento. Ao colocarmos nossos corpos e nossas escutas no território, desafiamos as lógicas que reduzem o cuidado àquilo que pode ser comprado. A psicanálise, nesse contexto, encontra uma possibilidade viva de se renovar e se implicar no mundo, sem abrir mão daquilo que lhe é mais essencial: a escuta do inconsciente e a aposta no sujeito.
Há autores e pensadores importantes que marcam a formação dos analistas do coletivo como Sigmund Freud, Frantz Fanon, Michel Foucault, Emilia Estivalet Broide, Jorge Broide, Jacques Lacan, Donald Winnicott, Elizabeth Ann Danto, Jean Oury, Pichon-Rivière, dentre muitos outros estudados.
Pela transferência com a psicanálise e com o território do centro de Porto Alegre é que se dá a aproximação dos membros com o coletivo. Há certa estrangeiridade que enlaça os analistas, suas histórias com a cidade, os diferentes percursos de formação e o desejo de outras formas de inventar a prática.
Não se trata, portanto, de reproduzir um dispositivo, não é algo que está dado a priori, mas passa pela invenção a partir da relação que estabelecemos com o território que ocupamos. Na suposição de um modelo de setting criado pelo consultório privado, reservado, fechado, reconhecemos que a escuta territorial é imanente à prática que o coletivo se propõe, colocando a clínica como esse fazer que se estabelece onde há desejo de fala e de escuta, lugar onde os significantes possam emergir.
Ancorados na perspectiva de Jean Oury sobre o que é um coletivo, nossa composição também se dá através de uma forma de organização de trabalho que contrasta com outros modelos institucionais por onde a psicanálise circula e forma, ou deforma, analistas. Enquanto coletivo, temos abertura para que a palavra circule fora de uma hierarquia estabelecida, fazendo assim com que possa aparecer o contraste de nossas diferenças e sendo sustentada a heterogeneidade que nos compõe enquanto grupo. Jean Oury fala do coletivo como máquina de produção de singularidade, operando contra uma exclusão dos sujeitos, não se restringindo apenas aos analisantes em atendimento individual, mas todos aqueles que endereçam algo a nós no espaço comum que compartilhamos, em nosso caso, na praça. A horizontalidade do trabalho caminha junto na mesma calçada.
POSICIONAR-SE
CONTRA OS DISPOSITIVOS QUE PRIVATIZAM O SOFRIMENTO
Há discussões que tratam de uma psicanálise ou de outra, sobretudo no que abarca nossas práticas fora de consultórios privados. Há uma repetição de psicanalistas que afirmam “Isso não é psicanálise!”, quando se trata dos trabalhos em trânsito que vem sendo feitos na intersecção com outros lugares não hegemônicos para onde a psicanálise está sendo situada, com implicações éticas e políticas. Seria pela via desses discur sos que se perpetuam posições de poder diante de quem pode ter acesso ou se autorizar analista?
Portanto, reafirmamos a psicanálise como uma ferramenta, e compar tilhamos em coletivo modos de usá-la, com a singularidade do estilo de cada um. Singularidade essa que é possível emergir na proposta de um trabalho como coletivo e que não se resume a predicados de filiação. Há também uma pergunta que faz Jean Oury e que deve ser repetida e reatualizada: “O que estamos fazendo aqui?”. Nessa direção que se movi menta o trabalho de um coletivo de psicanalistas em um espaço público.
Sobre o território e o trabalho de artesanato, que compõe suas bancas na beira da calçada da praça, diante da antiga Rua da Praia: esse tempo do trabalho, que vai na contramão de uma lógica capitalista de produção, que exige um tempo singular para a construção de cada peça, uma por uma. Não poderíamos pensar que o trabalho de uma análise também tem algo de artesanal?
Sobre a questão do pagamento
Para começar este tópico é importante localizar que estamos mexendo em um vespeiro, estamos falando de dinheiro (ou da sua falta). Parece que a cada vez que colocamos a placa no meio da Praça da Alfândega, na qual está escrito: “atendimento por ordem de chegada, das 11h30 às 13h30, individual e gratuito”, de certa maneira, protetiva, dize mos “aqui não se paga monetariamente por uma análise”, porque esta afirmação traz consequências importantíssimas para o trabalho e para os analisandos. Quando dizemos que ali não se paga monetariamente por uma análise, não é por ingenuidade ou desatenção, é porque essa escolha carrega tensões que preferimos sustentar no gesto, mais do que explicitar em palavras.
Podemos então pensar um pouco sobre como a questão do pagamento é vista em suas formas mais tradicionais na psicanálise. Antes de ir a Freud, é importante relembrar que o dinheiro, como remuneração, é o equivalente simbólico do produto do trabalho e transforma as relações humanas em relações econômicas, sendo uma ferramenta de negociação. Aqui é colocado o dinheiro como uma mola.
Nos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (2016), Freud nos apresenta a complexidade da sexualidade humana a partir de uma perspectiva que rompe com qualquer ideal de normalidade biológica. Ao descrever as zonas erógenas e as fases do desenvolvimento da psicossexualidade, ele nos conduz à fase anal, que será o nosso foco aqui, como um momento estruturante na constituição subjetiva. É nessa etapa que se instala, segundo Freud, uma inscrição psíquica marcada por temas como o controle, a sujeira, a retenção e a dominação, a partir da experiência do controle esfincteriano. Não se trata apenas de um domínio corporal, mas de uma cena inaugural em que o sujeito aprende sobre o valor: o valor do corpo, o valor do que produz, o valor do que pode (ou não) entregar ao outro.
A criança que segura as fezes, que recusa ou oferece o produto do próprio corpo, está em um jogo de poder com o Outro. Aqui se forma o circuito da pulsão anal-retentiva, que articula prazer e controle, gozo e cálculo. Freud nos sugere que há uma continuidade entre essa lógica e a forma como nos relacionamos com o dinheiro. O dinheiro simboliza valor, sim, mas também regula afeto, prazer e vínculo. Ao reter ou ao dar dinheiro, o sujeito revive, em algum nível, aquele primeiro aprendizado de poder e controle sobre o próprio corpo e sobre o desejo do Outro. O dinheiro, então, não é apenas uma convenção social: é também um operador pulsional.
Essa leitura nos permite pensar que certas dificuldades ou modalidades de relação com o dinheiro, como a avareza, a compulsão ao gasto, a vergonha de cobrar ou a culpa por receber, podem ser compreendidas para além da moral ou da economia, como expressões subjetivas ligadas a essa constituição precoce do valor. A economia psíquica, nesse sentido, é tão importante quanto a economia de mercado.
Freud ainda nos fala sobre o lucro do sintoma: o neurótico investe libidinalmente em seu sintoma, tratando-o como algo precioso, pois dele retira uma forma de satisfação psíquica substitutiva, o que seria o benefício primário. A doença, nesse sentido, seria uma solução econômica para o conflito mental, permitindo ao sujeito economizar esforço psíquico e manter um equilíbrio precário por meio desse investimento no sintoma. Já o benefício secundário do sintoma refere-se àquilo que o sujeito ganha com ele na relação com o Outro: prestígio, cuidado, ou até vantagens materiais. O sintoma torna-se, assim, um modo de representação do sujeito no laço social, sendo também, nesse plano, uma questão de dinheiro e reconhecimento.
Na análise, ocorre então uma transferência de capital, tanto financeiro quanto libidinal, do sintoma para o analista, rompendo a economia de gozo que sustentava o sujeito em sua relação com o sintoma. Esse deslocamento implica não só pagar em dinheiro, mas abrir mão de uma segurança subjetiva, o que gera resistência, pois o analista, como Outro sem garantias, não oferece a estabilidade do sintoma. O valor pago, portanto, não poderia ser padronizado como em uma prestação de serviços, pois o custo simbólico da análise deve equivaler, para cada sujeito, ao preço de seu próprio sintoma.
É necessário também relembrar que houve uma mudança de posição de Freud quanto à gratuidade. Em “Sobre o início do tratamento” (1913), Freud expõe a posição de que o tratamento gratuito aumenta consideravelmente algumas resistências. Após essa escrita, no 5º Congresso, em Budapeste, em 1918, no período pós-guerra, Freud convoca os psicanalistas a oferecerem escutas gratuitas à população. Este é um aspecto ignorado por muitas instituições tradicionais de psicanálise, mas que apontou para uma renovação social.
O que podemos observar é que o dinheiro é utilizado como uma forma de comunicação inconsciente, ou seja, é uma mensagem transferencial. Assim podemos pensar, como recebemos e olhamos para essa mensagem quando o trabalho é feito a partir de outra forma, em que a troca não é feita pela via do dinheiro e como essa questão compõe o laço social?
“Atendimentos grátis”, está escrito na placa, mesmo que saibamos que nenhum atendimento é gratuito. Mas calma, iremos convidar vocês a percorrer um pequeno caminho com a intenção de tentar desfazer essa aparente contradição.
Idealmente, nenhum atendimento é gratuito porque há várias formas de custos, que são a base material para se estar lá. Ao acordar para mais um dia de atendimento começamos saindo da cama, cuidando de nossa higiene pessoal, tomamos o café da manhã e nos deslocamos até o território. Para pouparmos o leitor de uma classificação completa de todos os gastos de todo o processo que sustenta ir até a praça, pensemos apenas no ato prosaico de tomar o café da manhã que antecede o trabalho no coletivo.
A VENDA DA FORÇA DE TRABALHO É EFEITO DA PRECARIZAÇÃO DA VIDA
Geralmente o café é uma mercadoria, isso quer dizer que ela tem um valor de uso. Podemos destacar como valor de uso o seu sabor, seu perfume e o efeito energético da cafeína que contribui na jornada diária de trabalho. Considerando que não produzimos café (porque todos trabalhamos como psicanalistas), precisamos trocar o dinheiro, que é uma representação distante do valor de uso e que simboliza o valor do nosso trabalho, supomos que o preço desse café seja R$30 por 250g. Assim explicamos o meio de circulação, que segundo Marx (2013), é colocado na fórmula M-D-M. O café tem uma mudança qualitativa, isto é, para chegar a ter valor de uso, o grão foi colhido, selecionado, torrado e transportado.
O problema é que com o desenvolvimento do capitalismo o dinheiro vira um fim em si mesmo, comprando a mercadoria com dinheiro, vendendo essa mercadoria e retornando a ter dinheiro, mas não a mesma quantia, precisa haver um acréscimo, com isso nomeamos a fórmula da circulação de dinheiro como capital, representada na fórmula D-M-D’. Aqui se encontra um problema: a mera circulação da mercadoria não produz mais-valia. É justamente na exploração da mão de obra que ela é produzida, que está na intersecção da relação de produção com a venda da força de trabalho, que é a única que o proletariado tem para vender.
A venda da força de trabalho é efeito da precarização da vida, criando um exército de pessoas sem emprego, permitindo o pagamento de um salário ínfimo diante de tanta concorrência por uma vaga de trabalho. Isso evidencia que a degradação do laço social é motor fundante do capitalismo.
Aqui está a situação de pagamento do coletivo, simbolizada numa forma de aposta de cuidado com o laço social através da democratização
da psicanálise. Apostamos que o coletivo é uma forma de criar espaço de fala para aquelas pessoas que desejam um espaço de escuta e que são colocadas à margem da sociedade embora sejam elas quem de fato a sustentam. Essa aposta, embora não trabalhada inicialmente, já aparecia antes da letra na intenção dos membros fundadores ao se sentirem mobilizados em promover um dispositivo de psicanálise que facilitasse o acesso das pessoas que não acessariam um consultório privado e que eram representados politicamente por Marielle Franco.
E ao se propor um trabalho a ser realizado extramuros, precisamos ter em mente que o dinheiro propõe barreiras culturais e econômicas; que nos conta de alcance social; de que o capitalismo opera no abandono, na medida em que produz pessoas em situação de rua, por exemplo; que demarca posições; que as faltas extremas – principalmente a fome – encurtam o aparelho psíquico e influenciam no circuito da fantasia, na medida em que ele é tomado pelas urgências das necessidades básicas.
Tudo isso nos serve para pensar: se a psicanálise tradicional afirma que o pagamento tem uma função estruturante, o que acontece quando essa função é suspensa? Talvez estejamos dizendo que ao retirar o dinheiro da equação, não estamos negando a presença da pulsão, da transferência, da comunicação inconsciente, mas estamos forçando que ela se realize também por outras vias, até porque o pagamento se desloca: deixa de ser feito em moeda e passa a ser feito em palavra e na aposta da modificação do laço social.
A SUBVERSÃO É UM
É possível também pensar sobre o fato de que a recusa do dinheiro, enquanto gesto clínico e político, desestabiliza os significantes que sustentam a lógica do pagamento em análise. Ao abrir mão da troca monetária, colocamos em xeque a equivalência simbólica entre escuta e valor, tão naturalizada nos moldes tradicionais. E é importante lembrar: estamos todos, todas e todes – analistas e analisandos – imersos em um sistema capitalista, no qual mesmo aqueles que podem se colocar em posição de crítica contra o sistema frequentemente retornam à lógica da troca. Por isso, a subversão é um exercício constante, que precisa ser reafirmado no coletivo, no ato, no corpo, na escuta.
EXERCÍCIO CONSTANTE
O que se inventa?
Situar as invenções que ocorrem durante o trabalho psicanalítico parece retomar a descoberta freudiana do inconsciente, se tomarmos por base que, por volta do fim do século XIX, o neurologista Freud tensiona o paradigma científico hegemônico da medicina ao observar as manifestações sintomáticas no corpo das mulheres histéricas. É com a invenção de uma paciente, Anna O., que a “cura pela fala” toma a direção de tornar-se uma terapêutica, movimento que produz uma subversão na organização e direção do tratamento na clínica médica. Esse desdobramento da prática clínica, culmina na publicação de A interpretação dos sonhos (1900), obra em que Freud, ao teorizar sobre o inconsciente, inventa-se também como psicanalista.
Assim, a psicanálise e o psicanalista surgem a posteriori, em um tempo em que a composição de fenômenos psíquicos passa a ser inscrita a partir de um arcabouço conceitual ainda inexistente, território ainda desconhecido e que no decorrer do tecido do tempo foi sendo codificado por Freud. Este, apoiava sua invenção em autores da literatura, medicina, sociologia, arqueologia etc. Com o intuito de oferecer elaborações teóricas acerca de suas observações clínicas, Freud trabalhou com outros para construir a psicanálise. Seguimos o ditado Iorubá, “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”, para alinhavar os rastros da inventividade no tempo, naquilo que a psicanálise vem a observar, o inconsciente.
Chamamos de invenção aquilo que ao aparecer ganha índice de novidade, quando percebido abre um campo possibilitador de outras procuras a serem feitas. Dessa forma, nomear as descobertas realizadas em um tempo anterior ao nosso, pode ajudar a determinar as nuances históricas e os fatos sociais que condicionaram o surgimento das invenções.
Por exemplo, a publicação do livro As Clínicas Públicas de Freud, de Elizabeth Ann Danto (2019), possibilitou o reencontro com uma
psicanálise popular, que não estava somente a serviço da burguesia. Essa obra revela uma gama de psicanalistas experientes, chancelados por Freud, que expropriaram a psicanálise das torres de marfim e traba lharam junto a instituições públicas. Também podemos considerar a releitura de Lacan acerca da obra freudiana, que relançou o olhar sobre a letra de Freud, questionando a estrutura das instituições psicanalíti cas de sua época e dialogando com outros autores, principalmente os linguista Ferdinand de Saussure e Roman Jakobson. Destacamos também a importância dos psicanalistas argentinos, desde as dissidências e rupturas da APA (Associação Psicanalítica Argentina e uma instituição ipeísta), fundando o grupo Plataforma e contemporaneamente a isso as produções revolucionárias de Marie Langer, cuja influência foi decisiva para a psicanálise no Brasil e especialmente em Porto Alegre. No solo da capital gaúcha tivemos a criação nos anos 1980 da Cooperativa Cultural Jacques Lacan, primeira instituição lacaniana da cidade, nome que soa familiar quando pensamos no modo de organização coletiva à qual este zine se veicula. Enunciamos esses exemplos com o intuito de buscar, no acervo da história, a construção teórica e prática que possa balizar nossas invenções. Olhar para o passado parece ser condição necessária para reinscrever o que foi sistematicamente apagado e silenciado. Nosso país carrega nas marcas do colonialismo europeu o indelével assassinato dos povos originários que habitavam estas terras – posteriormente chamadas de Brasil – e o genocídio dos povos africanos, que foram escravizados e trazidos à força para o Brasil. Essas violências fundantes seguem ecoando em nossa realidade social e subjetiva, exigindo que a psicanálise se posicione e reinvente seu campo de atuação.
QUE ESTEJA ATENTA ÀS
DEMANDAS
DA CIDADE
Nossa tentativa é compormos uma psicanálise que esteja atenta às demandas da cidade, dos sujeitos que ocupam o espaço público e os modos de subjetivação inerentes a uma sociedade de capitalismo tardio. Para isso, a prática do nosso coletivo é estruturada em três momentos: um pré-grupo, em que os analistas compartilham como estão naquele dia; os atendimentos propriamente ditos na praça; e o pós-grupo, no qual são trocadas impressões clínicas, relatos breves e observações sobre o território. Considerando o espaço público em que estamos, pensamos em recursos para que a tarefa possa ser realizada, constituindo a borda do coletivo através da forma como os analistas se dispõe no território, formada por um circuito de presenças-visíveis. Ainda, semanalmente
realizamos reuniões de intervisão, além de supervisões com psicanalistas apoiadores. Essa organização sustenta a escuta clínica e fortalece o vínculo entre os integrantes do coletivo.
Nossa presença no espaço público convida a pensar o corpo dos analistas em relação às dinâmicas de classe, gênero e raça que atravessam o território. Atuamos com base em recursos simbólicos e materiais: leituras conjuntas, escritas clínicas em um diário coletivo, rodas de conversa, formação individual e coletiva, além da gestão das redes sociais.
Nos norteamos por contornos escritos a partir do que já vivemos e combinamos, a fim de que a tarefa seja possível: a direção tomada pelo coletivo no seu campo político visa estabelecer laços com os movimentos anticapitalistas, anticolonialistas, antirracistas, antiproibicionista, antipatriarcal e de diversidade sexual.
Nov(idades)
Nas sextas-feiras, entre 11h30 e 13h30, as análises que se dão na Praça da Alfândega não têm um marcador excludente – já que “o inconsciente não tem idade”, não é mesmo? E sendo ele atemporal, o coletivo se propõe a escutar sujeitos de todas as idades. Abre-se espaço para um outro tempo e um outro ritmo. Não se trata de respostas prontas ou soluções imediatistas. Não se preenche lacunas, nem se oferece certezas. Se sustenta a falta, abrindo espaço para que o sujeito possa escutar a si mesmo. Reconhecer o que se repete e, pouco a pouco, construir outras possibilidades.
Para todas as idades que chegam nas cadeiras de praia ou nos bancos da praça, não é só o que se fala que importa. Mas o jeito como a fala é lançada. Por isso, na análise, falar sobre o cotidiano – como foi a semana, o que aconteceu no colégio, o que a mãe fez de irritante – pode revelar marcas mais profundas. A questão não é apenas o que se conta, mas como se conta. O que escapa, o que repete, o que silencia. O que é dito sem que se perceba que está sendo dito.
Quem chega na praça pela primeira vez – ao redor da placa que diz “Atendimento individual e gratuito, por ordem de chegada” – costuma estar curioso, com certo receio até. Com o tempo, parece perceber mudanças na forma de se escutar. Porque mexeram em registros que sustentam a forma como se colocam no mundo.
É um trabalho que exige tempo e disposição para encarar o que muitas vezes preferimos evitar olhar e falar, independentemente da nossa idade cronológica. Não se trata de adaptar o sujeito à realidade, mas de permitir que ele a estranhe, interrogue suas repetições, escute aquilo que sempre esteve lá.
E alguma transformação acontece? Não como um objetivo traçado, mas como um efeito colateral do processo. O analisante não é orientado e direcionado para lidar com desafios concretos. Mas passa a desvelar e ressignificar. Temos percebido, com essa aposta psicanalítica, mais visibilidade a corpos múltiplos e plurais de todas as idades.
Luccas Poerschke Pippi
Renata Santos Cravo
Thomas Campos Crepon
Referências
COIRO, J. R. R. Os Anos Dourados na Praça da Alfândega: o bom humor e a irreverência da fauna noturna de Porto Alegre. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995. 175p.
DANTO, Elizabeth Ann. As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social, 1918-1938. Trad. Margarida Goldsztajn. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2019. (Coleção Estudos, 368). Coord. J. Guinsburg (in memoriam).
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. In: Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1972. (Trabalho original publicado em 1900)
FREUD, S. Sobre o início do tratamento (1913). In: FREUD, S. Fundamentos da clínica psicanalítica (Obras incompletas de Sigmund Freud). Trad. Claudia Dornbusch. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Trad. Carlos Pereira Thompson Flores. Porto Alegre: Evangraf, 2016. (Publicado pelo Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre)
MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro 1. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
OURY, Jean. O coletivo. São Paulo: Hucitec, 2009.
QUINET, Antonio. As 4+1 condições da análise. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.