ACOMUNIDADETERRESTRE
títulooriginal: Lacommunautéterrestre AchilleMbembe
©AchilleMbembe,2023 ©n-1edições,2025 isbn 978-65-6119-057-2
Emboraadoteamaioriadosusoseditoriaisdoâmbitobrasileiro,a n-1ediçõesnãoseguenecessariamenteasconvençõesdasinstituições normativas,poisconsideraaediçãoumtrabalhodecriaçãoquedeve interagircomapluralidadedelinguagenseaespecificidadedecada obrapublicada.
coordenaçãoeditorial PeterPálPelbarteRicardoMunizFernandes direçãodearte RicardoMunizFernandes gestãoeditorial GabrieldeGodoy assistênciaeditorial InêsMendonça tradução© SebastiãoNascimento preparação FernandaMello revisão GabrielRathKolyniak ediçãoemLATEX PauloHenriquePompermaier capa IsabelLee
Areproduçãoparcialdestelivrosemfinslucrativos,parauso privadooucoletivo,emqualquermeioimpressooueletrônico,está autorizada,desdequecitadaafonte.Sefornecessáriaareprodução naíntegra,solicita-seentraremcontatocomoseditores.

Estelivro,publicadonoâmbitodoProgramadeApoioàPublicação2024Atlântico NegrodaEmbaixadadaFrançanoBrasiledaTemporadaBrasilFrança2025,contou comoapoioàpublicaçãodoInstitutFrançaisassimcomocomoapoiodoMinistério daEuropaedasRelaçõesExteriores.| Cetouvrage,publiédanslecadreduProgramme d’AideàlaPublication2024AtlantiqueNoirdel’AmbassadedeFranceauBrésiletdela SaisonFrance-Brésil2025,bénéficiedusoutiendesProgrammesd’AideàlaPublicationde l’InstitutFrançaisainsiquedusoutienduMinistèredel’EuropeetdesAffairesEtrangères.
1ªedição|Setembro,2025 n-1edicoes.org
A COMUNIDADE TERRESTRE Achille Mbembe
tradução Sebastião Nascimento
7Prefácio
Avivênciadoslimites
Rupturageneralizada
Reconectar-seàsforçasdocosmos
19Introdução
Afestadasemeadura
Forçasdodevir
Poderesmutantes
Trêsparadoxos
Capítulo1
43Aproduçãoinerte
Ofantasmadeumalinguagempura
Ecologiageral
O nomos daTerraeo nomos racial
Fissuraçãoespacial
Dialéticadavitalidadeedamobilidade
Capítulo2
77Tomadadeterras
Podermetamórfico
Ocorpodesmembrado
Capítulo3
97Asegundacriação
Oovodomundo
Elasticidadeemaleabilidade
Miniaturizaçãoedigitalização
Atotalidademágica
Capítulo4
131Apesagemdasvidas
Serestecnológicoseobjetosvivos
Docapitalcomocampomagnético
Colonialismotecnomolecular
Adialéticadaimbricaçãoedaseparação
Vidaemobilidade
Arazãosobjulgamento
Capítulo5
163Apassagempeloespelho
Captação
Transmigraçãodostempos
Tramaplanetária
Acomunidadedosdessemelhantes
Direitoaofuturo
Capítulo6
191Aderradeirautopia
Consciênciaplanetária
OTodo-Mundo
Desejodebrutalidade
DoTodo-MundoaoTodoplanetário
217Conclusão
Asementeeolodo
Areparaçãodomundo
PREFÁCIO
Esteensaioéoúltimodeumatrilogiainiciadacom Políticasda inimizade eretomadaem Brutalismo,cujoobjetivoeraassumira Áfricacomopontodepartidaparaumaapreensãointeligíveldas principaisforçasdetransformaçãodavidanaeradaglobalização.1 Pormuitotempo,oplanetaeseushabitantestêmvivido emfunçãodecertezaseurocêntricas.Semdúvidamerospreconceitos,masgrandepartedessascertezas,emproldacausa,foi dissimuladacomamáscaradaquiloqueofilósofoSouleymane BachirDiagnechamade“universalismopanorâmico”.2 Delápara cá,orestodomundotemclamado,incessantementeecomtodas asvozes,porumadescentralizaçãoquepermitatornarvisíveis asdiferentesmanifestaçõesdogêniohumanoepropiciaroutras imaginaçõesdocosmos.3 Aoqueparece,essaépocaficoupara trás,emboramuitaspessoas,deambososlados,aindacustema entendertodasasimplicaçõesdessamudança.
Aprimeiraéquenadadoquefoiperdidoprecisaserrestaurado.Algumasperdasnãosãoapenasincalculáveis,mastambém irreparáveis.Oincalculáveleoirreparável,contudo,nãoexcluem nemimpedemasdemandasporcuidadoeporverdade,muitomenosademandaporjustiça.Pelocontrário,servemapenasparaenfatizarsuaurgênciaesuacondiçãoinfindável.Ébempossívelque,
1.AchilleMbembe, Políticasdainimizade.Trad.SebastiãoNascimento.SãoPaulo:n-1, 2021[Politiquesdel’inimitiè.Paris:LaDécouverte,2016]; Brutalismo.Trad.Sebastião Nascimento.SãoPaulo:n-1,2022[Brutalisme.Paris:LaDécouverte,2020].
2.SouleymaneBachirDiagne,“Lafindel’universalismeeuropéenseralecommencement del’universel”, Philosophiemagazine,19out.2022.
3.ÉdouardGlissant, Unenouvellerégiondumonde.Esthétique i.Paris:Gallimard,2006.
emúltimaanálise,elasformemabasedotipodedívidaqueéao mesmotempoirresgatávelesemfim,sobreaqualseassentatoda comunidadedignadessenome,toda comunidadequevaialémda identidade,doEstadonacionaledocontrato.Asegundaconsequênciadessamudançaéque,nolimite,tudoprecisarásercriadoe reinventado,eimaginarenomearsãoopontodepartidapara todaequalquerreinvenção.Nomearénotificarformalmente,é intimarparacompareceraumjulgamento,ouseja,aumadecisão. Ocomparecimentoéoopostodoesquecimentoedosilêncio.Indicaumdever,odeverdeestarpresente,eassinalaumaobrigação, aobrigaçãoderesponder.Comojáestamossemprepresentes com outros,opróprionomedaexistênciasesitua com eles,na relação,quesetornaráareinvenção.4 Aterceiraconsequênciaéque aTerraénossolocaldeorigem.Podenãosernecessariamente nossodestino,masé,emsuamaterialidade,algopré-constituído, queinevitavelmenteprecedenossaexistênciaequecontinuará aexistirdepoisdenós.Poroutrolado,essaexistênciaéforçosamentecompartilhada.SemaTerra,nadamaisépossível.Éclaro queelaunetantoquantosepara,massempreimpõeumarelação departilha,que,afinaldecontas,éaessênciada relação.
Avivênciadoslimites
Nestemomentodeaceleraçãoeentrelaçamentodotempoede contraçãodosespaços,emdecorrênciadadisseminaçãoglobal dastecnologiasdigitais,muitasdaspotênciasmundiaiscontinuamanutrirreflexospredatóriosemtermosmilitareseeconômicos.Dopontodevistadaproduçãodesignosqueremetamao futuro,porém,elasjamaisdeixamdedaraimpressãodeandarem círculos.Namaioriadoscasos,asantigaspulsõesimperialistas
4.ÉdouardGlissant, PoétiquedelaRelation.Poétique iii.Paris:Gallimard,1990.
hojesóserelacionamcomumpassadonostálgico.5 Issosedeve aofatodeocentroseveragorairremediavelmenteconsumido porumdesejoinsaciáveldeterfronteirasepelomedodocolapso, gerandoapelosmaldisfarçadosnãoàconquistapropriamente dita,masaofechamentoeatémesmoàsecessão.6
Seoclimaéderetraçãoeisolamento,éporquemuitaspessoas perderamafénofuturo,jánãoesperamalgoalémdoprópriofim. Alémdisso,pormaisqueseapregoequeaaceleraçãotecnológica eatransiçãoparaumacivilizaçãocomputacionalrepresentam anovaviaparaasalvação,tudosepassacomose,naverdade,a curtahistóriadahumanidadesobreaTerrajáestivesseconsumada.Assim,atarefadopensamentoseresumiriaaconstatar: prenunciaracatástrofeedeclará-la–7 poressarazão,ébemprovávelqueoacúmulodetodosostiposdenarrativassobreofim domineaspróximasdécadas.Essasnarrativasvêmsealastrando emumcontextodeansiedadesepânicos–osmaisvariados. Avidanolimitedosextremosvemseconsolidandocomonossa condiçãocomum.Todososestudosindicamqueaconcentração decapitalempoucasmãosnuncaatingiuosníveisquevemos hoje.Emescalaglobal,umaplutocraciadevoradoracontinuaatuandodecáedeláparacapturaresequestrarosrecursosdetodaa humanidadee,muitoembreve,todososrecursosdomundovivo.
Aomesmotempo,estratosinteirosdasociedadecorremo riscoacentuadodeumavertiginosadegradação.Atépoucotempo atrás,tinhamaoportunidadedeelevarsuacondiçãooudeexperimentarumamobilidadeascendente.Agora,quandoacorrida segueparaoabismo,resta-lheslutar,senãopelasobrevivência,
5.PaulGilroy, Mélancoliepostcoloniale. Paris:ÉditionsB42,2020.
6.Sobreamaneiracomoavertenteambientalistadocatastrofismosearticulacomas tradiçõesdademonologia,verS.JonathanO’Donnel,“DamnedEcologies.Environmental DemonologyandApocalypticNormativizationinAmericanSpiritualWarfare”, EnvironmentalHumanities,v.14,n.3,2022.
7.JohnBeckeMarkDorrian,“TheTimeCapsuleandtheCut-up.NegotiatingTemporality, AnticipatingCatastrophe”, Theory,Culture&Society,v.37,n.7-8,2020.
pelomenosparapreservareeventualmenteprotegeropoucoque lhessobrou.Mas,emvezdeculparosistemaquecausouseus infortúnios,voltam-secontraaquelesquesãomaismiseráveis doqueeles,umaclassedepessoassupérfluasquejáperderam quasetudodesuaexistênciamaterialedesuadignidade,contra asquaisagoraclamamporumabrutalidadeaindamaior.8 Por outrolado,oaumentodasinquietaçõestemcomopanodefundo umaconsciênciamuitomaisaguçadadoqueantessobreanossa finitudeespacial.ATerranãoparadeencolher.Comoumsistemafinito,atingiuseuslimites.Essaexperiênciadoslimitese alitaniadesituaçõesextremasqueelagerasãovivenciadaspor algunsantesdosoutros.ParamuitasregiõesdoHemisférioSul, criarvidaapartirdoinvivíveltemsidonossacondiçãoháséculos. Anovidadeéqueagoracompartilhamosaprovaçãodosextremos commuitosoutros,aquem,nofuturo,nenhummuro,fronteira, bolhaouenclaveserácapazdeproteger.
Arealidadedacontraçãoeainflexãonadireçãodoslimites sãovisíveisnãoapenasnoesgotamentovertiginosodosrecursos naturais,doscombustíveisfósseisedosmetaisquesustentama infraestruturamaterialdenossasexistências.Tomamformatambémnatoxicidadedaáguaquebebemosedoarquerespiramos. Tornam-seperceptíveistambémsobaformadastransformações sofridaspelabiosfera,evidenciadasporfenômenoscomoaacidificaçãodosoceanos,adestruiçãodeecossistemascomplexos, enfim,amudançaclimáticaeoêxododaquelescujosambientes devidaforamsaqueados.Narealidade,éosistemadesustentaçãodaprópriaTerraqueéafetadoe,comele,talvezacapacidade dossereshumanosdefazerhistória.
8.AchilleMbembe, Brutalismo,op.cit.
Rupturageneralizada
Nemmesmonossaprópriaconcepçãodetempoescapaaoquestionamento.Pormaisqueasvelocidadessejamcontinuamente aceleradaseasdistânciasvencidas,otempoconcreto,otempo dacarnedomundoedesuarespiração,bemcomootempodo Solàmedidaqueenvelhece,nãoémaisextensívelaoinfinito.No fundo,onossotempoestácontado.Temosambosospésfincadosnaeradacombustãodomundo.Porisso,écomaurgência quenosconfrontamos,earealidadedaurgência,dafragilidadee davulnerabilizaçãoéalgoquemuitospovosdomundovivenciarambemantesdenós,nosinúmerosdesastresqueassinalaram suahistóriadeextermíniosegenocídios,demassacresedesapropriação,aextensaladainhadasdevastaçõescoloniais.
Apossibilidadedeumarupturageneralizadapaira,portanto, sobreaprópriasuperfíciedomundo.Impulsionada,porumlado, pelaescaladatecnológicaepelaintensificaçãodobrutalismo,por outrooépelalógicadacombustãoesuaproduçãolentaeindefinidadetodosostiposdenuvensdecinzas.Arigor,aerada combustãomundialéumaerapós-histórica.Aperspectivade taleventorelançouantigascorridas,acomeçarpelacorridapor umanovapartiçãodaTerra.Tambémreavivouantigossonhos, acomeçarpelosonhodedividiraraçahumanaemdiferentes espéciesevariedades,cadaumadelasmarcadaporsuasespecificidadesirreconciliáveis.
Talvezsejaissoqueexpliqueorenascimento,emescalaglobal, daspráticasdeseleçãoetriagemquemarcaramahistóriadaescravidãoedacolonização,doismomentosderupturaimpelidos naépocatantopelatempestadedeaçoquantopeloracismo,o combustíveldamodernidade.Comonaquelesmomentos,orenovadoimpulsodeseleçãoseapoianatecnologia.Destavez,porém,
nãosãoapenasmáquinas,masalgoaindamaisgigantesco,sem limites,naconfluênciadocálculo,dascélulasedosneurônios,e queparecedesafiaraprópriaexperiênciadopensamento.
Dequalquerforma,aideiadeumarupturageneralizada,ao mesmotempotelúrica,geológicaequasetecnofenomenal,tambémestápresentenabasedopensamentoafrodiaspóricomoderno.Éespecialmenteevidenteemduascorrentesdepensamento:oafropessimismoeoafrofuturismo.Defato,forado continente,aescritaeacriaçãoestéticanegrastêmsidodominadaspelomotivodabuscapelasorigens,pelosresquíciosepelo retorno.Comoorestodomundoconstantementelembravaaos negrosqueelesnãoestavamemcasa,ouquenãopassavamde exiladosdahistória,firmou-seaconvicçãodequeaTerranão passavadeumaenormeprisão,umgigantescocampodecremaçãoeincineraçãodevidastransformadasemlixo,nopontode encontroentreohumanoeoobjeto.
Defato,noaugedopessimismoracial,aprópriarazãomodernatransformouaÁfricaeonegroemsinaispremonitórios dodevir-crematóriodahumanidade.9 Seonegroseviuarbitrariamenteexcluídodahistóriadahumanidade,foiporqueseu ingressonelaimplicariaautomaticamenteofimdessamesma história.Comoumfóssilantigoematéria-primaaserextraída eincineradaparagerarforçaeenergia,eleporoutroladofazia partedodestinogeológicodaTerrae,nesseaspecto,eraindispensávelàvidadossereshumanos,categoriaàqualdemodo algumdeveriapertencer.Paraseoporaessanarrativa,osnegros, emcontrapartida,engrandeceramaÁfrica,vendo-anãoapenas comoseular,mastambémcomosuacidadela,oúnicolugarem todaasuperfíciedaTerraondepoderiamlegitimamenteaspirar, 9.Verosdoisnúmerosespeciais,“BlackTemporalityinTimesofCrisis”, SouthAtlantic Quarterly,v.121,n.1,2022e“2020:OnePandemic,TwoPandemics,BlackLivesMatter”, SouthAtlanticQuarterly,v.121,n.3,2022.
porfim,aoretornoàhumanidade.Daíaimportância,especialmentenaliteraturaafricanaeafrodiaspórica,dotemadoretorno asimesmoedoretorno,tantofísicoquantosimbólico,àÁfrica.
Outros,noentanto,enxergam-nacomonadamaisqueuma vastareservafadadaaoesgotamento.Emdiversasvariantesdo afrofuturismoedoafropessimismo,elarepresentaosímbolopalpáveldetodososcorposquesãoprivadosdofôlego,dacarnee dosmúsculosexauridos,dosossosquesãoesmagados,emum vastoprogramadecombustãoquasequemolecular,préviaàincineração.Éoqueexplicaodesejodeexpatriaçãotãorecorrente noafrofuturismo,abuscanãoporoutrasgaláxiaseoutrosplanetasparaconquistarehabitar,masodesejoderestituirosvínculos comasforçaselementareseelementoscósmicos,desereconciliarcomasforçasdouniversocomoumtodo,aquelascapazesde abarcaratotalidadedavidaedetranscenderamorte.
Reconectar-seàsforçasdocosmos
Narealidade,aÁfricanuncaesteveforadomundoe,apesardas dimensõesmortíferasdasuahistória,semprefoiumaprovedora domundovivo.Nestafasecríticadofuturodoplaneta,elase vêcompelidaarefazerdodestinodetudooqueviveoobjeto privilegiadodesuabuscaintelectualedesuacriaçãoimaginária. Nãoénecessárioque,comotantosoutros,elaapreendaovivente emtermosdefimdomundooudeperdadocontrolesobreelesem favordatecnologia.Muitomaisteráelaaganharaopensarnele relacionadoapotencialidades,ouseja,daquiloque,pordefinição, é incalculável e inapropriável.Detodomodo,elanãotemescolha, precisamanterofuturoaberto,poisestáemcursoumgrande deslocamentotemporal.Elaprecisamanterofuturoabertoa todos,mesmoquesereveleque,nofimdascontas,ahumanidade estáfadadaadesaparecer,ouqueomundoestáumavezmais
condenadoaumaimplacávelbatalhadetodoscontratodos.Essa fidelidadeaofuturoseriaentãosuacontribuiçãoaofuneralda humanidade,que,pormeiodesuamorte,seriarepatriadaàssuas origenscósmicas,nãoaouniversalouaouniversalismo,masao universo doqualconstituisóumentretantosoutroselementos.
Noentanto,comosemanterfielaofuturocomopromessa seeleestáconstantementeseesvaindoeseafastando?Começandopelaprofusãodavida,pelasvidasconsideradasminúsculas, ameaçadaspelasforçasdavulnerabilização,valorizandoasinúmeraspequenasbifurcaçõesquesurgemportodaparte.10 De modogeral,sãorespostascomumentemuitofrágeisàsmudançasclimáticas,àperdadebiodiversidade,aoagravamentodas desigualdadeseàstensõespolíticasquecontinuamafazerda guerraosacramentodanossaera.Énessaspequenasbifurcações enessesmicromundosqueseencontramaspráticasmaissignificativasdedesvulnerabilização.Nelas,ficaevidentequeofuturo nãoestápredeterminado,queodestinodaÁfricaedaTerraestá emnossasmãosequeofuturodependerádenossacapacidadede interagircomessesmundosconstantementedesfeitoserefeitos, emoutraspalavras,derestauraroslaçosrompidos.
Estelivronãofoiescritodeumavezsó.Comootrabalhodeum tecelão,foicompostoaolongodeváriosanos.Seusprimeiros traçosestãonaconclusãode Sairdagrandenoite,emmeioa trêsmotivoscentrais:oimperativodadeclosãooua“política daelevaçãoemhumanidade”ouaindao“projetodeumavida
10.AlondraNelson, BodyandSoul.TheBlackPantherPartyandtheFightAgainstMedical Discrimination.Minneapolis:UniversityofMinnesotaPress,2013.
humanaplenária”,oatode“gerarcomunidade”comopartede um“anseiovital”eochamadoà“invençãodeumimaginário alternativodavida,dopoderedacidade”.11
Ascondiçõesdepossibilidadedessa“comunidade”convertida em“cidade”foramexaminadasna Críticadarazãonegra.Trata-se,jánaorigem,deuma“cidade”queultrapassaasfronteirasda raça,doEstadoeatémesmodasdiásporas–nasdimensõesdo própriomundo.“Pois,naverdade,existeumsómundo.Eleé umtodocompostopormilpartes.Detodoomundo.Detodos osmundos.”Emsetratandodomundo,contudo,érealmentedo mundovivocomoumtodoqueestamostratando–omundovivo comométodo,mastambémcomopremissa.Pois,“seahumanidadeinteirasedelegaaomundoedelerecebeconfirmaçãodo seupróprioser,assimcomodasuafragilidade,entãoadiferença entreomundodoshumanoseomundodosnãohumanosdeixa deserdeordemexterna.Pois,afinal,énarelaçãoquemantemos comoconjuntodoviventequesemanifesta,emúltimainstância, averdadedaquiloquesomos”.12
Demodoigualmenteprecoce, Sairdagrandenoite também recorreàsnoçõesde semelhante ede em-comum. 13 Aintenção,
11.VerAchilleMbembe, Sairdagrandenoite:ensaiosobreaÁfricadescolonizada.[Ed.angolana:Trad.NarrativaTraçada.PedagôeMulemba:MangualdeeLuanda,2014,capítulos2 e6etambémpp.13-17(Prólogo)e191-194(Epílogo);ed.bras.:Trad.FábioRibeiro.Vozes: Petrópolis,2019,capítulos2e6etambémpp.9-10(Prefácio)e243-247(Epílogo); Sortir delagrandenuit.Essaisurl’Afriquedécolonisée.Paris:LaDécouverte,2010,capítulo2e tambémpp.242-243].Astraduçõesangolana(a)ebrasileira(b)adotam,respectivamente: “abertura”(a)edeclosão(b)para déclosion; “ascensãoemhumanidade”(a)e“escaladade humanidade”(b)para montéeemhumanité; ora“existiremcomunidade”eora“constituir comunidade”(a)eora“fazercomunidade”eora“criaracomunidade”(b)para faire communauté; ora“vontadedeviver”eora“vontadedevida”(a)esempre“vontadede vida”(b)para volontédevie.ApartirdadefiniçãopropostaporJean-LucNancy,declosão“designaolevantamentodeumaclausura,odescerramentodeumavedação”(a)e “designaaaberturadeumcercado,aretiradadeumaclausura”(b)[Déconstructiondu christianisme,v.1:Ladéclosion.Paris:Galilée,2005,p.16].[n.t.]
12.AchilleMbembe, Críticadarazãonegra.Trad.SebastiãoNascimento.SãoPaulo:n-1, 2018,pp.310-311[Critiquedelaraisonnègre.Paris:LaDécouverte,2013,p.258].
13.AchilleMbembe, Sairdagrandenoite,op.cit.,pp.96eseguintes(a),pp.119eseguintes (b)[pp.117eseguintes].
naépoca,eravirarascostasaosdebatessobreidentidade,diferençaealteridade,quenãoapenasafetarampartesignificativa dafilosofiafrancesaapósaSegundaGuerraMundial,comotambémdeixarammarcasindeléveisaolongodetodaaextensãodo pensamentopós-colonialoudescolonial,solapandoassimsua capacidadedepensaroTodo.Eranecessário,pois,privilegiar outrasperspectivas.Eranecessáriorecordartodasasperdas,todasasdívidasetodasasderrotas.Eranecessárioresgatar,sem concessões,aobrigaçãodereparação,restituiçãoejustiça.14
Aconvicçãoeraque“opensamentoacercadoquehádeviré necessariamenteumpensamentodavida,dareservadevida,do queterádeescaparaosacrifício”.15 Acontrapelodasfilosofiasda identidade,dadiferençaedaalteridade,aintençãoeraenfatizar queoser-em-comumemanafundamentalmentedocompartilhamento.Sendoassim, oquehádevir estarácalcadonãoapenas numaéticadoencontroe,emespecial,dopassante,mastambém nocompartilhamentodassingularidadesenofatodeaprendermosaviver,daquiemdiante,expostosunsaosoutros.Oquehá devirseráconstruídocombaseemumaclaradistinçãoentreo “universal”eo“em-comum”,sendoque“ouniversalimplicauma relaçãodeinclusãoemqualquercoisaouqualquerentidadepreviamenteconstituídas”eoem-comumpressupõe“umarelação decofiliaçãoentremúltiplassingularidades”.16
Naconclusãoda Críticadarazãonegra foramlançadasasbases dareflexãosobreocom,acomunidadeenquantotal.Aquestão dacomunidadeuniversal,comofoidito,“seapresenta,pois,por definição,emtermosdehabitaçãodoaberto,docuidadoprestado 14.VerespecialmenteoúltimocapítuloeaconclusãodeAchilleMbembe, Brutalismo, op.cit.
15.AchilleMbembe, Críticadarazãonegra,op.cit.,pp.310-311[pp.257-258].
16.AchilleMbembe, Sairdagrandenoite,op.cit.,pp.97-8(a),pp.120-122(b)[p.119].
aoaberto–oqueéinteiramentedistintodeumaatitudeque busque,emprimeiralinha,enclausurar,manter-seencerrado naquiloquenosé,porassimdizer,aparentado”.17
Masseatéentãoessaeraprimordialmenteumaquestãode “mundo”ede“relaçãoglobal”,foiem Políticasdainimizade que surgiupropriamenteotemada“Terra”nãoapenascomo“algo quenosécomum,nossacondiçãocomum”,mastambémcomo uma“era”,a“eradaTerra”.18 Ésignificativoqueosurgimento dessaeraestejaassociadoaoduplomotivodalinguagemeda escrita:“NaeradaTerra,precisaremosrealmentedeumalinguagemqueincessantementepenetre,perfureeescavecomouma broca,capazdesefazerprojétil,umaespéciedesólidoabsoluto, devontadequeincessantementeperscrutaoreal.Suafunção nãoseráapenasexplodirbarreiras,mastambémsalvaravida diantedodesastrequeestáàespreita.Cadafragmentodessalinguagemterrestreestaráenraizadonosparadoxosdocorpo,da carne,dapeleedosnervos.Paraescaparàameaçadefixação, deconfinamento,deestrangulamentoededissociaçãoemutilação,alinguagemeaescritaterãoqueseprojetarconstantemente paraoinfinitoexteriorelutarparaafrouxarocercoqueameaça sufocarapessoasubjugadaeseucorpodemúsculos,pulmões, coração,pescoço,fígadoebaço,ocorpoaviltado,formadopor múltiplasincisões,corpodivisível,dividido,emlutacontrasi mesmo,formadoporvárioscorposquesechocamdentrodeum mesmocorpo–deumlado,ocorpodoódio,umfardoabominável,umfalsocorpodeabjeçãosobrecarregadodeindignidade,e, deoutro,ocorpooriginal,masarrebatadoporoutrem,depois desfiguradoeabominado,equeéprecisoliteralmenteressuscitar, numatodeverdadeiragênese.”19
17.AchilleMbembe, Críticadarazãonegra,op.cit.,p.315[p.262].
18.AchilleMbembe, Políticasdainimizade,op.cit.,p.211[p.178].
19.Ibid.,pp.211-212[pp.178-179].
Acomunidadeterrestre retoma,quasequetijoloportijolo,uma sériedeintuiçõesfundamentaiseoutrosdelineamentosque,nas obrasanteriores,sófiguravamsobaformadeesboço.Reitera-os, desenvolve-os,amplia-ose,acimadetudo,coloca-osemressonânciacomnovosfragmentos,novoscomentários,observações eanotaçõesmetodicamenteacumuladasaolongodeinúmeros encontros,reuniõesdeescutaedediálogo,dereleiturasedemeditações.Asmaisimportantesdelasocorreramcomopartedos AteliersdelapenséeemDakaredoseminárioanualquepromovo naEuropeanGraduateSchool.
Comotodososmeuslivrosanteriores,esteretoma,porvezes literalmente,intuiçõesefragmentosdepensamentosiniciados deformapontual,emtextosdestinadosaumpúblicoamplo. Essesfragmentossãoampliados,oumesmo“incrementados”,no quadrodeargumentosgeralmentetransversais,sustentadospor umdensoaparatocríticoeumaprofusãoformidáveldenotase referências.Sãoessas,aomenoséoqueseespera,ascondições depossibilidadedeumpensamentogenuinamenteaberto,em constanteelaboração,sempreemviasderefletirsobresimesmo.