DIÁRIO DE SANTA MARIA SÁBADO E DOMINGO, 29 E 30 DE MARÇO DE 2008
DIÁRIO DE SANTA MARIA SÁBADO E DOMINGO, 29 E 30 DE MARÇO DE 2008
| 12 e 13 |
ESPECIAL Há um mês, crianças e adolescentes estão em casa porque não há ônibus para levá-los às escolas MARILICE DARONCO
O despertador tocando cedinho, o ônibus escolar parando na frente de casa, os temas para fazer ao chegar da aula, as dúvidas sobre o conteúdo... O que para muitos dos 29 mil alunos das escolas estaduais de Santa Maria é uma rotina, para cerca de 612 que moram na zona rural ou têm necessidades especiais é só lembrança. As férias forçadas, causadas pela falta de um acordo entre Estado e prefeitura que garanta o transporte escolar, estão deixando frustrados alunos como Rosiane Sttelo Ilha, 15 anos. Com a mochila pronta para recomeçar o ano, ela e outras adolescentes e crianças não têm a menor idéia de quando vão ter um reencontro com a educação que lhes foi negada. Na sexta-feira, um avanço nas negociações trouxe um pouco de alento, mas como nada está resolvido ainda, permanece a agonia da espera. Nesta e nas próximas duas páginas, o Diário conta a história de pais, professores e alunos do Colégio Coronel Pilar e da Escola Estadual Almiro Beltrame, um dos colégios da zona rural que está em situação mais difícil. Além de ter as maiores distâncias em relação às casas dos alunos, a escola perdeu 41 estudantes neste ano. Eles pediram transferência no começo deste ano, já prevendo que o problema que ocorreu em 2007 se repetiria (veja quadro). As histórias de Rosiane, Maurício, Taís, Sabrina, Diego, Vinícius, Geandra e suas famílias são exemplos do que o impasse entre dois poderes públicos pode fazer. Desde o dia 3, quando o ano letivo recomeçou, pais estão deixando o trabalho de lado para poder ficar de olho nos filhos. Para passar o tempo e tentar segurar a angústia e o medo de perder o ano, eles brincam, ajudam em casa, revisam os conteúdos do ano anterior. Só não conseguem fazer uma coisa: ter a educação que a Constituição diz que é um direito de todos. E não são só os pais que se desdobram. Os alunos também. Para não esquecer o que aprendeu na quinta série, Rosiane passa a maior parte do dia revirando os cadernos do ano passado. É ali que encontra inspiração para continuar confiante de que mais cedo ou mais tarde vai voltar para a sala de aula. – Muita gente da minha escola já mudou de colégio. Não vou fazer isso. Um dia vai chegar o transporte até aqui. Tomara que seja logo – crê a adolescente. Rosiane também ajuda a avó,Zelindra Martins Ilha, 72 anos, com quem mora. Apesar de o pensamento dela estar a 10 quilômetros da propriedade rural, dentro da sala de aula, é na horta que a garota passa boa parte do tempo. Ela ajuda a limpar os canteiros e a colher alimentos. – Assim que recebi o dinheiro do Bolsa-Família, corri para comprar o material escolar dela. Eu, que não tenho estudo, sei o quanto essa distân-
TRANSPORTE Impasse do poder público deixa 612 alunos sem estudo e frustra expectativas FOTOS CHARLES GUERRA – 26/03/08
O PROBLEMA
O QUE FIZERAM
COM A EDUCAÇÃO
DELES?
■ Em 2007, as escolas estaduais de Santa Maria ficaram sem transporte porque Estado e prefeitura não se acertavaram quanto ao valor que cada um deveria pagar pelo serviço ■ Em outubro de 2007, o Juizado Regional da Infância e Juventude de Santa Maria determinou que, em 2008, o Estado seria responsável pelo transporte
■ 2008 começou, o Estado não garantiu o serviço e ofereceu R$ 1,91 por aluno, ao dia. A prefeitura considerou que o valor era insuficiente ■ Em 6 de março, o Tribunal de Justiça (TJ) suspendeu a determinação do juizado. Quatro dias depois, a prefeitura fez nova proposta: pagar 50% do valor do serviço se o Estado assumisse a outra metade. O Estado não aceitou ■ Na última sexta-feira, houve uma reunião do prefeito Valdeci Oliveira com a secretária de Educação do Estado Mariza Abreu. Ficou definido que o Estado se responsabilizaria por pagar 50% do valor do transporte (R$ 1,91 por aluno) e a prefeitura, os outros 50%.Na segunda-feira, haverá uma reunião para oficializar a proposta. Deve ser aberto um leilão para escolher as empresas que farão o transporte, ainda sem data para voltar
Quem ficou sem condução
TRISTEZA ESTAMPADA Rosiane Ilha, 15 anos, passou para o sexto ano na Escola Almiro Beltrame, em Boca do Monte. A fecilidade pela conquista dá lugar à angústia. Ela não tem condução para ir à aula e não sabe quando terá
cia da sala de aula está prejudicando O problema é que não se sabe se a minha filha – afirma Zilma Sttelo haverá empresas candidatas a fazer Martins, 37 anos, mãe de Rosiane. o serviço por R$ 3,82, já que o preço dos roteiros para transportar os Fio de esperança – Na sexta-feira, estudantes dos distritos varia entre o prefeito de Santa Maria, Valdeci R$ 3,50 e R$ 6,02. Conforme o viceOliveira, esteve em Porto Alegre para presidente da Cooperativa de Transuma audiência com a secretária es- portes Alternativos de Santa Maria tadual de Educação, Mariza Abreu. (Cootransporte), Alex Colpo, para deFicou definido que o Estado se res- terminados roteiros, especialmente ponsabilizará por bancar os custos em Boca do Monte, será difícil achar determinados pelo Programa Esta- uma empresa que concorde em fazer dual de Transporte Escolar (Peate/ o transporte por esse valor. De acordo com o secretário muniRS): R$ 1,91 por aluno por dia para a cidade. A prefeitura deve dar uma cipal de Comunicação Social, Tiago contrapartida do mesmo valor. O Machado, na próxima semana deve total será de R$ 3,82 ppor aluno. Na ser aberto um leilão para que as emsegunda, representantes do Estado e presas se inscrevam. As que se adedo município vão à Vara da Infância e quarem ao valor, serão contratadas. Juventude oficializar a proposta. (Colaborou Fernanda Mallmann)
O TEMPO PASSA DEVAGAR Enquanto aguarda, Rosiane revisa os conteúdos que aprendeu em 2007 e ajuda a avó, com quem mora, na horta da família
Só eles sabem a falta que faz
Na zona rural ■ Escola Boca do Monte, em Boca do Monte – 72 alunos ■ Escola Almiro Beltrame, em Boca do Monte – 84 alunos ■ Escola Princesa Isabel, em Arroio do Só – 96 alunos ■ Escola Arroio Grande, em Arroio Grande – 174 alunos Classes especiais (na zona urbana de Santa Maria) ■ Escola de Educação Especial Doutor Reinaldo Fernando Coser – Aproximadamente 50 alunos ■ Escola Cícero Barreto – 3 alunos ■ Escola Coronel Pilar – Aproximadamente 100 alunos ■ Instituto de Educação Olavo Bilac – 26 alunos ■ Instituto de Estadual Padre Caetano – 7 alunos
TUDO PRONTO Vinícius (a partir da esq.), Taís, Maurício e Diego estão com as mochilas feitas. Só esperando a hora de voltar
Quem tem um filho em casa, quando ele deveria estar na escola, sabe da preocupação que toma conta da dona-de-casa Zenaide da Silva Teixeira, 38 anos, desde o dia 3 de março. Ela não tem apenas um, mas cinco filhos sem estudar porque não há transporte para levá-los à Escola Almiro Beltrame, que fica a 10 quilômetros da casa onde mora a família, em Boca do Monte. – Eu nunca botei os pés numa sala de aula. Sou analfabeta. O meu marido também estudou pouco. Sempre quisemos que com os nossos filhos fosse diferente. Vê-los faltar às aulas é uma dor que não tem explicação – afirma Zenaide. As três crianças e as duas adolescentes estudam em diferentes turnos e séries. O pai, o agricultor Ciomar Martins da Silva, 40, bem que pensou em levá-las à escola em um trator, emprestado pelo patrão. O problema é que, para fazer isso, Silva teria de deixar o trabalho na lavoura que serve para o sustento da família, afinal, seriam quatro viagens diárias. Os filhos de Zenaide e Ciomar, Sabrina, 15 anos, que está no 7º ano, Taís, 14, do 5º ano, Maurício, 11, do 3º ano, Vinícius, 8, e Diego, 6, ambos no 1º ano, sabem que os colegas já voltaram das férias. A tristeza é geral porque eles não têm nada a fazer a não ser esperar pela mesma sorte. Enquanto não volta para a sala de aula, Taís ajuda a mãe nas tarefas de casa. A adolescente, que tinha até feito uma decoração especial no caderno para esperar março chegar, está com saudade das lições de português, sua disciplina preferida. Ela acha que aprender a gramática é bem melhor do que suar no tanque de casa para lavar toda a roupa da família ou cuidar dos cinco irmãos
MAIS
Conquista No Brasil, o direito à educação foi reconhecido na Constituição Federal de 1988. Antes disso, o Estado não tinha a obrigação formal de garantir ensino de qualidade a todos os brasileiros. A educação pública era tratada como assistência, um amparo dado àqueles que não podiam pagar
ENQUANTO ISSO... Taís diz que preferia estar estudando português do que cuidar dos irmãos e fazer os serviços domésticos
encontram outras formas de passar o tempo: levam a cadela Pantera, a xodó dos pequenos, para passear, brincam de carrinho, jogam bola no pátio de casa e assistem à TV. Mas não era isso o que os cinco queriam estar fazendo em pleno março, completa a mãe deles: – Eles estão com as mochilas pronPassatempo – Enquanto Taís toma tas, perguntam a toda hora quando a conta da casa, os irmãos menores aula vai começar. SEGUE menores – dois deles ainda nem têm idade para ir à escola. A garota que sonha em seguir adiante nos estudos, apesar de ainda não ter escolhido uma profissão, teme que os constantes problemas do transporte escolar se transformem num obstáculo no futuro.