Vitrine

Page 1

vitrine A vitrine, palco em que o desejo informe encontra o corpo de sua realização, é também um lugar fantasmático, pois coloca frente a frente o vivente e a sua exaustão; homens e mulheres mineralizados e gente de carne e osso; uma natureza no mais alto grau de sex appeal e sua própria destruição, na qualidade de suporte material da produção mercantil autoexpansiva, do capital em processo autônomo e sobre-humano de valorização. A resultante desse processo recorrente – a transformação do valor em mais valor – é a devastação da natureza e a objetificação do humano. Por isso, o melancólico entra em sintonia como uma imagem de futuro, em que sua desolação espiritual irremediável é o próprio modo de ser do existente.

No spleen o tempo está reificado; os minutos cobrem o homem como flocos de neve. Esse tempo é sem história, do mesmo modo que o da mémoire involuntaire. No spleen, no entanto, a percepção do tempo está sobrenaturalmente aguçada; cada segundo encontra o consciente pronto para amortecer o seu choque. A contagem do tempo, que sobrepõe à durée a sua uniformidade, não pode contudo evitar que nela persistam a existência de fragmentos desiguais e privilegiados. Legitimar a união de uma qualidade à medição da quantidade foi obra dos calendários que, por meio dos feriados, como que deixavam ao rememorar um espaço vago. O habitante da cidade grande se depara com este sentimento nos domingos; Baudelaire o tem avant la lettre em um dos poemas spleen. “Os sinos dobram, de repente, furibundos E lançam contra o céu um uivo horripilante, Como espíritos sem pátria e vagabundos Que se põem a gemer com voz recalcitrante.” Os sinos, que outrora anunciavam os dias festivos, foram excluídos dos calendários, como os homens. Ele se assemelham às pobre almas que se agitam muito, mas não possuem nenhuma história.

Se, no spleen e na vida anterior, Baudelaire ainda dispõe de estilhaços da verdadeira experiência histórica, Bergson, por sua vez, em sua concepção da durée, se afastou conscientemente da história. “O metafísico Bergson suprime a morte. O fato de a morte ser eliminada da durée de Bergson isola a durée da ordem histórica (bem como de uma pré-histórica). O conceito bergsoniano de action tem a mesma sorte. O “bom senso”, através do qual o “homem de ação” se distingue serviu-lhe de padrinho. A durée, da qual a morte foi eliminada, tem a mísera eternidade de um arabesco; exclui a possibilidade de acolher a tradição. É a síntese de uma vivência que se pavoneia nas vestes que toma emprestada a experiência. O spleen, ao contrário, expõe a vivência em sua nudez. O melancólico vê assombrado a terra de volta a um simples estado natural. Não a envolve nenhum sopro de pré-história. Nenhuma aura. É assim que aparece nos versos de O Gosto do Nada que se acrescentam aos outros já citados. “Contemplo do alto a terra esférica e sem cor, E nem procurou mais o abrigo de uma gruta.” (Benjamin, Walter. Sobre alguns temas em Boudaleire. Obras Escolhidas pp. 136/137)


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.