Cinema da Cidade 2

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Cinema da Cidade (Ato II) ExercĂ­cios Benjaminianos


SUMÁRIO O projeto I: a divergência ................................................................... 9 DEO IN HONOREN SANCTI ALOISII .................................................... 11 Da resenha ........................................................................................ 20 Do filme............................................................................................. 22 Da citação ......................................................................................... 26 O livro como projeto gráfico ............................................................. 31 O antijornal ....................................................................................... 38 Mallarmé: o livro espetáculo, conservação e superação do jornal .. 47 Para ver jornal I ................................................................................. 50 [FASHION] ......................................................................................... 53 Para ver jornal II ................................................................................ 62 Para ver jornal III ............................................................................... 65 O homem da multidão ...................................................................... 70 O ocaso da cultura ............................................................................ 74 Nietzsche lendo jornal ...................................................................... 80 Uma chamada em um caderno literário: a banalidade do mal ........ 86 Muro de contenção .......................................................................... 95 Ecologia na TV ................................................................................... 99 Tropa de Elite (Elogio de Benjamin) ............................................... 102 Aforismos I ...................................................................................... 120 A perda da aura na obra de arte..................................................... 123 O Big Brother como paródia de um ensaio filosófico ..................... 135 A fisiognomia como categoria ........................................................ 151 Notas sobre o romantismo ............................................................. 164 Notas sobre questão do herói ........................................................ 173 A hipertrofia da visão...................................................................... 179 Foucault e a questão do sujeito...................................................... 183 O androide ...................................................................................... 191 Notes on a scandal (Richard Eyre, 2006) ........................................ 199 2


Metalinguístico I ............................................................................. 204 O clube da luta (David Fincher, 1999) ............................................ 206 A violência das águas ...................................................................... 211 Ladrões de Bicicleta (Vittorio de Sica, 1948) .................................. 218 O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007) ........................................... 222 Do narcisismo: advertências ........................................................... 233 O proto Eichmann ........................................................................... 235 A vida como esquematismo ........................................................... 240 O mundo como ficção ..................................................................... 244 A destruição do Eu .......................................................................... 248 O distinto e o diferencial ................................................................ 253 A natureza eternamente animada.................................................. 257 A vitrine e o espelho ....................................................................... 259 A terceira lei de Newton ................................................................. 267 O manipulador ................................................................................ 272 Notas sobre a massa ....................................................................... 279 O primeiro saldo mortal da alienação ............................................ 297 O duplo mortal da alienação .......................................................... 308 Massa e indústria cultural .............................................................. 318 A massa e questões da filosofia política ......................................... 330 Do espetáculo ................................................................................. 338 Da informação ................................................................................ 352 Metalinguístico II ............................................................................ 367 Metalinguístico III ........................................................................... 373 Metalingüístico IV ........................................................................... 376 Das Passagen-Werk ........................................................................ 379 Drops:.............................................................................................. 427 Digital cuts ...................................................................................... 442 Mais um recorte da Ana Junho 23, 2008 ........................................ 442 Fado ................................................................................................ 444 (devaneios em torno de uma crônica não lida) .............................. 444 3


Lendo com tesoura na mão Junho 20, 2008 .................................. 447 A musicalidade da palavra (Junho 19, 2008) .................................. 449 Para Ana: sinapse # 1 (Julho 3, 2008 ) ............................................ 449 Ana: digital cut # 3 (Julho 6, 2008 ) ................................................ 450 Mônica (sketch #1) A janela e a câmara escura ............................. 454 Ruim, mas bom de morar. Esse é o sentimento no Mercúrio ........ 455 A janela e a câmara escura ............................................................. 457 Mônica sketch # 4 (Julho 7, 2008) .................................................. 459 Mônica digital cut #1 Julho 18, 2008 .............................................. 460 Môncia: Cut on a book # 1 .............................................................. 462 GPS .................................................................................................. 468

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ICONOGRAFIA Figura 1- Cidadão Kane (Orson Wells, 1941) ...................................... 9 Figura 2 - Uma mente brilhante (Ron Howard, 2001) ...................... 17 Figura 3 - O circo (Charles Chaplin, 1928) ........................................ 19 Figura 4 - Um Homem com uma Câmera (Dziga Vertov, 1929) ....... 23 Figura 5 - Foto de Jules Chéret mostrando seu cartaz a ToulouseLautrec .............................................................................................. 23 Figura 6 - Pro Patria poster, United States, World War I (Welsh, 1917) ................................................................................................. 25 Figura 7 - “Moulin Rouge - La Goulue” ( Poster por Toulouse-Lautrec, 1891) ................................................................................................. 36 Figura 8 - An artistic depiction of human billboards in 19th century London, by George Scharf ................................................................ 37 Figura 9 - Homem Sanduíche ............................................................ 37 Figura 10 - A doce vida (Fellini, 1960)............................................... 39 Figura 11 - Metropolis (Fritz Lang, 1927) ......................................... 41 Figura 12 - A fantástica fábrica de chocolate (Tim Burton, 2005) Colagem ............................................................................................ 51 Figura 13 - O Falcão Maltês (John Huston, 1941) ............................. 52 Figura 14 - Dick Tracy (William A. Berke, 1945)................................ 62 Figura 15 - O garoto (Chaplin, 1921) ................................................ 66 Figura 16 - James Ensor .................................................................... 71 Figura 17 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) ................................................................................................. 72 Figura 18 - Outubro (Sergei Eisenstein, 1928) .................................. 72 Figura 19 - A caminho dos campos da morte ................................... 73 Figura 20 - O corpo humano ............................................................. 73 Figura 21 - O corpo humano ............................................................. 74 Figura 22 - Maldição (Fritz Lang, 1950) Colagem ............................. 74 Figura 23 - Maldição (Fritz Lang, 1950) Colagem ............................ 77 5


Figura 24 - Persona (Ingamar Bergman, 1966) ................................. 82 Figura 25 - Em nome do pai (Jim Sheridan, 1993) ............................ 83 Figura 26 - Psicose (Alfred Hitchcock, 1960) .................................... 87 Figura 27 - Psicose (Alfred Hitchcock, 1960) .................................... 88 Figura 28 - Psicose (Alfred Hitchcock, 1960) .................................... 90 Figura 29 - Kill Bill – Volume 1 (Quentin Tarantino, 2003) ............... 93 Figura 30 - Tropa de Elite (José Padilnha, 2007)............................. 102 Figura 31 - Tropa de Elite (José Padilnha, 2007)............................. 107 Figura 32 - Tropa de Elite (José Padilnha, 2007)............................. 108 Figura 33 - Tropa de Elite (José Padilnha, 2007)............................. 110 Figura 34 - Salvador Dali ................................................................. 113 Figura 35 - E o vento levou (Victor Fleming, 1939) ........................ 136 Figura 36 - E o vento levou (Victor Fleming, 1939) ........................ 137 Figura 37 - Carne Trêmula (Pedro Almodóvar, 1997) ..................... 141 Figura 38 - Carne Trêmula (Pedro Almodóvar, 1997) ..................... 142 Figura 39 - Carne Trêmula (Pedro Almodóvar, 1997) ..................... 145 Figura 40 - Carne Trêmula (Pedro Almodóvar, 1997) ..................... 147 Figura 41 - A fantástica fábrica de chocolate (Tim Burton, 2005) .. 152 Figura 42 - Tempos Modernos(Charles Chaplin, 1936) .................. 153 Figura 43 - A comilança (Marco Ferreri, 1973) ............................... 157 Figura 44 - A comilança (Marco Ferreri, 1973) ............................... 158 Figura 45 - Quando fala o coração - Spellbound (Alfred Hitchcock, 1945) ............................................................................................... 181 Figura 46 - Quando fala o coração – Spellbound (Alfred Hitchcock, 1945) ............................................................................................... 182 Figura 47 - A dama de Xangai (Orson Wells, 1948) ........................ 183 Figura 48 - O mágico de Oz (Victor Fleming, 1939 ......................... 192 Figura 49 - O mágico de Oz (Victor Fleming, 1939) ........................ 194 Figura 50 - Notas sobre um escândalo (Richard Eyre, 2006).......... 200 Figura 51 - O clube da luta (David Fincher, 1999) .......................... 207 Figura 52 - O clube da luta (David Fincher, 1999) .......................... 208 6


Figura 53 - O clube da luta (David Fincher, 1999) .......................... 209 Figura 54 - Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica, 1948) ................ 211 Figura 55 - Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica, 1948) ................ 212 Figura 56 - Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971).................... 216 Figura 57 - Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica, 1948) ................ 219 Figura 58 - O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007) ......................... 223 Figura 59 - O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007) ......................... 224 Figura 60 - O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007) ......................... 227 Figura 61 - O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007) ......................... 229 Figura 62 - A greve (Sergei Eisenstein, 1924) ................................. 240 Figura 63 - Narciso de Michelangelo Caravaggio ........................... 243 Figura 64 - Adolf Eichmann ............................................................. 247 Figura 65 - Eco e Narciso (John William Waterhouse, 1903) ......... 248 Figura 66 - Entrevista com o vampiro (Neil Jordan, 1994) ............. 253 Figura 67 - Entrevista com o vampiro (Neil Jordan, 1994) ............. 257 Figura 68 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) ............................................................................................... 258 Figura 69 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) ............................................................................................... 263 Figura 70 - Amsterdam Distrito da Luz Vermelha .......................... 263 Figura 71 - Twister (Jan de Bont, 1996) .......................................... 268 Figura 72 - Noites de Cabíria (Federico Fellini, 1957)http://www.youtube.com/watch?v=U4h1FmQbrOQ .......... 273 Figura 73 - Noites de Cabíria (Federico Fellini, 1957) ..................... 276 Figura 74 - Imagem de Joseph Stalin .............................................. 278 Figura 75 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936) ................. 281 Figura 76 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936) ................. 286 Figura 77 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936) ................. 288 Figura 78 - Tempos modernos (Charles Chaplin, 1936) ................. 289 Figura 79 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936) ................. 292 Figura 80 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936) ................. 294 7


Figura 81 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936) ................. 296 Figura 82 - Pacto Sinistro (Alfred Hitchcock, 1951) ........................ 299 Figura 83 - Pacto Sinistro (Alfred Hitchcock, 1951) ........................ 303 Figura 84 - Pacto Sinistro (Alfred Hitchcock, 1951) ........................ 304 Figura 85 - Pacto Sinistro (Alfred Hitchcock, 1951) ........................ 306 Figura 86 - A fantástica fábrica de chocolate (Tim Burton, 2005) .. 308 Figura 87 - Willy Wonka e a fábrica de chocolate (Mel Stuart, 1971) ........................................................................................................ 310 Figura 88 - Mais estranho que a ficção (Marc Forster, 2006) ........ 342 Figura 89 - Mais estranho que a ficção (Marc Forster, 2006) ........ 345 Figura 90 - Olympia (Leni Riefenstahl, 1938).................................. 347 Figura 91 - Olympia (Leni Riefenstahl, 1938).................................. 348 Figura 92 - Um Homem com uma Câmera (Dziga Vertov, 1929) ... 354 Figura 93 - Rain Man (Barry Levinson, 1988).................................. 355 Figura 94 - Uma janela indiscreta (Alfred Hitchcock, 1954) ........... 357 Figura 95 - Borat (Larry Charles, 2006) ........................................... 359

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O projeto I: a divergência

Figura 1- Cidadão Kane (Orson Wells, 1941)

Cinema da cidade vem sendo concebido para ser, ao mesmo tempo, um web-book e um e-book, ou seja, um livro organizado e estruturado para publicação interativa e virtual. Requer, portanto, em função dessa natureza, soluções estilísticas e formais próprias, além de exigir e impor o quesito da concisão, mesmo quando se vai tratar de temas complexos e, talvez, especialmente quando se

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cuida deles. Sob tais aspectos o livro também é uma meta. De que trata o livro? Fundamentalmente dos elementos míticos e arcaicos que sobrevivem na e através da contemporaneidade, da qual se pretende fazer uma crítica sistemática, extensa e abrangente, com fundamento exatamente naqueles achados arqueológicos, cujos sítios, estranhamente, dispensam escavação, uma vez que estão na mais imediata superfície: ao abrigo do tempo, mas igualmente na mais intensa e radiante exposição, como se destinados à perpetuidade. Sob este aspecto, talvez, o fantástico não remeta ao futuro e ao longínquo, mas ao precisamente agora, como um encontro entre o passado e o presente, um choque em que aquilo que já foi é atualizado em toda sua exuberância, e investido da mais completa potência do sintoma, como índice da doença: o bizarro na condição do comezinho; o excêntrico na forma do que nos é familiar; reunião do sincrônico e do diacrônico, vertentes e encruzilhadas em que somos obrigados a nos reconhecer como 10


divergência e refração; um certo senso de impertinência, que nos coloca a não mais do que um segundo deste preciso momento - experiência antecipada, ainda que provisória da morte. *** DEO IN HONOREN SANCTI ALOISII

A Avenida Paulista, na extremidade em que se articula com a Rua da Consolação, oferece uma 11


plêiade de imagens de um outro mundo, que, na medida em que estão neste mundo, vivem nele segundo as regras de uma nova sintaxe. Uma estátua, à moda dos revolucionários das sublevações burguesas, brande sua espada para o imenso corredor asfáltico, que lhe restitui o grito com a polifonia mecânica dos carros, e das pessoas que passam indiferentes àquele urro petrificado. As pombas o pintaram em excrementos de coloração verde esbranquiçada e, submetido a esta degradação suprema, o herói, ainda infinitas vezes, demonstra sua coragem original resta completamente inamovível em sua determinação, espada desembainhada como um falo, de quem, no entanto, ninguém quer verdadeiramente saber. Não será precisamente esse o destino final de todos os heróis modernos? 12


Como o homem haveria de se impor às estruturas colossais que cria continuamente, peça por peça, e que se nutrem, exatamente, do consumo daquele mesmo homem que as traz ao mundo? Um pouco a mais adiante avista-se uma igreja que, não sendo pequena, miniaturiza-se em sua relação para com os prédios, que a mantêm assiégée. A diferença entre as massas é de tal ordem descomunal, que põe a pensar sobre a proporção mesma de Deus. A arquitetura confirma o razoável desse problema. Da lateral da igreja - a que se pode ver pela Bela Cintra -, se a perseguimos em sua elevação, nasce um prédio, que a perspectiva faz crer, eleva-se ao infinito. Tem-se efetivamente a sensação de que ele se eleva do interior da igreja, como uma súplica. Será que os prédios são também súplicas? 13


Ou serão lápides? Quantas lápides, de quantos milhares de mortos? E se, de fato, enquanto habitam aquelas estruturas massivas, as pessoas estiverem mortas? Não seria sua revoada às seis da tarde um cortejo de vampiros, que procuram recompor as energias antes de se esfacelarem no sono? Esta sede de vida não é, exatamente, uma tentativa de recuperar o tempo em que se vive como morto-vivo? Qual é natureza do entretenimento? Não estará ele sempre acompanhado dessa lembrança da morte tão próxima? Um decreto municipal obrigou a cidade a rever sua programação visual, de tal modo que as placas foram retiradas do convívio da cidade, e escancaradamente da Avenida Paulista, que, de repente, parecia um discurso oco, puramente onomatopaico. A igreja, contudo, mantinha seu dístico: DEO IN 14


HONOREN SANCTI ALOISII. Talvez, naquele mundo de colossos, somente a igreja precise manter seu dístico: nela reside um Deus que a massa dos homens não mais cultua. Nos prédios, de outro lado, há um único Deus ao qual todos se rendem e aos quais dedicam a mais resoluta idolatria. No prédio sem dístico, na edificação sem placa, reside um Senhor ubíquo, que se compraz em saber que os Deuses da antiguidade, se quiserem ser reconhecidos, precisam ser enunciados. A lei que regulamentou o uso das placas na não suprimiu a escrita rupestre dos grafiteiros. Sobre a lateral da igreja, na mesma Bela Cintra, se inscrevem hieróglifos modernos e urbanos. É um prêmio pequeno para esses doces bárbaros: o Deus que rege o mundo habita materialmente tantos lugares, e edifica em materiais tão improváveis, que os grafiteiros sequer têm uma chance de registrar seu protesto. *** Existe, ainda, uma preocupação em dialogar com o pensamento naturalizado, que nos enterra 15


em sua familiaridade e proximidade. Para tanto se faz a crítica de sua estrutura, cujo inteiro teor é preparado para se resolver na conclusão, no final apoteótico, que se impõe como se, por um esforço hercúleo e monumental, a vida pudesse ser suspensa, para que o cortejo da verdade revelada se apresentasse ao mundo. O texto não deve padecer desta monomania formal que é sua edificação para uma determinada conclusão. Notese, ainda, que o cortejo da verdade, segundo ele emerge da naturalização do pensamento, que se ossifica através de uma estrutura formal rígida, está muito mais próximo da parada militar, do que do desfile circense: falta-lhe, então, o componente lúdico, sem o qual toda a verdade, em que pese seu possível conteúdo de verdade, remanesce como hostilidade, um luta por impor e sobrepujar, por dominar; uma representação recalcada da guerra.

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Figura 2 - Uma mente brilhante (Ron Howard, 2001) http://br.youtube.com/watch?v=nGyujLrRvos

O caráter sistemático desta obra, portanto, quando se refere à organização e à estrutura, é apenas uma aproximação da imagem do caos, que em sua ausência de ordem é uma afirmação resoluta da totalidade, ainda que referida ao momento no qual ela não estava fixada e neutralizada por representações, que se querem fazer crer auto-representação, ou seja, o real por si mesmo. Como imagem o livro é uma horizontalidade, uma tela impressionista; um 17


registro cartográfico da existência, a representação simbólica da cidade, onde todas as ruas e avenidas, todos os becos e vielas, tem lugar e cidadania, coordenadas próprias. Qual é a arquitetura do trabalho? Seu primeiro elemento é o fragmento, ou seja, um texto que pode ir do aforismo ao artigo e à resenha, mantendo-se independente do todo, para fins de sua compreensão. É, portanto, uma existência em si. Apesar disso, na medida em que transita pela obra, o leitor formará, com certeza, relações necessárias entre os vários fragmentos; mas o fará segundo sua própria faculdade de refletir e relacionar, e não por consequência de um encadeamento oferecido pronto. Acima dos fragmentos existem os livros. Eles são oito, organizados cada qual segundo um determinado núcleo temático, conforme segue:

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Figura 3 - O circo (Charles Chaplin, 1928)

Livro I: A contemporaneidade do fascismo Livro II: Reflexões sobre a indústria cultural Livro III: Reflexões metodológicas Livro IV Temas socioeconômicos da contemporaneidade

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Livro VII O corpo como prótese Esta verticalidade temática, contudo, está posta apenas e tão somente para ser destruída. Parte desta tendência de interconexão e horizontalização dos livros já está, a rigor, visível: o recurso à imagem, a crítica de cinema, a reflexão sobre o jornal e os temas gerais do cotidiano cumprem esta função, além de se oferecerem como índices gráficos dos conceitos, enquanto tem curso o trabalho contínuo de erosão da verticalidade. O trabalho de destruição dos vértices temáticos confere ao conjunto da obra, contudo, uma natureza dinâmica, da qual o leitor está desde sempre convidado a participar. Ao fim e ao termo, então, quando o fim de impuser, restarão apenas ruínas das quais, de todo o modo, se pode partir para uma aventura nova. Da resenha À resenha1, quando não compreendida em sua acepção diretamente jornalística, ou seja, degradada, muitas vezes ocorre ser pensada como aquilo que antecede ao texto, não lhe subsistindo 20


(draft, sketch) – a palavra na forma imediatamente estudantil e imatura; claudicante. Ainda que compreenda estas restrições e que entenda as objeções que se faz à sua presença em um trabalho maduro, tenho a resenha em alta conta. Ela me parece, talvez justamente por seu caráter juvenil, de uma honestidade de propósitos inigualável. Explora o tema como quem adentra um território desconhecido; tem a cautela dos passos inseguros, a leveza das mãos que tateiam, mas por isso mesmo respira o ar puro e matinal da selva. Preserva, portanto, a vida daquilo sobre o que se debruça, evitando a intervenção descuidada e mortificante. A resenha, de fato, está para o texto acabado como o esboço está para a pintura, mas tanto quanto aquele não é um descarte: é uma busca quando o objeto resistia em entregarse; antessala da forma; o estilo quando ainda era elíptico; uma companheira nas madrugadas, quando ainda não era possível decidir-se. Sobrevive, portanto, como esqueleto e estrutura, de que o texto é a carne. Ela tem, portanto, seu

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lugar no conjunto do meu trabalho: é seu elemento imediatamente proletário e operante. Do filme A presença do filme no texto não tem um caráter analítico estrito, ou seja, não se pretende esgotar cada obra, no sentido que deveria caber ao crítico do meio, ou ainda, ao estudioso especializado. Procura-se no filme, tão simplesmente, elementos gráficos da palavra, ou seja, seu desenvolvimento com fundamento em uma outra lógica. O filme, portanto, permanece dentro do território literário, mesmo que só se possa oferecer segundo a imagem. É uma luta contra o limite do texto; uma busca para atingir as estruturas pré-conscientes, valendo-se de da língua peculiar do cinema: a palavra, se o olho pudesse falar2. Nisso, contudo, simplesmente acolhemos o modo de ser da contemporaneidade, não no seu culto da imagem, mas na onipresença da visão: se todo texto é não mais que uma legenda, na ausência da imagem ele se torna invisível.

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Figura 4 - Um Homem com uma Câmera (Dziga Vertov, 1929) http://br.youtube.com/watch?v=AeKKeiXTBos

Figura 5 - Foto de Jules Chéret mostrando seu cartaz a Toulouse-Lautrec http://pt.wikipedia.org/wiki/Cartaz

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Não se pretende aqui, contudo, uma capitulação, mas, muito ao contrário, encontrar a forma consequente segundo a qual a palavra poderia ser, igualmente, uma presença gráfica e crítica; negativa. Esta meta é, do ponto de vista da forma, uma imposição, uma vez que o grafismo da palavra, em seu caráter submisso e dócil à ordem, a publicidade descobriu há muito tempo no cartaz: e nisso tomou da prostituta não apenas a existência diretamente pública, mas a forma insidiosa com que disputa o cliente. Uma vez, contudo, que o olho tenha sido instituído para seguir o cartaz em sua onipresença; para desfalecer diante de suas propostas de sedução; tão logo o jornal tenha se convertido na imagem de que o texto é um índice e uma remissão, impõese à palavra uma natureza gráfica, para que ela possa de fato existir. É essencial, contudo, evitar o milenarismo e as lamúrias; o saudosismo de defuntos: é preciso conduzir a palavra à plenitude de suas possibilidades, único lugar em que ela será igualmente libertária.

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Figura 6 - Pro Patria poster, United States, World War I (Welsh, 1917)

Ver também: http://www.iisg.nl/exhibitions/chairman/sovintro.php Permanecer inconsciente dessa demanda significa dar ao inimigo todo o espaço de que ele necessita. Esse inimigo implícito e subliminar, ainda que não inerte, são os traços remanescentes do fascismo, a realização de seu programa estético na mais elevada perfeição. Se isso não se percebe 25


é porque o fascismo descobriu que pode ser não virulento, ainda que se mantenha incivilizado. Da citação Quando extraímos um fragmento do solo em que nasceu, para enxertá-lo em um corpo completamente distinto, restam imutáveis seu conteúdo de verdade e sua existência? O fragmento transposto não é, nos exatos termos de sua apresentação ossificada, algo de radicalmente novo? Supondo que houvesse aqui efetivamente uma novidade, pergunta-se: o que é a autoria, e qual seu lugar na ordem da criação? Não se instituem situações novas ao se baralhar as cartas? Se a citação é, para a integridade do texto de que foi extraída, uma espécie de desfazimento; um roubo e uma agressão a sua unidade, também é o empréstimo de relações completamente novas, que talvez não emergissem, se aquele mesmo texto se mantivesse em uma existência em que fosse perpetuamente respeitado em sua identidade constitutiva.

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Na citação o texto fala novas línguas e diz o que não pensou; apresenta o que estava oculto, cria relações anteriormente impossíveis; gera o estranhamento, pela própria improbabilidade do lugar que ocupa. Procura, então, extravasar o plano de que nasceu, para estabelecer um novo vetor de referências, ou seja, seu lugar no mundo, à parte de sua unidade primeira. É, portanto, uma aventura, despojamento; o lançar-se e o projetarse, para ser recolhido por uma teia completamente nova de vínculos. Tanto quanto é possível obter infinitas e distintas visões do mesmo, pela simples variação da luz sobre o objeto, suas angulações e cores, na citação o texto despede-se na unidade e da certeza, para flertar com o imenso de suas possibilidades. A citação, portanto, quando não pretende ser uma sujeição do presente aos poderes do passado, é a criação do novo, pela exposição dos ângulos improváveis do passado; suas possibilidades latentes; o desnudamento daquilo que sempre prometeu oferecer, mas que ainda calava na estrutura em que nasceu. A citação, na justa 27


medida em que emerge solitária e individuada, apartada do corpo materno, é um choque em sua singularidade escancarada; uma intensidade nova, segundo um reordenamento que subverteu a própria noção de propriedade e identidade, que a unidade do texto (de partida) de algum modo implica. Por meio de seus vértices expostos, como aqueles do galho arrancado ao tronco, “*c+itações em meu trabalho são como salteadores no caminho, que irrompem armados e roubam ao passante a convicção” .(BENJAMIN, 1987, p. 61). Por meio da citação demonstra-se, então, não um vértice do real como aquilo que é certo, mas um ângulo que remanescia esquecido e improvável. Na citação, portanto, encontra-se o outro do outro, como um abraço em mim. Celebra-se e recupera-se, assim, uma contemporaneidade impossível; a surpresa aguda daquilo que nunca se afastou, a recorrência da memória, que ainda clama pelo irrealizado; o mundo como sonho e esperança; projetos da palavra, que, soterrados, jamais renunciaram à irrupção no tempo. A citação é uma epifania e um sonho de fraternidade; o 28


reconhecimento pelo choque daquilo que retorna eternamente e que é estranho, mas que nos oferece nosso próprio pensamento, na comunidade extemporânea e improvável com aquilo que vagava pelos dias, esperando ser resgatado e trazido à mais pura luminosidade do presente, como agora e acontecimento A citação implica, contudo, outros elementos. Ela se refere criticamente, em especial, à expectativa de que a verdade seja o produto da atividade de um sujeito cognoscente, que a institui em seu processo de reflexão3. A citação, ao menos no sentido em que a concebe Walter Benjamin, cria, em lugar do texto organizado a partir daquele sujeito, um espaço de acontecimentos, de manifestações, onde o diverso se apresenta, não para descrever a coisa, mas permitir que ela fale de si mesma. A citação, portanto, só se refere à técnica da escrita, na medida em que esta é uma disponibilidade para a escuta. Significa dizer que a verdade como expectativa não é o produto de um discurso, do meu discurso, mas o inteiro campo de manifestações em que uma determinada época 29


narra e revela sua natureza inerente e essencial. Reserva-se, assim, o devido espaço para os erros, para o bizarro, para os equívocos, sem os quais, a verdade não pode ter substância, uma vez que ela não diz respeito a uma assertiva adequadamente fundamentada sobre o real apartado do sujeito, mas ao autorreconhecimento daquele que fala. A verdade, nesse sentido, surge e irrompe em um preciso momento, em um agora, cujo inteiro teor é a produção da fisionomia, do rosto e da imagem que sintetiza em um flash um determinado momento histórico, desde e a partir de sua proto-forma. Ao reconhecer-se nessa imagem a época desperta para seus horrores, para as chagas que carrega na face e que lhe eram desconhecidas. Nesse mesmo rosto monstruoso, contudo, o olho vê, no interior do olho refletido, a pálida tecitura de um outra imagem – aquela imagem é o prenúncio de um novo começo. A verdadeira imagem, a imagem dialética que se realiza no exato agora, só é verdadeira, contudo, se ela trouxer consigo a convicção de que o começo deve estar fundamentado exatamente 30


naquele rosto degradado e dilacerado que, no entanto, permanece humano, e clama por regeneração. É preciso considerar ainda, mesmo que não em caráter final, que a citação já implica a montagem e a concepção do texto em sua organização cartográfica, ou seja, como espaço de manifestações, constelação, nuvem de pontos. Ver de Olgária Chain Féres Matos, Walter Benjamin: a citação como esperança, disponível no sítio: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/6Sem_20.html

O livro como projeto gráfico Nosso tempo, assim como está em contrapposto com o Renascimento pura e simplesmente, está particularmente em oposição à situação em que foi inventada a arte da imprensa. Com efeito, quer seja um acaso ou não, seu aparecimento na Alemanha cai no tempo em que o livro, no sentido eminente da palavra, o Livro dos 31


Livros, tornou-se através da tradução da Bíblia por Lutero, um bem popular. Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, vai ao encontro do seu fim. Mallarmé, como viu em meio à cristalina construção de sua escritura, certamente tradicionalista, a imagem verdadeira do que vinha, empregou pela primeira vez no coup de dês as tensões gráficas do reclame na configuração da escrita. O que depois disso foi empreendido por dadaístas em termos de experimentos de escrita não provinha do plano construtivo, mas dos nervos dos literatos reagindo com exatidão e por isso era muito menos que o experimento de Mallarmé, que crescia do interior de seu estilo. Mas justamente através disso é possível reconhecer a atualidade daquilo que, monadicamente, em seu gabinete mais recluso, Mallarmé descobriu, em harmonia preestabelecida com todo o acontecer desses dias, na economia, na 32


técnica, na vida pública. A escrita, que no livro impresso havia encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma, é inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. Se há séculos ela havia gradualmente começado a deitar-se, da inscrição ereta tornou-se manuscrito repousando oblíquo sobre escrivaninhas, para afinal acalmar-se na impressão, ela começa, com a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão. Já o jornal é lido mais a prumo que na horizontal, filmes e reclames forçam a escrita a submeter-se de todo à ditatorial verticalidade. E, antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, caiu sobre seus olhos um tão denso turbilhão de letras cambiantes, coloridas, conflitantes, que as chances de sua penetração na arcaica quietude do livro se tornaram mínimas. Nuvens de gafanhotos de escrituras, que hoje já obscurecem o 33


céu do pretenso espírito para as grandes cidades, se tornarão mais densas a cada ano seguinte. Outrora as exigências da vida dos negócios levavam mais além. A cartoteca traz consigo a conquista da escrita tridimensional, portanto um surpreendente contraponto à tridimensionalidade da escrita em suas origens como runa ou escritura de nós. (E hoje já é o livro, como ensina o atual modo de produção científico, uma antiquada mediação entre dois diferentes sistemas de cartoteca. Pois todo o essencial encontra-se na caixa de fichas do pesquisador que escreveu e o cientista que nele estuda assimila-o à sua própria cartoteca.) Mas está inteiramente fora de dúvida que o desenvolvimento da escrita não permanece atado, a perder de vista, aos decretos de um caótico labor em ciência e economia, antes está chegando o momento em que quantidade vira qualidade e a escritura, que avança 34


sempre mais profundamente dentro do domínio gráfico de sua nova, excêntrica figuralidade, tomará posse, de uma só vez, de seu teor adequado. Nesta escritaimagem os poetas, que então, como nos tempos primitivos, serão primeiro e antes de tudo calígrafos, só poderão colaborar se explorarem os domínios nos quais (sem fazer muito alarde de si) sua construção se efetua: o dos diagramas estatísticos e técnicos. Com a fundação de uma escrita conversível internacional eles renovarão sua autoridade na vida dos povos e encontrarão um papel em comparação ao qual todas as aspirações de renovação da retórica se demonstrarão devaneios góticos”. (BENJAMIN, 1987, p. 27-28-29)

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Figura 7 - “Moulin Rouge - La Goulue” ( Poster por Toulouse-Lautrec, 1891) http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Toulouse-Lautrec_-_Moulin_Rouge__La_Goulue.jpg 36


Figura 8 - An artistic depiction of human billboards in 19th century London, by George Scharf

Figura 9 - Homem SanduĂ­che

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O antijornal Parece, portanto, extremamente difícil reduzir o mito pelo interior, pois o próprio movimento de libertação fica por sua vez cativo do mito: o mito pode sempre, em última instância, significa a resistência que se lhe opõe. Para dizer a verdade, a melhor arma contra o mito é talvez mitificá-lo a ele próprio, é produzir um mito artificial: e este mito reconstituído será uma verdadeira mitologia. Visto que o mito rouba linguagem, porque não roubá-lo também? Bastará, para isso, colocá-lo como ponto de partida de uma terceira cadeia semiológica, considerar sua significação como primeiro termo de um segundo mito. (BARTHES, 1989, p. 156)

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Figura 10 - A doce vida (Fellini, 1960) http://www.youtube.com/watch?v=girjC2txLOw

Se em alguma medida evidenciamos a forma própria ao jornal - sua concisão, catalogação aleatória de fatos e eventos, o real como aquilo que é diretamente arbitrário; o amálgama e o pastiche, o poder dramático da imagem -, não é para afirmar seus termos ou para aceitar suas metas, que flertam com a heteronomia, mas para reproduzi-la pelo avesso. Nosso alvo é a subversão e a perversão de tudo aquilo que é próprio ao jornal; a exposição de seus ângulos obtusos, as pequenas e, por isso mesmo, portentosas vilanias; as cadeias simbólicas sub-reptícias; seus propósitos subliminarmente totalitários, sob a roupagem do mais puro republicanismo. No seu formato ligeiro 39


tudo está diretamente pronto para o consumo, e mesmo a filosofia, a arte, o cinema e a política são apenas uma taxonomia de salão, de modo que é possível discorrer sobre tudo, como se de fato o mundo estivesse organizado para realizar o gosto burguês e suas metas, onde todo o conhecimento não é mais do que verniz, bons modos e escusas, para a forma rígida, violenta e incivilizada do poder. O jornal, na justa medida em que informa, é a usurpação de um lugar vazio: através dele o mundo é convertido em opinião e pensamento, não do editor, mas de uma categoria abstrata que é artificialmente materializada - a opinião pública. Todo artigo, portanto, ainda que assinado, através da forma mesma do jornal, converte-se, a um só tempo, em pensamento de um autor e reverberação de uma reflexão coletiva. Aquilo que é individual e subjetivo deságua, deste modo, no imenso oceano do indiferenciado; o que só faz afirmar que toda particularidade se reduz a uma massa amorfa, confirmada no plano oposto pela redução da leitura a uma recordação que se 40


mantém no registro do que é aleatório e múltiplo. No jornal, a rememoração é, portanto, um esquecimento; a articulação intelectual um discurso livre e diletante; o raciocínio um fragmento que se pode perder a qualquer momento, bastando para tanto que a atenção seja reclamada por outra fonte de estímulo (choque). A isso o jornal não pode se opor, pois é, como um todo, e mesmo que a contragosto, uma caçada ao olho; a disputa do cliente por parte da matéria; feira livre, que se resolve no consumo, segundo a inclinação de momento e o poder de vocalizar do vendedor.

Figura 11 - Metropolis (Fritz Lang, 1927)

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No jornal impõe-se, portanto, um vaticínio, e todo conteúdo está condenado pela forma: o jornal é uma elaboração gráfica, cujos aspectos invariantes lançam qualquer subject à indiferença universal e à monotonia. Como graficamente tudo permanece o mesmo, nos elementos rígidos da diagramação, o olho não diferencia o que é particular ou específico. A importância relativa de cada matéria é conferida, então, pelo tamanho do corpo do texto (e especialmente da chamada), pela imagem associada e por sua posição relativa por entre as cessões, às expensas de seu conteúdo, de tal modo que olho vaga pelo jornal, como quem percorre um sistema imagético. Nisso o grafismo do jornal se assemelha ao sistema de orientação de trânsito: tão logo o olho se tenha acostumado aos signos, às placas de indicação, ao repetir-se do trajeto, toda a atenção passa a existir para ser imediatamente perdida. O caminho, portanto, é uma prática hipnótica, que se constitui em memória apenas se for, ao mesmo tempo, uma difusão do olho no espaço indiferenciado, com o que cada momento singular e descontínuo é 42


reduzido a um meio termo entre a vigília e o sonho. O segredo do jornal, portanto, está no desencaminhamento do olho, que é convidado a perder-se por entre as imagens; a evadir-se durante o enduro em que se pratica sua estimulação contínua e frenética; uma excitação que leva à exaustão mental e à expropriação da visão. Na sujeição do olho, em sua submissão à imagem, o cérebro é tomado de assalto e operado a partir de fora, afirmando-se diretamente as metas distópicas da ordem, cujo delírio de poder mais acabado e acalentado é o autômato. No imenso desse poder o jornal é apenas, contudo, uma elaboração consequente e correlata do urbanismo; da paisagem apropriada segundo um passeio de carro: um propósito funcional para as formas aleatórias que o olho percebe, enquanto flanando nos trajetos e atividades mecânicos a que a vida obriga. O poder do jornal é, portanto, e de modo imediato, a afirmação da natureza heterônoma da própria vida social, da qual tomou 43


a forma e a fórmula, para ser imediatamente reconhecível e evitar a resistência4. O jornal, contudo, é apenas a antecipação e a forma primeira do meio de comunicação de massa como artefato distópico; como construção intelectual para as metas da heteronomia. Ele foi e é continuamente superado por outros meios, de que a televisão é apenas um exemplo provisório. Cada novo desenvolvimento no mesmo sentido (heterônomo) condiciona tudo que o antecedeu, de tal maneira que, ao fim e ao cabo, o jornal propende, como forma, às definições da internet. Nessa revolução contínua, em lugar de se oporem, os meios de comunicação se rendem incondicionalmente aos ditames do que é mais recente, realizando a submissão irrestrita da comunicação ao que há de mais degradado do ponto de vista formal. Por meio deste processo de desenvolvimento do meio de comunicação, tudo que foi concebido para compor uma unidade se converte, irremediavelmente, em um estilhaço; redução esta a que o meio de comunicação obriga. O antijornal é como meta, portanto, o caminho de 44


volta do fragmento; uma revolta não contra a ausência de sentido do real, mas contra as configurações filosóficas e estéticas que tornam impossível a fruição do que há de libertário neste movimento. *** Folha Corrida vai trazer o noticiário em cinco minutos Jornal lança página diária onde leitor terá informações essenciais do dia em textos curtos e diretos, do mundo político à cultura No domingo, haverá os personagens e fatos de destaque para atender ao leitor que não acompanhou os acontecimentos DA REDAÇÃO O jornal estreia na próxima terça-feira a Folha Corrida, uma página que trará diariamente resumo de notícias, extratos de colunistas, dicas práticas, artes e gráficos para ser lida em poucos minutos. 45


De segunda a sábado, a nova página da Folha funcionará como mais uma "porta de entrada" para o jornal. Depois de passar pela primeira página, o leitor apressado encontrará na Folha Corrida mais informações essenciais do dia, em textos curtos e diretos que perpassarão todos os cadernos, do noticiário político à cultura, Informática, Folhinha etc. No domingo, a Folha Corrida fará um resumo dos acontecimentos mais importantes da semana e dos personagens que mais se destacaram, também para ser lido em até cinco minutos. O objetivo é atender o leitor que não acompanhou o noticiário e os que leem jornal apenas no fim de semana. Às segundas-feiras, haverá uma agenda do que acontece na semana, como eleições no mundo, finais de campeonatos, divulgação de índices importantes ou estréias de cinema. A Folha Corrida será publicada sempre na última página do caderno Cotidiano. *** 46


Mallarmé: o livro espetáculo, conservação e superação do jornal Excerto tomado de Poesia e Modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico, Haroldo de Campos. Baudelaire fez da analogia o centro de sua poética. Um centro em perpétua oscilação, sacudido sempre pela ironia [...] No centro da analogia há um oco: a pluralidade de textos implica que não há um texto original. Por esse oco se precipitam e desaparecem, simultaneamente, a realidade do mundo e o sentido da linguagem. Porém não é Baudelaire, e sim Mallarmé que se atreverá a contemplar esse oco e a converter essa contemplação do vazio na matéria de sua poesia. [...] Mallarmé acalentou o projeto de um livro permutatório (Bloc), que seria verdadeiramente a Obra, da qual o Coup de Dés representaria, apenas, uma primeira versão aproximativa. Imaginou uma espécie de livro espetáculo, que participaria do teatro, do ofício litúrgico e do concerto, livro de início “reservado”, mas, ao longo termo, pensado 47


também como uma festa comunitária, já que esse multilivro, segundo o poeta, deveria ser “modernizado”, isto é, colocado ao alcance de todos. Para tanto, Mallarmé deteve-se nos detalhes práticos da recepção dessa Bíblia moderna, desde a organização de séances de leitura até minúcias de financiamento e de tiragem (prevista para nada menos do que 480mil exemplares) [...]. É evidente que, por trás de um tal sonho (onde a economia “restrita” do livro se articula com a história e a economia política, a intervenção singular do poeta com a ação geral, como salienta Maurice Blanchot), está o “princípioesperança” (tomo a expressão de Ernest Bloch). É essa esperança programática que permite entrever no futuro a realização adiada do presente, que anima a suposição de que, no limite, a “poesia universal progressiva” possa ocular o lugar socializado do jornal, essa féerie populaire, qual o poema enciclopédico de massa, “indispensável como o pão o sal”. Maiakóvski, no horizonte utópico de sua “comunidade ideal”, livre de burocratas, refutando as censuras quanto à 48


dificuldade e à incomunicabilidade de sua poesia, ecoará esse anelo por um livro cuja clareza decorra de sua necessidade, cuja condição de possibilidade nasça da elevação da cultura do povo, não do rebaixamento do nível da inovação poética (tudo isso está no poema Incompreensível para as Massas, 1927) Vanguarda e “Princípio-Esperança” Sem esse “princípio-esperança”, não como vaga abstração, mas como expectativa efetivamente alimentada por uma prática prospectiva, não pode haver vanguarda entendida como movimento. O trabalho em equipe, a renúncia às particularidades em prol do esforço coletivo e do resultado anônimo, é algo que só pode ser movido por esse motor “elpídico”, do grego elpis (expectativa, esperança). Aliena a singularidade de cada poeta ao mesmo de uma poética perseguida em comum, para, numa etapa final, desalienar-se num ponto de otimização da história que o futuro lhe estará reservando como culminação ou resgate de seu empenho desdiferenciador ou progressivo. 49


Vanguarda, enquanto movimento, é a busca de uma nova linguagem comum, de uma nova koiné, da linguagem reconciliada, portanto, no horizonte de um mundo transformado. Para ver jornal I A fotografia na manchete de jornal é a reprodução imagética e abstrata daquilo que atrai a multidão5; um acidente ou incidente de que a máquina se apropria. Ela não tem origem nem devir, não estabelece mediações com o que quer que seja: apenas é - um fragmento extraído do curso do tempo. É, pois, uma abstração suprema, que delega ao texto, na condição de legenda6, a tarefa de explicar (-se). Neste sentido preciso, a imagem subordina o texto, que passa a ser sua decodificação: trata-se de explicar, contudo, não o processo no qual o evento se inscreve, mas o evento em si mesmo, apartado de todo e qualquer processo, e especialmente da forma social de que ele nasce 7. Nisso reside a natureza do jornalismo e da pauta contemporâneos: o jornal segue a multidão, em sua ânsia por imagens, as quais, à 50


sua vez, não são parte de uma memória, mas elemento recorrente de sua perda. A notícia torna o mundo fortuito, como acidental é a fotografia (a imagem) que o repórter captura: deste modo, ainda que as imagens se aproximem do intolerável aos olhos, elas tornam possível, um mundo que de outra maneira seria intolerável. Sob a forma da notícia, a mesmice do mundo e, em certo grau a própria necessidade, se apresentam como o indeterminado, como o acidente. A essência da notícia consiste, portanto, em uma brincadeira, um jogo ansioso com a morte, que, de outro modo, jamais poderia aparecer aos homens como algo continuamente diferido8, ou seja, não apropriado ou metabolizado por cada indivíduo, como algo inerente à sua vida 9 (a ponto de condicionar, portanto, a própria existência).

Figura 12 - A fantástica fábrica de chocolate (Tim Burton, 2005) - Colagem

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Na eterna novidade da notícia nega-se a caducidade do existente, que se apresenta vestindo a pele sempre jovem do efêmero. Deste modo, o mesmo na pele do novo, reiteradamente repetido, é o trampolim para um conceito alucinado de eternidade, que trás consigo, contudo, através de sua reivindicação em perenizar-se, um elemento absolutamente essencial à decifração do existente: a exigência da coisa, segundo a qual, as categorias do pensamento não devem ser exterioridades abstratas, como se pudessem prescindir do corpo e da materialidade.

Figura 13 - O Falcão Maltês (John Huston, 1941) http://br.youtube.com/watch?v=zSd_MCIIKNk 52


[FASHION] Fashion: Madam Death! Madam Death! - Giacomo Leopardi, “Dialogue between Fashion and Death” Nothing dies; all is transformed - Honoré de Balzac, Pensées, sujets, fratments (Paris, 1910), p.46 Here fashion has opened the business of dialectical exchange between woman and ware – between carnal pleasure and the corpse. The clerk, death, tall and loutish, measures the century by the yard, serves as mannequin himself to save costs, and manages single-handedly the liquidation that in French is called revolution. For fashion was never anything other than the parody of the motley cadaver, provocation of death through the woman, and bitter colloquy with decay whispered between shrill burst of mechanical 53


laughter. That is fashion. And that is why she changes so quickly; she titillates death and is already something different, something new, as he casts about to crush her. For a hundred of years she hols her own against him. Now, finally, she is on the point of quitting the field. But he erects on the banks of a new Lethe, which rolls its asphalt stream through arcades, the armature of whores as a battle memorial. (BENJAMIN, 1999, pp. 62-63) (‌) (‌) Fashion always stands in opposition to the organic. Not the body but the corpse is the most perfect object for its art. It defends the rights of the corpse before the living being, which it couples to the inorganic world. The fetishism that succumbs to the sex apple of commodity is its vital nerve. On the other hand, it is precisely fashion that triumphs over death. It brings the departed with into the 54


present. Fashion is contemporary with every past. (BENJAMIN, 1999, p.894) (...) Qual o desejo de todos os desejos de consumo? Possuir. O que pode produzir o desejo de possuir? Tudo que não foi possuído e é valorado. O que nunca foi possuído? O novo. Todo novo é gerado por uma mudança e tem por temporalidade a efemeridade. Todo novo está condenado a sua obsolescência, a partir do momento em que é identificado. Como atesta a capacidade do ser humano de criar, todo novo, no contexto da sociedade gerada pela modernidade, recebe valor positivo. Logo, o consumo motivado pelo desejo implica na constituição de um sujeito apto à apreciação estética do novo, de um sujeito moderno. Todo consumo realizado como desejo esgota seu sentido de ser no momento de sua consumação e, desta 55


forma, mais do que os objetos que se revestem da condição de novo, o que se deseja consumir é a apropriação do novo em si, o que gera, incessantemente, novos desejos e novos consumos. Os produtos de moda: vestuário, calçados e acessórios, entre outros, são constituídos como tais não por suas condições físicas intrínsecas (textura, cores e cortes), mas pelos discursos depositados sobre esses aspectos de sua constituição, transformando-os em signos do novo, ou seja, por serem significados a partir do significante moda. Os produtos de moda, desta forma, manipulam, permanentemente, desejos, os quais permitem a poética diária do vestir. Como seus objetos encarnam o novo com primazia e, ainda, porque são instrumentos vitais às estratégias de poder, eles oferecem um exercício contínuo para o desenvolvimento da 56


aptidão à apreciação do fugaz ou, em outras palavras, da paixão por tudo que é novo e uma prontidão toda especial para o inusitado. Como antípodas deste gosto: tudo que permanece, tudo que é obvio, tudo que seja o déjà vu. Então, definimos Moda como um ethos da sociedade moderna e individualista, que, constituído em significante, articula as relações entre os sujeitos sociais por meio da aparência e instaura o novo como categoria de hierarquização dos significados . Diferente de cultura que é a forma de fazer/viver, o ethos é a forma de pensar. Diz Geertz, antrópologo norte-americano, ser o ethos uma postura pela qual se constitui uma visão de mundo: “O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético e sua disposição, é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao 57


seu mundo que a vida reflete”. (SANT’ANNA Mara Rúbia. Moda, desejo e morte: explorações conceituais. Artigo Eletrônico – formato pdf.) É preciso apropriar-se desse elemento essencial, tanto no que se refere à compreensão da noticia, quanto no que concerne à moda10. Tanto uma quanto a outra demandam, ainda que inconscientemente, mas em sua estrutura mesmo, os direitos das coisas submetidas ao desterro e ao esquecimento. Através de sua forma incidental e aleatória manifestam a particularidade irredutível da coisa, que se lança contra o pensamento conceitual, na medida em que este queira e pretenda ter uma existência puramente abstrata e etérea. Contra o conceito que apaga e dissolve toda a particularidade, para erigir-se como verdade, a coisa reivindica sua singularidade, assombrando o presente por meio de seu reaparecimento contínuo. No sempre novo da notícia e da moda fala, portanto, o cadáver da época e da história. 58


Incomparável linguagem da caveira: total ausência de expressão – o negro de suas órbitas oculares – unida à expressão mais selvagem – as arcadas dentárias arreganhadas. (BENJAMIN, 1995, p. 36) Dança macabra A Ernest Christophe Emproada como viva, orgulhosa a estatura, Com seu grande buquê, mais as luvas e o lenço, Possui a languidez como a desenvoltura De uma coquete magra e de ar de sonho imenso. Viu-se um dia num baile um porte assim delgado? O vestido abundante e de real esplendor Tão excessivo rui sobre um pé apertado Por escarpim galante e lindo como flor. Estes fofos que tem aos bordos das clavículas, Como um lascivo arroio a ir de encontro ao rochedo, Vedam pudicamente, e das vistas ridículas, O fúnebre fulgor que ela guarda em segredo. Tem o vazio e a treva a morar na pupila, 59


E seu crânio, de flor sabiamente toucado, Sobre as vértebras tão molemente vacila, - Ó fascínio do nada em loucura ataviado! Alguns te fitarão como a caricatura. Nunca há de compreender amante material, O garbo singular desta humana armadura. Tu, meu grande esqueleto, és meu único ideal. Vens agora turbar, com feição zombeteira, A festa desta Vida? Algo em ti deve arder Para esporear assim tua viva caveira, Levando-a ingenuamente ao sabá do Prazer? Ao canto do violino, às candeias tão frias, Esperas expulsar teu pesadelo então? Para após suplicar à torrente de orgias Que este inferno refresque a arder no coração? Inesgotável poço e de culpa e defeito! Da sempiterna dor eternal alambique! As costelas, que são as grades de teu peito, O insaciável réptil deixam que eu verifique. Vivo sempre a temer que os teus airados ares Não encontrem jamais um preço ao seu valor; Que coração mortal te entende se zombares?

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Só embriagam quem é forte os encantos do horror! - Do fundo deste olhar, cheio de horríveis vôos, Nasce a vertigem: e os dançarinos prudentes Nunca irão contemplar, sem amargos enjôos, O sorriso eternal dos seus trinta e dois dentes. Mas quem nunca abraçou um esqueleto, em suma, E quem não se nutriu de ares de campo santo? O que importa o que veste, orna, pinta ou perfuma? Como posso pensar que te olhem com espanto? Cortesã sem nariz, baiadeira patética, Dizes a estes que a dançar te miram ofuscados: - “Casquilhos, apesar de toda a arte cosmética Cheirais a Morte, ó Esqueletos perfumados! Mirrados Antinoés, dândis de face glabra, Defuntos de verniz, D. Joãos encanecidos, O abalo universal desta dança macabra Vos atrai a outros sóis sempre desconhecidos! Do cais frio do Sena ao do Ganges inquieto, Salta e desmaia agora o rebanho mortal Ignorando a trombeta do anjo que, do teto, Soa, sinistra e aberta, um trabuco fatal. 61


E sob todos os céus sempre a Morte te admira Em tuas contorções, atroz humanidade, E às vezes como tu, perfumada de mirra, Sua ironia junta à tua insanidade”. (Charles Baudelaire, As flores do mal) Para ver jornal II

Figura 14 - Dick Tracy (William A. Berke, 1945) http://br.youtube.com/watch?v=nJ426aHvNmQ

É a multidão que dá forma àquilo que conhecemos como notícia e, portanto, só é notícia aquilo que a ela interessa. Na multidão, contudo, qualquer 62


“indivíduo” é apenas e tão somente espécime de uma série homogênea, abstração absoluta, fração de coisa informe, que não se deixa apropriar por determinações como classe, gênero, estirpe, etc. Participa-se da multidão, portanto, através de relações e vínculos que são tanto na genealogia, quanto na realidade concreta, formas arcaicas do político e do social. A notícia, portanto, não fala ao homem para elevar seu senso de sociabilidade, ainda que se valha de todos os recursos materiais da civilização: ela fala ao animal no homem, procura-o como membro da hoste e da turba, da horda. Entende-se, deste modo, que a notícia é o encontro do homem moderno com sua ancestralidade e sua forma arcaica, que mina por entre as paredes sólidas da civilização. Pois a multidão é de fato um capricho da natureza, se se pode transpor essa expressão para as relações sociais. Uma rua, um incêndio, um acidente de trânsito, reúnem pessoas, como tais, livres de determinações de classe. Apresentam-se como aglomerações concretas, mas 63


socialmente permanecem abstratas, ou seja, isoladas em seus interesses privados. Seu modelo são os fregueses que, cada qual em seu interesse privado, se reúnem na feira em torno da “coisa comum”. Muitas vezes esses aglomerados possuem apenas existência estatística. Ocultam aquilo que perfaz sua real monstruosidade, ou seja, a massificação dos indivíduos por meio do acaso de seus interesses privados. Porém essas aglomerações saltam aos olhos – e disso cuidam os Estados totalitários fazendo permanente e obrigatória em todos os projetos a massificação de seus clientes -, então vem à luz seu caráter ambíguo, sobretudo para os implicados. Estes racionalizam o acaso da economia mercantil – acaso que os junta – com o “destino” no qual a “raça” se encontra a si mesma. Com isso, dão curso livre simultaneamente ao instinto gregário e ao

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comportamento automático. (BENJAMIN, 200, p. 58) Todo artefato cultural, o mass media, nas suas mais variadas manifestações e formas, pressupõe a multidão como categoria imanente, pelo que se organizam a cultura, a arte e as representações imaginárias segundo o modelo do consumidor, isso com o acréscimo essencial de que seus gostos, que se lhe aparecem como expressão de liberdade e individualidade, são produzidos industrialmente. O jornal, em sua genealogia, já antecipava este poder colossal, que se realiza na justa medida em que desenvolve endogenamente a tecnologia da comunicação para o domínio: informação. Para ver jornal III *“(...) Toda filosofia também esconde uma filosofia; toda opinião é também um esconderijo; toda palavra também uma máscara” (Nietzsche, 2005-b, p. 242).] 65


Figura 15 - O garoto (Chaplin, 1921)

A multidão que se reúne em torno de um evento trágico11 o faz em decorrência de uma compulsão, tão poderosa quanto as forças presentes em um campo magnético: ela é posta em movimento por sua consternação, pela solidariedade para com a vítima, demonstrando na fruição ritual da tragédia, a mais alta compassividade e compaixão. Esse ardor na consternação demonstra ser, contudo, uma solução de compromisso, que faculta à multidão dar curso, igualmente, às suas inclinações sádicas - para o que se liga ferrenha e 66


renovadamente à desgraça. O jornal captou esta fórmula e a explora como ardor científico, no propósito de vender exemplares, ou de conquistar audiência (o telejornal). Assim, fala como preposto dos vitimados, apenas e tão somente para legitimar a recorrência da cena trágica: a notícia da tragédia é, portanto, a fórmula pela qual se pode satisfazer o sadismo difuso, em nome da mais elevada caridade. O prazer sádico requer, contudo, como condição e complemento, o masoquismo: a violência que se quer ver na notícia, como perpetuidade, é o elemento exterior da agressividade, cujo outro gume está voltado para dentro. A civilização tem um custo: a permanência, no homem, de uma ambivalência constitutiva. O mass media é o constante explorar deste interstício, deste limiar; a satisfação da demanda pulsional, mas sempre em nome do pacato cidadão da civilização. (...) Neste ponto já não posso me furtar a oferecer uma primeira, provisória 67


expressão de minha hipótese sobre a origem da “má consciência” (...) Vejo a má consciência como a profunda doença que o homem teve que contrair sob a pressão da mais radical das mudanças que viveu – a mudança que sobreveio quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz. (...) Creio que jamais houve na terra um tal sentimento de desgraça, um mal-estar tão plúmbeo – e além disso os velhos instintos não cessaram repentinamente de fazer usas exigências! Mas era difícil, raramente possível, lhes dar satisfação: no essencial tiveram de buscar gratificações novas e, digamos, subterrâneas. Todos os instintos que não se descarregam para fora voltamse para dentro – isto é o que chamo interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua “alma”. Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo e se 68


estendendo, adquirindo profundidade, largura, altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora. Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se protegia dos velhos instintos de liberdade – os castigos, sobretudo estão entre esses bastiões, fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem, livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição – tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência. Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem “amansar”, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente, consumido 69


pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura, câmara de tortura, insegura e perigosa mata – esse tolo, esse prisioneiro preso da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da “má consciência”. Com ela, porém, foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo: como resultado de uma violenta separação de seu passado animal (...) (NIETZSCHE, 1988, p. 89-91) A notícia como elemento que faz vender e atraí para si, é uma gratificação do instinto, uma orgia imaginária e visual; uma reminiscência de quando o suplício era festa popular. O homem da multidão A multidão fascinou e intrigou muitos dos mais brilhantes poetas, artistas e filósofos de fins do século XIX e início do XX. Este fascínio não estava fundado, contudo, em um fetiche. Existe de fato na 70


multidão um poder imenso, que resta inseparável, contudo, da ambiguidade que a constitui, e que habilita o homem tanto para a emancipação, quanto para o mergulho no mito. Se a primeira forma permanece como promessa, ou seja, como tarefa a realizar, como luta obstinada, a segunda já se materializou segundo o mais terrível pesadelo.

Figura 16 - James Ensor

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Figura 17 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927)

Figura 18 - Outubro (Sergei Eisenstein, 1928)

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Figura 19 - A caminho dos campos da morte

Figura 20 - O corpo humano

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Figura 21 - O corpo humano

O ocaso da cultura

Figura 22 - Maldição (Fritz Lang, 1950) Colagem http://www.youtube.com/watch?v=LnulAdiRp60

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A unilateralidade que a racionalização12 do mundo implica conduz à deformação do homem e da experiência, convertendo aquele mesmo homem em um ser vítreo, refratário à sensibilidade e à afetividade. Renuncia a elas, portanto, em toda a ocasião em que poderiam extravasar, rompendo os limites estreitos em que a vida corrente esta posta. Com isso adere a uma atitude compulsiva, com que sela sua fusão com os requerimentos da ordem. Transforma-se, portanto, em uma fixidez afetiva, cuja forma concreta no espaço é seu corpo, a um tempo frágil e inatingível ao genuinamente humano - o árido, ainda mais árido; o asséptico, como pressuposto da vivisseção existencial; a rarefação do sublime; os requerimentos da sobrevivência transformados em vaticínio: uma autoimagem corrosiva, de tão inóspita e hostil que se demonstra. Em lugar, contudo, de dissolver sua carapaça (sua rigidez), o que o afirmaria como indivíduo oposto à ordem, o homem moderno salva sua existência fantasmagórica por uma inversão da 75


realidade, de modo que em lugar de reconhecer-se na sua miséria afetiva verdadeira, se lança ao mundo agarrado ao fetiche e emulado por ele: a coisa como propriedade - a mercadoria transforma todo abestalhado em exemplar máximo de virilidade, toda coquete em modelo ímpar da sedutora, e assim por diante. Afirma-se então a economia psíquica do mundo como uma transposição da realidade, uma holografia multicolorida: o homem miserável se apresenta como um títere, e a forma social que produz homens enquanto fantasmagorias, despersonalizações semoventes, nas vestes da suprema liberdade13 - que desfaz toda a tradição, toda a determinação. Mas este impulso irrefreável para frente não é o progresso; é antes uma forma específica de decadência e degeneração, cujo aspecto interior é um sentimento difuso de esvaziamento e esgotamento.

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Figura 23 - Maldição (Fritz Lang, 1950) Colagem

O homem tornou-se gradativamente menos dependente de padrões absolutos de conduta, de ideais universalmente unidos. Tornou-se tão completamente livre que não precisa mais de padrões, exceto o seu próprio. Paradoxalmente, contudo, esse aumento de independência conduziu a um aumento paralelo de passividade. Por argutos que tenham se tornado os cálculos do homem em relação a seus meios, a sua escolha de fins, que era anteriormente correlacionada com a 77


crença numa verdade objetiva, tornou-se insensata: o indivíduo, purificado de todos os resíduos das mitologias, inclusive da mitologia da razão objetiva, reage automaticamente, de acordo com padrões gerais de adaptação. As forças econômicas e sociais adquiriram o caráter de poderes naturais cegos que o homem, a fim de poder preservar a si mesmo, deve dominar, ajustando-se a eles. Como resultado final do processo, temos de um lado o eu, o ego abstrato esvaziado de toda a substância, exceto sua tentativa de transformar tudo no céu e na Terra em meios para sua preservação, e de outro lado uma natureza esvaziada e degradada a ser um simples material, sem qualquer outro propósito do que esse de sua própria dominação. (HORKHEIMER, 2002, p. 101-2) Aquilo que se concebe como liberdade irrestrita e sem a qual não se aceita mais passar também é uma forma total de domínio. Isto ocorre 78


porque esta liberdade é dada aos homens, oferecida, produzida para eles, sem que eles mesmos participem de sua elaboração – trata-se a rigor de uma gratuidade, que adere ao produto, à mercadoria (a partir da qual os homens se lançam recorrentemente para além de seu mundo sem saída). Aquela liberdade incondicionada, portanto, é uma contínua dissolução do mundo, desfazimento de padrões, mas não como negatividade: é a forma final da positividade que torna o existente irresistível e conduz ao gueto tudo o que não é compatível e funcional para com suas exigências. A imagem que nos é dada, o imaginário de presente são indexações por meio das quais a realidade perde objetividade: a exacerbação do fato, a saturação do campo visual a torna espectral. Contribui para esta perda de substância da realidade também a forma com que ela é narrada: que, na primeira página do jornal, por exemplo, o morticínio apareça logo ao lado da matéria sobre restaurantes; a guerra anteceda a crítica de cinema, tudo isso gera o mélange a partir do qual nos apropriamos do mundo como 79


realidade atenuada, versão para entretenimento – resultando a leitura como mera materialização de nosso estado de espírito, a cada momento determinado do tempo. Enquanto forma o meio de comunicação procura, portanto, o equilíbrio entre elementos tensos, não como caminho para a virtude, mas como recurso para extrair potência da realidade, tornando-a tão palatável como as férias de verão - agradável no geral, ainda que repleta de inconvenientes. Nietzsche lendo jornal A crítica de Nietzsche à forma democrática e ao liberalismo não é uma regressão, conforme se pode depreender de uma leitura jornalística de sua obra. Ele antevia na modernidade a redução de toda a individualidade à natureza informe da multidão e, na ausência de toda a mediação que ela implica e requer, o retorno a estágios protopolíticos, onde a única forma possível da convivência seria aquela segundo a qual a felicidade geral é a afirmação da miséria equanimemente distribuída. Se lermos a crítica de 80


Nietzsche à democracia, como se fosse uma referência à sociedade de massas e sua dinâmica, teremos em mão uma poderosa avaliação da contemporaneidade. Sua crítica da moral, de outra parte, se potencializa e resolve em Foucault, na medida em que ganha uma existência verdadeiramente histórica e empírica. Em Vigiar e Punir, por exemplo, desvela-se a natureza íntima do suplício, como solução para o crime de lesa majestade - que todo crime, mesmo o mais corriqueiro, compreendia. Na medida em que o corpo do rei era a própria manifestação do corpo da sociedade, toda transgressão, independentemente de sua gravidade, transformava-se imediatamente uma violação do corpo do soberano. Retribuía-se, portanto, em todo e qualquer delito a ousadia de atentar-se contra o corpo do rei. A natureza exemplar do suplício, de outra parte, era um requerimento natural de uma sociedade na qual era relativamente fácil submergir, esquivando-se da pena. Desse modo, o suplício era concebido 81


para ser visto, de tal maneira, que pelo exemplo, se desencorajasse toda e qualquer transgressão.

Figura 24 - Persona (Ingamar Bergman, 1966)

A deposição do rei – ou o fim do absolutismo monárquico - transmuta a natureza da pena, que recaindo ainda sobre o corpo, não é necessariamente para supliciá-lo. Mas se a presença absoluta, inclemente e tirânica do rei se confirmava por meio do suplício, uma vez tendo sido ele afastado, ou seja, tendo se transformado a soberania em uma grandeza abstrata e impessoal, o que sucede ao imaginário que o suplício atraia e realizava? Que o real seja apresentado como 82


terrível e hostil, inóspito, adverso; que o lugar público seja aquele da insegurança e do perigo, o que isso significa? A redução ao absolutamente privado não é, igualmente, uma forma de vivenciar o poder soberano como aquilo que não pode ser contraditado, sem que se conduza à desgraça – um controle abstrato do corpo e do movimento? Na segurança do lar, o que vemos é o mundo ou a conclamação a abandoná-lo, para espreitá-lo como festival de horrores, do qual se participa como espectador? Mas aqui, na redução ao estritamente privado, não somos exatamente cidadãos; é como consumidores que visualizamos o mundo; é como produto de consumo que ele nos é oferecido.

Figura 25 - Em nome do pai (Jim Sheridan, 1993) http://br.youtube.com/watch?v=H0ff5KjZ7vM

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Curiosidade e desconhecimento designam um só e mesmo comportamento global a respeito do real, comportamento generalizado e sistematizado pela prática das comunicações de massa e, portanto, característico da nossa “sociedade de consumo”: trata-se da recusa do real, baseada na apreensão ávida e multiplicada dos seus sinais. (BAUDRILLARD, 1975, p. 32) A propósito, também podemos já definir o lugar do consumo: é a vida quotidiana. Este não é apenas a soma de fatos e gestos diários, a dimensão da banalidade e da repetição; é um sistema de interpretação. A quotidianidade constitui a dissociação de uma práxis total numa esfera transcendente, autônoma e abstrata (do político, do social e cultural) e na esfera imanente, fechada e abstrata, do “privado”. O indivíduo reorganiza o trabalho, o lazer, a família, as relações, de modo involutivo, aquém do mundo e da 84


história, num sistema coerente fundado no segrego privado, na liberdade formal do indivíduo, na apropriação protetora do ambiente e no desconhecimento. A quotidianidade, para o olhar objetivo da totalidade, é pobre e residual: por ouro lado, porém, mostra-se triunfante e eufórica no esforço de autonomização total e de reinterpretação do mundo “para consumo interno”. Aí se situa o conluio profundo entre a esfera da quotidianidade privada e as comunicações de massa. (BAUDRILLARD, 1975, p. 32-33) A compulsão pelo assassinato televisivo; a precipitação diária sobre as mais distintas e bizarras circunstâncias da vida corrente; o filme de horror, e assim por diante. Não existe aqui uma novidade formal e um parentesco: será que ainda demandamos o suplício para o gozo, para o festim pulsional? Não haverá o suplício se libertado de seu contorno imediatamente funcional na economia da pena, para transformar-se em 85


acontecimento cultural e político de grande escala? Uma chamada em um caderno literário: a banalidade do mal Os artigos14 se reportam à morte brutal de um garoto de seis anos, que ficou preso ao cinto de segurança do carro que os ladrões roubavam, tendo sido arrastado por eles através de aproximadamente sete quilômetros. São três os convidados a analisar a violência associada ao ato criminoso: um psicanalista que, aponta ter havido uma falha do superego; um filósofo em crise de consciência, de vez que não está mais certo de poder advogar teses contrárias à pena de morte e, por fim, uma especialista em violência, que vive na Escandinávia, que concedera uma entrevista com o filho no colo.

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Figura 26 - Psicose (Alfred Hitchcock, 1960)

O que facilmente se depreende dos artigos é a banalidade da análise, decorrente, em grande medida, das próprias limitações técnicas do meio em que elas foram efetuadas. Observa-se, ainda, a remissão ao patuá da especialização, pois as manifestações são feitas por experts e nesta precisa condição, o que, justamente por isso, obriga-os a tratar não da banalidade do mal, que exigiria construir mediações entre o evento e a totalidade da vida societária, mas da relação entre este mal suposto banal e as categorias abstratas e particulares das áreas de conhecimento que dominam e representam. 87


Figura 27 - Psicose (Alfred Hitchcock, 1960) http://www.youtube.com/watch?v=NG3-GlvKPcg

Por meio desta abreviação da análise, o mal que deveria ser demonstrado banal e, enquanto tal, absolutamente inerente a uma forma societária concreta, aparece como um cataclismo. Mas esta é a forma fenomênica necessária do mal e da violência em nossa sociedade: como se nega que o processo de coisificação do homem é um ato recorrente de violência, que a civilização nos impõe; como se oblitera que a própria civilização é também um processo de barbarização das faculdades criadoras e, nesta qualidade, uma 88


despersonalização e uma eliminação da individualidade, a irrupção da bestialidade tem que restar como incompreensível e afirmar-se como incognoscível. Mas sua fórmula aparente, o cataclismo, é a imagem mais indicada para a situação, uma vez que indica a brutal liberação de energia que ocorre quando, mundos declarados e experimentados como absolutamente segregados e distintos colidem. Somente porque o banditismo é apropriado sem mediações, como contingente ao processo social mesmo, sua irrupção na vida de cada um de nós tem uma aparência estatística, probabilística, que justamente a notícia tem o condão de salientar. De tudo que se disse naqueles artigos, talvez o mais interessante tenha sido a declaração da mãe especialista em violência, que recorda que na Escandinávia a licença maternidade tem quatrocentos e cinqüenta dias, o que, segundo ela, tem muita influência sobre os índices de criminalidade. One last remark: para que o crime 89


seja imputável como ato individual é preciso que a individualidade exista. Mas ela existe? Ou será que existe apenas a própria impossibilidade de uma personalidade, cuja essência passa a ser a fúria sem qualquer objeto racional? Não é acidental que um dos criminosos se referisse ao corpo arrastado como “boneco de Judas”: é de fúria que se trata; há um transbordamento do irracional e da agressividade, cujo único propósito é, por assim dizer, metalinguístico: recusar a própria razão com que se vive e que disciplina as vidas de cada um de nós.

Figura 28 - Psicose (Alfred Hitchcock, 1960)

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O verdadeiro problema da violência situase noutro lugar. Trata-se da violência real, incontrolável, que a profusão e a segurança segregam, depois de atingido determinado limiar. Já não se trata da violência integrada, consumida com tudo o mais, mas da violência incontrolável que o bem-estar segrega na sua própria realização. Esta violência caracteriza-se (tal e qual como o consumo que definimos, e não na sua acepção superficial) pelo fato de não possuir fim e objeto. Devido ao fato de vivermos da ideia tradicional da prática do bem-estar como atividade racional é que a violência eruptiva, inapreensível, dos bandos de jovens de Estocolmo, das desordens de Montreal e dos assassínios de Los Angeles nos aparece como manifestação inaudita, incompreensível e contraditória – segundo parece – com o progresso social e com a abundância. Porque vivemos da ilusão moral da finalidade consciente de 91


todas as coisas, da racionalidade fundamental das escolhas individuais e coletivas (o sistema de valores funda-se inteiramente nesta convicção: no consumidor, existe um instinto absoluto que impele essencialmente para os seus fins preferenciais – o mito moral do consumo, herdeiro do mito idealista do homem naturalmente arrastado para o Belo e para o Bem), por isso é que esta violência nos parece inominável, absurda e diabólica. Ora, ela pretende talvez dizer apenas que algo excede em muito os objetivos conscientes da satisfação e de bem-estar pelos quais esta sociedade se justifica (aos próprios olhos) e por cujo intermédio se reinscreve nas normas de racionalidade consciente. Neste sentido, a violência inexplicada deve levar-nos a rever todas as ideias sobre a abundância: uma vez que abundância e a violência vão a par, devem também ser analisadas em

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conjunto. (BAUDRILLARD, 1975, p. 298299)

Figura 29 - Kill Bill – Volume 1 (Quentin Tarantino, 2003) http://br.youtube.com/watch?v=ew5EYd5_i6M

Há, ainda, uma dimensão estética15 na violência moderna, que se deve considerar. Na violência o inexistente e o invisível requerem reconhecimento: ela é em grande medida, portanto, um assalto ao espaço público e ao meio de comunicação de massa. Na contemporaneidade o ato realmente violento é cometido para ser visto, exatamente porque ele tende a ser perpetrado por toda sorte de invisíveis - sendo nisso um libelo à autoexpressão, a forma degradada e corrupta com 93


que a sociedade burguesa compreendeu a arte. Esta natureza da violência contemporânea, que o cinema reconhece e explora, Tarantino elevou à condição de gênero cult. No caso da sociedade do espetáculo, a visibilidade não se constrói na ação política (como na Antiguidade), nem pela delegação que os sujeitos concedem ao líder ou ídolo que melhor represente o conjunto de seus ideais (como nas sociedades de massa). A visibilidade, aqui, depende exclusivamente da aparição da imagem corporal no campo do Outro, imaginariamente representado pela televisão. É claro que isto não significa que a televisão possa dar visibilidade a todos os membros da sociedade do espetáculo, e sim que ela representa a esperança de visibilidade para onde os sujeitos dirigem, ainda que inconscientemente, suas escolhas de vida. (...) (BUCCI,; KEHL, 2004, p. 1158-159) 94


Quando, portanto, o sequestrador chama o advogado e a TV, para por fim ao sequestro; quando o policial posa de herói cinematográfico e mata para demonstrar sua virilidade é a esta sina que dão passagem: tornar-se visível em uma sociedade que é absolutamente indiferente a seus destinos e das quais só participam como estatística, elementos amorfos da criminologia, da medicina social ou da psicopatologia. *** "Serei famoso agora", disse jovem que matou 8 nos EUA Muro de contenção A filosofia tem, para certa espécie de pensar científico, um valor inestimável: ela detém o pensamento crítico às portas da ciência, de modo que ela não possa ser incomodada em seu operar afinal de contas, o que é ciência, o que é filosofia, o que é totalidade, verdade, etc.? E a filosofia, o que é, senão mais um saber especializado? Nunca se pode conhecer o pensamento do outro; não se 95


trata de perspectivismo enquanto tal, mas, de uma decorrência da etnologia, jogo de linguagem, posições, etc. A enorme problemática de Foucault, sem a exuberância de seu pensamento, sem a possibilidade de reproduzi-lo para além de um discurso que balbucia; a filosofia como indolência e tergiversação. É a forma circular de um discurso não filosófico, com toda a artilharia da filosofia. Em nossa época talvez seja necessário que a ciência se afirme como recusa da ciência, e o conhecimento, como sua impossibilidade. Se, contudo, esse pensar científico fosse absolutamente rigoroso e consequente com os princípios que enuncia (ou nega?), deveria retirar-se do mundo, para recolherse ao eremitério: só o silêncio é verdadeiramente digno no homem que renunciou ao mundo. Mas como obter bolsas de estudo no eremitério? Constrangida à linguagem, a este contato inevitável que ela requer, essa ciência não pode ser nada além de certo cinismo e uma humildade falsa: um “saber que nada sabes”. O deboche sobre a filosofia não é um ato de contrição do pensamento, ao contrário, é o elogio de um micro 96


saber, que como tal remanesce; último refúgio da realidade, em um mundo que não suporta mais olhar para si mesmo. Mas não nos enganemos: esses desenvolvimentos não decorrem do pessimismo quanto às possibilidades da ciência; muito ao contrário, esse é a forma própria do otimismo, em um mundo em que o pensamento renunciou ao futuro; em que a humanidade é pensada como o puramente vivente, abstraída tanto do passado, como das gerações que estão por vir. Mas aqui se impõe aquela indagação de Nietzsche: não é o otimismo a expressão própria à decadência? (…) E se por outro lado e vise-versa, os gregos, justamente nas épocas de sua dissolução e fraqueza, se houvessem tornado cada vez mais otimistas, mais superficiais, mais comediantes, mais ardentes, mesmo após a lógica e a logicização do mundo, portanto em simultâneo, “mais serenos” e “mais científicos”? Como? Poderia talvez, malgrado todas as “ideias modernas” e 97


preconceitos do gosto democrático, ser a vitória do otimismo, da racionalidade tornada dominante, do utilitarismo prático e teórico, igual à democracia sua contemporânea, um sintoma de força em extinção, da velhice próxima, do cansaço fisiológico? (…) (NIETZSCHE, 2005, tragédia, p. 13) Compreender a dimensão fragmentária da modernidade - a rotura entre indivíduo e totalidade - é em, si mesmo, um colocar-se para adiante do imediato, com o que se procura evitar a falsa síntese, mas também a violência de uma totalidade que prescinde do indivíduo, e das mediações necessárias que conduzem de um ao outro. Essa construção, contudo, é teórica e requer a filosofia em sua mais plena forma - em lugar de prescindir de seus préstimos, para aderir aos bons serviços de uma antropologia caricata. Que a forma preserve todos os vestígios de um mundo estilhaçado não é, portanto, para reificá-lo: é para revelar seus absurdos e antinomias. Nesta tensão, em que a forma é diretamente a denúncia do 98


conteúdo, sua expressão antirromântica desprovida do sentimentalismo e da memória de falsas unidades arcaicas - a primeira remanesce como porta de saída do inferno. É memória da promessa, enquanto sua realização é negada pela natureza autolimitada do mundo burguês: a forma recorda ao mundo que ele remanesce aristocrático, mesmo que todos os meios já excedam os perímetros das representações pertinentes àquela classe. A forma persevera como índice e sinal, a exigir uma expressão democrática da democracia: afirma-se unilateralmente contra a totalização e a falsa síntese não para perder a totalidade e o indivíduo, mas para que eles tenham uma verdadeira chance. A forma preserva em si o espaço entre estes dois entes, que no próprio real já se resolveu como fusão, dominação total e síntese totalitária. Ela é, portanto, uma memória que antecede a oclusão e, neste preciso sentido, rota de fuga, não do real, mas para o real. Ecologia na TV

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Um programa de debates em uma televisão educativa. Especialistas em clima, oceanógrafa, economista, etc. discutem o aquecimento global, em um ambiente que se pode reputar de frio: ausência absoluta de qualquer tentativa de compreensão do que seria a relação homem natureza. Nessa omissão a natureza aparece recorrentemente antropomorfizada, seja na figura da nutris espoliada, ou do titã sedento de vingança. Na primeira forma, a virgem Maria em todo seu esplendor e misericórdia; na segunda, o pecado original como um vaticínio. Bem, sempre soubemos que também a ciência tem seus concílios. Para um humanismo radical, no entanto, a violência contra a natureza é a violência contra o homem e, portanto, o homem continua sendo a chave. (...) Mas como poderíamos nós censurar ou louvar o universo? Guardemo-nos de atribuir-lhe insensibilidade ou falta de razão, ou o oposto disso; ele não é perfeito nem belo, nem nobre, nem quer tornar-se nada disso, ele absolutamente 100


não procura imitar o homem! Ele não é absolutamente tocado por nenhum de nossos juízos estéticos e morais! Tampouco tem impulso de autoconservação, ou qualquer impulso; e também não conhece leis. Guardemo-nos de dizer que há leis na natureza. Há apenas necessidades: não há ninguém que comande, ninguém que obedeça, ninguém que transgrida. Quando vocês souberem que não há propósitos, saberão também que não há “acaso”. Guardemo-nos de dizer que a morte se opõe à vida. O que está vivo é apenas uma variedade daquilo que está morto, e uma variedade bastante rara. – Guardemo-nos de pensar que o mundo cria eternamente o novo. Não há substancias que duram eternamente; a matéria é um erro tal como o deus dos eleatas. Mas quando deixaremos nossa cautela e nossa guarda? Quando é que todas essas sombras de Deus não nos obscurecerão mais a vista? Quando 101


teremos desdivinizado completamente a natureza? Quando poderemos começar a naturalizar os seres humanos com uma pura natureza, de nova maneira descoberta e redimida? (NIETZSCHE, 2005, p. 136) Tropa de Elite (Elogio de Benjamin)

Figura 30 - Tropa de Elite (JosĂŠ Padilnha, 2007) http://br.youtube.com/watch?v=0jeTL9hC3Wg

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A irrupção da violência sem medida ou comedimento, sem qualquer propósito, sem causa, é sempre um evento que não pode passar despercebido; ele é necessariamente mobilizador e desafiador, na justa medida em que conduz a razão às suas margens e nós, às margens da civilização. Mas aqui, justamente onde a violência é mais absurda (sendo o indivíduo criminalmente imputável), cria-se um problema para a mecânica da pena. Em condições normais, a dor associada ao crime se resolve na reparação da falta, por meio da pena. Esta tem, portanto, uma economia que lhe é própria e visa, principalmente, recompor a harmonia rompida pela violência perpetrada, de modo que a imposição da pena restitui à vítima - e a sociedade é a vítima por excelência -, aquilo que lhe foi subtraído (nesta equação a vítima é o credor e o criminoso o devedor, sendo a pena o preço pela qual a dívida é resgatada). A forma contemporânea de distribuição da pena, a privação de liberdade, persegue este princípio econômico matematicamente, criando uma relação entre a gravidade do delito e o tempo de detenção. 103


Mas, uma vez extravasado o perímetro da civilização, contorno que é uma grandeza histórica; quando o crime é de tal ordem de violência, que a dor aparentemente não pode ser reparada por nenhuma pena - o que se afirma especialmente pela percepção difusa de que nenhuma pena existente seria suficiente -, como se pode, nesta precisa circunstância, restabelecer a harmonia que a economia da pena implica? Note-se que esta é uma questão política e não legal, pois o crime efetivamente praticado se resolve na pena, conforme os códigos in place. Diante, portanto, da violência que não se pode resolver em um quadro legal determinado, porque – para alguns ou muitos - excede suas promessas de reparação, estamos no terreno da política. Que a ação política apareça, portanto, vestida de toga, é algo próprio à circunstância, mas ainda assim uma farsa e um embuste. A reparação da violência extrema, última, hedionda, excede contudo a própria civilização, pois a progressão da pena decididamente não pode acompanhar o ato violento em si mesmo, a 104


não ser como negação de seus ideais. Quem no afã da matemática perfeita da economia da pena, do “olho por olho”, clama por vingança, não demanda a justiça, mas o direito de exceder os limites da civilidade, permanecendo, contudo, no perímetro societário. Quer, portanto, ser um selvagem, mas dentro da civilização, ao abrigo de seu sistema de salvaguardas: (...) Pergunta-se mais uma vez: em que medida pode o sofrimento ser compensação para a “dívida”? Na medida em que fazer sofrer era altamente gratificante, na medida em que o prejudicado trocava o dano, e o desprazer do dano, por um extraordinário contraprazer: causar o sofrer – uma verdadeira festa (...) (NIETZSCHE, 1988, p. 67) A demanda de vingança, contudo, raramente se resolve de modo tão cru, ou seja, a ela não é permitido reivindicar o ato criminoso em si mesmo, em sentido contrário (isso obviamente nos quadros da contemporaneidade). Sua forma típica 105


moderna, portanto, é uma solução de compromisso, em que se renuncia à verdadeira festa pulsional que os suplícios a impor implicam e que estão efetivamente na mente do demandante da vingança -, mas se mantém o valor positivo de sua intensidade, a devastação pretendida e, por conseguinte, a radicalidade do próprio clamor da vingança: é a morte como sentença que cumpre este papel. A forma organizada, regulamentada, que se prescreve para sua consumação, obviamente, em nada reduz sua potência, nem lhe confere um caráter mais “humano”, mas, antes, é uma adaptação ao quadro geral que caracteriza a sociedade contemporânea, que não pode lidar com a morte sem submetê-la, ao mesmo tempo, a um rigoroso controle médico, asséptico - note-se que a assepsia não é contingente no imaginário que remete à pena capital. (...) De que modo um poder viria a exercer suas mais altas prerrogativas e causar a morte se o seu papel mais importante é o de garantir, sustentar, reforçar, multiplicar 106


a vida e pô-la em ordem? Para um poder deste tipo, a pena capital é, ao mesmo tempo, limite, o escândalo e a contradição. Daí o fato de que não se pode mantê-la a não ser invocando, nem tanto a enormidade do crime quanto a monstruosidade do criminoso, sua incorrigibilidade e a salvaguarda da sociedade. São mortos legitimamente aqueles que constituem uma espécie de perigo biológico para os outros. (FOUCAULT, 1984, p. 130)

Figura 31 - Tropa de Elite (José Padilnha, 2007)

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A pena capital equivale, ainda, ao desterro definitivo da comunidade porque é, em si mesma, uma declaração de incompatibilidade entre o criminoso e o gênero humano, algo que se reconhece pelo fato de que a privação de liberdade jamais seria suficientemente longa, a ponto de resgatar a dívida que o crime implicou. A defesa da pena de morte, portanto, à parte de toda a tentativa de fundamentá-la na empiria da criminologia, nas sutilezas da ciência do direito, é a afirmação de um valor, que antecede todo o argumento: o estatuto humano é uma condição que se pode perder, em função do ato criminoso.

Figura 32 - Tropa de Elite (José Padilnha, 2007)

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Mas neste crime tão extremo quem nós enxergamos? Estamos face a face não com o homem, mas seu ancestral, o selvagem que antecedeu a cultura e a vida política; a forma exterior do homem, sem a sua substância humana. É esta fera que a retina retém, enquanto a memória mantém em evidência para si a dor do crime perpetrado. Mas como fera que de fato é, trata-se de uma modalidade especial, pois dela há em nós um quantum? Quanto? É a natureza da pena pela qual clamamos que nos informa. No ato de punição, na reação institucionalizada ao ato violento, nos vemos reflexivamente, e não como homem civilizado, mas como animal também nós, pois a reparação que a pena propicia é para a satisfação não exatamente da razão, mas da homeostase do afeto pelo corpo social. A necessidade de reagir ao ato violento de modo igualmente violento, e na mesma proporção, não está inscrito na natureza das coisas; não é nem mesmo natural; mas indica com segurança a agressividade potencial que se encontra contida no dique que a civilização é. O ato de horror identifica 109


o criminoso como tal; a reação a ele nos leva a nossa natureza mais íntima. O clamor pela lei mais dura, por mais repressão, mais presídios, menoridade penal, pena de morte, etc. não atende a uma demanda técnica, que, nos termos próprios da modernidade, se fosse demonstrável, justificaria tudo; não há propriamente uma avaliação empírica inquestionável que o justificasse, mas isso a rigor não tem importância alguma, pois não é de razão que se trata, mas de afeto, pulsão, restos irracionais do progresso.

Figura 33 - Tropa de Elite (José Padilnha, 2007)

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Se considerarmos, adicionalmente, que a violência não é algo abstrato, mas uma permanência em uma sociedade concretamente existente, com um dado nível de riqueza e distribuição da mesma, com um conjunto determinado de possibilidades de desenvolvimento de cada ser humano, na condição de cidadão médio, compreende-se então que o furor que a questão levanta não é algo que se possa esgotar sem mediações e de um modo puramente abstrato, como fizemos acima. A violência institucional como reação e reparação do equilíbrio, com a exata intensidade da ação delituosa - e é disso que se trata, quando o substrato da demanda é a vingança - é também a superimposição da desigualdade como regra e, neste aspecto ela é a virulência exponencial, pois aquilo que o criminoso toma, nesta modernidade conturbada que vivemos, não é simplesmente a vida ou a coisa; ele nos rouba a ilusão da própria civilização – é para um material repulsivo que ele nos faz olhar; todo o excremento que o progresso havia prometido limpar de nossas vistas. 111


A violência extrema e sem propósito, de que o próprio terror é ícone, é uma estraga-prazeres, pois nos coloca reiteradamente diante da realidade segundo a qual, a civilização remanesce como uma promessa e não como uma realização. Mas nós não queremos nos ver nesta condição vergonhosa, nesta barbárie que de fato existe, especialmente porque não nos julgamos merecedores dela e, a nosso ver, ela não existe como parte do mundo que efetivamente construímos, mas como sua negação irreconciliável e irresgatável. Todo o rigor da lei, todo o seu poder e potência, não é outra que não a fórmula através da qual afirmamos o progresso, por meio da negação da realidade. A pena capital como solução, a negação da humanidade que ela implica, significa exata e simplesmente que, aquilo que não pode se acomodar à civilização, mas que a própria civilização produz como condição mesmo de sua normalidade - esse excremento e esse lixo, essa escória, sem o qual o progresso, conforme o conhecemos, jamais teria existido - deve ser extirpado. A rigor, sob o ângulo de visão dos 112


cavaleiros da ordem e todo o seu séquito de bons funcionários, não se trata aqui nem mesmo de direito - é uma medida de profilaxia, de saúde pública, equivalente a uma campanha de higienização, que elimina seres, de toda forma, considerados abjetos e epidemicamente perigosos.

Figura 34 - Salvador Dali http://www.consciencia.org/bancodeimagens/Dali/pic26.html

E quando esta solução radical é admitida pela lei em toda a sua dureza, toda a natureza da pena 113


fica subvertida, pois a sua progressão não é mais apenas uma tentativa de recomposição da harmonia quebrada, mas a ameaça subliminar de que a civilização tem uma solução definitiva para os indesejáveis que não pode deixar de criar. A pena de morte é, portanto, em certa medida, um elixir da juventude, para uma sociedade decadente, pois, em vez de permitir ver que as falhas de sociabilização são, em algum grau, um problema que excede o indivíduo, afirma, por meio da eliminação deste indivíduo problemático e irredutível a seus termos, que livre dos seus dejetos, a sociedade é perfeita. Esta é a meta sociológica final dos postulantes da pena de morte, mesmo que eles sejam filósofos progressistas em crise de consciência, ou que formulem sua demanda a partir da inconsciência e do irracional, sentados sobre sua fúria e repulsa: pois o que se estabelece como lei, no código, não é destinado a nenhum caso particular, mas a criar o tipo, a partir de que todo caso particular será julgado. Uma vez entendido o que conduz à pena de morte como proposta, cabe compreender, então, 114


onde se fundamenta sua negação (atenção, que estamos novamente no campo da política). O argumento (essencialista) de que ela deve basearse na dignidade irredutível do ser humano é com certeza um primeiro passo, mas logicamente é tautológico, uma vez que afirma a conformidade da sensibilidade consigo mesma, através da equação homem = homem. Que o homem remanesça como tal, independentemente do que faça e, portanto, sujeito eterno de direito, é o requerimento que apresenta. Mas isto é um valor e, justamente o valor de que se partiu - uma circularidade. Mas tem que ser assim, pois somente os incautos esperam da ciência uma pureza empírica que ela jamais poderia conceder. O debate, portanto, quanto à questão da pena capital, é em primeiro grau, a explicitação do valor subjacente ao argumento e dos seus desdobramentos. Neste aspecto, a reivindicação essencialista pode ser desdobrada logicamente em dois momentos. Ela pode ser a negação da pena de morte com fundamento na identificação com o 115


homem inocente e, portanto, o que se quer evitar é o erro de justiça, por amor do inocente, e não por compaixão pelo criminoso. Remanesce aqui, então, uma interdição teológica: só a Deus é possível separar perfeitamente os ímpios dos puros! Na sua forma propriamente terrena, no entanto, ela revela apenas o terror de que o próprio eu puro pudesse vir a ser confundido, por homens, com os ímpios. Afasta-se assim a pena de morte, mas se preserva íntegra a agressividade contra o criminoso, que, quase universalmente culpado, se safou pela improbabilidade estatística do inocente. Resta aqui, portanto, uma solução de compromisso com os requerimentos da agressividade contida, que se resolve logicamente pela fé e pela esperança, de que todo o rigor da pena cairá do céu: a justiça que o homem não puder fazer, Deus fará. Neste contorcionismo salvam-se o homem puro – o pacato cidadão - e toda sua agressividade, pois o não matarás se realiza na firme expectativa de que Deus redimirá o crime e punirá os ímpios. Mas quem é este Deus

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vingador, senão o próprio desejo de revanche denegado? O segundo momento envolve também a identificação, mas ela se dá com o homem que o criminoso é, e não com sua condição de culpado ou inocente (e muito menos ainda com seu ato). Mas esta equivalência só é possível se negarmos como realizado, aquilo que permanece como promessa, se aceitarmos que, também em nós, a sociabilização, a submissão à cultura e à política, ainda são conquistas precárias e constantemente sob ameaças16. Não se trata, no entanto, da falácia segundo a qual somos todos culpados, pelo crime que fulano ou cicrano cometeu. Não, definitivamente não o somos, nem mesmo mediatamente. Se fosse assim, nenhuma pena poderia ser requerida, pois, onde todos são culpados, ninguém é culpado. O que nós recusamos é que o mal tenha natureza metafísica, ou, ainda, que ele possa ser extra-humano. Não aceitamos que atos criminosos sejam ações de bestas, de feras, o que só se pode defender por força de declarar como transcendentes, pulsões 117


que são humanas. Mas, se a razão se dedica a reduzir as pulsões declaradas autônomas, a sua raiz comum, o homem, o que encontramos é um ser muito mais complexo; contraditório, agitado, massacrado por requerimentos que, invariavelmente, são divergentes. Que ele lide tragicamente com esta constituição complexa, não lhe retira o estatuto humano, mas confirma a natureza de sua constituição. Se, portanto, o humanismo é uma reivindicação radical, se a razão se pretende terrena, eles tem necessariamente que se resolver em um abraço na totalidade do ser que o homem é; sua grandiosidade, mas toda sua sombra, os seus terrores noturnos em meio à luz do dia. Para que a civilização remanesça como promessa, ela não pode se fundamentar em um homem unilateralizado, idealizado; ela deve lutar por cada um de seus indivíduos e não deve perder nenhum deles, porque ela só se realizará se puder existir universalmente. Talvez por isso Walter Benjamin tenha chegado à conclusão que no dia do juízo final, se salvarão os puros e os pecadores.

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Esta é a fórmula teológica do mais rigoroso humanismo. *** Quinhentos mil contra um Linchamento é fruto de um Estado débil. No ranking do horror São Paulo, Salvador e Rio lideram Flávia Tavares http://www.estado.com.br/suplementos/ali/2008/02/17/ali1.93.19.20080217.7.1.xml

Bope pode estrelar seriado com imagens reais de confronto Segundo comandante do Batalhão de Operações Especiais, não há nada oficial Raphael Gomide da sucursal do Rio http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0203200815.htm

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Truculência também é cultura? Deputado quer fazer da caveira do Bope, a tropa de elite da PM carioca, patrimônio cultural do Rio de Janeiro Sérgio Augusto http://www.estado.com.br/suplementos/ali/2008/03/02/ali1.93.19.20080302.10.1.xml

Caveira motivacional Como as regras do Bope viraram tema de palestras aplicadas ao dia-a-dia de grandes empresas MAELI PRADO DA REVISTA DA FOLHA http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2303200825.htm

Aforismos I Uma prova de filosofia inteligente deveria indagar porque Nietzsche sentia uma permanente

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sensação de asfixia e porque recorrentemente lhe faltava ar puro. O abstract revela como forma, a natureza mesma do pensamento que se submeteu aos reclamos da ordem: a exigência prática de enunciá-lo de maneira sintética, com economia de linguagem e, se possível, segundo todo o formalismo do raciocínio matemático. Sua subordinação à dinâmica de uma sociedade que não tem mais tempo, é a afirmação da industriosidade no campo intelectual. Deste modo, na cultura do abstract desenvolve-se o pensamento como negação do trabalho artesanal, que é o conceito. Obviamente não tardaria a época em que as técnicas que permitiram escrever romances em série, que criaram a novela e o seriado - como produto por excelência da TV -, que geraram os filmes como diversão e os romances como preâmbulo do filme, chegariam ao campo da filosofia e da ciência. Há uma afinidade intrínseca entre o script hollywoodiano, os protocolos e os abstracts: eles requerem que a vida como tensão 121


se redima por meio do esquematismo de uma esperança, que se afirma por desterrar a contradição. O aforismo é o contra-abstract, a preservação do pensamento crítico na concisão. Especialmente na forma Nietzsche foi um visionário. Nietzsche teve que referir-se a si mesmo como homem póstumo. Ele não acreditava que pudesse ser compreendido por sua época e depositava suas esperanças no futuro, em homens novos. Nós, para fazer face à contemporaneidade, devemos ser homens pretéritos. Nietzsche estava à frente de seu tempo; nós devemos recuar com relação ao nosso: somente assim nós poderemos encontrar o homem póstumo que Nietzsche aceitou ser, como parte de seu próprio programa filosófico. Para nós, o futuro deve iniciar-se na memória. A filosofia foi historicamente uma atividade contemplativa, ou seja, que não se reduzia a um fim prático reconhecível. No mundo moderno, em que todo o valor é, de algum modo, uma afirmação de natureza prática, ou seja, é uma remissão à 122


utilidade imediata, não se excetuando nem mesmo a atividade intelectual deste requerimento, a filosofia deve aparecer como obra de vagabundos. Será que está destinada aos vagabundos a redenção da filosofia? Nietzsche não foi um relativista e o que como tal existe nele é o mais desesperado apego à possibilidade da razão objetiva. Fundiu-se nele a crença inabalável no estatuto da verdade e na sua condição de produto humano: esse último puxão da razão para a terra levou necessariamente, contudo, à aparição do herói, a quem cabe criar o mundo como realidade humana – a batalha do herói é o valor. Viva Zaratustra! A perda da aura na obra de arte Qualquer que seja a forma social do processo de produção, este tem de ser contínuo ou percorrer periodicamente, sempre de novo, as mesmas fases. Uma sociedade não pode parar de consumir, tampouco deixar de produzir. Considerado em sua permanente conexão e constante fluxo de renovação, todo processo social de produção é, 123


portanto, ao reprodução.

mesmo

tempo,

processo

de

As condições da produção são ao mesmo tempo as condições da reprodução (...). Se a produção tem forma capitalista, então terá a reprodução. (MARX, 1985, p. 153) Do ponto de vista estritamente lógico, a reprodução é, comparativamente à produção, realidade mais concreta. Compreende-se esta condição a partir da circularidade que o processo de produção de mercadorias de fato é: seria como que necessário interrompê-lo, para que fosse possível identificar os elementos que ingressaram no primeiro ciclo, mas isso seria para a situação econômica, aquilo que a vivissecção é para biologia: a pesquisa da vida, enquanto ela se esvai. A mercadoria, portanto, conforme nós concretamente a encontramos no mercado, é o fruto do processo reprodutivo, o que significa 124


dizer, que o valor pelo qual ela se realiza e pode, portanto, mergulhar na esfera privada do consumo, depende das condições de sua reprodução e não da história produtiva que a gerou como valor. As conseqüências propriamente econômicas desta exigência são facilmente reconhecíveis, sendo, talvez, a mais importante, a que impõe o valor de realização pelas condições técnicas presentes do processo produtivo, de tal modo que, todo o desenvolvimento tecnológico que aumenta a produtividade do trabalho, torna irrealizável uma porção do trabalho socialmente necessário, que derivava do status pretérito do processo produtivo. O bem cultural, portanto, desde que se coloque como mercadoria, já é pensado do ponto de vista da reprodução, o que significa dizer que todo o processo se subordina à natureza meramente probabilística da realização, fato que decorre da natureza privada e competitiva do próprio sistema produtivo. Deste modo, desde o princípio, aplicam-se logicamente ao bem cultural na sociedade mercantil - os ditames da atividade 125


produtiva enquanto tal: o parcelamento de trabalho, o uso intensivo da técnica e da tecnologia, etc. Esta subsunção pode ir até mesmo ao aspecto mais estrito, quando além de ser produzido diretamente para o mercado, para ser vendido, o bem cultural é gerado segundo as técnicas industriais de produção de mercadorias, sendo exemplos desta prática o parcelamento de atividades entre escritores17, para a elaboração do romance de folhetim, conforme indicado por Benjamin, ou o plugging, estudado por Adorno quanto à composição da música popular, a ser veiculada pelo rádio. (...) Para satisfazer a enorme demanda, os autores populares aliam-se a escrevinhadores literários que lhes propiciam inestimável ajuda na criação de obras padronizadas. São montadas verdadeiras fábricas de literatura, nas quais os romances são produzidos de modo quase mecânico. Numa ação judicial, fica provado que Dumas publica mais com seu próprio nome do que 126


poderia escrever mesmo que trabalhasse dias e noites a fio sem pausa. De fato, ele emprega setenta e três colaboradores e com ele um Auguste Maquet, a quem concede uma quase autonomia de produção. A obra literária converte-se agora em “mercadoria”, na plena acepção da palavra; tem tabela de preços, é produzida de acordo com um modelo e entregue numa data fixada de antemão. É um artigo comercial pelo qual se paga o preço que vale - isto é, o lucro que dá. Não ocorre a nenhum editor pagar ao sr. Dumas ou ao sr. Sue um único centavo além do que deve e pode pagar. Os autores de folhetins de jornais não diferem, portanto, quanto à “alta remuneração”, dos astros e estrelas do cinema atual; seus preços ajustam-se à demanda e nada tem a ver com o valor artístico que produzem. (HAUSER, 1998, p. 740)

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O problema todo aqui – ou seja, sob o ponto de vista da lei do valor - está contido, contudo, em um outro ponto: quando o produto do trabalho humano emerge na condição de obra de arte, aquilo que se pode apropriar como mercadoria, não é a obra enquanto tal, mas sua exterioridade. Deste modo, que um livro, por exemplo, seja pensado desde o princípio como um produto rigorosamente industrial, com uma contabilidade de custo a mais acurada, não o transforma necessariamente em bem da indústria cultural em sua natureza mais íntima, pois, se foi produzido como obra de arte, foi gerado como negação da mercadoria, ou seja, como algo irredutível ao padrão, ainda que possa ser multiplicado. Deste modo, mesmo que sua expressão exterior possa ser reproduzida, o processo do qual ele emerge como obra de arte, não pode ser reproduzido, posto que irredutível à condição de trabalho abstrato. Não é um acidente, portanto, que Marx afirme que a obra de arte não está sujeita à lei do valor, uma vez que, enquanto tal, ela não é passível de reprodução, segundo uma destreza 128


média e um tempo de objetivamente determináveis.

trabalho

médio,

A arte, contudo, não é um fenômeno diretamente econômico, razão pela qual é preciso levar a questão mais adiante, ou seja, para além da teoria do valor. Mesmo tendo sido gerada como obra de arte, ou seja, como negação da mercadoria, o bem cultural pode sofrer uma degradação decorrente da sua mera reprodutibilidade técnica, uma espécie de extravasamento por meio do qual ela perde seu poder crítico, sua aura (sua distância). Este é precisamente o problema que a reprodução da pintura pela fotografia coloca, no que é seguido pela execução sinfônica no radio, o teatro na televisão, etc. A alteridade, o estranhamento que a obra de arte deveria causar, é afetado por sua reprodução, por sua perda de contexto, de modo que suas possibilidades críticas são reduzidas. A perda de aura da obra de arte indica, igualmente, uma tendência ao processo de aprofundamento da sujeição do indivíduo à 129


realidade que o esmaga, pois é mais um dos campos em que o ideal, como oposição necessária feita pelo indivíduo ao real, é tendencialmente esvaziado. A advertência de Benjamin quanto ao cinema18 - sua subordinação direta à necessidade reprodutiva - e suas construções em torno da perda da aura só podem ser corretamente entendidas, contudo, no âmbito de uma teoria estética que não tem o belo por fundamento, e que compreende o próprio valor da obra de arte em função de sua historicidade, ou seja, de sua relação para com a totalidade social de que emerge. É dentro desse contexto que surgem as questões envolvendo, por exemplo, o valor de exposição da obra de arte, em lugar, ou alternativamente ao valor de culto.19 Aparentemente Adorno angustiou-se verdadeiramente com estes mesmos problemas, pois via uma redução ininterrupta das possibilidades do estabelecimento de um juízo crítico, na medida em que porções progressivamente maiores do imaginário individual iam sendo invadidas pela subsunção de toda a 130


dimensão cultural à forma mercadoria. Procurava na estética e, mais especialmente na música, a ponte, a partir do qual o real poderia ser acessado e re-substancializado. Os desenvolvimentos de Benjamin para o mesmo problema são, contudo, distintos e remanesceu aqui uma discordância entre os dois autores que jamais se resolveu20. Para Benjamin, a crítica da aura integrava sua tentativa de eliminar preocupações como gênio, valores eternos e segredo na teoria da arte, pois esses se revelavam úteis para a propaganda cultural fascista. A metacrítica adorniana de um certo “desconforto contra a aura” é, portanto, extremamente séria ao acusá-la de recair naquilo que critica. Adorno defende uma rebelião contra a semelhança como ilusão, mas esta rebelião de maneira alguma deve destruir a separação entre arte e vida. O rigor com que Adorno rejeita a crítica da aura torna-se compreensível apenas quando temos em mente que está atacando os pressupostos básicos de sua 131


estética. Para ele, a arte ou é radicalmente autônoma ou não é arte. Para ser fiel ao status de autonomia da arte, ele precisa da categoria da semelhança, a recuperação do que denomina “central à estética” O desconforto de Adorno quanto a qualquer desafio à autonomia da arte encontra sua mais pura expressão em sua interpretação da intenção vanguardista que ele considera não estética. Pelo contrário, não luta pela pureza artística, mas tenta ultrapassá-la. O ataque da vanguarda à autonomia da arte foi o ponto de partida de Benjamin à sua tese da perda da aura. Na opinião de Adorno, isto só pode ser uma falsa eliminação da semelhança estética, nunca o ponto histórico de onde captar as contradições da arte na sociedade burguesa. Eis o núcleo do antivanguardismo adorniano. Adorno freneticamente tenta assegurar que a 132


divisória entre a arte e os demais campos não seja violada, contra as tendências a desmoronar a arte em ação (dadaísmo), expressão (expressionismo) e a revolução da vida cotidiana (surrealismo). Como ele não pode conceber a tentativa de devolver a arte à práxis, como etapa necessária no desenvolvimento da arte na sociedade burguesa, mas só pode evidenciar uma regressão à barbárie, sua crítica das categorias estéticas idealistas termina nessa redescoberta. O mesmo vale também para a categoria da semelhança. Incorpora insights da crítica ao fantasmagórico em sua Teoria Estética, sem qualquer efeito sobre a redescoberta da semelhança. “A ilusão, que proclama o inefável, não transforma as obras de arte literalmente em epifanias, não interessa quão difícil possa ser à experiência estética genuína deixar de crer que o absoluto esteja 133


presente nem obras de arte autênticas. Essa fé é desperta pela grande arte”. Ainda que as palavras estejam cuidadosamente selecionadas, aqui está claro que Adorno recupera o que criticara em seu livro sobre Wagner: a reivindicação idealista de que a arte é uma realidade sui generis — uma aparência do absoluto. (BÜRGER, Piter. O antivanguardismo de Adorno. Texto em formato eletrônico). Sítio: http://antivalor.atspace.com/Frankfurt/burger.htm) É preciso considerar, contudo, sem que isso implique tomar partido de um dos lados da contenda, que a obra de arte, na justa medida em que possa preservar a memória da objetivação do trabalho humano, segundo critérios que se opõe à produção de mercadorias, mantém-se como promessa de felicidade. Em seu desenvolvimento integram-se, em um só movimento, o relacionamento lúdico com o mundo, e uma experimentação do tempo que não é imposto de 134


fora do processo que institui o objeto, mas ao contrário, requer o abandonar-se aos requerimentos do seu processo de nascimento. Mas o que sucede ao homem, quando ele não impõe o seu tempo, como uma violência à gênese do objeto, mas se abandona aos requerimentos de tempo do próprio objeto, que busca fazer-se presença? Se a natureza tem a oportunidade de refletir-se no domínio do espírito, adquire uma certa tranquilidade pela contemplação da própria imagem. Este processo está no âmago de toda a cultura, particularmente na música e nas artes plásticas. (HORKHEIMER, 2002, p. 179) Essa tranquilidade, não sendo ela a reconciliação do homem com a natureza, com que a filosofia vem sonhando desde sempre, pode apresentar-se na condição de uma promessa de apaziguamento futuro. O Big Brother como paródia de um ensaio filosófico 135


(para a crítica dos textos de Renato Janine Ribeiro)21

Figura 35 - E o vento levou (Victor Fleming, 1939) http://www.youtube.com/watch?v=7VcRtR217Yw

Dificilmente se pode imaginar algo que dignifique mais a dor do outro, na perda daqueles que ama, que o silêncio, pois ele afirma justamente o inatingível e o incompreensível daquela experiência. O silêncio reconhece na dor a mente rarefeita e aérea, que quase não pode respirar na altitude de seu desespero; o terror abissal da perda; o coração arrancado ainda 136


quente pela boca do estômago; a repulsa como vômito e os seus odores, o choro como um erupção vulcânica, mas também como a garoa fina e constante de um dia modorrento. Ainda assim o silêncio é uma contenção, porque há algo na dor do outro, que remanesce inalcançável e, portanto, inexprimível. As plateias de todos os estádios de futebol do mundo são educadas em concordância com valor inestimável do silêncio como reverência à morte; os filósofos, contudo, criam eles mesmos os códigos morais, de modo que, podem desenvolver seus próprios métodos de reverência.

Figura 36 - E o vento levou (Victor Fleming, 1939)

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A apropriação (metabolização) da morte pelo psiquismo é algo extremamente complexo, donde os tabus que envolvem os mortos e seus familiares; as prescrições e ritos de expiação, o luto, etc. Em todos estes processos a ambivalência está presente, de modo que uma plêiade de sentimentos contraditórios se acotovela, reclamando seu território. As pessoas que se apresentam diante da morte como seres humanos reais experimentam este tumulto afetivo, alternando em seus discursos, em seus corpos, o frenesi de impulsos que não são coerentes ou racionais. Quem se identifica verdadeiramente com o outro na ocorrência trágica, toma-lhe, portanto, por força mesmo desta identificação, toda a ambivalência que a situação implica. Não é de se crer, portanto, que a identificação neste caso possa dar margem a bons ensaios e se eles fossem possíveis de serem escritos, deveriam, por força da identificação, produzir uma atmosfera de ar irrespirável, a claustrofobia das situações irreparáveis, a vertigem da perda e ódio atávico pelo outro, que ao perpetrar a violência do 138


assassínio, expõe-se no imaginário ao mesmo destino. Portanto, para ser filosófico o texto deve superar a identificação em seu caráter imediato (o terror da situação), ou, mantendo-se firmemente apegado a ela, deve ser um grito de horror e de ira; deve ter uma tensão tal, que conduz para além de uma racionalização do sentimento, que é sempre e inevitavelmente o rebaixamento tanto da razão quanto dele mesmo. Mas o filósofo quer expressar-se, quer dizer o indizível, mas, pasmem, ele fala de fúria como quem balbucia; de ódio, como quem esmurra o oponente, na firme convicção de que a briga será apartada. Não, não lhe ocorre o ódio como um cataclismo, como a absoluta ausência de luz, que leva um ser humano a agarrar-se ao pescoço de um outro, desejando esgotar-lhe a vida com as mãos. A fúria e o ódio do filósofo são manifestações inibidas, ainda sob o peso da censura: falta-lhe legitimidade para odiar como toda a potência do ódio; para verter no interior do seu discurso toda a irracionalidade de seres humanos que, sob a força aleatória do destino, se 139


viram privados das primícias dos abraços e dos beijos, de uma manhã sorridente, da voz infantil no banheiro, das visitas noturnas e sorrateiras, que normalmente se recusa e afasta como quem ainda quer o aconchego da cria, no ninho do corpo. O ódio mais potente talvez seja apenas o anverso do amor, cujo objeto foi tomado pelo evento trágico. Mas justamente por isso a identificação é ilegítima e inexeqüível: esta perda é vivida como um útero que murcha e que resseca; como se de repente sobreviesse sobre o correr do tempo um outono perpétuo. A identificação, mesmo que pudesse conduzir ao ódio do momento, não poderia acompanhá-lo pela dolorosa trajetória que leva, por fim, a uma ausência onipresente: as fotos na parede, o terço sobre o criado mudo, o lugar vazio, eternamente vazio, que redefine pelo peso da sua ausência, toda a espacialidade do território privado. Mas o filósofo quer expressar-se.

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Figura 37 - Carne Trêmula (Pedro Almodóvar, 1997) http://www.youtube.com/watch?v=pYLgjp9yON0

Sendo patriarcal a conformação societária, os homens espancam as mulheres como uma espécie de direito consuetudinário: esta é a forma específica e incivilizada que encontram para declarar em alto e bom som sua condição de derrotados, no campo moral, afetivo, econômico, whatever – eventualmente o detonador da violência é a relação imediata com a mulher, mas isto é uma circunstância. As situações de agressão têm a natureza de choque eletrostático, ou seja, recompõem a homeostase cerebral masculina: na violência a derrota efetiva é denegada e a força impõe uma igualdade que só existe no imaginário 141


do agressor. Deste modo, a violência contra a qual não tem coragem para lutar e à qual se sujeita como menino de colégio, transforma-se na coragem desinibida com que espanca sua parceira.

Figura 38 - Carne Trêmula (Pedro Almodóvar, 1997)

A primeira surra cria o modelo e as vias da descarga eletrostática, que apaziguam o sentimento de inferioridade do agressor. Aprendido o caminho, portanto, o herói emasculado passa a ser um violento metódico e sistemático – agride com a mesma constância com que se sente agredido e, para infelicidade da vítima, tão logo tenha achado um lugar para 142


depositar sua fúria reversa, nosso herói torna-se imbatível: não há agressão que não possa suportar. Esta perversão, que a um tempo é imemorial, mas que em larga medida é especificamente moderna – uma vez que a racionalização absoluta e a sujeição incondicional requeridos pela ordem, conduzem à autoagressão sem limites -, só pode ser a perversão à n-ésima potência se for, ao mesmo tempo, motivada por amor. Em nome do amor se espanca como quem agride a si mesmo; pois não se bate em nome da própria fúria, mas como um requerimento do outro, que não se encontra à altura do amor que recebe. Em nome do amor espanca-se não como impulso interno, mas como quem é incitado pela vítima ao espancamento: ela clama pela agressão, como tributo mesmo à sua incapacidade de amar, na intensidade com que seu parceiro violento a ama. Para este títere da paixão, o fervor absoluto de seu amor, a elevação etérea de seu sentimento, entra em contato com a terra, então, não mais com a intensidade da descarga eletrostática, mas como o próprio cataclismo da natureza. Mas o que isso 143


tem a ver com nossa questão? Ora, a suprema fúria, a agressividade mórbida, só pode afirmar-se e manter-se digna se for, ao mesmo tempo, racionalizada como a suprema forma de elevação: o espancamento em nome do amor, a ira santa; a barbárie em nome da civilização: O superego, impotente em sua própria casa, torna-se algoz na sociedade. Esses indivíduos se gratificam em se sentirem campeões da civilização, ao mesmo tempo que liberam desejos reprimidos. Desde que a sua fúria não supera o seu conflito interior, e desde que sempre existem muitos outros sobre os quais exercê-la, essa rotina de supressão se repete indefinidamente. Tende, assim, para a destruição total. (HORKHEIMER, 2002, p. 123-4)

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Figura 39 - Carne Trêmula (Pedro Almodóvar, 1997)

O terrível no amor violento está, no entanto, ainda mais além, no seu ardil: na falsidade que representa com todos os elementos do verossímil, ata à alucinação do amor o agressor e o agredido, de maneira que ele jamais será para ambos mais do que a força cega de uma natureza que os transcende e que, portanto, se apresenta a eles como uma fatalidade insuperável. Mas esta rigidez é o seu propósito único: o amor violento não quer se superar, não quer agir ou ir para além de si; quer, ao contrário, apresentar-se continuamente no palco trágico. Ele quer expressar-se, ainda que na plenitude de sua performance dramática encontre recorrentemente o pretexto de partida 145


(pré-texto). O amor violento não formula nada, não promete nada, é um discurso interrompido, pois é um compromisso recorrente consigo mesmo e sua meta é expressar-se: a do filósofo também. Mas o amor como essência é a negação do pretexto: ele é a exuberância da vida, o pleno ainda mais pleno, o sublime ainda mais além e, portanto, uma gratuidade, um sem motivo, um transbordamento do indivíduo abundante. Por não se mover por um pretexto, o amor honra e dignifica o outro e não o toma como meio para um propósito narcísico. Pois o outro como pretexto é o apagamento do mundo e de seu sofrimento real, sua conversão em grandeza puramente teórica, sujeição à frieza esquemática e, portanto, um manifesto em favor da razão divorciada da sensibilidade. Não surpreende, portanto, que da remissão ao horror em sua potência máxima, Auschwitz, reste para o filósofo mais que tudo, o ressentimento da não percepção, pelos leitores, da originalidade de sua formulação: que plateia mais estúpida! 146


Figura 40 - Carne Trêmula (Pedro Almodóvar, 1997)

Mas o filósofo quer expressar-se e nesse ímpeto ele age como aqueles exibicionistas, que correm nus pelos campos de futebol: aproveitam a aglomeração para chamar para si todas as atenções, todos os olhares. E mesmo que possam antecipar a censura de que serão vítimas, seu prazer aumenta na medida daquela, pois a inclinação irrefreável a exibir-se, como sobredeterminação de uma constituição narcísica, aparece a eles não como o que de fato é, mas como a própria coragem de desnudar-se em público. Adota, portanto, como sua, a fórmula 147


mágica do Big Brother – a transparência como uma incitação narcísica do voyeurismo22. Mas o filósofo quer expressar-se, rasgar suas roupas, colocar-se nu: quer que plateia se delicie diante de seus dotes – uma versão para consumo pseudo intelectual do garoto sarado. O corpo, sempre o corpo, esta danação! Mas o que é o suplício medieval, tão caro ao nosso filósofo da expressão, a ponto de desejá-lo com vingança contra os perpetradores da barbárie. [Demiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [onde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí seria erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com 148


fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos no fogo, reduzido a cinzas e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d´Amsterdam]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas... (...) O Senhor Lê Breton, escrivão, aproximouse diversas vezes do paciente para lhe perguntar se tinha algo a dizer. Disse que 149


não; nem é preciso dizer que ele gritava, com cada tortura, da forma como costumamos ver representados os condenados: “Perdão, meu Deus! Pedrão, Senhor”. Apesar de todos esses sofrimentos referidos acima, ele levantava a de vez em quando a cabeça e se olhava com destemor. As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer dores inexprimíveis. O senhor Lê Breton aproximou-se outra vez dele e perguntoulhe se não queria dizer nada; disse que não. Achegaram-se vários confessores e lhe falaram demoradamente; beijava conformado o crucifixo que lhe apresentavam; estendia os lábios e dizia sempre: “Perdão, Senhor.” (FOUCAULT, 1987, ´. 9) O suplício como pena é a materialização do direito absoluto do monarca sobre o corpo do paciente; seu privilégio infinito de vingança, pois, na medida em que encarna a soberania – em 150


caráter diretamente pessoal – todo o crime é um atentado contra o seu corpo (do rei). A economia do suplício, portanto, é da esfera da representação e da demonstração; compreende em si a descontinuidade e a desproporcionalidade: o suplício é concebido para produzir horror e, por meio deste, paralisar todo aquele que tem em mente a intenção criminosa, ainda que mediata, de tocar o corpo régio. Requer, portanto, o rei e a forma de soberania que a ele se vincula. Quando na república se requer o suplício, a demanda para não ser falsa exige aquela mesma soberania como farsa: o rei filósofo e, por quê não, eventualmente, o Füher? Afinal de contas, o filósofo quer expressar-se. É preciso encontrar os meios adequados à consumação de seu desejo. A fisiognomia como categoria Em seus estudos sobre o rádio e suas implicações sobre a audição dos ouvintes, Adorno se vale da fisiognomia como método. É legítimo falar de Walter Benjamin, por outro lado, que parte significativa de sua obra se dedica a estudos 151


fisiognômicos da cidade - ainda que a grande meta seja a modernidade. Parece valer a pena, portanto, exercitar-se na abordagem fisiognômica, mesmo que ela recaia sobre elementos arbitrariamente destacados da vida cotidiana.

Figura 41 - A fantástica fábrica de chocolate (Tim Burton, 2005) http://www.youtube.com/watch?v=rUPCq4U7Mn8

*** Sabe-se hoje, que o padrão alimentar imposto pela industrialização e que a ansiedade, inerente 152


às rotinas que se requer das crianças, têm produzido um tipo que se conhece por respirador oral, caracterizado por ser um indivíduo, em maior ou menor grau, inconsciente de seu nariz. À parte das inúmeras possibilidades de explicação fisiológica que o fenômeno pode encontrar (dentre os quais aquela envolvendo as adenoides), entende-se como fundamental as questões que envolvem a nutrição, aleitamento, etc.

Figura 42 - Tempos Modernos(Charles Chaplin, 1936) http://www.youtube.com/watch?v=a0XjRivGfiw

A rigor parece haver uma relação entre a perda de textura dos alimentos industrializados concebidos para serem de fácil e continua deglutição – e a própria perda do tônus da face, 153


conduzindo a fisiognomia facial a uma conformação flácida, semelhante, por exemplo, à de um bulldog, no que se assemelham inclusive pela perda intensa de líquidos pela boca. Ora, espelha-se na própria face, a flacidez que se nos é requerida como seres, sendo que esta mesma ausência de tonicidade vai, por fim, tomando todo o corpo, de modo que a forma redonda, coloidal, gelatinosa parece converter-se ou tender a fazê-lo, na forma típica do ser humano. Esse processo, ainda que não se possa reduzi-lo à questão alimentar, é uma determinante no mínimo promissora para a pesquisa e para a indagação filosófica. Ora, o que leva o criador a superalimentar seus animais – o rebanho de Nietzsche -, o que pensa quando faz o contrário? O que é a superalimentação, senão um torpor geral do ser; uma total impossibilidade de diferir o desejo, no que a ingestão contínua de guloseimas se converte em sua contínua e permanente satisfação pronta.23 Com isso, em lugar de se afirmar por meio da opulência a liberdade, 154


transforma-se aquela na forma mórbida pela qual a mais completa servidão pode ser edificada: o ferro de madeira! [e] Nem sequer de madeira de Nietzsche. No passado pensava-se que a pobreza reduzia à animalidade; descobrimos hoje, como certo horror, que a opulência pode fazer o mesmo. A relação com a opulência é ela mesma, contudo, ambivalente e à autossatisfação do locupletar-se e do chafurdar na abundância corresponde, como par oposto necessário, o regime e a dietética; a disciplina do corpo e da mente, de modo que rápida e prontamente um converte-se no próprio fundamento do outro. O gozo e a fruição como metas autônomas, como positividades, são ao mesmo tempo a mortificação do corpo, a somatização ansiosa; o cuidado neurótico de si, os exames, o check up, a medicina invasiva; uma cartografia íntima, a catequização e civilização do corpo. É preciso não deixar passar, contudo, a oportunidade de ver no corpo, na corporalidade, o destino da cultura; lugar de sua realização. A 155


dietética 24, os regimes, a medicina, a higiene, etc., são a cultura concentrada. (...) Já vimos que a teoria do corpo é essencial para a teoria do consumo – uma vez que o corpo constitui o resumo de todos estes processos ambivalentes: investido ao mesmo tempo narcisisticamente como objeto de solicitude erotizada, e investido “somaticamente” como objeto de preocupação e de agressividade” (BAUDRILLARD, 1975, p. 316-317) No que diz respeito à nossa época esta corporalidade é uma tensão, um retesamento do espírito, por meio do corpo: a magreza, o look quase esquálido se erigiram no padrão absoluto de beleza, a ponto da anorexia nervosa e da bulimia estarem se transformando em uma recorrência; lugar comum25. Que sociedade é esta que impõe a seus membros tendências tão absolutamente contraditórias: o sedentarismo, a superalimentação, o privilégio de não andar, de ir 156


de carro, de se ver pronta e plenamente atendido, no que se compensa pela recorrência dos regimes e suas fórmulas absolutamente mágicas, a academia, o laxante, o diurético, a esteira ouvindo música, etc. Como requerimento, obviamente esta é uma unidade problemática, fazendo lembrar as atitudes da mãe psicótica, que elege as demandas e ações contraditórias como forma acabada de pedagogia - na qual se alternam a candura patológica e a censura sem referências, como signos máximos do afeto.

Figura 43 - A comilança (Marco Ferreri, 1973) http://br.youtube.com/watch?v=QP0h2l4BPIo

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Figura 44 - A comilança (Marco Ferreri, 1973) http://br.youtube.com/watch?v=PFVattm2tPY

Mais do que na higiene, é na ascese dos “regimes” alimentares que se descortina a pulsão agressiva em relação ao corpo, pulsão essa “liberada” ao mesmo tempo em que ao corpo. As sociedades antigas tinham as práticas rituais de jejum que, enquanto práticas coletivas associadas com a celebração de festas (...), tinham 158


como função drenar e reabsorver na observância coletiva toda a pulsão agressiva espalhada em relação ao corpo (toda a ambivalência do laço com a alimentação e o “consumo”). Ora, as diversas instituições do jejum e da mortificação caíram em desuso como arcaísmos incompatíveis com a libertação total e democrática do corpo. A nossa sociedade de consumo já não suporta e exclui até por princípio toda norma restritiva. Mas, ao libertar o corpo em todas as suas virtualidades de satisfação, julgou libertar uma relação harmoniosa que preexistia naturalmente no homem entre ele e o corpo. Acabou por descobrir que cometeu um erro fantástico. Toda a pulsão agressiva também então libertada e não canalizada pelas instituições sociais, reflui atualmente no próprio seio da solicitude universal pelo corpo. É ela que anima o verdadeiro empreendimento de autorrepressão que afeta a terça parte 159


das populações adultas dos países superdesenvolvidos (...). Para lá das determinações da moda (mais uma vez incontestáveis), é esta pulsão que alimenta o irreprimível encarniçamento autodestrutivo, irracional, em que a beleza e a elegância, visadas na origem, se reduziram a simples álibi para o exercício disciplinar quotidiano, obsessivo. Por reviravolta completa, o corpo transformou-se em objeto ameaçador que é preciso vigiar, reduzir e mortificar para fins “estéticos”, com os olhos fixos nos modelos emagrecidos e descarnados da Vogue, onde é possível decifrar toda a agressividade inversa de uma sociedade de abundância em relação ao próprio triunfalismo do corpo e toda a recusa veemente dos próprios princípios. (BAUDRILLARD, 1975, p.238-239) Não é um acidente que a filosofia de Foucault tenha se desenvolvido, também, como uma análise das prescrições disciplinares envolvendo o corpo; 160


que se debruce sobre a política em relação àquele mesmo corpo e que se converta em uma história da sexualidade, como apoteose da crítica filosófica. (...) É pelo sexo efetivamente, ponto imaginário fixado pelo dispositivo de sexualidade, que todos devem passar a ter acesso à sua própria inteligibilidade (já que ele é, ao mesmo tempo, o elemento oculto e o princípio produtor de sentido), à totalidade do seu corpo (pois ele é uma parte real e ameaçada deste corpo do qual constitui simbolicamente o todo), à sua identidade (já que ele alia a força de uma pulsão à singularidade de uma história). Por uma inversão que começou, provavelmente, de modo sub-reptício há muito tempo – e já na época da pastoral cristã da carne – chegamos ao ponto de procurar nossa inteligibilidade naquilo que foi, durante tantos séculos, considerado como loucura; a plenitude de nosso corpo naquilo que, durante muito tempo, foi um estigma e como que a ferida neste corpo; 161


nossa identidade, naquilo que se percebia como obscuro impulso sem nome. Daí a importância que lhe atribuímos, o temor reverente com que o revestimos, a preocupação que temos de conhecê-lo. Daí o fato de se ter tornado, na escala dos séculos, mais importante que nossa alma, mais importante do que nossa vida; e daí todos os enigmas do mundo nos parecem tão leves comparados a esse segredo, minúsculo em cada um de nós, mas cuja densidade o torna o mais grave de todos. O pacto faustiano cuja tentação o dispositivo da sexualidade inscreveu em nós é, doravante, o seguinte: trocar a vida inteira pelo próprio sexo, pela verdade e soberania do sexo. O sexo bem vale a morte. É nesse sentido, estritamente histórico, como se vê, que o sexo hoje em dia é de fato transpassado pelo instinto de morte. (FOUCAULT, 1988, p. 145-146) No próprio corpo, portanto, a manifestação plena e total do mal-estar da civilização, culto que 162


é agressão; descaso que é a forma simbólica própria do torpor – obesidade: retenção no próprio corpo dos excessos a que se está condenado. Anorexia nervosa, bulimia, obesidade: as formas extremas - enquanto mais realistas -, do normal. Na fisiognomia, a materialização do espírito da época. Mas, exatamente por isso, a corporificação da linguagem que se pretendia abstrata; o retorno, para a carne, daquilo que de fato a ela pertence: o registro corporal da vivência. Na abordagem fisiognômica a linguagem atualiza e faz presente as porções do existente desterradas pelo signo. O método fisiognômico guarda, portanto, relação direta com a teoria da linguagem e com sua crítica. *** É imoral e engorda A musa do "food porn" Nigella Lawson no programa de Jay Leno Kevin Winter/Getty Images

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Musa do "food porn", movimento que mistura erotismo e gastronomia, Nigella estréia programa no GNT; nos EUA, quem apimenta a fantasia dos espectadores é Giada De Laurentiis http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2102200827.htm

*** Notas sobre o romantismo (...) O impressionismo é o climax da atitude estética egocêntrica e significa a conseqüência final da renúncia romântica à vida prática, ativa. (HAUSER, 1998, p. 898) (...) O dadaísmo, tal como o surrealismo, com o qual concorda totalmente a esse respeito, é uma luta pela expressão direta, espontânea, ou seja, um movimento essencialmente romântico. (HAUSER, 1998, p. 962) (...) A mais importante diferença entre naturalismo e romantismo consiste no 164


cientismo da nova corrente, na aplicação dos princípios das ciências exatas à descrição artística de fatos. O predomínio da arte naturalista na segunda metade do século XIX é, no todo, apenas um sintoma da vitória da concepção científica e do pensamento tecnológico sobre o espírito de idealismo e tradicionalismo. (HAUSER, 1998, p. 791) E, igualmente, se o romantismo negou as regras objetivas de qualquer espécie, configurou-se como uma guerra em prol das liberdades pessoais e contra todos os princípios de tradição, autoridade e regra (HAUSER, 2003, 651), a moda, se define pela desobediência do permitido, do admitido e pela exaltação do inatingível. Se Vitor Hugo exaltou o grotesco contra a “perversidade” do sublime que jamais inova, porque é sempre clássico, a moda não existe onde a tradição impera e o grotesco não é admitido (HUGO, 1992). 165


Em relação à temporalidade, também, romantismo e moda se aproximaram. O romantismo refugia-se no passado, o constrói como irrealidade e ilusionismo (idem, 663), como também se evade para o futuro, onde, como utopia, delira sobre um mundo cuja grande sedução reside em sua inexistência. O que realmente tinha importância para os românticos era negar o presente, não atribuir-lhe sentido, pois, como o já conhecido, estava sempre vazio de sedução e era o tempo das máquinas, das chaminés das fábricas que substituíam as árvores e bosques (PIGNATARI, 1979). A moda alimenta-se do passado, digerindoo, regurgitando-o, visando inverter todas as ordens temporais, abalar qualquer referência, pois o presente ela, também, não tem interesse de preservar. Como quimera, como inatingível o futuro precisa permanecer e visando atender um tempo que nunca chega, ela alimenta o sonho de quem não quer pertencer ao presente. O 166


presente, da moda, somente recebe o desdém, pois nele nem o sonho nem a inspiração, apenas o esvaziamento de sua própria existência. No presente jamais existe moda, ele é o tempo de sua morte e é como promessa de futuro antecipado que ela seduz. Ainda se pode considerar que o romantismo ao constituir a arte num objeto de livre escolha e gostos variáveis, desassociando-a de uma função direta na vida cotidiana, a mercadoriza como bem cultural acessível a um consumo que se realiza pelo status que representa (BOURDIEU, 1989). A moda fez igualmente aos seus produtos aquilo que os artistas românticos fizeram às suas obras e dinamiza o sistema econômico, onde foi gestada, de tal forma que não há capitalismo, sem a renovação sistemática dos gostos e nem grupo social dominante, sem a possibilidade de sua adoção imediata (BAUDRILLARD, 1995). 167


(SANT’ANNA Mara Rúbia. Moda, desejo e morte: explorações conceituais. Artigo Eletrônico – formato pdf.) (...) O aspecto característico do movimento romântico não era que representasse e defendesse uma ideologia revolucionária ou antirrevolucionária, progressista ou reacionária, mas que tivesse alcançado ambas por uma via exótica, irracional e não-dialética. Seu entusiasmo revolucionário baseava-se tanto na ignorância da realidade do mundo quanto seu conservadorismo (...). (HAUSER, 1998, p. 662) (...) Desse ponto de vista realístico, o romantismo sempre parece uma mentira, um autoengano, que, como disse Nietzsche em referência a Wagner, “se recusa a conceber as antíteses como antíteses” e grita o mais alto que pode aquilo a cujo respeito tem as mais profundas dúvidas. Refugiar-se no 168


passado é apenas uma forma de irrealidade e ilusionismo romântico – também existe uma evasão para o futuro, para a Utopia. Aquilo que o romântico se agarra não tem, em última análise, a menor importância; o essencial é seu medo do presente e do fim do mundo. (HAUSER, 1998, p. 663) (...) pois o romântico não se contenta em ser romântico, mas faz do romantismo um ideal e uma política para toda a vida. Não apenas almeja retratar a vida romanticamente, como também quer adaptar a vida à arte e entregar-se à ilusão de uma existência estético-utópica. Mas essa “romantização” significa, sobretudo, simplificar e unificar a vida, libertá-la da torturante dialética de todo o ser histórico, excluí-la de todas as contradições insolúveis e atenuar a oposição que oferece a todos os desejos expressos em sonhos e fantasias de 169


natureza romântica. (...) (HAUSER, 1998, p. 674 – grifos meus) (...) o romantismo propriamente dito nega a validade das regas objetivas de qualquer espécie. Toda expressão individual é única, insubstituível, e comporta em si mesma suas próprias leis e padrões; esse discernimento é a grande conquista da Revolução para a arte. O movimento romântico converte-se agora numa guerra de libertação não só contra as academias, igrejas, cortes, patrocinadores, amadores, críticos e mestres, mas contra o próprio princípio da tradição, autoridade e regra. A luta é impensável sem a atmosfera intelectual criada pela Revolução: ela deve seu início e sua influência à Revolução. Toda a arte moderna é, até certo ponto, o resultado dessa luta romântica pela liberdade. (...) A arte moderna é a expressão do ser humano solitário, do indivíduo que se sente diferente, trágica ou abençoadamente diferente de seus 170


semelhantes. A Revolução e o movimento romântico marcam o fim de uma época cultural em que o artista recorria a uma “sociedade”, a um grupo mais ou menos homogêneo, a um público cuja autoridade ele reconhecia, em princípio, de maneira absoluta. A arte deixa de ser uma atividade social guiada por critérios objetivos e convencionais, e torna-se uma atividade de auto-expressão a criar seus próprios padrões; numa palavra, converte-se no veículo através do qual o indivíduo singular fala a indivíduos singulares. (...) (HAUSER, 1998. P. 651 – grifos meus) É preciso pesquisar até que ponto o romantismo foi superado pela contemporaneidade, inclusive no que se refere à filosofia. O romantismo é em grande medida um mal-estar, um discernimento da vida como sua degradação e, portanto, um embate contra sua rigidez apreendida como mecânica. Mas nessa ânsia de superação o romantismo é, também, uma 171


farsa, a obliteração da contradição pelo final feliz que é, de certa maneira, uma religião da nova era: a crença resoluta de um mundo aberto, ainda que às expensas da realidade. Se considerarmos ainda o indivíduo, como ele necessariamente emerge da sociedade burguesa, ou seja, como ente distinto e oposto aos coletivos, como mônada que luta pela autoconservação como aquela agência, enfim, que quer se distinguir das massas, que almeja a diferenciação -, ficamos como que enclausurados na dimensão romântica da existência, a qual se realiza na figura do herói, que supera o comum, opondo-lhe uma personalidade, em que, ao final, todos se reconhecem e com a qual todos se identificam. Não será o romantismo um limite inerente à sociedade burguesa; não se expressa através dele a necessidade de desenvolver estruturas formais em que o particular e o coletivo sejam reconciliados?

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Notas sobre questão do herói O que pretendia Nietzsche ao procurar conduzir o pensamento filosófico para “Além do bem e do mal”? Fundá-lo em um corpo de referências que tivesse superado a moral judaico-cristã e, em consequência, instituí-lo como discurso radicalmente humano. Seu programa, portanto, tinha obrigatoriamente que se converter em uma crítica dos fundamentos (axiomáticos e metafísicos) da ciência e da moral, para que, livre de toda pretensão supraterrena, fosse discurso meramente político, luta em torno de valores. À política conforme Nietzsche a entendeu não se pode chegar diretamente, pois se interpõe um requerimento estético, que justifica e legitima a conduta no espaço público. A figura do herói, de que Zaratustra é o ícone, é uma exigência de que, no terreno da política, o contendente formule demandas totais, se pretende ser força que afirma a vida, o aumento de sua exuberância. Contra todas as forças da auto-conservação, em oposição a todo conformismo, a todo contentar-se com o 173


solo já ganho e devidamente domesticado, Nietzsche apresenta a demanda de que cada qual seja um conquistador, um bárbaro, pois a mera conservação dos domínios é, em último grau, a manutenção do que há de menor no homem, um envenenamento lento, mas seguro, pela própria putrefação do ar, que o ambiente fechado implica. Nega-se, portanto, a pequena política, os acordos de gabinete, as conciliações, etc., para afirmar a grande política que, figurativamente, esteticamente, é o requerimento do herói em superar a sua própria condição limitada de homem. Nietzsche opõe, deste modo, a política como os gregos a concebiam, à política entendida em seu sentido burguês, qual seja, a manutenção da ordem a qualquer custo, pois isto é o rebaixamento absoluto do homem, sua conversão em animal de rebanho, a preocupação recorrente com a engorda e o pasto, em lugar da floresta como o infinito. A afirmação por si mesma repulsiva, de que sempre haverá escravos, cuja própria vida é 174


dedicada a garantir a existência de uma classe senhorial, pode ser lida também em sua formulação especificamente romântica, segundo a qual, o herói, o bárbaro, remanescerá sempre como uma porção alienada do próprio homem, mas ainda assim, um requerimento incontornável de sua condição mesma de escravo, a alucinação de si em uma figura mítica: a impotência do rebanho, a contenção energética que ele implica, redimidos na figura do herói. Voltamos então ao romantismo, mas com os devidos acréscimos críticos: a figura do super-herói parece ser o limite e a tendência da própria política, quando espírito de auto-conservação é seu vetor orientador. Mas a natureza desta figura é necessariamente uma presença terrível, posto que representação alucinada – e alucinação – de um homem terreno. Ao fato de que Nietzsche clamasse pelo super-homem não se pode dar um valor positivo ou negativo por si mesmo, pois, colocado “além do bem e do mal”, o seu surgimento não era uma questão moral, mas a resolução pura e simples dos termos em que se 175


colocava o próprio problema político. Ora, até que ponto esta conclamação não é, igualmente, uma advertência? Até que ponto a ambivalência de Nietzsche relativamente aos desenvolvimentos que levaram ao super-homem não deve ser lida de modo a manter-se sua tensão e duplicidade antagônica? Se Zaratustra é a forma limite da política e da cultura burguesa, o discurso filosófico deve equivaler necessariamente à genealogia do herói, sendo a totalidade representada como uma divindade prenhe. Se Nietzsche tivesse podido verdadeiramente prenunciar e intuir do que o mundo estava grávido, pode-se compreender porque se sentia permanentemente às bordas do precipício? Não é sintomático que se tenha procurado em sua filosofia os fios de sua insanidade? Não se salva assim o mundo em sua permanência? Com um pouco de esforço e benignidade, não parece ser difícil compreender como a absoluta sanidade pode ser um tormento, em um mundo enlouquecido. A dimensão hercúlea de seu esforço em compreender a 176


contemporaneidade foi, de fato, um sacrifício, mas em nome da exuberância da vida: Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: Navegar é preciso; viver não é preciso. Quero para mim o espírito [d] esta frase, transformada a forma para casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem gozála penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso a tenha de perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a

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pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que tomou em mim o misticismo de nossa raça. (PESSOA, O Eu profundo e os Outros Eus, p. 15) Mas quem é o herói que, logicamente, dialeticamente, resolve o problema político, conforme ele foi enunciado? As remissões de Nietzsche a Maquiavel não nos devem enganar, pois na sua forma original faz pensar em um homem, nesta singularidade empírica. Ora, é preciso explorar a idéia de que o herói seja um coletivo, o príncipe moderno, que Lênin predicou na sua teoria do partido. Mas a realidade tem uma propensão inexorável para precipitar-se em torno de seus elementos constitutivos mais simples, para demonstrar-se em todo seu poder; deste modo, tão logo houve uma efetiva redução da sociedade à massa, o herói mostrou seu rosto, como aquilo que de fato pode ser: a infâmia nazista ou o terror stalinista. 178


http://www.calvin.edu/academic/cas/gpa/posters/front1.jpg This is another WWII production poster from the winter of 1940-1941.. The text translates as: "You are the front!" Courtesy of Dr. Robert D. Brooks.

A hipertrofia da visĂŁo O olhar ĂŠ o fundo do copo do ser humano. (Benjamin, 1987, p. 49) 179


Benjamin afirma que o fenômeno de crescimento das cidades e, em especial, dos meios coletivos de transporte contribuiu para uma hipertrofia da visão. De fato, apenas nesta condição as pessoas passaram a se ver e ocupar o mesmo espaço, sem que fosse possível um diálogo. Na cidade em sua forma madura a acuidade visual tem necessariamente que aumentar, pois todos os signos de orientação, em um espaço tornado completamente desproporcional ao homem, são visuais. Que a cidade se transforme em uma experiência que transcende por completo as possibilidades experimentais de qualquer indivíduo; que ela seja o estranhamento como regra geral, de que o reconhecimento é mero caso particular: decorre daí a profusão de indicações visuais, e de alertas de toda ordem.

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Figura 45 - Quando fala o coração - Spellbound (Alfred Hitchcock, 1945) http://www.youtube.com/watch?v=dzxlbgPkxHE

Mas a cidade é mais que isso ainda: quais são as implicações para o aparelho perceptivo, para o tato e para o olfato, por exemplo, do amontoamento de corpos no ônibus, no metro, etc. Até que ponto esta aglomeração não requer a renúncia do cheiro, do contato, a perda de sensibilidade do próprio corpo, a regressão da audição, de vez que o investimento naqueles sentidos teria de ser experimentado como uma 181


forma de agressão; uma invasão ao campo magnético que a existência humana no espaço, de certo modo, é.

Figura 46 - Quando fala o coração – Spellbound (Alfred Hitchcock, 1945)

Até que ponto, contudo, estas não são as bases existenciais do fenômeno da virtualidade; não seria esta a hipertrofia da visão levada ao paroxismo? Este ponto de viragem, talvez, possamos encontrá-lo de modo bem claro na sexualidade: sabe-se de longa data que o estímulo visual é muito significativo no despertar do desejo, 182


especialmente para os homens. Quando, contudo, o sexo virtual torna-se não uma ignição, mas um sucedâneo do próprio sexo, que desenvolvimentos se fizeram necessários? Foucault e a questão do sujeito

Figura 47 - A dama de Xangai (Orson Wells, 1948) http://www.youtube.com/watch?v=s8xQvthS1HI

Foucault se apercebe claramente do fato segundo o qual, no sistema filosófico, o ponto de chegada é igualmente o ponto de partida e, portanto, o ordenamento da realidade na forma da 183


catedral gótica em que se apresenta, é o próprio sujeito que pensa materializado. A unidade, a continuidade e a coerência, declaradas como elementos organizadores da realidade, não são anteriores ao sujeito pensante, nem elementos dele independentes, mas se colocam com ele, com o que se demonstram parte de um programa não apenas filosófico, mas também político. Este não é, contudo, o território da ciência e, se o fosse, acabaria por reduzi-la ao dogmatismo – uma escolástica laica. O que Foucault procura fazer consiste, portanto, em definir o método segundo o qual as ciências humanas poderiam ser igualmente empíricas, evitando incorrer no ordenamento forçado e artificial do existente, a partir de um sujeito cognoscente que, a rigor, lhe é anterior. Esta é a lógica de sua arqueologia: Na análise proposta, as diversas modalidades de enunciado, em lugar de remeterem à síntese ou à função unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão: nos diversos status, nos 184


diversos lugares, nas diversas posições que pode ocupar ou receber quando exerce um discurso, na descontinuidade dos planos de onde fala. Se esses planos estão ligados por um sistema de relações, este não é estabelecido pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela especificidade de uma prática discursiva. Renunciamos, pois, a ver no discurso um fenômeno da expressão – a tradução verbal de uma síntese realizada em algum outro lugar; nele buscamos antes um campo de regularidade para diversas posições de subjetividade. O discurso, assim concebido, não é uma manifestação, majestosamente desenvolvida, de um sujeito que pensa, que conhece, e que o diz: é, ao contrário, um conjunto em que podem ser determinadas a dispersão do sujeito e sua descontinuidade em relação a si mesmo. É um espaço de exterioridade em que se 185


desenvolve uma rede de lugares distintos. Ainda há pouco mostramos que não eram nem pelas “palavras” nem pelas “coisas” que era preciso definir o regime dos objetos característicos de uma formação discursiva; da mesma forma, é preciso reconhecer, agora, que não é nem pelo recurso a um sujeito transcendental nem pelo recurso a uma subjetividade psicológica que se deve definir o regime de suas enunciações. (FOUCAULT, 2004, p. 61) A este esforço científico majestoso deve-se conceder o devido mérito. Ele não equivale, contudo, à declaração de que não exista nenhum sujeito. Se Foucault insiste e persiste na luta por redefinir a metodologia da pesquisa científica, é por compreender que problematizar o real, como unidade e continuidade, equivale a criticar o projeto unitário e total de sujeitos determinados e históricos - para o mundo. Os elementos que organizam o pensamento e o discurso, tais como, por exemplo, a continuidade, a organicidade, ainda 186


que se ofereçam como neutros, são, a rigor, um forma determinada e histórica de organização do existente. (...) A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada despertará sem reconstituí-lo em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a forma de consciência histórica -, se apropriar, novamente, de todas as coisas mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que pode chamar a sua morada. Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de todo o devir e de toda a prática são duas faces de um mesmo sistema de pensamento. O tempo é aí concebido em termos de totalização, onde 187


as revoluções jamais passam de tomadas de consciência. (FOUCAULT, 2004, p. 14)

É preciso muita tranquilidade aqui, contudo. Primeiro porque o esvaziamento do sujeito é, na contemporaneidade, uma determinação do real enquanto tal. Em segundo lugar, é preciso considerar que sua dissolução é igualmente a afirmação da realidade como totalidade oclusa, de modo que ela própria já se oferece como uma totalização, sendo também um programa político – o da ordem. Por fim, é preciso considerar que as mazelas do positivismo estão próximas, muito próximas: basta dar o passo adiante e, em nome da crítica das ilusões do sujeito, tornar o sujeito uma ilusão. Se avançarmos nesta direção, o precipício se prenuncia, pois o real passa a ser o tudo, e o homem o nada. Mas nesta atitude encontramos o péssimo como antípoda do pior: em lugar das ilusões e da violência do sujeito revolucionário; toda a realidade e violência do sujeito reacionário. Iríamos assim de 188


unilateralidade em unilateralidade e perdem-se, em decorrência, as possibilidades da abordagem metodológica de Foucault. Será que ele deu tal passo? Há um sem número de filósofos que se lançaram ao precipício, na firme expectativa de que o suicídio, como uma homologia do deicídio, redime o mundo. Ai, a religião: que sina! Foucault, contudo, permanece maior do que isso. Chamemos provisoriamente genealogia o acoplamento do conhecimento com as memórias locais, que permite a constituição de um saber histórico das lutas e a utilização deste saber nas táticas atuais. Nesta atividade, que se pode chamar de genealógica, não se trata, de modo algum, de opor a unidade abstrata da teoria à multiplicidade concreta dos fatos e de classificar o especulativo para lhe opor, em forma de cientificismo, o rigor do conhecimento sistemático. Não é um empirismo nem um positivismo, no sentido habitual do termo, que permeiam o projeto genealógico. Trata-se de ativar 189


saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretendia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida por alguns. As genealogias não são portanto retornos positivistas, a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata, mas anti-ciências. Não que reivindiquem o direito lírico à ignorância e ao não saber, não que se trate da recusa de saber ou de ativar ou ressaltar os prestígios de uma experiência imediata ainda não captada pelo saber. Trata-se de uma insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência, mas a insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade 190


como a nossa. Pouco importa que esta institucionalização do discurso científico se realize em uma universidade, ou, de modo mais geral, em um aparelho político como todas as suas aferências, como no caso do marxismo; são efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico que a genealogia deve combater. (FOUCAULT, 1979, p. 171 – grifos meus) Sempre se coloca sobre Foucault a questão da natureza de sua especialização: seria um filósofo, historiador ou sociólogo? Raramente ocorre indagar se Foucault não seria um poeta. E se ele fosse, o que estaria predicando para a poética? A atenção à forma. O androide Segundo a folha de São Paulo, dois professores de filosofia da Universidade de San Diego – Paul e Patrícia Churchland -, deleitam-se com as possibilidades de que um dia a neurociência possa simplesmente se antecipar à ação criminosa ou 191


delituosa, instalando mecanismos coercitivos no cérebro dos maus elementos: ao menor sinal de raiva no indivíduo considerado anormal pela sociedade, o mecanismo o “derrubaria automaticamente com uma boa dose de Valium” (Bernardo Carvalho, FSP, E8, 13/03/2007).

Figura 48 - O mágico de Oz (Victor Fleming, 1939 http://www.youtube.com/watch?v=X-ZULpr8m5o

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Obviamente a criatividade não tem limites e, de certo modo, a tele vigilância já está in place: não apenas as argolas que permitem monitorar o deslocamento de suspeitos mantidos em liberdade condicional, mas as câmeras onipresentes, o GPS, os ID em todos os computadores e assim por diante. Ora, as chances de que estes artefatos venham efetivamente a aumentar a liberdade são remotas, ao passo que as possibilidades de utilização para fins de controle são ilimitadas. Vigiar sem punir, submeter tudo às possibilidades do controle; antever todos os padrões possíveis nos comportamentos; normalizar, regular, inferir. Os rastros virtuais que se deixa pelo caminho criam os elementos para que o aperto que impõe a ordem propenda à perfeição. Quando maior a potência da tecnologia tanto mais transparente se torna o indivíduo - que já é perfeitamente esquadrinhável no espaço, uma vez que sua trajetória pode ser perfeitamente capturada. A nanotecnologia, contudo, abre perspectivas absolutamente novas, de tal modo 193


que os delírios de poder possam, finalmente, anexar continentes completamente inexplorados.

Figura 49 - O mágico de Oz (Victor Fleming, 1939)

Bem a propósito, no mesmo dia do artigo citado mais acima, o jornal traz, em sua página de ciência, a informação de que o neurocientista Joel LeDoux conseguiu apagar a memória traumática de roedores. A droga, em teste, teria como campo possível de aplicação nos seres humanos o Transtorno de estresse pós-traumático. Obviamente, à parte de toda a discussão quanto à eficácia da droga em si, para fins psiquiátricos, permanece como questão essencial o fato de que 194


os medicamentos se prestam a muito mais do que sanar doenças ou patologias. Do ponto de vista estatístico, por exemplo, quanto do Viagra é efetivamente utilizado para a disfunção erétil e quanto se presta a realizar os desejos de very high sexual perfornance, de menininhos de todas as idades? O lugar de destino da droga não é a patologia, mas a normalidade: a extensão por meios químicos da fabricação de corpos dóceis, receptores apassivados das determinações de poder. Através dos fármacos edifica-se a absoluta subsunção do corpo à produtividade requerida pela ordem. O discurso manifesto da farmacologia e da biotecnologia, portanto, é a promoção da saúde e a longevidade; seu lugar de desejo, contudo, é a conversão do homem em autômato: corpo sobredeterminado pelo automatismo e receptáculo inerte das determinações de poder. Por conseguinte a clonagem é o último estádio da simulação do corpo, aquela em que, reduzido a sua fórmula abstrata e 195


genética, o indivíduo está determinado à multiplicação em série. Walter Benjamin disse que o que se perdeu da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica foi sua “aura”, essa qualidade singular do aqui e do agora, a sua forma estética; ela passa de um destino de sedução para um de reprodução e, nesse novo destino, assume uma forma política. Perdeu-se o original, e só a nostalgia pode reconstituílo como “autêntico”. A forma extrema desse processo é a dos meios de comunicação de massa contemporâneos; neles o original nunca teve lugar, e as coisas são de imediato concebidas em função de sua reprodução ilimitada. É exatamente o que acontece com o ser humano em relação à clonagem. É o que acontece ao corpo quando concebido apenas como um estoque de informações e de mensagens, como substância informática. Nada se opõe então a sua reprodutibilidade serial, nos mesmos 196


termos usados por Benjamin para os objetos industriais e as imagens. Há uma precessão do modelo genético sobre todos os corpos possíveis. É a irrupção da tecnologia que comanda esta desordem, de uma tecnologia que Benjamin já descrevia como médium total – gigantesca prótese comandando a geração de objetos e imagens idênticas, que nada mais podia diferenciar entre si – mas ainda sem conceber o aprofundamento contemporâneo dessa tecnologia, que torna possível a geração de seres idênticos sem que se possa voltar ao original. As próteses da era industrial ainda são externas; exotécnicas; as que conhecemos ramificaram-se e se interiorizaram: esotécnicas. Estamos na era das tecnologias brandas, software genético e mental. As próteses da indústria, as máquinas, ainda voltam ao corpo para modificar-lhe a imagem, elas 197


mesmas eram metabolizadas no imaginário, e esse metabolismo fazia parte da imagem do corpo. Mas, quando se atinge um ponto sem volta na simulação, quando as próteses infiltramse no coração anônimo e micromolecular do corpo, quando se impõe ao próprio corpo como matriz, queima-se todos os circuitos simbólicos ulteriores, sendo qualquer corpo possível nada mais que sua imutável repetição, então é o fim do corpo e de sua história, o indivíduo não é mais que uma metástase cancerosa da fórmula de base. (BAUDRILLARD, 1991, P. 193-194) A rigor, com os desenvolvimentos da engenharia genética e sua capacidade de manipular o código genético, o próprio corpo, em sua totalidade, converte-se em uma prótese. É comandado, portanto, a partir de algo que lhe é exterior; um registro que transcende o corpo, encontrando-o, portanto, como receptor inerte de uma informação que está para além dele. Aquilo, 198


portanto, que a linguagem faz à palavra viva, em sua conversão a signos, faz-se agora ao corpo, como requerimento de corporificação daquela palavra violentada. O autômato está contido, como possibilidade, no cerne mesmo da cultura ocidental. É preciso, pois, revê-la por inteiro, para fazer a crítica desse personagem, que reúne em si desejo e terror. Notes on a scandal (Richard Eyre, 2006) O filme, independentemente de sua qualidade como produto artístico, é uma interessantíssima dissertação sobre o ressentimento. Ainda que exteriormente o ressentido clame por amor, sua única meta, a rigor, é reduzir o outro à condição de sofrimento em que ele próprio acredita encontrar-se. Demanda, deste modo, que se compartilhe com ele a aridez de seu mundo, sua impotência e resignação às coisas, como de fato elas são; o mundo em sua forma inóspita e hostil – árida. O amor, neste contexto, é uma fabulação, a linha com que a aranha trama a tessitura da teia e por meio da qual, ao fim, aprisiona sua vítima. No 199


ressentido o amar é uma espécie de excitação nervosa, um desfazer-se em lágrimas, não por solidariedade ao outro, mas em nome da autopiedade - uma artimanha que requer todos os recursos do teatro e todas as potências do romance, mas como enredo fictício de uma vida real: por isso a personagem ressentida escreve, escreve, desde sempre e neste roteiro, a um só tempo, o egoísmo como imolação de si e o futuro como plano e estratégia, um registro pseudoliterário da manipulação.

Figura 50 - Notas sobre um escândalo (Richard Eyre, 2006) http://www.youtube.com/watch?v=AruRpjQquQQ

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Contudo, a vida como aridez, como território desértico, é apenas uma imagem, signo da devastação autoimposta, do masoquismo que o ressentimento de algum modo implica. Sua forma exterior, contudo, e sem a qual ele remanesceria incompleto, é o prazer sádico de destruir, de reduzir a pó; de sintetizar em uma mesma unidade e grandeza, o interior e o exterior. No ressentido, o amor é a sensibilidade como artimanha e a destruição como programa e meta, de tal modo que aquele permanece como um incidente, ao passo que este é um compromisso de vida. Note-se que estes pequenos excertos, que se pode sacar do quotidiano, tem um grande valor heurístico, e, portanto, é preciso aprender a lê-los: A Síndrome autoritária caracteriza-se por um processo de internalização do controle social de tal envergadura que acaba resultando numa atitude em relação à autoridade, a qual se pode mesmo conceber como irracional: “O sujeito consegue sua adaptação social somente à custa do prazer obtido por meio da 201


obediência e da subordinação” (ADORNO e alli, 1950, p.759) Esta síndrome se apresenta como o conjunto de traços de personalidade provenientes da resolução sadomasoquista do complexo de Édipo, em que uma parte da agressividade se transforma em masoquismo e a outra em sadismo. Os grupos em relação aos quais os indivíduos não têm identificação alguma, os out-groups, são escolhidos exatamente para satisfazer as pulsões sádicas. Uma ambivalência é entrevista, de um lado, na crença cega de tais indivíduos em ralação às autoridades e, de outro, em sua prontidão para atacar os que são identificados como vítimas. (AMARAL, 1997, p. 31) Por meio do amor à pátria, à Alemanha, toda a fluência do ódio – esta é a primeira formulação histórica do ressentido moderno. Mas é uma formulação ainda juvenil, de tenra idade. Sua 202


perfeição mais perfeita nós a encontraríamos no dia em que só se destruísse por amor do outro, por altruísmo, por convicção absoluta de fazer o bem, como bem, em nome da elevação do espírito à máxima altitude. Nossa, que estranho: como tudo isso se parece com o velho e bom otimismo dos apologetas (de um progresso tornado potência autônoma); com o presente como destino inexorável, com a ordem na roupa da racionalidade suprema. Daqui, então, uma máxima: a civilização não se destrói a partir de fora, como se por meio da invasão de uma horda de bárbaros. Ela se carcome por dentro, na dialética mesmo das forças que contêm, como elementos seus. Não se deve esperar, portanto, por novos bárbaros, como se eles pudessem aportar na terra, como quem se desgarrou de uma geleira nórdica. Aquilo que leva à destruição da civilização já está aqui, como sempre esteve, apenas que depurado de sua linguagem infantil. A barbárie que já falou em nome próprio, agora a advoga em nome do 203


progresso, como autorrealização de uma potência alienada e hostil ao homem. (...) Se por evolução científica e progresso intelectual queremos significar a libertação do homem da crença supersticiosa em forças do mal, demônios e fadas, e no destino cego – em suma, a emancipação do medo – então a denúncia daquilo que atualmente se chama razão é o maior serviço que a razão pode prestar. (HORKHEIMER, 2002, p. 187) Metalinguístico I Que o texto se apresente necessariamente sob uma forma fragmentar é uma exigência não dele mesmo, mas da crítica do real enquanto tal. Demanda-se, assim, uma espécie de suspensão etérea do real no pensamento e apenas nele, pois o real enquanto tal, já aparece na forma da falsa unidade. O progresso como otimismo unilateral é a fórmula daquela falsa unidade - uma fusão e não uma reconciliação: solda de elementos distintos e tensos, a requererem uma explosão. O texto como 204


partícula e fragmento é, portanto, a própria antecipação do movimento do real, a antevisão de sua explosão em elementos numinosos. O texto enquanto forma, confere uma pista gráfica ao passado e ao futuro do real; é o próprio programa de sua crítica, o modo mesmo de ser daquele que lhe resiste. O pensamento não pode esgotar o real, de modo a conferir-lhe realidade objetiva, mas pode fazê-lo para naturalizá-lo. O pensamento que recusa a totalização na forma do sistema mantém, então, sob suspeita e suspensão a marcha épica da realidade. A dissolução do sistema filosófico, portanto, já é em si mesmo um programa político, pois requer do pensamento que resista à força centrípeta com que aparece o real - sua naturalização como marcha do espírito. Deve-se reconhecer nisso, portanto, não o lamento de uma grandiosidade perdida, um saudosismo da grande filosofia, por oposição àquela que se pronuncia por meio de aforismos, por exemplo. A recusa do sistema é sinal de 205


sanidade e, portanto, não pode ser pensada como transitoriedade para um futuro sistema; uma coleção de fragmentos que em algum momento vai se resolver na suprema obra. Especialmente a forma é história: o fragmento, portanto, não é um acidente. O clube da luta (David Fincher, 1999) O filme é, em grande medida, uma dimensão do diálogo interno do protagonista, em sua luta por uma posição satisfatória no mundo. Em sua tentativa de superar uma longa puberdade e edificar uma individualidade comparam-se dois modelos: aquele das possibilidades concretas e comezinhas, do trabalho diuturno, da solidão celibatária e, em certo grau, da obediência canina à ordem, contra um tipo que é uma promessa de supermasculinidade – implícita no imaginário divulgado pelos artefatos da indústria cultural, inclusive e especialmente pela propaganda. Tudo que no primeiro tem uma existência regular apresenta-se através do outro como algo superlativo. 206


Figura 51 - O clube da luta (David Fincher, 1999) http://br.youtube.com/watch?v=EoMscGoyFzU

Há, então, um investimento claro e decidido naquele segundo tipo, o super-homem ao reverso, completamente narcisista, indiferente às regras, absolutamente potente do ponto de vista sexual, desinibido e indiferente a tudo e a todos. Esta supermasculinidade extravasa, como uma decorrência natural, para o Fight Club, onde se reúnem muitos outros, completamente distintos em características, mas totalmente irmanados no éthos da virilidade – desde que ela seja igualmente entendida como um transbordamento narcisista; uma afirmação do eu para além de mim mesmo; um autoelogio. 207


Figura 52 - O clube da luta (David Fincher, 1999)

Esta inflação do ego do protagonista e de sua claque, contudo, é igualmente uma potência destrutiva, pois uma vez que a luta os purifica e os torna santificados pelo exercício disciplinar e pelo desapego, todo o resto da humanidade se lhes aparece como raça decadente, que precisa ser libertada e redimida. O Clube da Luta como projeto evolui, portanto, para a milícia, cuja meta final é fazer derrocar a civilização, eliminando o coração do sistema financeiro – os headquarters das grandes companhias de cartão de crédito. Passa a haver, a partir daqui, um conflito entre os dois principais personagens do filme, na medida 208


em que um deles (Jack – Edward Norton) não aceita as metas do plano de ataque que o outro (Tyler Durden – Brad Pitt) havia desenvolvido. Este conflito se resolve não na vitória de um ou de outro, mas na descoberta de que o segundo é pura e simplesmente uma alucinação do primeiro, uma cisão paranoica de sua própria personalidade, na forma de um supermacho modelar.

Figura 53 - O clube da luta (David Fincher, 1999)

Esta trajetória do personagem pode ser entendida de muitos e distintos modos, mas convém fixar um elemento de grande importância: a hipótese de que o desenvolvimento do tipo 209


paranoide26, relativamente difuso na sociedade contemporânea, esteja relacionado, de algum modo, com a natureza superlativa e francamente narcisista, propugnada pelos modelos instituídos pela indústria cultural em geral, e pela propaganda em especial. Será, efetivamente, que a discrepância entre os modelos que nos são propostos e nossas possibilidades concretas, enquanto seres humanos, pode conduzir a uma cisão da personalidade, na forma de um distúrbio paranoico (epidêmico)? O argumento de que o herói sempre foi, em certa medida, “discrepante” relativamente ao homem comum é uma falsa resposta ao problema, pois no passado ele não necessariamente representava ou substituía o homem de carne e osso, mas era a representação de uma potência social ou cosmogônica - estava no panteão e não descia tão facilmente à Terra. Na modernidade, contudo, o herói mítico nos é oferecido diretamente para consumo, em nossa vida diária. Será que estamos de fato preparados para esta proximidade? 210


A violência das águas

Figura 54 - Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica, 1948) http://www.youtube.com/watch?v=lxxbXspyAn0

Houve uma época em que a família representava o que de mais conservador se podia imaginar; uma agência de transmissão da tradição como potência repressora. Mas o ódio do pai, por exemplo, era até então o repúdio a alguém dotado de valor, ainda que ele não tivesse valor, senão para ser negado e superado. A contemporaneidade tem cuidado diligentemente de afastar estes entraves 211


(old fashioned) do caminho dos indivíduos. No entanto, em um mundo em que a confusão é uma espécie de potência imediatamente derivável da vida quotidiana, em lugar de se fazê-lo por meio da crítica qualificada da tradição, o afastamento do entulho arcaico se processa através da desqualificação das figuras parentais.

Figura 55 - Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica, 1948)

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Confrontados, mesmo que com os heróis medíocres que a indústria cultural produz – como se acometida de uma monomania –, os pais reais não são senão objetos de escárnio. Se veem, portanto, recusados e renegados em função daquilo a que o próprio operar do sistema produz neles como resultado – uma vez que a sujeição absoluta à forma mercantil e suas determinações é, pelo aspecto subjetivo, a universalização da prostituição como valor. Desta maneira, quando sai de casa para o trabalho, com seus signos distintivos [o carro como uma fortaleza medieval ou o ônibus como um navio negreiro; a maleta como uma ponte, por onde se invade a vida privada; o crachá, como uma identidade de empréstimo; as marcas do tempo par tout, como se fossem bilhetes lembrando o não pertencer-se; a esperança, na forma de um outro mundo que, pasmem, não é o paraíso, mas uma aposentadoria já devidamente programada, em que o ócio é negado, seja como requerimento do mercado (o nicho da terceira idade), seja porque o caráter maquinal tomou conta do 213


indivíduo, de maneira que o movimento seja nele, não a expressão externa de sua subjetividade, mas a forma motora de um espírito catatônico], o filho logo diz: - “lá vai o derrotado! Vai se arrastando e submisso, como um cão espancado”. O filho, por outro lado, refletido na figura canina de seu pai, vê a si mesmo como que o pai ao reverso, de modo que a subserviência sem mediações, a adulação como inclinação e ferramenta de autoconservação, a passividade como requerimento convertem-se nele em potências de sentido oposto: a fúria, a autodestruição niilista e a atividade compulsiva como medo (ambivalente e) neurótico da emasculação. Na miséria dos pais, que não conseguem mais fazer mediações egóicas com o real e, portanto, são como que inundados por ele, a miséria dos filhos que, repudiando absolutamente os pais, mantêm-se como a forma puramente negativa e igualmente não mediada daquela mesma violência das águas.

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Não se pode esquecer que Adorno supôs, ao lado da constituição narcísica da subjetividade contemporânea, o declínio da figura do pai como modelo de identificação, sendo este substituído, cada vez mais, pelos modelos estandardizados dos meios de comunicação de massa. Supondo que a paranoia envolve frustrações na esfera do ideal do ego (...), julgamos que não seria incorreto pensar que a identidade nos planos do funcionamento psíquico e libidinal entre as massas e líder fascista, anunciada por Adorno, se dê exatamente em torno das tendências paranoicas de ambos, o que pode ser explicado, em última instância, em função do proclamado declínio da figura do pai na atualidade. (AMARAL, 1997, p. 67) Em Laranja Mecânica (A Clockwork Orange,1971) de Stanley Kubrick, este transbordamento da violência, como reação não mediada à violência implícita no próprio real – que 215


por estar completamente fechado e determinado é a cova do indivíduo –assume uma forma direta e total; converte-se em um hino ao gratuito e ao aleatório da agressão, restituição extrema da opressão, que se apresenta inominada e invisível, mas justamente por isso, vivenciada na qualidade de presença irresistível.

Figura 56 - Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971) http://www.youtube.com/watch?v=40Xc-9YeWE4

Quanto à economia da violência, o medo doentio (e, portanto, em certa medida, o desejo) da emasculação instituem o caráter fixo da mania, 216


que à sua vez evita a cisão final da personalidade. Por este recurso, o desejo de apassivamento é lançado para fora, projetado, e transforma-se no seu anverso, ou seja, o estupro reiterado e a agressão sádica interminável. Deste modo, todos os índices de fraqueza do outro já são um convite para a agressão, pois a integridade psíquica só se conquista ao preço de sangue. Sem a vítima de sua fúria, ao final, o agressor sofreria um processo irresistível de erosão, que se converteria em inclinação autodestrutiva irrefreável. Que o poder – a agência estatal -, quando se apresenta, pretenda retificar o indivíduo, livrá-lo de sua patologia, isto só se faz como forma de mantê-lo operante e produtivo, ainda que objeto recorrente da violência que a própria ordem gera de maneira sistemática e programada. O sonho científico da agência de governo é, portanto, a manifestação sintomática de sua própria perversão: é uma distopia, cujo programa consiste em definitivamente eliminar o humano, para que as agressões que perpetra e que não pode evitar, jamais resultem em superação da ordem. 217


A distopia que Laranja Mecânica denuncia é aquela que pretende erigir o homem como autômato, e que não se refere propriamente ao futuro, mas diretamente ao presente. A manifestação do onírico, dos elementos psicodélicos e delirantes não se prestam à criação de um futurismo, mas a conferir uma máxima intensidade ao mundo em que vivemos, que no fantástico em que é apresentado, é o real mais que real: decifração do mito, denúncia do existente como forma extremada e silenciosa de violência. Ladrões de Bicicleta (Vittorio de Sica, 1948) O enredo coloca em questão, e de maneira contundente, o pai como modelo e espelho, no contexto da sociedade mercantil. Desempregado, o protagonista encontra finalmente ocupação, mas apenas para reaver-se com uma antiga dificuldade: deveria ter uma bicicleta, para poder efetivamente assumir a posição. Ela, contudo, havia sido penhorada, para que a família pudesse superar um longo período de penúria. A esposa não se dá por 218


vencida: penhora os lençóis de seu enxoval de casamento, de modo que se pôde resgatar a bicicleta.

Figura 57 - Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica, 1948)

Uma vez de posse de sua ferramenta, o pai vai ao trabalho. Mas rapidamente retorna ao desespero: a bicicleta lhe é roubada. Inicia, então, sob os olhos agoniados do filho, uma busca desesperada, não apenas pela bicicleta, mas pela 219


manutenção de sua dignidade. Roma, a cidade eterna, no entanto, excede todas as suas possibilidades de busca, de tal maneira que toda rua é um descaminho, toda pista uma vereda para o tormento e toda ação completamente inócua. O filho o acompanha ao longo jornada, cuja única função parece ser a de gravar em alto relevo sua total impotência; a incapacidade para mudar o destino, que se apresenta não como a imposição de uma realidade perversa, mas um infortúnio de caráter estritamente pessoal. A redução à impotência vai sendo esculpida em seu rosto, que se contrai e se mortifica, como se a qualquer momento o desespero pudesse leválo à fervura - o infortúnio é tanto mais certeiro quanto menores são as possibilidades dos que tentam escapar de seu jugo. Vencido por sua busca, apartado de toda esperança por uma espécie de dissertação sistemática, desenvolvida pela própria realidade, o protagonista resolve roubar uma bicicleta, como haviam roubado a sua. A iniciativa, contudo, é uma ação partida; impulso que contém a contradição: no mesmo ato em que 220


se autoriza viver, condena-se. Em seu atabalhoamento, portanto, é rapidamente apanhado. O filho, que fora mandado para casa, a fim de não assistir a uma cena moralmente condenável, retorna ao pai, mas apenas para assistir sua humilhação: ver tapas desferidos em seu rosto, em uma representação aguda da sujeição. Tenta, então, resgatá-lo de uma desventura que só pode, contudo, ser superada por força da caridade e da comiseração dos agressores. O filme se encerra em uma longa caminhada, em que o pai desesperado e reduzido à mais pura infantilização, tanto por sua impotência, quanto pelo equívoco de suas opções, coloca-se abaixo de seu filho, a quem não pode se oferecer com referente. Seu desespero, portanto, é duplo: vê sua identidade esvair-se, e ao mesmo tempo, vive o amor pelo filho por intermédio de um complexo de inferioridade, que é igualmente uma redução à menoridade.

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Na sociedade mercantil, objetivamente, o pai se vê impedido de dar cumprimento consequente a sua função paterna, pois só lhe é permitido ser modelo, se for igualmente uma degradação àquilo que é inerte - o pacato cidadão da civilização. Deste modo, tanto é um referencial precário e problemático, quanto se recusa àquilo que lhe cabe: afinal de contas, como uma criança poderia educar outra? Quanto a essa questão convém evitar resistências sem fundamento: não é o desemprego que destrói o pai como modelo e referente, mas sim sua completa impotência, que lhe ocorre mesmo quando vive maravilhosamente aquinhoado, pelos benefícios e beneplácitos da ordem. O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007) O Cheiro do Ralo, já partir do princípio, é marcado pelo registro da analidade. Seus signos distintivos são evidentes até estarem escancarados: o ralo como orifício, a bunda como objeto de culto. Vale indicar, no entanto, que a bunda e o ralo são do 222


ponto de vista simbólico o mesmo, marcando e indicando ao longo de todo o filme a ambivalência necessária dos conteúdos inconscientes, bem como a própria ambiguidade do protagonista (Lourenço).

Figura 58 - O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007)

O universo existencial do protagonista é organizado em função de sua configuração psíquica, que o torna, em primeiro lugar, um colecionador, ainda que transfigurado na figura do negociante de quinquilharias. A venda, portanto, é contingente, ao passo que a atividade contínua de 223


adquirir e guardar objetos é uma meta fixa. Toda sua relação com o mundo é dada por meio dessa atividade, jamais se oferecendo como uma relação afetiva direta, e sim como uma interação mediada pelo dinheiro. A rigor ele não quer e não deseja qualquer vínculo afetivo; ele quer a posse de tudo o que existe, como uma afirmação ilimitada, irrestrita e unilateral de seu poder sobre as coisas. Que tudo se reduza a coisa é um axioma de seu psiquismo.

Figura 59 - O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007)

Se Lourenço se coloca na condição de negociador e de comerciante isso não indica propriamente sua função social, mas o modo como 224


ele edificou uma persona, uma máscara que permitem exercer de modo socialmente aceitável toda a potência de sua mania e na completa extensão de sua conformação patológica. Sua normalidade e funcionalidade e a natureza útil de sua atividade são, por consequência, o modo pelo qual as inclinações sádicas e despóticas podem ser completamente extravasadas. Neste particular desenvolve-se uma espécie de pedagogia da personalidade sádica: o protagonista não atinge de imediato o climax perverso; ele aprende aos poucos o quão longe pode ir; quanta humilhação pode impor e quão dependentes as pessoas são do dinheiro, como condicionante do próprio direito à existência individual. Não se deve esquecer, ainda, que na condição de reserva universal de valor o dinheiro presta-se como nenhum outro objeto à militância colecionadora do protagonista: não é um acaso, portanto, que Freud tenha indicado na interpretação dos sonhos o dinheiro como signo de excremento. A relação inconstante estabelecida por Lourenço com o dinheiro não nos deve induzir 225


a confusão. O quanto o ele é retido, o quanto ele é esbanjado, encontra uma referência fixa, mesmo do ponto de vista estritamente quantitativo, se considerarmos que aquele é o meio pelo qual a vontade é tornada potência ilimitada; realização do desejo como inclinação do domínio total, rendição ilimitada do outro. O dinheiro despendido varia, portanto, para que o exercício da vontade não encontre pedras pelo caminho; para que se afastem mesmo os traços mais tênues da frustração – para que ela, a vontade, seja constante e inflexível. Portanto, na perversão de Lourenço, o dinheiro é afirmado como aquilo que de fato é: fetiche universal; forma abstrata do objeto concreto, que se sobrepõe àquilo que falta e que 27

nega a própria falta : seu gozo depende incondicionalmente, portanto, da presença e da posse daquele objeto, que afirma justamente sua total incapacidade de se relacionar com o outro, desenvolvendo uma experiência afetiva verdadeira - uma vez que aquele outro, como grandeza subjetiva e autônoma, não existe para ele. A busca 226


frenética por sujeitar e humilhar são, então, ao mesmo tempo, o desespero da vacuidade e do eu como o nulo; a vida segundo uma mutilação incapacitante para a experiência afetiva. Daí porque apareça reiteradamente: “eu não amo você; eu não amo ninguém”.

Figura 60 - O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007)

Todos e cada um dos personagens, à sua vez, têm uma relação completamente arbitrária com o protagonista: o que os coloca em relação é o dinheiro, pura e simplesmente. Se eles voltam a se encontrar, não é porque tenham constituído um vínculo afetivo - é unicamente a recorrência daquele que busca o dinheiro que os une. Neste aspecto particular, ou seja, nesse encontro 227


recorrente no mercado, o dinheiro se demonstra como determinação social absoluta, potência total, que dá a cada objeto – devidamente investido de afetos individuais - não seu peso específico, conforme ele é valorado pela experiência singular, mas uma expressão numérica objetiva, independente de qualquer investimento afetivo com a qual se indica, de modo quantitativo e matemático, o valor de um determinado objeto, como fração da produção social total. Deste modo, ainda que cada qual valore e impregne os objetos com as marcas indeléveis de sua existência e de sua subjetividade, o valor resta como uma sobredeterminação social; uma redução à norma, da qual nenhum indivíduo pode escapar. A arrogância do protagonista é, nesta exata medida, a personificação da própria opressão que o sistema produtor de mercadorias impõe ao indivíduo, tornando sua existência e sobrevivência algo meramente probabilísitco, e reduzindo todo valor existencial a valor tout court.

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Figura 61 - O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007)

Mas a experiência de cada personagem, as histórias que narram sobre os objetos que alienam, tem uma importância crucial, para que se desvende a personalidade de Lourenço: nele o eu é uma construção artificial e arbitrária e, portanto, toda memória é diretamente um ardil, uma colagem e uma citação, posto que não investida pelo afeto; uma realidade que remanesce sempre exterior, uma arbitrariedade. Não é casual, portanto, que a certa altura se construa a história do pai desconhecido28 por meio da memória de um 229


personagem, que é induzido e se induz a pensar ter lutado na Segunda Guerra com aquele ente ausente. No mundo de Lourenço a verdade, a memória autêntica e a experiência afetiva são extravagâncias das quais cumpre zombar, mas que em suas autenticidades inatingíveis tornam-se objeto de fascínio. Lourenço tenta, portanto, obstinadamente, se apropriar de memórias que são verdadeiras, de pessoas que investiram efetivamente todos os objetos que estavam dispostas a vender: coleciona as experiências que jamais poderia ter. Elas, no entanto, se incorporam à sua vida na forma imediata do pastiche, da colagem, razão pela qual sua regra existencial é o próprio arbitrário; e a verdade ou a mentira, convenções que existem para serem quebradas. A verossimilhança como uma prestidigitação do real, esta é sua proposta de vida. O mundo do protagonista é metonímico, ou seja, é uma superposição infinita de fragmentos e a ausência de qualquer objeto completo. A bunda, 230


portanto, como objeto de adoração, é forma simbólica necessária à sua própria conformação psíquica. Se a bunda é, contudo, um episódio, o ralo é uma constante: a forma metonímica da própria bunda. E o que se encontra lá? A porção demoníaca do eu; o signo da dissociação da experiência, que requer e cobra a unidade rompida por meio da alucinação. Na relação com o ralo e seu cheiro é construído o próprio caminho que conduz à alucinação; a vertigem da potência do próprio poder, que se exerce como uma compulsão ditada pela inclinação sádica. "O cheiro não vem de mim; vem do ralo; não sou eu, é o ralo; não quero que as pessoas pensem que o cheiro vem de mim..." O ralo é o símbolo de que Lourenço não pode em absoluto se separar, porque ele é o eu como sombra, como rompimento do diálogo, como potência estranha, que retorna como assombro. No sentido em que o viemos descrevendo, O Cheiro do Ralo é propriamente uma etiologia da doença que acomete Lourenço, mas só o é na medida em que a faz de todos nós. Na patologia 231


dele, portanto, a própria anormalidade de nosso convívio social; o seu absurdo, como regra geral e universal de existência. A prótese do olho que Lourenço interpõe entre o olho e os objetos não é um mero acréscimo à cena; é mirando aquele olho que não vê, que se formam as imagens e as autoimagens: sua natureza mecânica, biônica nos conduz ao automatismo. O cheiro do ralo, a bunda, o olho do c..., mas também o olho da câmera. Na sociedade do espetáculo, em que o espaço da política é substituído pela visibilidade instantânea do show e da publicidade, a fama torna-se mais importante do que a cidadania; além disso, a exibição produz mais efeitos sobre o laço social do que a participação ativa dos sujeitos nos assuntos da cidade/sociedade, ou do que a produção de novos discursos capazes de simbolizar o real. À aparente desimportância dos assuntos de interesse público, corresponde um excesso de “publicidade” e de interesse a respeito dos detalhes 232


mais insignificantes, ou mais constrangedores, da vida privada. . (BUCCI; KEHL, 2004, p. 143) Do narcisismo: advertências É essencial para nossos esforços indicar tão precisamente quanto possível o que entendemos por narcisismo. Obviamente a teoria psicanalítica é o pressuposto de todo o pensamento, mas é preciso tomar muito cuidado aqui. Em primeiro lugar porque, mesmo em Freud, o termo tinha uma natureza derivada, ou seja, estava de algum modo relacionado à teoria da gênese do ego como instância psíquica, além de se desdobrar em dois momentos lógicos, mas também filogenéticos e históricos: o narcisismo primário e secundário. A partir daí as coisas não fizeram senão ganhar complexidade, especialmente porque se somaram distinções e nuances, de parte, por exemplo, de Lacan e Laplanche, apenas para dar exemplos significativos. Não se pode, portanto, fundar com tranquilidade absoluta uma categoria que é, no 233


que nos diz respeito, sociológica, seguindo os termos estritos da teoria psicanalítica. Esta fidelidade, além do mais, corre o risco significativo de se converter, assim como ocorreu com a matemática na teoria econômica, em uma espécie de linguagem que, introduzida com o propósito da precisão e da economia discursiva, converteu-se em-si e por-si, em uma evocação imanente de cientificidade29. No caso específico da psicanálise, o risco que se corre é transformar uma abordagem que se efetiva em instância específica e com outras ordens de referenciais metodológicos, epistemológicos, etc. em instrumento para a escrutação da vida societária que, deste modo, retornaria a nós enriquecida pelo propriamente empírico, ou seja, a experiência clínica. A prática de tal estratégia pode nos levar, quando muito, ao hibridismo de uma “sociologização” do psicológico ou, alternativamente, da “psicologização” do social, sem propiciar qualquer acréscimo verdadeiramente empírico, ainda que, como 234


abordagem, se mostre produtiva na apresentação de problemas e identificação de contradições. O proto Eichmann Embora possa claramente identificar os nexos causais entre a atividade (ação) individual e suas consequências, o indivíduo concebe sua conduta como sobredeterminada por forças que lhe são exteriores, como se este exterior agisse nele. Fundido como se encontra com o sistema, percebe-se e representa-se a si mesmo, como se fora uma espécie de autômato, incapaz de qualquer consciência moral ou ética, de vez que o próprio real, a seus olhos, não conhece moral ou ética, mas apenas força, sujeição e submissão – daí sua adesão irrestrita à realpolitik. O indivíduo, conforme o engendra o fascismo, converte-se em natureza bruta, violência lírica, morticínio estético: “Sob o impacto do sistema nazista a individualidade fendeu-se, produzindo algo semelhante ao ser humano atomizado e anárquico que Spengler denominou certa vez de ‘novo

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homem em estado bruto’.” (HORKHEIMER, 2002, p. 125) Exatamente porque o social apresenta-se ao homem como potência com a qual não é possível estabelecer qualquer mediação, que simplesmente não é acessível a ele; transformou-se, então, aquele mesmo homem, em rendição total, submissão absoluta. (...) Embora a maioria das pessoas nunca supere o hábito de acusar o mundo por causa das suas dificuldades, aqueles que são muito fracos para se erguerem contra a realidade não tem mais escolha senão apagar-se pela identificação com esta última. Jamais se reconciliarão racionalmente com a civilização. Em vez disso, inclinam-se diante dela, aceitando secretamente a identidade entre razão e a dominação, entre a civilização e o ideal, por mais que deem de ombros. Essas pessoas abraçam voluntariamente ou se forçam a aceitar a regra do mais forte 236


como uma norma eterna. Sua vida inteira é um esforço contínuo para suprimir e degradar a natureza, interna ou exteriormente, e para se identificarem como os seus mais poderosos substitutos: a raça, a pátria, o líder, as facções políticas e a tradição. Para eles todas essas palavras significam a mesma coisa – a realidade irresistível que deve ser honrada e respeitada. Contudo, seus próprios impulsos naturais antagônicos às diversas exigências da civilização, comandam uma vida remota e secreta dentro delas. Em termos psicanalíticos, pode-se dizer que o indivíduo submisso é aquele que ficou inconscientemente fixado no nível da rebelião reprimida contra seus verdadeiros pais. Essa rebelião se manifesta em conformismo solícito ou no crime, segundo as condições sociais e individuais. (...) (HORKHEIMER, 2002, p. 116-7 – grifos meus)

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Talvez a imagem, a referência a Eichmann, possa parece violenta demais, para que se possa aceitá-la como pertinente ao repertório de tipos que se tem em mente, quando se olha para o homem, na referência citadina, mediana, em que se costuma encontrá-lo. Mas os mais simples incidentes mostram a sua natureza mais íntima: o que justifica a demissão do companheiro ao lado; e a decisão de demiti-lo; porque a injustiça é aceitável, se cai no terreno do vizinho; porque nos conformamos tão facilmente; porque procuramos ativamente o prejuízo do outro, como elemento de elevação material? Simplesmente porque já aceitamos a ideia de que as determinações do real são insuperáveis, afinal de contas, as coisas são como são, e assim tem sido desde sempre. Resistir a este caráter terrível da realidade seria como se colocar em posição desfavorável, diante da sina competitiva que o mundo apresenta como requerimento absoluto. Quando a autoconservação se coloca como valor superior, quando a afirmação da vida transforma-se em preservação individual, como indiferença daquilo 238


que sucede desta afirmação; quando a burocratização da existência já avançou o suficiente, para que a agressividade que a sobrevivência implica e demanda já não seja mais visível em seus próprios termos, ou seja, reste como operação direta do social, independentemente do indivíduo; neste momento então, o indivíduo médio, corriqueiro, na sua vulgaridade e normalidade, já é o protótipo potencial do fascista: A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de “participação oportunista” era antes de mais nada interesse prático: perceber antes de tudo sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma lei geral do existente. O silêncio sob o terror era apenas consequência disto. A frieza de mônada social, do concorrente 239


isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto. (ADORNO, 1995, p. 134 – grifos meus)

Figura 62 - A greve (Sergei Eisenstein, 1924)

A vida como esquematismo A sujeição ao esquematismo da vida social; a sua naturalização em escala inaudita; o ser 240


portador de determinações sociais irresistíveis, sem que haja qualquer distanciamento delas; a mecanização da atitude e do agir, a evasão, portanto, de uma existência consciente, tudo isso é também afirmação da contemporaneidade. Aprende-se cedo, no industrialismo, que a sujeição à mecanicidade da máquina é, em certa medida, um convite ao devaneio - afastar-se e separar-se de si, para viver um outro mundo. Essa dissociação, contudo, se conduzida a extremos, onde leva? E se o caráter maquinal da atividade tomasse uma grande parte da existência individual, o que sucederia? O que é um eu em que a atividade é experimentada como divergência de si, evasão? E se fosse possível manipular este escapismo; se fosse possível interferir neste universo onírico, saturá-lo simbolicamente e de fora? Não será o caráter fantasmagórico da existência na contemporaneidade justamente o desvelar desta dissociação, em que a atividade produtiva é vivida como sujeição a um universo cultural que remanesce, em grande medida, uma exterioridade ao indivíduo, posto que não é sua 241


obra, mas, ao contrário, é um remeter-se ao artefato cultural, como divergência de si? A individualidade não se converte aqui em uma espécie de captura da subjetividade pela objetivação simbólica, dada gratuitamente pelo universo social? Não é, portanto, toda subjetividade uma pseudo-subjetividade; toda atividade, uma pseudo-atividade?30 Mas esta exteriorização permanente, esta orgia da refração, não é exatamente o índice da agressividade que indivíduo volta contra si mesmo; um escárnio de si, dado a impossibilidade de uma verdadeira subjetivação? Não terá todo indivíduo se transformado, em algum grau, em um deboche de si; um superlativo, como expressão picaresca da elevação; a hipertrofia, como índice e referência da própria atrofia? Não se deve jamais esquecer que, diante da impossibilidade do amor de si, Narciso se agrediu e se ulcerou: O narcisismo que com o desmoronamento do Eu se vê privado de seu objeto libidinoso, é substituído pelo prazer masoquista de não ser mais um Eu, e a 242


geração emergente cuida, com um zelo que dedica a poucos de seus bens, de sua própria privação do Eu, como se isso fosse uma posse comum e duradoura. O reino da reificação e da normalização é estendido desse modo até aquilo que é sua mais extrema contradição, a saber, o supostamente anormal e caótico. (ADORNO, 1992, p. 56) (apud Amaral, 1997, p. 166)

Figura 63 - Narciso de Michelangelo Caravaggio http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Michelangelo_Caravaggio_065.jpg

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O mundo como ficção Na justa medida em que não pode fazer uma verdadeira clivagem para com o mundo, o indivíduo permanece fundido com o ele, razão pela qual se entende desde sempre, autorizado a proceder do modo que melhor lhe convém – e esta deferência lhe é ditada pela realidade, ela mesma. Neste sentido, o outro, de que o mundo (como não-eu) é a referência mais abstrata, passa a não ter qualquer existência real, fora da lógica onírica do sujeito. A total submissão à ordem e a sujeição irrestrita convertem-se, portanto, através de um malabarismo militante, na redução do mundo ao império da vontade do sujeito. Assim lhe aparece porque, na unidade absoluta que faz com a realidade, afirma e impõe seu desejo, ainda que apenas como emanação e realização da objetividade que lhe é exterior e que, em largo grau, o autoriza e incita à ação. Ocorre, portanto, uma obliteração do outro, que se transforma em mero signo, uma referência distante, substitutiva, 244


do outro verdadeiramente existente. Na essência, contudo, o que ocorreu foi uma fusão do indivíduo na totalidade social, da qual fica incapacitado para se distanciar. A essa mímese genuína os autores opõem uma espécie de “falsa projeção”, que passa a ser considerada como fundamento psíquico do antissemitismo. Uma projeção que, diferentemente da primeira, não permite nenhuma discriminação entre o mundo exterior e a vida psíquica, nem o afastamento necessário ao processo de identificação que engendraria, ao mesmo tempo, a consciência de si e a consciência moral. (AMARAL, 1997, p. 40 – grifos meus) Diretamente apresentada por Adorno, esta questão tem a seguinte conformação: Os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem são atribuídos ao objeto: a vítima em potencial. Para o paranoico 245


usual, sua escolha não é livre, mas obedece às leis de sua doença. No fascismo, esse comportamento é adotado pela política, o objeto da doença é determinado realisticamente, o sistema alucinatório torna-se a norma racional no mundo, e o desvio a neurose. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 174-5 – grifos meus) No narcisismo, portanto, a dissolução do indivíduo e sua sujeição resoluta à ordem é, ao mesmo tempo, a redução do mundo “objetivo” à sua atividade onírica; dimensões entre as quais está inapto para fazer distinções significativas. A debilidade do indivíduo converte-se, então, na própria fragilidade da sociedade, que resvala para a mecanicidade como determinação irresistível. Se, portanto, o social tende em qualquer momento ao absurdo; ao inferno como expressão da própria sociabilidade, o indivíduo não pode opor resistência significativa; pois ele propende a tomar os requerimentos da realidade, como expressão de sua própria subjetividade. 246


Figura 64 - Adolf Eichmann http://www.remember.org/eichmann/eich22.htm

Incapaz, então, de perceber em si o humano, reduzido a uma imagem espectral, o narcisista toma o outro não em sua humanidade – que rigorosamente desconhece -, mas como suporte e veículo para a realização de seu próprio desejo que, a rigor, não é mais do que subjetivação do que é objetivo e externo. Não existe aqui, portanto, qualquer afetividade verdadeira, sentimentos, mas um esteticismo exaltado; uma exultação da vida como teatralidade, como jogo e batalha, nos quais todos participam não como seres reais, mas como personagens e índices.

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A destruição do Eu

Figura 65 - Eco e Narciso (John William Waterhouse, 1903) http://www.jwwaterhouse.com/view.cfm?recordid=16

Diante do narcisismo, a noção de indivíduo (de um Eu) passa a ser completamente imprópria, uma vez que ela implica como qualidade definidora a autodeterminação, no sentido mais amplo do termo. O indivíduo surge, de certo modo, quando estabelece o seu eu e eleva o seu serpara-si, sua unidade, à categoria de verdadeira determinação. Antes, a 248


linguagem filosófica e a linguagem comum indicavam tudo isso mediante a palavra “autoconsciência”. Só é indivíduo aquele se diferencia a si mesmo dos interesses e pontos de vista dos outros, faz-se substância de si mesmo, estabelece como norma a autopreservação e o desenvolvimento próprio. (ADORNO; HORKHEIMER, Cultrix, p. 52– grifos meus) O narcisista, ao contrário, é um átomo social, um fragmento como partição indiferenciada de um todo; a expressão vivente da própria recusa ou impossibilidade de diferenciação e de individuação [(...) Quanto menos são os indivíduos, tanto maior é o individualismo. (ADORNO; HORKHEIMER, Cultrix, p. 53)]: Identificando uma espécie de “reconciliação forçada” entre os rumos da totalidade social e os interesses individuais, que teria encontrado o seu ápice no fascismo, Adorno sugere que haveria uma verdadeira conversão da consciência individual em mero produto cego de forças heterônomas. 249


O narcisismo passa a ser concebido como expressão psíquica da fetichização total da cultura, como resultado último da identidade autoconservadora entre o particular e o universal. Uma configuração psicológica que associa o máximo de individualismo, de acordo com o qual mantém-se uma relação instrumental com o mundo, com a destruição do próprio indivíduo, ou melhor, do seu Eu, privando o narcisismo – concebido essencialmente por Freud como um processo universal e necessário à constituição e formação egóicas – de seu objeto primordial de investimento. (AMARAL, 1997, p. 17-18 – grifos meus) Narciso estilhaçado: o amar-se a si mesmo como o não reconhecer-se no espelho; o terror da não identidade; a pseudo-identidade como afirmação do que é exterior sobre si mesmo, ou seja, uma existência que é uma concessão, uma particularização que não emana de si, mas que é uma dádiva daquele que vê e autoriza, de fora. 250


Esta é a fórmula, a quintessência da ordem: o mecânico e o automático, como superação da robótica, posto que robotização do próprio homem - antecipação do clone ou sua realização? E se toda diferenciação – no contexto sobredeterminante do mesmo - fosse diretamente a expressão de uma rendição, no que se converteria a política? Eis o que não fica explicitado na psicanálise, mas pode ser compreendido em seu corpo teórico: o Outro é sempre, do ponto de vista do sujeito, uma instância de poder, se entendermos por poder aquilo que costura o espaço público, determina lugares, ordena as relações entre os homens. O Outro, é para o sujeito, uma instância que antecede, determina e ultrapassa sua insignificância individual. Existir é, antes de mais nada, apresentar sua própria imagem para o Outro. O que equivale dizer, para um adulto que já tenha ultrapassado as fronteiras dos 251


complexos familiares, que existir é apresentar sua própria imagem no espaço público. É no espaço público que o sujeito atesta que sua existência faz alguma diferença. Assim sendo, já não se trata de exibir uma bela figura para deleite do Outro, como um dia a criança se ofereceu à contemplação apaixonada da mãe. Se o espaço público é onde se estabelecem – e onde se desestabilizam – as relações de poder, ele não se constrói com belas imagens, mas com a imagem dos homens em ação. A visibilidade dos homens no espaço público depende da ação. No caso (seguindo ainda o pensamento de Hannah Arendt), trata-se da ação política. Aqui é necessário inserir um vetor ético: a visibilidade no espaço público implica que os sujeitos se responsabilizem pelos efeitos dos seus atos na vida da polis. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 150)

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O distinto e o diferencial

Figura 66 - Entrevista com o vampiro (Neil Jordan, 1994) http://www.youtube.com/watch?v=zEY6taM15iE

Na justa medida em que se afirma como parte homogênea e indiferenciada de um todo que o excede e que o inunda, o narcisista requer, como condição de estabilidade, não a singularidade, de que é absolutamente incapaz, mas a contínua e infinita diferenciação; o denegar a dissolução e absorção no todo, que de fato é, por meio da recorrente manipulação de sua imagem e 253


autoimagem. A autorreferência, o processo contínuo de melhoria, aprimoramento, embelezamento, elevação espiritual, etc. não são para ele, portanto, uma contingência; muito ao contrário, esta é a fórmula íntima e compulsiva com que expia sua total incapacidade de fazer refletir no espelho uma imagem que lhe seja própria e que registre, a partir de seu rosto, a experiência (afetiva) - de que, in fact, se mostra absolutamente incapaz. Esta fórmula “super-reflexa” (personalizar-se a si mesmo... em pessoa, etc.!) constitui a última palavra da história. Tudo o que diz esta retórica, a debater-se com a impossibilidade de o dizer, é precisamente que não existe ninguém, quer seja “pessoa”, em valor absoluto, com os traços irredutíveis e o peso específico, tal como o forjou a tradição ocidental enquanto mito organizador do Sujeito, com paixões, vontade e caráter próprio quer... a sua banalidade; semelhante pessoa encontra254


se ausente, morta, varrida do universo funcional. E é esta pessoa ausente, esta instância perdida que tem de “personalizar-se”. Este ser perdido é que tenta reconstituir-se in abstracto pela força dos sinais, no leque desmultiplicado das diferenças, no Mercado, no “pequeno tom claro”, noutros inumeráveis sinais reunidos e constelados para criar uma individualidade de síntese e, no fundo, para desaparecer no anonimato mais total, já que a diferença é, por definição, o que não tem nome. (Baudrillard, 1975, p. 133) As diferenças reais que marcavam as pessoas transformavam-nas em seres contraditórios. As diferenças “personalizantes” deixam de opor indivíduos uns aos outros, hierarquizamse todos numa escala indefinida e convergem para modelos, a partir dos quais se produzem e reproduzem com sutileza. De tal maneira que diferenciar-se 255


consiste precisamente em adotar determinado modelo, em que qualificarse pela referência a um modelo abstrato, a uma figura combinatória de moda e, portanto, renunciar assim a toda a diferença real e a toda singularidade, a qual só pode ocorrer na relação concreta e conflitual com os outros e com o mundo. Tal é o milagre e o trágico da diferenciação. (...)(BAUDRILLARD, 1975, p. 133-134) Não causa estranheza, portanto, que sendo incapaz de afirmar-se como singularidade, condenado a elidir sua redução necessária ao informe, por meio à adesão obsessiva a modelos, o narcisista apareça à clínica psicanalítica na forma do ser desesperado, necessitando que, do exterior, alguém ou algo, sancione o ser que ele de fato é. Sua humanidade precisa ser confirmada de fora, pois sua própria condição individual (seu Eu) é puramente formal, artificial, produto da adesão a modelos, que tomou como referências, que citou, dado a total impossibilidade de desenvolver uma 256


narrativa própria. Vive, portanto, submerso em uma profunda vacuidade, um vazio que não se preenche jamais e que, portanto, o condena à atividade; erigi-se como uma cavidade que não se fecha; uma convexidade que nada pode conter, pois é o terror da vida como e na ausência de si. No narcisista a experiência afetiva e a vida foram divorciadas.

Figura 67 - Entrevista com o vampiro (Neil Jordan, 1994)

A natureza eternamente animada Tendo perdido a imagem do outro, Narciso deixou escapar a condição de reconhecer sua 257


própria face e, por consequência, toda a face, justamente porque a que toma de empréstimo, não passa de uma máscara, de modo que a persona acaba por obsedar o indivíduo, não existindo, portanto, qualquer distância entre o papel e o ser. O que se chama de indivíduo, objetivamente, não é mais do que um átomo, uma entidade física, mecânica e natural: a menor fração de um ente que é a própria ordem social.

Figura 68 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) http://www.ruavista.com/berlinbr.htm

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As remissões a termos físicos não são, portanto, um recurso estilístico, mas uma adequação necessária da forma ao conteúdo: a conformação narcisista produz o homem como máquina, levá-lo a uma existência puramente mecânica, capaz de realizar trabalho, suportar peso, realizar tarefas, agir, agir, agir. A atividade incansável, a busca desesperada do sempre mais e maior, é inerente à sua natureza, pois ele é e significa, justamente, a redução do homem ao natural, segundo a concepção mecanicista: natureza eternamente animada, em movimento, sem propósito ou sentido imanente, subjetivação do modelo newtoniano. A vitrine e o espelho A modernidade conferiu à imagem do narcisista seu próprio toque, sua marca indelével. É preciso considerar, portanto, até que ponto a metáfora que melhor se aplica ao narcisista não é a vitrine, ainda que na condição de alucinação do espelho. Vale a pena, portanto, montar um quadro

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sinótico de elementos que se pode vincular a cada um dos dois termos:

Espelho

Vitrine

Indivíduo / Eu Reflexão Convergência Auto-referência Identificação Círculo Concentração Auto-imagem Corpo Metáfora

Átomo / persona Difusão / Refração Divergência Citação / remissão Projeção Espiral Evasão Máscara Modelo Metonímia

(...) Na ordem moderna, deixou de haver espelho onde o homem se defronte com sua própria imagem para o melhor ou para o pior; existe apenas a vitrina – lugar 260


geométrico do consumo em que o indivíduo não se reflete a si mesmo, mas se absorve na contemplação dos objetos/sinais multiplicados, na ordem dos significantes do estatuto social, etc. já não se reflete a si mesmo nela, mas deixase nela absorver e abolir. O sujeito do consumo é a ordem dos sinais. Quer esta se defina estruturalmente como instância de um código ou, de modo empírico, como a ambivalência generalizada dos objetos, a implicação do sujeito, de qualquer maneira, já não é a de uma essência “alienada”, no sentido filosófico e marxista do termo, ou seja, desapossada e readquirida por uma instância alienante, feita estranha para si mesma. Deixou de ser possível falar de “mesmo”, de “sujeito”, e até de alteridade do mesmo e de alienação, em sentido próprio. É o que ocorre em parte como no caso da criança que abraça a própria imagem no espelho, antes de ir para a cama: não se confunde 261


inteiramente com ela, porque já a “reconheceu”. Mas, também não constitui um duplo estranho em que se reflita – “brinca” com ela, entre o mesmo e o outro. É o que acontece também com o consumidor: “exerce” a sua personalização de termo para termo, de sinal para sinal. Quer entre a criança e sua imagem, quer entre os sinais, não há contradição e oposição exclusiva: conlusão e implicação ordenada. O consumidor define-se pelo “jogo” de modelos e pela sua escolha, isto é, pela sua implicação combinatória em tal jogo. É neste sentido que o consumo é lúdico e que o lúdico do consumo tomou progressivamente o lugar trágico da identidade (BAUDRILLARD, 1975, p. 330331)

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Figura 69 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) Fonte: http://www.ruavista.com/berlinbr.htm

Figura 70 - Amsterdam Distrito da Luz Vermelha http://www.youtube.com/watch?v=LQFGht5nLys

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Na vitrine, ainda que o narcisista não possa reconhecer-se como quem se vê no espelho, podemos nós vê-lo em ação, pois ele é em grande medida uma evasão, uma dispersão, uma força centrífuga, uma expansão até o esvaziamento, um transbordamento, ainda que para se transformar, logo mais a frente, em uma absorção - a apropriação do existente que está sempre, à sua vez, a um pequeno passo de se converter em dejeto e excremento. Mas nada aqui ocorre no espaço etéreo: a compulsão do narcisista por ar fresco, por territórios novos, por outros mundos, por experiências inauditas, pelo fantástico, são, no que se refere à natureza, sua mais absoluta coisificação. No narcisista, a dor da vida em meio à vacuidade e ao vácuo, converte-se no domínio impiedoso, inescrupuloso e cruel da natureza; sua conversão em objeto de tortura, recipiente vazio no qual toda a fúria e desespero que a civilização cria vai se depositar.

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O homem tornou-se gradativamente menos dependente de padrões absolutos de conduta, de ideais universalmente unidos. Tornou-se tão completamente livre que não precisa mais de padrões, exceto o seu próprio. Paradoxalmente, contudo, esse aumento de independência conduziu a um aumento paralelo de passividade. Por argutos que tenham se tornado os cálculos do homem em relação a seus meios, a sua escolha de fins, que era anteriormente correlacionada com a crença numa verdade objetiva, tornou-se insensata: o indivíduo, purificado de todos os resíduos das mitologias, inclusive da mitologia da razão objetiva, reage automaticamente, de acordo com padrões gerais de adaptação. As forças econômicas e sociais adquiriram o caráter de poderes naturais cegos que o homem, a fim de poder preservar a si mesmo, deve dominar, ajustando-se a eles. Como resultado final do processo, temos de um 265


lado o eu, o ego abstrato esvaziado de toda a substância, exceto sua tentativa de transformar tudo no céu e na Terra em meios para sua preservação, e de outro lado uma natureza esvaziada e degradada a ser um simples material, sem qualquer outro propósito do que esse de sua própria dominação. (HORKHEIMER, 2002, p. 101-2 – grifos meus) Neste sentido preciso, a “indiferença” para com a natureza, a insensibilidade relativamente à sua progressiva degradação, não são apenas a afirmação do progresso pelo progresso, do operar sistemático da razão instrumental e, em tal medida, um “resto” irracional da modernidade. A relação com a natureza é, diretamente, o suporte da agressividade inerente ao homem moderno. O desespero de perder-se a si mesmo, de ser a unidade meramente aparente, como afirmação objetiva da divergência, converte-se em uma projeção da agressividade contra a natureza. Não é, portanto, um “resto irracional”, justamente porque essencial à preservação da presente 266


conformação do indivíduo, bem como da sociedade que lhe corresponde. Aquilo que Bacon prenunciara, a natureza como domínio e possessão - torturada, reduzida e violentada nessa submissão -, a contemporaneidade realiza não apenas como programa, mas como compulsão; como tábua de náufrago do próprio indivíduo. A terceira lei de Newton Na medida em que se concebe fundido ao mundo, o narcisista vive seu encantamento, ou seja, o social (o mundo) só se lhe oferece como se natural fosse – a dádiva ou a desgraça. Aquilo, portanto, que o sistema produz como realidade sua, como decorrência estatística do seu operar – sendo a probabilidade sua natureza mais íntima -, transmuta-se nas mãos do narcisista na ocorrência sem história, ou no evento sem qualquer remissão ao social. Deste modo, o seu sucesso - que não é normalmente mais do que a reprodução da condição em que nasceu, ou, quando é a negação dela, a afirmação da exceção, por meio das regras que o regime impõe aos bem sucedidos de ocasião 267


- se lhe oferece como mera produção individual, sua produção, às expensas de qualquer vínculo ou determinação societária. O infortúnio, de outra parte, converte-se em uma espécie de cataclismo, tanto pela violência, como pela inexistência de mediações. Tudo que é humano, portanto, regride para o mecânico, de modo que a sociabilidade é apreendida em conformidade com a terceira lei de Newton: ação e reação, força...

Figura 71 - Twister (Jan de Bont, 1996) http://www.youtube.com/watch?v=M8IEiRJbO8c

Na atomização que de fato implica; na submissão irrestrita ao real, o narcisista é, e por força mesmo disto, a apropriação, a imagem perfeita da ambivalência do mundo que o cria, e 268


do qual é microcosmo. A perda da imagem, a alienação de si, a submissão resoluta; a violência lançada para dentro, como decorrência necessária do processo de conformação total ao real, deve necessariamente converter-se em energia potencial (no sentido estritamente físico do termo) - ressentimento contra o mundo, pronto e eternamente prestes a extravasar: um dique por romper, uma bomba por explodir, um acidente por ocorrer. Valores de natureza física – trabalho, potência -, grandezas mecânicas, exterioridades e fatalidades, no exato sentido de que são e permanecem desconhecidos e inconscientes para os indivíduos sobre os quais atuam. Justamente em toda sua passividade, civilidade, docilidade, urbanidade, a contenção energética pronta para levar tudo pelos ares. É absolutamente fundamental compreender o narcisismo nesta configuração, em sua agressividade meramente potencial, porque, na exata medida em que o homem se constrói por adesão ao real, com mediações precárias das instâncias egoicas – inconsciente, em grande 269


medida, portanto, de ser a agressividade efetivamente sua -, a violência retorna ao real como algo absolutamente irracional. De fato, a violência é, para o narcisista, uma descarga eletrostática, meio para recompor a homeostase afetiva. (...) A fadiga é uma contestação larvada, que se volta contra si mesma e se “encrava” no próprio corpo, já que em certas condições é a única coisa a que o indivíduo desapossado consegue prenderse. Tal e qual como os negros que se revoltam nas cidades da América, ao começarem por incendiar os próprios bairros. A verdadeira passividade reside na conformidade jocosa com o sistema, no quadro “dinâmico”, de olhar vivo e ombros largos, perfeitamente adaptado à sua incessante atividade. A fadiga surge como atividade e como revolta latente, endêmica, inconsciente de si mesma. Assim se esclarece a sua função: o “slowing down” sob todas as formas é 270


(como a neuroses) a única saída para evitar o total e verdadeiro “break down”. E por ser atividade (latente) é que pode de repente converter-se em revolta aberta, como o mês de Maio o comprovou. O contágio espontâneo, total, o “rasto de pólvora” do movimento de Maio só nesta hipótese se compreende: o que se tomava por atonia, por desafecção e passividade generalizada, constituía na realidade um potencial de forças ativas na sua própria resignação, na sua fadiga, no seu refluxo, encontrando-se, portanto, imediatamente disponíveis. (...) (BAUDRILLARD, 1975, p. 315) Michel Douglas em Um dia de fúria demonstra de maneira razoavelmente coerente esta conexão desconexa, entre a vida regular de um cidadão médio e sua explosão. A normalidade em que vive é anormal; sua ordem, uma renúncia; a vida um acidente e os vínculos, nós aleatórios, dados pelas circunstâncias, pela geografia da existência – o bairro, a cidade, as ruas, o trajeto. Há ordem e 271


necessidade, mas não há sentido; existe uma fúria, mas seu objeto é inelegível, posto que absolutamente difuso. O clima é pesado, há uma malaise que não se pode atribuir ao que quer que seja; mas que é pertinente, persistente e que se resolve, justamente, na violência indiscriminada, para qual é possível atribuir um elemento ígneo, mas não uma causa. Não há causa, nem conseqüência; apenas um start e seus efeitos. O homem que explode é apenas e tão somente um excesso de tensão, que encontra caminho para a descarga. O manipulador Jamais poderíamos compreender o narcisista sem recorrer a seu caráter manipulador; a degradação da verdade que pratica, por amor doentio do verossímil. Completamente incapaz de distinguir o real de seu mundo onírico; tornado ele próprio matéria amorfa - cujo aspecto exterior é a reprodução, por referência e citação, de um modelo - o belo Narciso passa a encarar o mundo da mesma forma que o prestidigitador. Por meio 272


desta habilidade, verdadeiramente manual justamente porque ele só conhece a subjetividade como objetivação – passa então a moldar o mundo, com a mesma argila com que se erigiu, a partir de um modelo.

Figura 72 - Noites de Cabíria (Federico Fellini, 1957)http://www.youtube.com/watch?v=U4h1FmQbrOQ

Na sua vacuidade e nulidade, torna-se então um Deus, um poeta, um artista, um arquiteto do divino, a supostamente engendrar novos mundos, 273


posto que naquilo que existe só vê sua própria métrica e escala: corrupção absoluta, inautenticidade, erro e dor. Sonha então com o mundo perfeito, mas em suas mãos ele jamais poderia ser humano, porque sua utopia é a redução de tudo ao mesmo. Seu programa para redimir o mundo não implica, portanto, na superação da ordem e de suas contradições, mas na condução da heteronomia à sua expressão literal: despersonalização geral e irrestrita. A deposição da máscara e da persona que o oprimem ocorre, portanto, para afirmar justamente que não há nenhuma face a ser vista, apenas um busto granítico, frio, em que cada um se perde, para se transformar na exultação do mito - que por ter sua origem na aurora do tempo, é a reminiscência do indiferenciado, desejo de dissolução na unidade absoluta. Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar os outros como 274


sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam dessa maneira utilizei o termo “caráter manipulador” em Authoritarian Personality (A personalidade autoritária), e isto quando ainda não conhecia o diário de Höss ou as anotações de Eichmann. Minhas descrições do caráter manipulador datam dos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Às vezes a psicologia social e a sociologia conseguem construir conceitos empiricamente confirmados só muito tempo depois. O caráter manipulador - e qualquer um pode acompanhar isto a partir das fontes disponíveis acerca dos líderes nazistas – se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. A qualquer custo ele procura praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik. Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo 275


diferente do que ele é, possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. Esse tipo encontra-se, entrementes – a crer em minhas observações e generalizando algumas pesquisas sociológicas -, muito mais disseminado do que se poderia imaginar. (ADORNO, 1995, p. 129)

Figura 73 - Noites de Cabíria (Federico Fellini, 1957) http://www.youtube.com/watch?v=oxsndxJHhxY http://www.youtube.com/watch?v=F86ZscT_kLw

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Não é mero acidente, portanto, que muitos de nossos heróis imaginem o mundo de maneira complemente orgânica e organicista, pois eles sonham com formas societárias totais, nas quais o indivíduo é aceitação irrestrita do social, ainda que como proteção contra as injustiças da vida 31. A afirmação de grandezas mitológicas – a raça, a pátria, a comunidade dos eleitos - consiste para eles, portanto, em uma fábula de origem, com base na qual reinventam o mundo como exaltação e homenagem às suas sensibilidades: saudade fraudada de uma existência idílica, um romantismo extemporâneo como logro, em lugar de estilo. A crítica recorrentemente se confunde como o uso que os nazistas fizeram do romantismo alemão. Querem ver nele uma espécie de préexistência fascista. Mas o romantismo e o fascismo divergem em conteúdo e metas: o primeiro é o retorno à natureza, às formas pré-capitalistas de existência, como recurso aristocrático e restaurador, visando à preservação do indivíduo; é uma fuga do real para e pela individuação. Apesar, portanto, de sua conformação conservadora, 277


mantém-se com o real um vínculo efetivo, posto que se partiu dele a partir de um problema concreto: como preservar a individualidade em um mundo no qual as massas emergem como realidade societária, ditando-lhe sua dinâmica?

Figura 74 - Imagem de Joseph Stalin http://br.youtube.com/watch?v=vXJh7PB6LOU

O fascismo, de outro lado, parte do pressuposto de que o indivíduo já não mais existe e nem mesmo deve existir; seu programa, 278


portanto, é intrinsecamente anti-aristocrático, no sentido estrito do termo: é um rebaixamento de tudo que é elevado; uma universalização da miséria intelectual e um anti-intelectualismo; um nivelamento por baixo; um movimento popular e de massa, não como conquista e apropriação do que há de mais elevado no patrimônio comum da humanidade, mas como sua destruição pura e simples, porque não pode ser fruído por todos. A remissão nazista ao romantismo alemão é, portanto, uma citação, uma degradação e uma estripulia; a captura da forma exterior, pela total incapacidade de criar o que fosse de autêntico. Notas sobre a massa A sociedade que produz o homem como átomo é exatamente aquela que produz as formas coletivas da existência como massa. Ela – a massa - tem, portanto, uma natureza e origem social, ainda que apareça, de início, como algo incidental; um capricho. A massa é um produto social – não uma constante natural; um amálgama obtido 279


com o aproveitamento racional dos fatores psicológicos irracionais e não uma comunidade originalmente próxima do indivíduo; proporciona aos indivíduos uma ilusão de proximidade e de união. Ora, essa ilusão pressupõe, justamente, a atomização, a alienação e a impotência individual. A debilidade objetiva de todos na sociedade moderna – aquela que o psicanalista de Nuremberg chamou “debilidade do ego” – predispõe cada um, também, para a fragilidade subjetiva, para a capitulação na massa de seguidores. A identificação, seja com o coletivo ou com a figura poderosa do Chefe, oferece ao indivíduo um substitutivo psicológico para o que, na realidade, lhe falta. (ADORNO; HORKHEIMER, Cultrix, p. 87 – grifos meus) Antes de irmos mais adiante convém observar, juntamente com Adorno e Horkheimer, que a massa não deve ser considerada desde um ponto de vista unilateralmente negativo; pois se assim o for, sua compreensão transmuta-se em uma 280


espécie de reminiscência aristocrática que remanesce no pensamento, podendo transformarse sua crítica em uma ânsia de restauração dos velhos e bons tempos, quando o “populacho”, os déclassés e a “escória” não participavam da política e do mundo cultural.

Figura 75 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936)

A bem da verdade os estudos iniciais sobre os fenômenos de massa partem exatamente deste ponto de vista, onde se a considerava, portanto, 281


como um perigo a ser controlado; uma malignidade intrínseca a ser compreendida e domesticada; uma irracionalidade que cabia à ciência, de algum modo, converter à normalidade e ao domínio – no que se comparava, então, com o desconforto perante a sexualidade feminina, cujo caráter se atribuía à própria massa. Aqui, portanto, diferem as metas entre a apreciação conservadora das massas e sua apropriação crítica: os primeiros querem que elas restem como estão, em sua natureza informe, uma negatividade que cumpre submeter; no campo crítico, de outra parte, se pretende libertar as formas coletivas de existência de sua condição histórica de submissão, de modo que os do povo, os de baixo, possam efetivamente participar da política e da vida cultural. Segundo a natureza de seu relacionamento com a massa, os primeiros são aristocratas e restauradores; os segundos são críticos da redução e do caráter unilateral que ela implica – o lado sombrio que ela igualmente representa. 282


Convém observar, a título de antecipação, que uma das maiores metas do pensamento na contemporaneidade consiste, precisamente, em extrair da forma massa o seu conteúdo efetivamente progressista; o iluminismo implícito, de uma existência que, historicamente, é orientada por impulsos irracionais. Enquanto não se chega a tal ponto, a crítica é uma lamúria, saudosismo erudito, desejo ferrenho e mítico de restauração, cujos contornos externos requerem sempre e invariavelmente a submissão irresoluta das massas, em nome de sua libertação – e disso o fascismo foi um método exemplar e sistemático. De todo modo, para Freud, e com ele Adorno e Horkheimer, a massa está na origem e no fundamento da civilização, em acordo com a hipótese filogenética apresentada pelo primeiro, em Totem e Tabu. Segundo Freud, o mecanismo de identificação tem um lugar decisivo no processo de formação social, na cultura e na civilização, que Freud se nega a separar. Com a identificação tem início a 283


“sublimação dos impulsos sexuais”; ela permite o aparecimento do “sentimento social”. Nesse sentido, a “massa” tem para Freud, uma conotação positiva. Ele descreveu-a como “a transição do egoísmo para o altruísmo”; a linguagem e os costumes seriam seus produtos e só por intermédio destes são possíveis as criações do espírito. (...) (ADORNO; HORKHEIMER, Cultrix, p. 87) Mas em sua condição de fundamento original e elemento do mito de origem da civilização; em sua permanência através da história – o grupo, a foule – a massa, enquanto conceito, não pode explicar praticamente nada, não pode se desvelar. Nessa generalidade de grupamento, pode dar margem a uma sociologia dos grupos sociais, que em sua dificuldade de eleger quais são os atributos que efetivamente os definem, acaba por remeterse a praticamente todos os fenômenos de natureza social, com a desvantagem (ou vantagem, segundo o ponto de vista), que não se pode inferir uma hierarquia necessária entre eles, pois tendem a 284


serem estudados mais em sua autonomia e singularidade, do que propriamente em sua mediação com a totalidade social. Resta em suspenso, portanto, a questão de construir as mediações entre a massa e esta totalidade social, que a engendra como realidade concreta, palpável e incontornável na contemporaneidade. (...) Quanto mais a ideologia insiste na autonomia do grupo, tanto mais os próprios grupos, como instâncias mediadoras entre a totalidade e o indivíduo, são determinados, de fato, pela estrutura da sociedade. Assim, o grupo continua exercendo sua função mediadora e seria difícil compreender a sociedade sem essa função; mas a função mediadora depende hoje, de maneira evidente, do todo societário, como é provável que sempre tenha dependido, de uma maneira menos ostensiva. (ADORNO; HORKHEIMER, Cultrix, p. 74)

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Figura 76 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936) http://www.youtube.com/watch?v=VJesKy0LiOc

Na tentativa de construir as mediações entre a produção da massa e a totalidade social existe uma dificuldade suprema, porque é exigido fazê-lo não em termos de sua generalidade abstrata, mas como algo que se processa no interior de uma sociedade determinada, e por força mesmo de sua reprodução. A questão que se apresenta, portanto, não é propriamente aquela que se refere às razões pelas quais as massas se constituem e 286


permanecem coesas (por um período de tempo)32. A dificuldade está em entender porque na contemporaneidade, a forma de massa se impõe ao indivíduo, de modo a tomar não parte de sua existência, mas subsumi-la em sua totalidade, de modo que este se transforme em uma abstração, ao passo que aquela representa toda a materialidade da vida social. Formulada ainda de uma outra maneira, a questão implica em compreender porque o indivíduo só existe por uma cadeia de remissões, citações, sem poder formular um projeto que lhe seja próprio; porque a solidão – e igualmente suas experiências existenciais supremas, o nascimento e a morte -, torna-se impossível; porque o indivíduo se vê atraído a uma vida que é, no essencial, uma expressão coletiva e somente por meio dela, sente-se e percebe-se como existente; porque, em última instância, o homem se tornou uma grandeza diretamente social, no que afirmou o progresso como regressão da vida em sociedade e do intercâmbio afetivo. 287


Figura 77 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936)

Ora, esta é exatamente a história do processo que desmaterializa o homem como elemento autônomo; que o destrói como individualidade, como auto-consciência. Para existir apenas na forma da massa, para ser flexível nos exatos termos de seus requerimentos – sempre variáveis e aleatórios – foi necessário estraçalhar no homem toda sua estrutura óssea, toda a sua textura; foi preciso torná-lo líquido, moldável, fluente; impôsse desterrá-lo de toda tradição, toda determinação histórica; reduzir, reduzir, cortar, cortar, eliminar, 288


depurar, simplificar, até o infinito. A história do homem como massa se faz pela afirmação do universal, como destruição e negação de todo singular, no que é seu rebaixamento ao uniforme, declaração totalitária do padrão e do modelo.

Figura 78 - Tempos modernos (Charles Chaplin, 1936)

Mas o curso épico deste depauperamento, seu drama trágico, não é um processo exclusivamente da instância psicológica. O homem que se reproduz continuamente em um formato diretamente social, elemento dissolvido na massa, foi inicialmente produzido como pura indeterminação – potência meramente abstrata -, desprovida de realidade 289


concreta, completamente submissa, inteiramente insubsistente, a não ser por sua relação e subsunção imediata e total ao ser social. A chave que abre a porta para a gênese da massa - em sua acepção contemporânea - está justamente no processo que converte todo o trabalho determinado, específico, concreto, em trabalho abstrato; mera quantidade de energia a ser aplicada ao processo produtivo; uma fórmula puramente mecânica, potência em seu sentido estritamente físico. A redução a esta condição diretamente matemática - fração de tempo, desgaste de energia, força como capacidade de realizar trabalho -, e que significa ao mesmo tempo, o desprezo concreto de tudo que excede a estas grandezas puramente quantitativas, é a transformação do indivíduo em mera partição de uma potência social, negação de tudo que há nele de singular. Essa é a forma diretamente social que assume seu trabalho na sociedade produtora de mercadorias, em que tudo que existe e tudo que tem direito a existir, vai ao mercado e nele, 290


somente nele, ganha vida e validade, como fração do trabalho social total. Fração de um todo homogêneo, parte ideal, grandeza puramente mecânica, a vida segundo a lógica do número, a identidade por relação a ele, como se fora a universalização tardia da filosofia de Pitágoras: tudo isso já se encontra e encontrava na própria sociedade, como determinação corriqueira e meio de vida universal. E mesmo quando este desprezo pelo particular é negado, para afirmar a importância específica de um indivíduo para o processo de trabalho – o cientista, o engenheiro, o perito, o gerente, etc. - isso se faz por uma remissão necessária ao cálculo capitalista: o particular que se afirma é o abstrato potencializado; o particular como promessa de um avanço futuro na redução de tudo que é complexo, a suas formas parcelares mais simples e elementares. O trabalhador, conforme nós o conhecemos hoje, é um processo histórico; aquele da redução de todas as particularidades a uma generalidade 291


abstrata. Que exista nele algo que excede esta condição, em nada contribui para afirmar sua autodeterminação mas, quanto antes, para torná-lo inadequado e imprestável para o processo de trabalho, que o quer não como ser pensante, como entidade auto-consciente, mas como o maquinal, capaz de submeter-se ao domínio e à liderança, que é exercida não por ele, mas pela máquina – ela mesma uma codificação extensa de todas e cada uma das etapas de desqualificação daquele mesmo trabalhador.

Figura 79 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936)

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Todo excedente cultural acumulado pelas classes trabalhadoras, as habilidades milenares que se somaram, de modo a engendrar um mestre artesão; seus conhecimentos técnicos, o domínio – ainda que rudimentar e incipiente - de princípios científicos; são reduzidos a pó, de vez que o conhecimento enquanto tal é apropriado pelo próprio capital e tornado inatingível e ininteligível para o trabalhador, tão logo o desenvolvimento técnico se torne uma potência endógena ao processo produtivo. Este desenvolvimento só atinge seu estado maduro, potencialmente final, contudo, quando o próprio trabalho científico torna-se parcelar e o cientista, ele mesmo, um funcionário – direto ou terceirizado (senão quarteirizado) – do próprio capital: quando ninguém tem o domínio do processo (de produção da ciência), quando tudo é parte de algo que transcende qualquer indivíduo, quem forma a unidade final é o dinheiro, pois, por meio dele, tudo que está separado se resolve na tecnologia. Houve época, portanto, em que Fausto poderia escolher fazer seu pacto com Mefistófeles, 293


hoje em dia todos encontram o contrato já devidamente assinado.

Figura 80 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936)

Ao transformar a física experimental em um protótipo de todas as ciências e modelar todas as esferas da vida intelectual segundo as técnicas de laboratório, o pragmatismo é o correlato do industrialismo moderno, para quem a fábrica é o protótipo da existência humana, e que modela todos os ramos da 294


cultura segundo a produção na linha de montagem ou segundo o escritório executivo racionalizado. A fim de provar seu direito a ser concebido, todo pensamento deve ter um álibi, deve apresentar um registro da sua utilidade. Mesmo que seu uso direto seja “teórico”, deve ser finalmente verificado pela aplicação prática da doutrina que funciona. O pensamento deve ser aferido por algo que não é pensamento, por seu efeito na produção ou seu impacto na conduta social, como a arte de hoje é avaliada por algo que não é arte, seja a bilheteria, seja o valor de propaganda. Contudo existe uma diferença notável entre a atitude do cientista e do artista, por um lado, e do filósofo, por outro. Os primeiros às vezes ainda repudiam os embaraçosos “frutos” dos seus esforços, que se tornaram seus padrões de julgamento na sociedade industrialista, e se libertaram do controle do 295


conformismo. Os últimos assumiram a justificação dos critérios factuais como supremos. Como pessoas, como políticos ou reformadores sociais, como homens de gosto, podem estes se opor às conseqüências práticas dos empreendimentos científicos, artísticos ou religiosos no mundo tal como se apresentam; sua filosofia, contudo, destrói qualquer outro princípio ao qual pudessem apelar. (HORKHEIMER, 2002, p. 57-8 – grifos meus)

Figura 81 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936)

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O primeiro saldo mortal da alienação Tão logo o trabalho assalariado se converta em requerimento absoluto, genérico; uma vez estabelecido que a reprodução da própria condição humana, em seu caráter imediato, depende do mercado, da venda da força de trabalho, o que exige, a sua vez, que a forma mercadoria seja universalizada, ocorre uma subversão do ócio, do tempo livre, que se transforma, como em um passe de mágica, de tempo para o indivíduo em tempo do indivíduo, destinado à sua regeneração – física, mental e afetiva – para o trabalho. Este é o primeiro salto mortal da alienação, que já havia colocado o mundo de ponta cabeça: para manter-se competitivo, íntegro, saudável, em suma, para poder recorrentemente se apresentar ao mercado com uma mercadoria vendável – força de trabalho -, o indivíduo deve subordinar até mesmo seu ócio às exigências de sua condição de vendedor privado de mercadorias33.

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A indústria cultural nas palavras do próprio Adorno “impede a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”. O próprio ócio do homem é utilizado pela indústria cultural com o fito de mecanizá-lo, de tal modo que, sob o capitalismo, em suas formas mais avançadas, a diversão e o lazer tornam-se um prolongamento do trabalho. Para Adorno, a diversão é buscada pelos que desejam esquivar-se ao processo de trabalho mecanizado para colocar-se, novamente, em condições de se submeterem a ele. A mecanização conquistou tamanho poder sobre o homem, durante o tempo livre, e sobre sua felicidade, determinando tão completamente a fabricação dos produtos para a distração, que o homem não tem acesso senão a cópias e reproduções do próprio trabalho. O suposto conteúdo não é mais que uma pálida fachada: o que 298


realmente lhe é dado é a sucessão automática de operações reguladas. Em suma, diz Adorno, “só se pode escapar ao processo de trabalho na fábrica e na oficina, adequando-se a ele no ócio. (ARANTES, Paulo Eduardo. Escola de Fankfurt Uma Introdução. Publicado no sítio: http://antivalor2.vilabol.uol.com.br/textos/outros/arantes_03.html)

Figura 82 - Pacto Sinistro (Alfred Hitchcock, 1951) http://www.youtube.com/watch?v=GnSzZGGEDKQ&feature=PlayList&p=8269ED2 7C898DCB2&index=2

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Este foi um longo processo de educação, cujos fundamentos estão devidamente incorporados a todos os manuais de recursos humanos, e dos quais se ufanam os pequenos funcionários da ordem, como arautos que são das auto-evidências de ocasião, dos conselhos práticos para a heteronomia: regulamentos subliminares de autoajuda, em um mundo que baniu a solidariedade e no qual, portanto, tudo que é social é, em algum grau, potência hostil. Nunca é demais enfatizar que esta subsunção do ócio, sua colonização aos requerimentos energéticos do processo produtivo, é um processo furioso de destruição das capacidades criativas e inventivas, simplesmente porque a tensão lhes é inerente – existindo aqui, portanto, uma divergência necessária com os reclamos da ordem, que pretende consumir o homem em sua integralidade. A atividade criadora não é para a paz e nem mesmo para o apascentamento: ela é para a guerra do indivíduo consigo mesmo, posto que requer dele a destruição de toda fixidez, toda 300


oferta imediata da realidade, o que implica em recusar sua sedução - pois a realidade, como verossímil que também é, participa da natureza diabólica, que não afirma, mas insinua; não demonstra, mas indica. Exatamente porque toda a vida de hoje tende cada vez mais a ser submetida à racionalização e ao planejamento, também a vida de cada indivíduo, incluindo-se seus impulsos mais ocultos, que outrora constituíam seu domínio privado, deve agora levar em conta as exigências da racionalização e planejamento: a autopreservação do indivíduo pressupõe o seu ajustamento às exigências de preservação do sistema. E na medida em que o processo de racionalização não é mais o resultado forças anônimas do mercado, mas é decidido pela consciência de uma minoria planejadora, também a massa de sujeitos deve ajustar-se: o sujeito deve, por assim dizer, dedicar todas as suas energias para 301


estar “dentro e a partir do movimento das coisas”, nos termos da definição pragmatista. Anteriormente a realidade era oposta e confrontada ao ideal, que era desenvolvido pelo indivíduo presumivelmente autônomo; presumia-se que a realidade se conformasse a esse ideal. Hoje tais ideologias são desacreditadas ou omitidas pelo pensamento progressista, que assim facilita a elevação da realidade ao status de ideal. Portanto o ajustamento se torna o modelo para todos os tipos imagináveis de comportamento subjetivo. O triunfo da razão formalizada e subjetiva é também o triunfo de uma realidade que se confronta com o sujeito como algo absoluto e esmagador. (HORKHEIMER, 2002, p. 1001)

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Figura 83 - Pacto Sinistro (Alfred Hitchcock, 1951)

Ora, as potências que querem o homem como o determinado, como um elemento para sempre decifrado – trabalhador produtivo para o capital – o negam como um flerte com o absoluto. Somente a mansidão, a regularidade maquinal é funcional, pois ela é uma contenção energética, uma mescla de bastar-se e fartar-se de si mesmo; um estado ruminante e plácido; uma autossatisfação entardecida e preguiçosa; um torpor de cadeira de balanço em inércia de movimento; o babar e dormir de boca aberta, como quem se empanturrou em deglutir seus próprios sonhos (no 303


que se insinua que as doenças auto-imunes apareceram primeiro na cultura, antes de se derramarem sobre a biologia humana).

Figura 84 - Pacto Sinistro (Alfred Hitchcock, 1951)

Bem mais frequentemente que este hipnótico amortecimento geral da sensibilidade, da capacidade de dor, o qual já pressupõe forças mais raras, sobretudo coragem, desprezo da opinião, “estoicismo intelectual”, emprega-se contra estados de depressão um outro training, de todo modo mais fácil: a atividade maquinal. Está fora de dúvida que através dela uma existência sofredora é aliviada em grau considerável: a este fato chama-

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se atualmente, de modo algo desonesto, “a benção do trabalho”. (NIETZSCHE, 1988, p. 152) Um escritor é um eterno apaixonado pela vida; pois se não pode amá-la pelo sublime; pode sempre rir do absurdo que ela é. Ora, o artista ama a vida mesmo quando ela é uma manifestação bizarra; mas vestida com toda a elegância do oxímoro – este é o presente caso. O processo material de produção de riqueza, que só a reproduz como grandeza autoexpansiva é, ao mesmo tempo, um processo de depauperamento, não material e nem mesmo individual, no sentido imediato que a ideia poderia sugerir: afinal de contas estamos todos mais ricos. Trata-se antes de uma degradação da experiência, que faz com que tudo aquilo que é elevado; que é sublime; seja apropriado não segundo a maneira com que nasce, mas de acordo com sua forma degradada – uma fruição de quantidades, como quem coloca troféus (de caça) sobre a parede e prateleiras; como quem tira fotografias que submergem o específico na cara 305


onipresente da família34; como quem encontra em tudo, não aquilo que de fato existe, mas uma oportunidade para um bate-papo de salão de barbeiro, com os ares de autoelogio; como quem vai ao teatro, não pela peça sinfônica, mas para aumentar suas exposições à câmara dos paparazzi.

Figura 85 - Pacto Sinistro (Alfred Hitchcock, 1951)

Vive-se a vida como quem coleciona vacuidades; formam-se conjuntos tão homogêneos quanto possível, e eles são, segundo sua natureza, cristalização da vida, petrificação, soma, múltiplos: uma redução nervosa e ansiosa daquilo que não se compreende ao domínio; a cultura, portanto, não como antropofagia e apropriação, mas como 306


campo de concentração ou como reminiscência do zoológico. Entende-se, então, que a cultura traga sobre sua fronte, as cicatrizes da violência que a civilização contém, posto que toda a fruição do objeto é, ao mesmo tempo, agressão do objeto: a rejeição da experiência autêntica e transformadora – no que se humaniza o objeto -, para sua afirmação como gênero de uma classe, peça, elemento, negação de sua singularidade, remissão à quantidade como sina autoexpansiva. (...) Depois de se ter criado o conceito de “natureza” como noção oposta a “Deus”, “natural” transformou-se necessariamente em sinônimo de “desprezível” – todo esse mundo de ficções tem sua raiz no ódio contra o natural (a realidade!), é a expressão de um profundo mal-estar perante o real... Mas assim tudo se explica. Quem tem razões para, através da mentira, se evadir da realidade? Quem por causa dela sofre? 307


Mas sofrer por causa da realidade equivale a ser uma realidade infeliz... A preponderância dos sentimentos de desprazer sobre os sentimentos de prazer é a causa de uma moral e de uma religião fictícias; semelhante predomínio fornece a fórmula para a décadance... (NIETZSCHE, 1997, p.28) O duplo mortal da alienação

Figura 86 - A fantástica fábrica de chocolate (Tim Burton, 2005)

Se o ócio é sua farsa; se ele é a continuação do processo de trabalho, sob a forma desinteressante 308


do tempo sem propósito; se ele é para destruição da verdadeira imaginação, antes que para sua potencialização; ele se oferece então, de graça, como fruto caído, para a universalização da heteronomia. Ocorre, portanto, ao homem, ainda que de uma maneira infracientífica e não planejada – embora historicamente necessária -, aquilo que se tornou uma meta racional para a moderna indústria de brinquedos: para que as crianças sejam devidamente treinadas para o mundo conforme ela o quer, é preciso destruir nelas, sistematicamente, toda a espontaneidade com que brincariam naturalmente; é preciso degradar sua inclinação imanente de perceber o fantástico em uma bola de papel, roubar-lhes todo o gosto pelo ar livre; domesticar seu ímpeto pelo desconhecido; falar-lhes da realidade dos micróbios, dos germes; de toda a sujeira da terra; apartá-las senão das árvores, dos galhos mais altos, pois só são seguras, neurologicamente falando, as quedas de mesma altura. Deve-se, enfim, tornar seus corpos flácidos, sem textura e tônus, mas rígidos nesta moleza: dar

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a eles o próprio formato das cadeiras com que jogam videogames e trafegam pela Internet.

Figura 87 - Willy Wonka e a fábrica de chocolate (Mel Stuart, 1971) http://br.youtube.com/watch?v=kRydegrrQZs

É fundamental, ainda, nutri-las com toda a ordem de dejetos, que têm em comum, não fundamentalmente as gorduras e especialmente as trans - que tornam o processo de digestão um símile de brincadeira de escorregador -, mas o transformar o alimento em uma espécie de nutriente intravenoso, que se consome sem resistência ou esforço e, portanto, para a alegria da 310


co-irmã (indústria de alimentos), sem qualquer consciência – um deleite: mamar perpetuamente, no peito do mundo, que não nos quer ver crescer! Percebe-se, nestas técnicas, como uma determinada forma de organização do processo industrial, tão logo ela tenha se mostrado eficiente, acaba se transformando em uma espécie de patrimônio cultural universal do capital: também considero horroroso o modo como se criam os pintinhos na granja e me parte o coração que a pecuária de corte tenha levado o confinamento até os limites do inimaginável, no afã de produzir carne cada vez mais macia. Mas é deste modo, precisamente deste modo, que atualmente on élève les enfants. (...) Nossos gostos são formados na primeira instância; o que aprendemos depois nos influencia menos. As crianças podem imitar o pai que era dado a longos passeios, mas se a formalização da razão tiver progredido bastante, eles poderão pensar que já cumpriram o suficiente a 311


obrigação para o corpo realizando uma série de exercícios sob o comando de uma transmissão radiofônica. Não é mais necessário nenhum passeio para ver a paisagem. E assim o próprio conceito de paisagem, tal como é experimentado por um andarilho, torna-se arbitrário e sem significado. A paisagem degenerou completamente em paisagismo. (HORKHEIMER, 2002, p 45) De todo modo, uma vez tenha ocorrido o duplo mortal da alienação, ou seja, dado o tempo necessário para que o homem fosse tornado suficientemente unilateral, para não poder mais preencher por si mesmo o ócio – processo que tem por coadjuvante seu completo afastamento da natureza, ou seja, sua materialização irrestrita e quase universal na pele do citadino -, está preparado o terreno para que as determinações sociais tomem seu aspecto de reivindicação total: o ser que não sabe mais brincar, que se aborrece de si; que tem em si mesmo uma companhia insuportável, posto que monótona e 312


desinteressante; completamente desprovido de habilidades, senão não as que fazem dele trabalhador, em toda a materialidade de sua generalidade abstrata, precisa que lhe forneçam de fora o imaginário que o processo concreto de sua vida cuida de destruir como natureza própria. Mas porque elas querem esse tipo de coisa? Em nossa presente sociedade, as próprias massas são moldadas pelo mesmo modo de produção material a elas impingido. Os usuários da diversão musical são eles mesmos objetos, ou, de fato, produtos dos mesmos mecanismos que determinam a produção da música popular. O tempo de lazer desses usuários serve apenas para repor sua capacidade de trabalho. É um meio ao invés de ser um fim. O poder do processo de produção se estende no tempo a intervalos que, na superfície, parecem ser “livres”. Eles querem artigos estandardizados e pseudoindividuação, porque o seu lazer é uma fuga ao trabalho e, ao mesmo tempo, é 313


moldado segundo aquelas atitudes psicológicas a que o seu dia-a-dia no trabalho os habitua de modo exclusivo. Música popular é, para as massas, como um feriado em que se tem que trabalhar. Por isso, há, hoje, uma justificativa para falar em uma harmonia pré-estabelecida entre produção e consumo de música popular. O clamor do povo por aquilo que ele há de receber de qualquer modo. (ADORNO, 1994, p. 137) Ao tomar de fora as formas simbólicas de seu imaginário, o homem age segundo a mais estrita racionalidade prevista no próprio regime de produção da vida material. Ora, o processo capitalista de produção é ao mesmo tempo aquele que produz (e reduz) o homem como um fator quantitativo, mero dispêndio de energia – abstração total e resoluta, portanto, de toda a qualidade -, gelatinas de trabalho humano indiferenciado 35.

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É necessário, portanto, dentro destas condições, que ocorra um solapamento de todo o processo identitário no terreno estrito da produção, posto que aquele processo se transforma, por fim, em uma vacuidade e uma tautologia. Que no trabalho o homem seja mero dispêndio energético - o trabalhador, portanto, como fórmula maquinal de sua natureza humana significa dizer: a energia que despendo vale uma certa porção monetária. Ora, relacionam-se aqui duas quantidades, no que o homem como qualidade e, portanto, à parte de sua mera mecanicidade, é deixado do lado de fora do processo de equivalência (obviamente esta redução a mera quantidade é obra sempre inacabada do capital, mas, ainda assim, meta perpétua). Nesta situação o indivíduo não apenas deixa de se reconhecer no produto do trabalho, até mesmo porque ele só emerge como obra de um trabalhador coletivo, mas também não pode ver sua face na grande irmandade, que as formas pretéritas de trabalho foram para os homens que 315


trabalham. Na medida, portanto, em que a habilidade do trabalhador deixou (e tendencialmente deixa) de ser elemento central, nuclear do processo produtivo, o trabalho, como vínculo identitário, deixou (e deixa) igualmente de ser central para o homem – justamente porque o valor de uso de seu trabalho, a forma concreta de sua existência, passa a ser puramente acidental: hoje metalúrgico, amanhã ambulante, depois gari, caixa de supermercado, vigia; bancário, vendedor, promoter. Mas este é apenas um dos aspectos da degradação da vida onírica da humanidade. O tempo livre, como vimos, também ele, é pobre na produção de elementos simbólicos, exatamente porque é logicamente, funcionalmente, concebido para ser uma extensão (benigna, reparadora) do processo de trabalho, encontrando-se, portanto, determinado pela natureza daquele: destina-se, por assim dizer, a carregar o capacitor. Este homem, exatamente ele, tornado completamente abstrato, conduzido à redundância 316


e a contingência, para com o processo de produção da vida material; depauperado em seu imaginário e em suas efetivas habilidades criativas, que, se existem, estão de princípio hipotecadas ao capital; este ser, que só se alimenta por via intravenosa; confirmou em uma forma aberrante, a sua própria natureza: o não ter nenhum vínculo necessário com o mundo, o ser um incidente que vive – sem passado a que se referir, sem futuro a demandar -; denegação do singular, como afirmação irrestrita do abstrato e, nesta condição, uma dissolução no universal, que resta para ele igualmente abstrato. Por meio desta forma histórica, o homem passa a ter uma vida meramente estatística, probabilística e constrói, em conformidade, uma subjetividade que corresponda aos tempos: fugidia, móvel, efêmera, incidental, etc. Reflete, em si, portanto, aquilo em que se transformou sua existência objetiva: vacuidade, contingência e acidente. Antecipa assim, mas apenas por este meio perverso e alienado, a forma exterior daquilo que a filosofia promete como possibilidade: a 317


independência radical, sem a qual nenhuma autodeterminação verdadeira é possível. Massa e indústria cultural A forma massa, sendo trans-histórica e estando presente em toda e qualquer formação econômica e social, é, no interior da sociedade capitalista – capitalismo tardio para muitos -, algo de muito específico. Devido à sua natureza mesma36, à sua plasticidade e indeterminação, constitui-se na formação coletiva que melhor se amolda, a de maior funcionalidade, para um mundo que fez do aleatório um padrão e da produção diferencial de modelos, uma regra. A massa é a forma coletiva necessária do capitalismo plenipotenciário, pois este é o regime que produz os homens como acidentes, probabilidades de vida a confirmar. Sua natureza informe, moldável, é a correspondência formal necessária de um conteúdo gelatinoso. Como tudo na vida, contudo, a massa como forma coletiva é o que é, não como um em si mesmo, mas por referência à totalidade - é dali 318


que advém a luz que a particulariza. Sabemos da lógica, mas nem sempre da economia ou da sociologia, que toda a formação social deve por, como condição mesmo de sua existência, os elementos de que parte, para a produção da vida societária. É necessário, portanto, não apenas produzir os meios materiais que ela requer, mas o próprio homem como matéria – elemento subjetivo do processo reprodutivo social. A cada momento histórico, contudo, o homem como requerimento, como imput, é elemento potencialmente novo, dotado de diferentes domínios simbólicos, capacidades, habilidades, etc. Ora, o homem aparece no capitalismo tardio como potência diretamente social, ou seja, mostrase incapaz de individuação, de se afirmar como o singular, pois é elemento da série, mesmo que se realize segundo o princípio da variabilidade diferencial. Tão logo ele anuncie, contudo, aquela impossibilidade como uma verdade histórica, ele precisa ser produzido desta forma, e não de uma outra maneira qualquer - afinal de contas o progresso precisa de seus braços, e todos eles com 319


as respectivas cabeças, de conformidade com seus requerimentos e protocolos. Os filisteus diriam, nesse caso, portanto, que o homem moderno precisa de bens culturais, segundo a estrutura simbólica, estética e sensível que lhe é inerente, e necessita deles como condição de existência, como oferta concreta no mercado; como meio de fruir os benefícios do ócio – dádiva da civilização. Os economistas – tanto os crédulos, quanto os decaídos (e especialmente estes) – são incapazes, contudo, de tamanha sutileza: eles afirmam assim, sem cerimônia, sem pruridos, que uma vez que o homem é produzido como uma unilateralidade; incapaz de autonomamente se prover de bens culturais, porque todo seu eu e todo seu tempo foram tragados pelas primícias do trabalho; porque tudo que havia de espontâneo em sua existência histórica e diretamente popular foi devidamente devastado; porque a expansão capitalista sem limites é um genocídio das culturas pretéritas, ainda que em nome da civilização; e, considerando ainda, que o direito à cultura é um benefício 320


inalienável do trabalhador moderno – parte inerente do próprio valor da força de trabalho, no que se inclui muito mais do que arroz, feijão, bife e batata frita –; bradam, então, aqueles economistas, como verdadeiros bárbaros modernos que são, que se faltam mercadorias, é preciso produzi-las. Os capitalistas, a sua vez, físicos práticos, matemáticos autodidatas sabem, contudo, que aquilo que está aparentemente vazio pode ser uma tal concentração de energia, que atrai para si toda a matéria, e mesmo a luz - que se demonstra assim também ela material. E seu instinto não os engana: o imaginário é infinito, insaciável, traga em segundos, milhares de estruturas simbólicas; é ávido de vida. Deste modo, seguindo a astúcia e a sagacidade dos nossos paladinos, a produção cultural, que havia remanescido como esfera autônoma, não imediatamente subsumida pela produção capitalista, transformou-se em um ramo da indústria, como todos os requerimentos formais, lógicos, técnicos e científicos que lhes são inerentes. 321


Se, contudo, a produção cultural se transforma diretamente em produção industrial; se os bens culturais são produzidos como mercadorias, não se processa aqui uma transformação qualquer. Bens culturais são também coisas prosaicas como vestidos de alta costura, o design como uma forma epidêmica e degradada do desenho. São igualmente, contudo, a própria produção da cultura como totalidade: instância que se opõe ao imediato que a realidade quer ser, como autorrepresentação não problemática. Quando, portanto, a cultura se submete a uma lógica puramente industrial – uma reprodução maquinal do imaginário -, ocorre ao mesmo tempo, e por consequência, a absorção daquilo que o cânone convencionou chamar de superestrutura, na infraestrutura social. Dá-se, portanto, uma transformação aparentemente abrupta da totalidade societária e da reflexão que tenta acompanhá-la. As cifras para a decodificação e crítica daquela totalidade, que se encontravam até então na esfera estrita da produção, parecem deslocar-se para o consumo, 322


para a análise dos códigos simbólicos, da linguagem etc. Ocorre, portanto, um decaimento das velhas doutrinas sociológicas, o marxismo entre elas. A crítica social se vê, por consequência, na condição de renunciar a sua própria tradição crítica, para manter-se no território da negatividade. Esta evolução, contudo, se for ruptura total, é a afirmação do erro, como expectativa da verdade. Ora, aquilo que o capitalismo produz, como seu produto par excellence, é a própria relação de dominação e, em consequência, o homem que lhe corresponde. Dizer, portanto, que a chave do social está no consumo, é exatamente equivalente a afirmar que doravante a produção simbólica está submetida aos ditames da produção capitalista industrial. Daí porque, a forma consequente de superação do marxismo não é a ruptura radical com sua avaliação da sociedade capitalista, mas a construção das mediações que este desenvolvimento da própria totalidade requer.

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Neste sentido preciso, é preciso renová-lo, elaborar sua atualização: a cultura passou a ser uma grandeza efetivamente econômica, infraestrutural (ainda que não apenas); o que significa dizer, igualmente, que o homem é reposto para a compreensão teórica não apenas em sua expressão diretamente social – o trabalhador –, mas naquilo que era o indevassável da sua vida privada: a esfera do consumo e sua própria condição de consumidor, seu psiquismo, na medida em que é o território do simbólico e do imaginário. Afinal, o modo de inclusão imaginária proposto pela sociedade de consumo difere daquele proposto pelo capitalismo em sua fase produtiva. Se no longo período que se seguiu à revolução industrial as massas urbanas eram convocadas enquanto força de trabalho, das quais se exigia dedicação, esforço, sacrifícios e um permanente adiamento das gratificações esperadas – o mesmo vale para o contexto do pós-guerra em 324


que Adorno analisou o papel da indústria cultural – nas condições atuais em que os homens valem menos como força de trabalho do que como consumidores, os valores que condicionam a inclusão se inverteram. Não mais o esforço e o sacrifício, mas o “direito ao prazer”. Não mais o adiamento da gratificação, mas o gozo imediato de tudo o que se oferece para este fim. Não mais a renúncia pulsional e a “castração”, mas a fantasia narcisista de um eu que se prolonga nos seus objetos de satisfação. Neste contexto, o recalcamento seria contraproducente. Não se trata mais de recalcar o desejo e sim de seduzir o sujeito do desejo, no sentido de “desviá-lo de seu caminho”. (BUCCI, KEHL, 2004, p. 58-59) Este desenvolvimento tem muitas consequências, mas a mais fantástica pode ser enunciada de duas formas distintas, conforme o ponto de vista que se toma: ocorre a fetichização 325


total da cultura, sua obliteração como instância crítica e antagônica ou, por outro lado, a produção da cultura sob a forma mercadoria, no que a apropriação do real se converte em pasteurização do real; sua glamourização; falso apascentamento; a promessa de felicidade que a obra de arte propunha, como engodo. Na produção cultural sob a forma de mercadoria, o real se oferece como alucinação do real; hiper-real, neo-real. É necessário evitar interpretar o gigantesco empreendimento de produção de artefatos, de “make-up”, de pseudoobjetos e pseudo-acontecimentos que invade nossa existência quotidiana, como desnaturação ou falsificação de “conteúdos” autênticos. Pelo que se disse, vemos que o desvio de sentido, a despolitização da política, a desculturação da cultura e dessexualização do corpo no consumo dos meios de comunicação de massa, se situam para lá da reinterpretação “tendenciosa” do conteúdo. Foi na forma que tudo mudou: 326


em vez do real, substitui-se em toda a parte um “neo-real”, inteiramente produzido a partir da combinação de elementos do código. Opera-se em toda a extensão da vida quotidiana, um imenso “processo de simulação” a que se aplicam as ciências operacionais e cibernéticas. “Fabrica-se” um modelo pela combinação de rasgos ou elementos do real; faz-se lhe “causar” determinado acontecimento, estrutura ou situação futura e tiram-se conclusões táticas, a partir das quais se atua sobre a realidade. Pode até ser instrumento de análise num processo científico dirigido. Nas comunicações de massa, semelhante método ganha força de realidade: a verdadeira realidade é abolida e volatilizada, em proveito da neorealidade do modelo, materializado pelo próprio meio de comunicação. (BAUDRILLARD, 1975, p. 207-208) Na presença da industrial cultura, tendo o capitalismo histórica e materialmente 327


transformado a produção cultural em sentido extenso, em ramo da produção material, a massa perde por completo sua natureza espontânea, seus recortes e conformações pretéritas. Aqui o homem passa a ser produzido sistematicamente, cientificamente, como átomo; fração ideal da massa. As formas aparentemente acidentais que a massa toma são requerimentos diretos e necessários, da existência do produto do trabalho enquanto mercadoria e da valorização do valor, na escala e na magnitude a que foi conduzido o processo material de produção. Vale para a indústria cultural, portanto, aquilo que se afirma para o cigarro: dizem que ele é mero suporte material para o consumo de nicotina e seus congêneres – ela, a sua vez, é mero receptáculo para a valorização acelerada do valor. Entende-se, então, em primeiro lugar que, largados sobre suas poltronas, prestes a dormir o sono dos justos, absolutamente segregados em seus tronos imperiais; isolados, separados, submetido ao mais profundo recesso de sua vida privada; ainda assim, o homem afirma-se como 328


uma grandeza coletiva – sua solidão é uma ilusão, porque no absoluto de sua reclusão, age não por si mesmo, mas de conformidade com os padrões que lhe são dados de fora; um verdadeiro derramamento do social sobre sua existência. Converte-se em elemento da massa, portanto, por força simples e direta da atuação do meio – a TV, por exemplo -, mas a evasão de que é vítima; o fascínio que o imanta ao aparelho; este não vem diretamente dele; mas da correspondência entre a linguagem que ele fala e a gratificação direta e imediata de requerimentos inconscientes. Esta linguagem a indústria cultural não a encontrou pronta, ainda que sua estrutura mais geral, seus hieróglifos infantis, tivessem sido desenvolvidos pela comunicação de massa do fascismo37. Ela o criou a partir de sua própria experiência, como desenvolvimento consequente daquela. O homem massa, esta contração, que significa simplesmente a existência segundo uma subsunção absoluta ao social, é a negação do 329


privado como possibilidade oferecida ao ser. Em conformidade com tal natureza, portanto, o homem passa a ser permanentemente público, ou, em uma locução mais adequada, transparente. É evidente, portanto, mesmo em seu isolamento; é arrastado para o coletivo, mesmo em sua solidão. Este requerimento do social, contudo, corresponde à sua própria inclinação individual – é incapaz da solidão. É livre como o passarinho; mas como um tributo à nanotecnologia: toda a pesada instrumentação do controle está interiorizada, de modo que a opressão pode muito mais apropriadamente ser anunciada como a depressão. Não é um acidente, portanto, que o mito que ronda a contemporaneidade seja o de Narciso: o homem massa é uma dissolução. É assim que a indústria cultural o produz. A massa e questões da filosofia política A indústria cultural em sua historicidade é um desenvolvimento rigorosamente dialético; uma transubstanciação da forma enquanto forma, à parte de toda intencionalidade; giro da razão como 330


denegação do homem. Aparece, em consequência, como desdobramento puramente material da matéria. É também, na especificidade que representa, o capital enunciado em sua forma máxima, em toda sua pretensão divina e criadora – uma revolução capitalista do capital. Se até o advento da indústria cultural, todos os regimes sociais de produção, o capital incluído, eram de algum modo, reprodução do homem, através de uma mediação pelas coisas, só o faziam aproximadamente nesta mesma materialidade, sem o domínio extenso dos códigos simbólicos societários - no que o espírito restava obstinado em suas escapadelas etéreas, em seus devaneios pelos bosques, em seu lirismo libertino. Com o advento da indústria cultural, contudo, o caráter artesanal e a natureza artística da produção simbólica foram devidamente apropriados pela lógica industrial, massiva, de maneira que o último terreno em que o homem tinha uma vida autônoma, foi invadido e submetido aos propósitos da valorização. A 331


indústria cultural, portanto, é um movimento de fetichização total da cultura; a vulgarização como meta; a liquefação da tradição como programa; o divino em sua forma diretamente laica, econômica; o conhecimento em fascículos; o clássico por meio das edições populares; a filosofia nas fórmulas maravilhosas do para ler fulano; cicrano em 90 minutos; O que é? Ou seja, o vice-reinado dos comentadores, o vice-reinado dos que fazem sinopses, que se resolvem no reinado do pensador como apresentador de programas televisivos. Mas em toda potência de sua positividade, de sua funcionalidade; na perversão da formulação iluminista que implica e que toma como prática; na degradação da razão que a força de dominação total requer, não estaria já insinuada a negatividade como uma possibilidade? O que significa dizer que o homem se tornou uma gelatina? O que são homens feitos com ferro de madeira? O que se pode requerer do real, quando ele é a realização perversa do para além do bem e do mal? Sentinelas da tradição, cautela: os desertores são muitos, cautela! 332


A presença da massa enquanto forma é um problema político, social, estético, etc. de enorme magnitude, pois requer por sua simples existência a reconsideração de tudo quanto existe ou existiu. Mesmo em sua autonomia relativa, ou seja, libertada de seus antecedentes feudais, escravistas, locais; ela é a um só tempo índice do progresso e pânico da horda, como possibilidade concreta. Nesta ambiguidade e ambivalência, a massa é contemporânea do indivíduo, um não existindo como grandeza sem o outro. O indivíduo nasce olhando para massa; é arrancado dela, por afirmação do singular; teme em consequência um retorno forçado ao indiferenciado. A restauração, a contrarrevolução, em sua acepção francesa, como tipo ideal weberiano, é uma tentativa de retroceder a um estágio précapitalista da forma massa, ou seja, no qual houve e, em decorrência, poderia voltar a haver uma unidade orgânica entre a aristocracia e o povo: é, contudo, uma qualificação da individualidade e da cidadania; uma troca entre formas seguras de vida para o povo e limitação de seus direitos políticos. 333


Mesmo a socialdemocracia, em suas configurações mais avançadas, não deixa de implicar em uma barganha e em uma limitação, uma vez que exclui do espectro da legitimidade política a revolta contra a ordem – coloca no gerúndio, portanto, a universalização da individualidade como princípio, posto que eterniza e potencializa as condições que instituem a forma massa. Aparentemente a política em seu sentido burguês é um pêndulo entre esta reação conservadora, na qual se recria uma comunidade orgânica, e o liberalismo como afirmação do indivíduo, como elemento de tensão para com aquela comunidade redutora. Diferem entre si, portanto, por muitos elementos, mas naquilo que é essencial, pelo lugar ocupado pela filantropia, seu caráter público ou privado. As formas não burguesas, ou não imediatamente burguesas de política não foram igualmente muito além. Percebe-se, quase universalmente que tão logo tenham chegado ao poder, os governos ditos populares degeneram em 334


regimes mais ou menos centralizados ou oligárquicos. Fomos todos (ou quase todos) formados na tradição que pretende ver esta corrupção como algo que ocorre a partir da degeneração dos pressupostos filosóficos que lhes deram origem; uma deturpação do pensamento por exigências práticas do jogo político. Deste modo, condena-se por exemplo o leninismo, em benefício do marxismo. A questão, contudo, é significativamente mais complexa: um ponto de vista unificador, que a partir de si defina papéis e tarefas; que organize o mundo, seus conceitos morais, estéticos, políticos, científicos não é justamente aquilo que acabamos por encontrar, como que de surpresa, no resultado final? Não descobrimos sempre ao fim, que o sujeito filosófico que inspira a revolução não é exatamente um catalisador; que ele adentra o mundo social, não como quem quer lhe dar celeridade em seu caminho de autodesenvolvimento, mas como quem veio para ficar? 335


A massa, portanto, apresenta esta questão radical: o que é, de fato, seu ponto de vista? Ele pode ser inferido como um somatório, um produtório de interesses privados; de percepções individuais; pode ser deduzido da lógica imanente do sistema? Em que grau a democracia – conforme a conhecemos – e a ditadura revolucionária representam efetivamente a massa? O quanto estas formas se distinguem por serem sentenças diretas e indiretas, ambas relativas a uma mesma afirmação: o povo não saberia governar. O quanto não são, ambos os regimes, variantes do protetorado? Se existisse de fato um sujeito coletivo, como ele pensaria; como formaria juízos? A teoria política tenta obstinadamente responder estas questões, mas o faz por redução do que tem uma existência coletiva, ao propriamente individual: a política, portanto, deve ser a afirmação de um ponto de vista mais ou menos universal, de um ente que é uma subjetividade indivisa38, ainda que potência coletiva - o príncipe, o partido; o partido como moderno príncipe, etc. Sua unidade, portanto, 336


também e necessariamente é uma divisão, porque resta como uma imposição. A questão, portanto, remanesce de pé: como a negatividade que a massa também é; como a indeterminação que ela traz consigo, como propriedade sua, pode tornarse uma potência transformadora, em seu próprio nome? Estes parecem ser os contornos atuais da filosofia política, que geraram apenas respostas provisórias, de que as elaborações da escola de Frankfurt, de Foucault e Nietzsche são exemplos emblemáticos. De todo modo, grande parte desta questão deve encontrar uma solução mais satisfatória, mais natural e, talvez, mais produtiva, se buscar auxílio na estética. Neste campo existem pelo menos indícios do que poderia vir a ser os índices de superação do romantismo; das formas que talvez correspondam melhor àquilo que se poderia imaginar como uma verdadeira visão de um coletivo, sem remissão a imagens e mitos que o reduzem a formas superindividuais – o Leviatã, por exemplo. 337


O que poderia emergir da massa como representação do mundo se, de algum modo, ela pudesse efetivamente se exprimir? Obviamente ela jamais poderá falar na primeira pessoa, nem o fará de um modo direto. Mas se procurássemos na forma aquilo que poderia ser correspondente à sua natureza coletiva, o que encontraríamos? O que é sua arquitetura, sua estrutura?

Do espetáculo O espetáculo, contemporaneamente compreendido, deve ser tomado como uma reinvenção, antes do que a degeneração de suas formas e manifestações pretéritas. Sua principal característica é ter o arbitrário como princípio de organização e o tema como núcleo - como elemento gravitacional -, a partir do qual se agregam partes, que restam ainda como partes, ao fim. É, nesse sentido preciso, a recusa do organicismo, pela afirmação de índices sempre exteriores; o pertencimento fantástico e não mediado a tudo, como alucinação destas mesmas 338


relações; a superação da fina flor do romance burguês pela própria realidade: sua realização. Não é casual, portanto, que o espetáculo mantenha-se no território estrito do casual, mesmo quando requer black tie: ele é por si mesmo a afirmação de uma proximidade e de uma intimidade, que praticamente suprimem a distância entre os protagonistas e o público - ele é exatamente a compressão deste espaço e de todo espaço: fusão. (...) É verdade que mesmo em épocas anteriores os heróis dos grandes romances de cavalaria e aventura eram tomados como modelos; eram ideais – idealizações de homens reais e padrões ideais para homens de carne e osso. Mas nunca ocorreria ao leitor comum aferir-se por tais padrões e relacionar os seus privilégios consigo próprio. Os heróis moviam-se ab ovo numa diferente esfera; eram figuras míticas e sua estatura, em questão de bem e de mal, era de qualidade sobre-humana. O distanciamento do símbolo, da alegoria, 339


da lenda, separava-os do mundo pessoal do leitor e impedia um relacionamento excessivamente direto com eles. Agora, pelo contrário, o leitor tem a sensação de que o herói do romance esta meramente consumando a sua própria vida irrealizada – a do leitor – e concretizando suas oportunidades desperdiçadas. (...) De tais ilusões o leitor deduz o seu direito a colocar-se no mesmo nível do herói e pretender para si a sua posição excepcional e seus direitos extraterritoriais na vida. (...) (HAUSER, 1998, p. 567) Que não existam, portanto, formalidades, além das estritamente restritivas; que se possa aderir de última hora e de improviso; que haja um sem números de cerimônias, mas nenhum rito; tudo isso faz e compõe o instantâneo, que consiste justamente na negação da distância. Neste lócus onírico o expectador vive a certeza de sua coexistência com o protagonista; é a experiência de fusão do seu eu com o dele e, em certa medida, 340


o deslocamento (imagético e existencial) deste por aquele. No espetáculo o expectador é, a rigor, a alucinação do protagonista, e este, um meio, um símbolo, um duto e um salvo conduto, para entrar e sair do cenário. O espetáculo é necessariamente uma possibilidade de expressão de si; a superação fantasiosa e alucinada, de contradições e impossibilidades concretas; a riqueza, o luxo e a flexibilidade no imaginário, como compensação da oclusão do real. Portanto, quanto mais opressiva é a vida social, tanto mais glamour ganha o espetáculo; quanto menores são as alternativas efetivas, tanto maiores as possibilidades oníricas; quanto mais a violência e a agressividade derivam do real ele mesmo, tanto mais elas aparecem como desprovidas de todo e qualquer conteúdo social (na forma do filme de horror, ou da violência proposta como ad hoc das gangues, por exemplo). Mas justamente porque o espetáculo é a eliminação de toda a distância entre o expectador e o símbolo, acaba por converter-se no 341


antissímbolo – a apropriação unilateral, mutilada e irreal da realidade.

Figura 88 - Mais estranho que a ficção (Marc Forster, 2006) http://br.youtube.com/watch?v=pvNYzlScr_A

A profusão de símbolos, por consequência, é a própria depauperação simbólica; empobrecimento total e radical do universo onírico. A neurose, contudo, também é seu ganho. Ora, na medida em que toma o símbolo em sua dimensão unilateral; em que o exorciza, o homem vive o real, como 342


quem dele se abriga; a violência como prazer de sua imaterialidade; a guerra como o vídeo game. O mundo torna-se um índice e uma remissão; uma citação, uma referência, mas não é absolutamente real, como nós o concebíamos no passado: é uma realidade pasteurizada, asséptica, inerte – uma curiosidade, um acontecimento. Vivemos desta maneira ao abrigo dos sinais e na recusa do real. Segurança miraculosa: ao contemplarmos as imagens do mundo, quem distinguirá esta breve irrupção da realidade do prazer profundo de nela não participar. A imagem, o sinal, a mensagem, tudo o que “consumimos”, é a própria tranquilidade selada pela distância do mundo e que ilide, mais do que compromete, a alusão violenta ao real. O conteúdo das mensagens, o significado dos sinais, em grande parte, são indiferentes. O nosso empenhamento não as acompanha e os meios de comunicação 343


não nos orientam para o mundo, oferecem-nos para o consumo sinais atestados contudo pela caução do real. Chegou o momento de definir a práxis do consumo. A relação do consumidor ao mundo real, à política, à história, à cultura, não é a do interesse, do investimento, da responsabilidade empunhada – também não é da indiferença total, mas sim da CURIOSIDADE. Segundo o mesmo esquema, pode afirmar-se que a dimensão do consumo até aqui por nós definida, não é do conhecimento do mundo, nem igualmente da ignorância completa: é a do DESCONHECIMENTO. (BAUDRILLARD, 1975, p.31-32)

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Figura 89 - Mais estranho que a ficção (Marc Forster, 2006)

Nesta apropriação do real, como sua denegação, o homem submerge no comezinho de sua vida privada; no terror de sua miséria existencial, mas representa-se como quem se lança à exuberância da vida. A modernidade é cheia de imagens espectrais, fantasmagóricas, sem substância; o espetáculo, portanto, não deixa de ser uma experiência de vampirismo: uma espécie de infusão de energia vital, naquilo que vive no mundo das sombras. O homem moderno, 345


portanto, por força mesmo de ver reduzido todo o seu território existencial; por ter tido sua espontaneidade suprimida pela administração que a sociedade lhe impõe, se vê na condição compulsiva de expressar-se. Sua vida é uma dimensão da estética, mas na forma do romance de folhetim; ele é uma difusão, uma distensão, uma necessidade urgente e irreprimível de se redimir no signo e no índice. Ao formato aleatório exterior corresponde, contudo, a monomania da compulsão que obriga à projeção; à emissão de filamentos, como que procura apanhar a vida a laço e, portanto, à distância. Por arbitrário que seja, por insubsistentes que se demonstrem as relações entre os partícipes, o que atrai as pessoas ao espetáculo? O segredo do espetáculo é, em grande medida, o grande personagem, o índice público de uma projeção possível, suportada justamente por aquela grandiosidade pública. O grande personagem, contudo, é uma indicação axial e uma reminiscência; o arcaico coexistindo com o moderno: a origem comum (prosaica), aleatória e 346


probabilística do “artista”, conforme ele emerge na narrativa mítica da indústria cultural - a celebridade -, é uma proposta de alucinação do homem do povo na figura do herói. Enquanto forma, portanto, é uma presença terrível e, neste sentido, todo mocinho é igualmente um vilão e toda boa ação contém uma semente de malignidade.

Figura 90 - Olympia (Leni Riefenstahl, 1938) http://br.youtube.com/watch?v=o1I30dCKZZY

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Que o arbitrário seja uma força de organização e o acidente o motivo da reunião, tudo isso pode nos parecer natural, mas ainda assim é o absurdo como padrão. Mas é assim que nós o queremos, pois desejamos viver na convicção de que o real é aleatório; um incidente do qual se pode evadir e de que a vida não seria mais do que confirmação recorrente. A junção arbitrária dos elementos do espetáculo - e das pessoas no espetáculo - é sua forma necessária; posto que ele se constrói como rejeição da oclusão do real, mas não de sua superação.

Figura 91 - Olympia (Leni Riefenstahl, 1938) 348


O espetáculo é democrático, mas apenas na condição de corromper o real, para apresentá-lo como contingente. Acompanha, portanto, o desenvolvimento do romance, que nas suas formas mais degradadas de existência, passa a ser não um estilo literário, mas o elemento formal, estrutural, da própria vida: a redenção compulsória do herói, e nesta medida, do homem comum, no final feliz. (...) A atitude da pequena burguesia diante da vida é caracterizada por um otimismo irrefletido e fácil de contentar. Acredita não haver, fundamentalmente, nenhuma importância nas diferenças sociais e, assim, quer ver filmes em que as pessoas simplesmente transitam de um estrato social para outro sem maiores dificuldades. Para essa classe média, o cinema propicia a satisfação do romantismo social que a vida nunca concretiza e que as bibliotecas circulantes nunca realizam de modo tão enganador quanto o cinema no seu ilusionismo. “Cada um é o arquiteto de sua própria 349


fortuna”, eis a crença suprema dessa classe, e a ascensão social é o motivo básico das fantasias de desejo que a atraem para as salas de projeção. Will Hays, o antigo “czar do cinema”, estava perfeitamente consciente disso quando incluiu em suas diretrizes para a indústria cinematográfica norte-americana a seguinte instrução: “Mostrar a vida das classes altas”. (HAUSER, 1998, p. 985) O espetáculo também é a visibilidade como orgia, uma submissão do espaço público à estética, no que se transforma aquele no palco e no picadeiro; uma degeneração do teatro e do filme; a comunicação como renúncia a toda relação; a imagem como discurso e o catatonismo como forma final da linguagem. Vejamos Dabord, para quem o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma “relação social entre pessoas, mediada pelas imagens” – a imagem industrial, nesse caso, tem a qualidade do fetiche, e sintetiza o modo contemporâneo de 350


alienação que venho chamando de mais-alienação para designar um modo de expropriação simbólico equivalente ao que produz mais-valia. A lógica que se impõe a partir da imagem fetiche é: “o que aparece é bom; o que é bom aparece” – de tal modo que o reconhecimento social desses indivíduos desamparados depende inteiramente da visibilidade. Só que não se trata da visibilidade produzida pela ação política, mas da visibilidade espetacular, que obedece a uma ordem na qual o único agente do espetáculo é ele mesmo. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 49) Sob tais aspectos, não deixa de ser aterrador rever os filmes relativos às celebrações nazistas, produzidos por Leni Riefenstahl. O que assombra, contudo, não é o passado, mas sua completa e irrestrita sobrevivência nos elementos formais e abstratos que organizam a sociedade contemporânea, por meio da indústria cultural. *** Ator usa seu valor de face para negociar 351


Sérgio Rizzo crítico da folha http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1111200715.htm

É de fama e dinheiro que se trata a arte? O sucesso hoje não depende só do valor intrínseco de uma obra, mas sobretudo da capacidade do artista de se inserir nas regras do mercado Luciano Trigo Especial para a Folha http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1911200712.htm

Da informação Nossa sociedade vive na busca frenética da informação, que, a sua vez, se produz de maneira verdadeiramente industrial, massiva, twenty four hours a day. O volume de notícias gerado é tão absolutamente fantástico; o requerimento de ubiquidade mental que sua escala de produção impõe é de tal maneira incontornável, que a tecnologia tem que se virar como é possível, para 352


suplantar os limites naturais de apropriação sensorial dos indivíduos. Os serviços noticiosos como a Reuters, a Bloomberg e outros tantos do gênero começaram há longo tempo, por exemplo, a dividir e regionalizar seus displays, de modo que aqueles que os acompanham possam definir diferentes focos visuais, segundo interesses específicos que possam ter, a cada momento determinado. Estes recursos já estão disponíveis para quem os desejem em uma escala individual e, de certo modo, se vulgarizaram com o surgimento da TV a cabo e seus canais de difusão privada. Mas o que é a informação produzida deste modo? A que ela se presta, além da afirmação tautológica segundo a qual “a informação é necessária para que nos mantenhamos informados”? Ora, na medida em que a sociedade se desenvolve como destruição obstinada de todos os vínculos comunitários e das formas grupais elementares - sendo a família um exemplo paradigmático neste caso -, os indivíduos restam como entes desprovidos de experiência 353


interpessoal efetiva, tendo seu repertório existencial significativamente empobrecido.

Figura 92 - Um Homem com uma Câmera (Dziga Vertov, 1929) http://br.youtube.com/watch?v=AeKKeiXTBos

Observa-se, por força deste contexto, uma degradação da comunicação e dos rituais que ela implica, de modo que se cria e recria um vazio dialógico, faltando até mesmo o treinamento para conversar, observando procedimentos 354


elementares como, por exemplo, a alternância entre fala e a pausa.

Figura 93 - Rain Man (Barry Levinson, 1988) http://www.youtube.com/watch?v=KKC3W0awjm0

Aparentemente, na medida em que os nexos e vínculos grupais vão se desfazendo, o relacionamento face a face se resolve em um formalismo catatônico, em que frases são muitos mais testes de canal do que sentenças destinadas a portar um sentido ou comunicar uma experiência. Ocorre, portanto, efetivamente, um eclipse do mundo no interior da linguagem, a obliteração das dimensões afetivas da existência, fatos de todo 355


correlatos com o fenômeno social e material, que se referem ao homem como átomo, como parte autônoma, mas apenas mecanicamente relacionada ao todo de que se vê destacado. A informação repõe exatamente este vínculo perdido - do indivíduo com o todo e com os demais indivíduos -; compensa esta inexperiência permanente e a própria impossibilidade da convivência: é a forma mecânica e física do diálogo – uma acústica de sintetizador, uma modulação da distância e da proximidade, no espaço existencial. A busca obstinada da informação é, portanto, elemento necessário do relacionamento mecânico com o mundo; o aleatório como filosofia de vida; a impertinência como realidade. Por meio dela se afere e se mesura, desesperadamente, o estar aqui e agora, porque a contemporaneidade verdadeira, que é da esfera da experiência afetiva, do compartilhamento existencial, está irremediavelmente perdida (nesta formação social). A informação é, então, o discurso quando a narrativa já se tornou impossível; é a fala como interjeição; a palavra como “teste, teste, alô, 356


som...” Preparação de um texto que não se materializa; uma ausência que obriga ao começo como compulsão. Nisto a informação não é somente algo que se toma de fora, mas a própria sintaxe do diálogo de surdos; a regra discursiva conforme a contemporaneidade pode conhecê-la.

Figura 94 - Uma janela indiscreta (Alfred Hitchcock, 1954) http://www.youtube.com/watch?v=-B6rfV_wH4U

Se o fático hipertrofia-se nas redes (ou seja, em todo nossos sistema de comunicação midiático e informático), é porque a teledistância faz com que mais 357


nenhuma fala tenha literalmente sentido. Portanto, diz-se que se fala, e falando apenas se verifica a rede e sua comunicação. Nem sequer existe outro na linha, pois na pura alternância do sinal de reconhecimento, já não há emissor nem receptor. Simplesmente dois terminais, e o sinal de um terminal apenas verifica que “isso” passa, portanto, que não se passa nada. Dissuasão perfeita. (BAUDRILLARD, 1991 P. 188) Esta ainda é uma aproximação, pois a informação, na qualidade de tentativa de reconstituição alucinada daquilo que está perdido e ausente, na esfera da experiência subjetiva do ser, já é, como forma, a materialização da fala que não se pode por - um mutismo ruidoso e frenético. Neste sentido a informação não está atrás; não revela algo além; ela é diretamente a fala de uma subjetividade historicamente determinada, mas segundo um som sintético; o diálogo através do aparelho. Vale aqui uma analogia: no passado havia as formas e estilos próprios à alta cultura e às 358


manifestações populares, cada qual mantendo um grande nível de autonomia relativa. Marcavam assim, à sua maneira, a distância entre uma classe aristocrática e o restante da população. Nossa época, tão logo tenha a cultura se desenvolvido sob um formato industrial e capitalista, cuidou de degradar tanto as formas culturais eruditas, quanto as populares. A informação, em larga medida, é aplicação científica e sistemática desta técnica de corrupção, que só a indústria cultura teria o cabedal para universalizar.

Figura 95 - Borat (Larry Charles, 2006) http://www.youtube.com/watch?v=WH2CABcffAo

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Nessa abordagem científica é a aplicação universal do empirismo de Bacon: tanto quanto a ciência foi concebida como um inquérito movido e presidido pelo homem, contra a natureza, do qual jamais se eliminou a tortura como método - uma busca resoluta de forçar a natureza à confissão e à transparência de si; uma assalto que pretendia devassar; uma curiosidade e uma compulsão de ir sempre mais fundo e mais alto, mais longe em todos os quadrantes – a informação, no tratamento puramente ocasional, jornalístico, causal em que se apresenta, é uma tentativa de extorsão da verdade, como sujeição da verdade, e seu fascínio consiste justamente desta violência. Em todo caso, além dos rituais probatórios, das causações dadas pela autoridade da tradição, além dos testemunhos, e também dos procedimentos científicos de observação e demonstração, a confissão passou a ser no Ocidente, uma das técnicas mais altamente valorizadas para produzir a verdade. Desde então nos tornamos uma 360


sociedade singularmente confessanda. A confissão difundiu amplamente seus efeitos: na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, na esfera cotidiana e nos ritos mais solenes; confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos, confessam-se passado e sonhos, confessa-se a infância; confessam-se as próprias doenças e misérias; emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama; fazem-se a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de confiar a outrem, com o que se produzem livros. Confessa-se – ou se é forçado a confessar. Quando a confissão não é espontânea ou imposta por algum imperativo interior, é extorquida; desencavam-na na alma ou arrancam-na do corpo. A partir da Idade Média, a tortura a acompanha como uma 361


sombra, e a sustenta quando ela se esquiva: gêmeos sinistros. Tanto a ternura mais desarmada quanto os mais sangrentos poderes têm necessidades de confissões. O homem no Ocidente tornouse um animal confidente. (FOUCAULT, 1988, p. 58-59) A informação é justa e exatamente o poder como concentração total: o direito de adentrar a todas as esferas, de suprimir toda privacidade, de reduzir tudo aos requerimentos do todo, de aniquilar o indivíduo em suas pretensões de autodeterminação; o prazer da invasão, o direito ao obsceno, ao animalesco, ao detalhe mais mesquinho e mais sórdido; o supremo desejo de desvendar, de tirar os véus, de colocar nu e indefeso; de aniquilar o outro, pelo esfacelamento e devassamento de seu corpo, de seu psiquismo. Enquanto o homem se concebeu com um ser diretamente natural manteve, para com a natureza, todas as artimanhas dos filhos na relação com seus pais: negociou, trapaceou, iludiu, 362


castigou, etc. Tão logo, contudo, se percebeu como órfão e como divergência da natureza, a hostilidade e animosidade daquela para com este, que se resolviam até então de modo mágico, ritualístico e, de certa maneira, na forma de um intercâmbio que tinha regras de diálogo, converteram-se em agressividade sem mediação eficaz possível, de modo que a sujeição total, a rendição incondicional se tornaram a única alternativa para a natureza. Quando o homem rompe sua unidade mística com a natureza – e isso é algo que não poderia evitar fazê-lo -, quando se desvencilha das crenças de poder influenciá-la magicamente, já se oferece a ela diretamente como o tirano potencial, ainda que por receio e terror da tirania de que se imagina vítima. Expia então o terror atávico de um mundo que compreende como hostil, por meio de uma agressividade que é completamente cultural e histórica. A cultura que nega ao homem seus elementos irremediavelmente naturais, especialmente seu caráter mortal e finito, está obsedada do instinto: que arrancar da natureza, 363


sob tortura, o segredo da eternidade. Nesta busca desesperada de se desnaturalizar, de se superhumanizar, o homem não encontra verdadeiros limites, porque esta é uma luta de vida e de morte e, mais precisamente, uma luta para negar a morte. E tanto mais busca, tanto mais lhe é negado; tanto mais devassa, tanto mais resta escondido; tanto mais conquista; tanto mais vasto se torna o mundo; tanto mais fundo, mais há por afundar. A informação compartilha com a ciência este sadismo e esta morbidez, esta ânsia de invadir, que beira ao grotesco e talvez só reste na primeira este prazer sádico, com o qual gratifica recorrentemente o “nobre telespectador”: O equivalente do operário acorrentado é esse cenodrama vaginal japonês, mais extraordinário que qualquer strip-tease: moças de coxas abertas à beira de uma estrada, os proletários japoneses em mangas de camisa (é um espetáculo popular) autorizados a meter o nariz e os olhos até dentro da vagina da moça, para ver melhor, - o quê? – trepando uns sobre 364


os outros para alcançá-la, a moça conversando gentilmente com eles o tempo todo ou ralhando por formalidade. Todo o resto do espetáculo, flagelações, masturbações recíprocas, strip tradicional apaga-se diante desse momento de obscenidade absoluta, de voracidade do olhar que ultrapassa de longe a posse sexual. Pornô sublime: se pudessem os tipos meter-se-iam inteiros dentro da jovem – exaltações de morte? Talvez, mas ao mesmo tempo eles comentam e comparam as respectivas vaginas sem nunca rir ou gargalhar, numa seriedade mortal e sem nunca tentar tocá-las, a não ser por brincadeira. Nada de lúbrico: um ato extremamente grave e infantil, uma fascinação integral pelo espelho do órgão feminino, como de Narciso por sua própria imagem. Muito além do idealismo convencional do strip-tease (talvez lá dentro houvesse até sedução), no limite sublime o pornô converte-se numa 365


obscenidade purificada, aprofundada no domínio visceral – por que deter-se no nu, no genital? Se o obsceno é da ordem da representação e não do sexo, deve explorar o próprio interior do corpo e das vísceras; quem sabe que gozo profundo de esquartejamento visual, de mucosas e de músculos lisos daí pode resultar? Nosso pornô ainda tem uma definição muito restrita. A obscenidade tem um futuro ilimitado. (BAUDRILLARD, 1991, P.40) A informação compartilha, com o pornográfico, com o obsceno, esta sina de adentrar, devassar, como se quisesse ultrapassar o real pela exposição imagética da própria realidade; esquadrinhá-lo, procurá-lo, tentar resgatá-lo no mais ínfimo do detalhe. É como se fosse possível achar algo de vivo naquilo que só se captura já inerte. A informação, como a pornografia moderna, tem um parentesco próximo com a necrofilia. 366


Metalinguístico II (...) A música moderna não conhece nenhuma harmonia preestabelecida entre o universal e o particular, e não deve conhecê-la, em nome de sua própria verdade. O universal é aberto, não esquematizado, mas problemático, tendo primeiro de ser descoberto, desde a formulação da emoção individual até a construção do todo. Nos espontâneos inícios da nova música acabou se mostrando que esta constelação afetou o particular à medida em que se desenvolvia; lembro a simples observação de que a real, concreta elaboração dos detalhes na música totalmente integrada fica bem aquém da elaboração dos detalhes no atonalismo livre ou mesmo no tonalismo tardio. Com isso se relaciona aquela crise da inspiração, a que se referiram tanto Eduard Steuermann quanto Ernest Krenek. Assim como no helenismo, após a decadência da polis 367


grega, quando o indivíduo emancipado não aumentou sua força, mas se encolheu, tendo encontrado um espaço cada vez menor para sua realização para, no final, ser reduzido ao ideal de viver escondido, assim o mesmo visivelmente ocorre na música. O caótico nela, que assusta a maioria as pessoas, é condicionado pelo fato de que a harmonia preestabelecida do universal com o particular se rompeu. O ouvido receptor, sintonizado nessa harmonia, sente-se exigido demais quando precisa acompanhar por si os processos específicos das composições individuais, em que a relação entre o universal e o particular é articulada em cada caso. (ADORNO, 1994, p. 155) (...) A objeção corrente contra ele, de que seria fragmentário e acidental, postula a totalidade como um dado e, em conseqüência, a identidade do sujeito e objeto; comporta-se como se dispusesse 368


do todo. Mas o ensaio não quer captar o eterno nem destila-lo do transitório; prefere perenizar o transitório. A sua fraqueza testemunha a própria nãoidentidade, que ele deve expressar; testemunha o excesso da intenção sobre a coisa e, com isso, aquela utopia excluída na divisão do mundo entre o eterno e o perecível. Naquilo que é enfaticamente ensaio, o pensamento se libera da idéia tradicional de verdade. (ADORNO, 1994, p. 175) (...) Enquanto se rebela esteticamente contra o estreito método de não deixar nada fora, o ensaio obedece a um motivo de ordem epistemológica. A concepção romântica do fragmento – como uma formação nem complexa nem exaustiva do tema, mas que através da autoreflexão vai avançando até o infinito – defende esse tema antiidealista no próprio seio do idealismo. Também no modo de expor, o ensaio não deve fazer 369


como se ele tivesse deduzido o objeto e que dele nada mais restaria a dizer. (ADORNO, 1994, p. 180) A unidade do ensaio é determinada pela unidade do seu objeto, junto com a da teoria e da experiência que se encarnam nele. A sua natureza aberta não é algo vago, de sentimento e estado d’alma, mas alcança contornos por seu conteúdo. Rebela-se contra a idéia de “obra principal”, que, por sua vez, espelha a idéia de criação e de totalidade. A sua forma se atém ao pensamento crítico de que o homem não seria nenhum criador, de que nada humano seria criação. O ensaio, sempre referido a algo já feito, não se apresenta ele mesmo como criação, nem tampouco pretende algo que abarque o todo e cuja totalidade fosse comparável à da criação. A sua totalidade, a unidade de uma forma construída em si e a partir de si mesma, é a totalidade de um não-total, uma unidade que, também 370


enquanto forma, não afirma a tese da identidade entre pensamento e coisa, tese que o ensaio rechaça enquanto conteúdo. Libertar-se da coerção da identidade concede às vezes ao ensaio o que escapa ao pensamento oficial, o momento que não pode ser apagado, de cor indelével. Em Simmel, certos termos estrangeiros – cachet, attitude – revelam essa intenção, sem que ele mesma tenha sido teoricamente tratada. (ADORNO, 1994, p. 181) (...) A sua liberdade de escolha dos objetos, a sua sobranceria e soberania frente a todas as prioridades do factum ou da teoria, a isso ele deve que, em certo sentido, todos os objetos estejam para ele igualmente próximos do centro: próximos do princípio que a todos enfeitiça. (ADORNO) Se a verdade do ensaio se move através da sua inverdade, então ela não deve ser 371


buscada na mera antítese de seu componente insincero e proscrito, mas nele mesmo, em sua mobilidade, em sua falta de solidez, cuja exigência a ciência transferiu das relações de propriedade para o espírito. Aqueles que acreditam defender o espírito contra toda a inconsistência são inimigos dele: o próprio espírito, uma vez emancipado, é móvel. (ADORNO, 1994, p. 184 – grifos meus) (...) Pois o ensaio não se encontra em mera antítese ao procedimento discursivo. Ele não é alógico; ele mesmo obedece a critérios lógicos na medida em que o conjunto de suas frases tem de compor-se coerentemente. Não podem ficar nele meras contradições, exceto se se fundarem em contradições da própria coisa. Só que ele desenvolve os pensamentos de um modo diferente da lógica discursiva. Não os deriva de um princípio nem os infere de coerentes observações singulares. Ele coordena os 372


elementos, ao invés de subordiná-los (...) (ADORNO, 1994, p. 185) Metalinguístico III O modo corrente como a filosofia e a ciência representam o mundo já são por si mesmos o resultado como premissa, no que se convertem ambas em concordância do sujeito com o sujeito, transformando-se o objeto em contingência e suporte, para afirmação da vontade que o antecede e que sobre ele prevalece. Declara-se, então, a vitória do sujeito sobre o objeto e sobre o real e, neste sentido, a supremacia daquilo que é morto sobre a própria vida. Advém, então, uma espécie de sétimo dia da criação, um interregno em que o espírito congela seu movimento, como tributo a si mesmo - auto-elogio. Este definitivo do discurso é a própria interrupção da vida, o retorno à quietude, não como quem volta ao útero, mas na condição mesma daquele que assume as formas minerais da existência. Enquanto ainda permanece vivo – um ser vivo -, o texto deve resistir à mineralização que se lhe 373


propõe de fora, preservando a tensão e a luta sem trégua, a oposição entre as partes; a guerra justa. Cabe ao texto abrigar o caos, não como evocação à submersão e à regressão, mas como ninho dos fragmentos que tendem, e apenas tendem, à organização. A realização desta, porém, não se efetiva jamais pelo operar do próprio texto, porque depende para tanto de um sujeito, mas que em tudo difere daquele da filosofia e da ciência: ele não se impõe, não indaga, não agride, como aquilo que é superior. É apenas a partícula que, somando-se ao texto funda sua homeostase. (...) Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande recusa – alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que acaso são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição não podem existir 374


a não ser no campo estratégico das relações de poder. Mas isso não quer dizer que sejam apenas subproduto das mesmas, sua marca em negativo, formando por oposição à dominação essencial, um reverso inteiramente passivo, fadado à infinita derrota. As resistências não se reduzem a uns poucos princípios heterogêneos; mas não é por isso que sejam ilusão, ou promessa necessariamente desrespeitada. Eles são o outro termo nas relações de poder; inscrevem-se nestas relações como interlocutor irredutível. Também são, portanto, distribuídas de modo irregular: os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos densidade no tempo e no espaço, às vezes provocando o levante de grupos de indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento. Grandes rupturas 375


radicais, divisões binárias e maciças? Às vezes. É mais comum, entretanto, serem pontos de resistência móveis e transitórios, que introduzem na sociedade clivagens que se deslocam, rompem unidades e suscitam reagrupamentos, recortando-os e remodelando-os, traçando neles em seus corpos e almas, regiões irredutíveis. Da mesma forma que a rede das relações de poder acaba formando um tecido espesso que atravessa os aparelhos e as instituições, sem se localizar exatamente neles, também a pulverização dos pontos de resistência atravessa as estratificações sociais e as unidades individuais. E é certamente a codificação estratégica desses pontos de resistência que torna possível uma revolução, um pouco à maneira do Estado que repousa sobre a integração institucional das relações de poder. (FOUCAULT, 1988, p. 91-92) Metalingüístico IV 376


(...) O ecletismo de Picasso significa a deliberada destruição da unidade da personalidade; suas imitações são protestos contra o culto da originalidade; sua deformação da realidade, a qual se reveste sempre de novas formas a fim de demonstrar de maneira mais convincente a arbitrariedade destas, pretende confirmar, sobretudo, a tese de que a “natureza e a arte são dois fenômenos inteiramente dessemelhantes”. Picasso converte-se num conspirador, prestidigitador, parodista, por oposição ao romântico como sua “voz interior”, seu “é pegar ou largar”, sua auto-estima e egolatria. E repudia não somente o romantismo mas a Renascença, a qual, com seu conceito de gênio e sua idéia da unidade de trabalho e estilo, antecipa em certa medida o romantismo. Ele representa uma completa ruptura com o individualismo e o subjetivismo, a negação absoluta da arte como expressão de uma 377


personalidade inconfundível. Suas obras são anotações e comentários sobre a realidade; não pretendem ser vistas como descrição ou ilustração de um mundo e de uma totalidade, como síntese e epítome da existência. Picasso desacreditava os meios artísticos de expressão pelo uso indiscriminado dos diferentes estilos artísticos, e fá-lo de modo tão completo e deliberado quanto os surrealistas por meio de renúncia às formas tradicionais. (HAUSER, 1998, p. 965-966) RELÓGIO NORMAL Para os grandes, as obras acabadas têm peso mais leve que aqueles fragmentos nos quais o trabalho se estira através de sua vida. Pois somente o fraco, o mais disperso encontra sua incomparável alegria no concluir e se sente com isso devolvido à sua vida. Para o gênio, toda e qualquer cesura, os pesados golpes do destino como o suave sono, cai na 378


industriosidade de sua própria oficina de trabalho. E o círculo de sortilégio dela, ele o traça no fragmento. “Gênio é industriosidade”. (BENJAMIN, 1987, p. 14) ATENÇÃO: DEGRAUS! O trabalho em boa prosa tem três degraus: um musical, em que ela é composta, um arquitetônico, em que ela é construída, e, enfim, um têxtil, em que ela é tecida. (Benjamin, 1987, p. 25) Das Passagen-Werk (Referências e notas) Convolute A: Arcades, Magasins de Nouveautés, Sales Clerks Arcada como templo da mercadoria capital Da loja à loja de departamentos A loja de departamentos e o consumidor como massa Vendedores masculinos (como 379

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novidade e sedução) / organização da vitrine A cidade fantástica Aumenta o giro, diminui a margem A cidade grande como intoxicação religiosa – loja departamento: templo da mercadoria / intoxicação

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Convolute B: Fashion Novidade – moda: intercâmbio mulher – morte / corpo – cadáver (corpse) – orgânico / inorgânico : prazer carnal Moda como substituto eterno do surrealismo: dialética novo-velho, sonho Temporalidade do inferno: aquela que não reconhece a morte. MPP: Sísifo como símbolo O eterno Classes dominantes e a paralisia do tempo Vestimenta feminina: burguesia x 380

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segundo império Mercantilização da arte / romantismo / Paul Valèry Moda atual x moda anterior: o perverso sempre presente e reconhecido. Elementos sádicos da e na moda

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Convolute C: Anciente Paris, Catacombs, Demolitions, Decline of Paris Balzac, topografia de Paris: arcada, chave do século XIX Paris, filme, flâneur, último § Undeground de Paris: sonho e formas ameaçadoras, metrô, inferno, etc. Ruínas burguesas x ruínas medievais Convento siciliano conservação de corpos e esqueletos em esplendor e glória: representação de nossa sociedade. MPP: ver Que viva o México

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Convolute D: Boredom, eternal return Tédio: o trabalho de Sísifo Tédio: sono / sonho do coletivo Romantismo: tédio / escapismo. Balzac 381

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e Baudelaire como contratendências Blanqui: teologia / inferno: 112 representação da sociedade burguesa Blanqui / Nietzsche / Baudelaire: eterno 112retorno 113 O eterno retorno é uma cosmogonia 116apenas se a considerarmos a 117 representação fantástica, projetada, deste preciso mundo, em seus elementos imediatamente terrenos (Nietzsche: p. 115) Mítico: o que não reflete. 119 Eterno retorno e progresso são 119 inseparáveis, mesmo que se considere que um tem origem mítica e outro não Convolute E: Haussmannization, barricade, fighting Reforma urbana de Haussmann: 122 negação de toda individualidade e autodesenvolvimento A luta de classes e o republicanismo: a 123 “superação da luta de classes” Cristo industrial 123 382


Haussmann e o kitsch Haussmann: Paris, cidade artificial como aquelas do Canadá Napoleão III: megalomania; Haussmann / Paris The mighty seek to secure their position with blood (police), with cunning – esperteza, astúcia, manha - (fashion), with magic (pomp). Movimento de trabalhadores do centro para as franjas de Paris e vice-versa. Reformas de Haussmann atualizada – mesmos efeitos: Guerra Civil Espanhola. MPP: essa passagem é muito importante para definir o sentido das reformas de Haussmann, em relação ao que viria: primeiro sobre as coisas, depois sobre os homens. Paris de Haussmann como ur-história do fascismo. Chaminés como edificações góticas Convolute F: iron construction 383

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A tecnologia como sonho do coletivo. Uso do ferro na arquitetura foi, a princípio, para fins transitórios: feiras Mundiais. Forma e tecnologia guardam afinidades intrínsecas / Marx. Construções em ferro abrem novas perspectivas e os operários e o engenheiro são os primeiros a vê-las. Ferro e vidro: estufas, novo impulso para as edificações com estes materiais. Ferro e aço: o teto como principal componente arquitetônico A arcada e a igreja barroca: a nave, os planos horizontais e verticais. O tempo da mercadoria e o teto em luz. A extensão da arcada no plano horizontal guarda relação com a galeria dos palácios, que na Galeria dos Espelhos de Versalhes identifica aquilo que é de fato nobre e real. Arcadas: moderno, estação de trem. § 2 Torre Eiffel: a intervenção do mínimo 384

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no que é de fato colossal. A força e o 161 poder como expressão do controle sobre o detalhe: a inteligência e a habilidade vencendo aquilo que é bruto. Chinese puzzle: cubismo, arquitetura, 164 artes plásticas O novo como velho, nas novas 167 tecnologias. O fundamento arcaico do que é recente. Protesto contra a monstruosidade e 168caráter grotesco (massa) da Torre Eiffel. 169 Convolute G: Exhibition, adevertising, Grandville O século XIX tenta esgotar o real em sua 175 representação: o trabalho de arte total. Fechamento dos espaços existenciais. Sobre a indústria e a necessidade. 180 Data de origem do canhão e aquisição 183 pela Prússia. Exposições universais, arquitetura, 184 vidro. § 1 Os palácios de cristal e as lendas – 184 385


semelhanças, “vir à vida”. Último § Jugendstil: inauguração do corpo na propaganda. Motilidade, locomotivas, que guardam aspectos arcaicos. A toupeira como símbolo da indústria nascente, sua fase juvenil. Fetichismo em relação aos meios de produção – são eles que usam o trabalhador, não o contrário. O oriente – em suas cores, cheiros e sons – na poesia de Baudelaire: originalidade, no uso. Grandeville: natureza como máscara para a moda. Feiras universais como treinamento para os que não podem deter as mercadorias: “olhe tudo, não toque nada”. Links: indústria de entretenimento, produção do consumidor, propaganda, feiras universais.

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Convolute H: The collector A degeneração da mercadoria e de seus templos, ruínas, materiais fora de uso, uma mulher “eterna” cuida da loja. Na coleção o objeto é retirado do uso e preservado, contra o tempo. O objeto colecionado strikes o colecionador, reorganizando todo seu universo, por força de sua presença. O mesmo ocorre no sonho, onde cada signo altera o tempo. Referência a Bergson e sua concepção de tempo. O colecionador como alegorias. Para fazer as coisas presentes nós a trazemos até nós; não vamos até elas. Os colecionadores são fisionomistas do mundo das coisas. O colecionador como oposição ao ter. Referência a Marx 3 §s O colecionador atualiza o arcaico, o tabu. Collecting tem elementos psicológicos 387

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significativos. O testamento e suas disposições: idade média, relação minuciosa homenscoisas. O colecionador luta contra a dispersão. Memória involuntária e o colecionador.

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Convolute I: The interior, the trace. Mobiliário em Poe: tentativa de acordar. A origem dos cartões postais, das fotografias é o interior (burguês) de onde mais tardiamente se destacaram. Decoração. 2 §s Portas, entradas, janelas, imagens, guardiões e suas representações. Interior claustrofóbico, atmosfera de Urânio, caverna, concha. Aversão ao espaço aberto. (*) CNC A-I: Sunset Boulevard. Miscelânia de estilos no XIX e obscurecimento das relações de dominação. 388

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Adorno e considerações sobre Kierkgaard. Habitação e suas origens, como conceito e representação.

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Habitação popular e a não pertinência casa – habitante. Desqualificação do trabalho e das funções administrativas, pela mecanização.

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Convolute J: Baudelaire Baudelaire: relações literatura / arte / ciência: obrigatórias Modernidade como realidade demoníaca. Esta percepção é mais evidente onde existe relação entre modernidade e catolicismo. Baudelaire: modernidade contém a antiguidade. Baudelaire x Rousseau. Modernidade e alegoria devem ser considerados conjuntamente. 389

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Novidade: a criança vê tudo como tal. Baudelaire. A natureza como linguagem: alegoria. Balzac-Baudelaire: representação de Paris. Paris degradada e seus “desgraçados” pela primeira vez representados. Baudelaire. As flores do mal: inferno de século XIX. Baudelaire nunca fez esforço para entender o que era externo a ele. Baudelaire x Poe. Baudelaire / prostituição. Baudelaire como ídolo oriental. Isolamento temporal de Baudelaire. Baudelaire: mérito de seus poemas – a forma. Principal intento de Baudelaire: unir todos os opostos. Capa de As flores do mal: dança da morte. Quase todos os poemas de Baudelaire são inspirados em pinturas e “prints”. 390

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Poemas tidos como apócrifos em Baudelaire relacionam-se à necrofilia (ver Machado de Assis). Baudelaire introduz na poesia a perversão sexual. Sua perfeição: A uma passante. Adorno on Baudelaire. Antítese alegoria / mito. Baudelaire. Multidão = solidão, igualdade percebida diferentemente em Baudelaire e Hugo. Abissal: sempre alegórico. Abissal em Blanqui e Baudelaire (alegoria e moda: iguais por força de sues elementos arbitrários. Imaginação não é fantasia: é a percepção das relações secretas entre as coisas. Na cidade as esculturas nos arremessam violentamente ao passado, mas elas são apenas uma pequena parte daquilo que obseda os olhos. Baudelaire fez a profecia, que remete ao out-door e ao cartaz publicitário. 391

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Eles nos jogam permanentemente no sonho. Imaginação cria continuamente a sensação de novidade, a partir do existente (alegoria). Prazer de estar na multidão; a força do número. Baudelaire. Prazer de fazer o mal (voluptuosidade): posse / propaganda / sadismo. Baudelaire: amor - prostituição Baudelaire: Dante de ponta cabeça. Traje de gala e indumentária para o luto: o preto na roupa. As flores do mal como catedral. O caráter heráldico da imagem (insígnia). Arte pela Arte e o Segundo Império. Aura. Em Baudelaire: Segundo Império como premonição do que viria a ser. Baudelaire e a crítica do conceito de progresso. Baudelaire: lesbicianismo – 392

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propaganda. Intento de Baudelaire: interromper o curso do mundo. O horizonte, visto de uma arcada, ganha imensa profundidade. (Bergman, em Diante de um espelho) Antiguidade e cristianismo contribuíram para o surgimento da alegoria. O seu berço é o conflito entre o corpo physis e a perfectibilidade dos deuses. Riso é uma articulação despedaçada. A alegoria tem três componentes: ilusão de liberdade, de independência e o abismo vazio do mal. Poema fantástico sobre o fetichismo. Alegoria barroca vê o corpse de fora, Baudelaire de dentro. A dialética da mercadoria no capitalismo avançado: à novidade dos produtos – como um estimulo o consumo – é conferida uma importância sem igual (umprecedented). Ao mesmo tempo, o sempre igual é manifestado na 393

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produção em massa. Para o flâneur a multidão é um véu escondendo a massa. A forma mercadoria emerge em Baudelaire como o conteúdo social da forma alegórica de percepção. Forma e conteúdo são reunidos na prostituta, como uma síntese. A passagem “onde tudo, mesmo horror, converte-se em magia” dificilmente poderia ser melhor exemplificada do que a descrição que Poe faz da multidão. O heroísmo de Hietzsche e Budelaire são assemelhados, sendo que o primeiro combate no terreno do eterno retorno e o segundo naquele da novidade, que se configura como aquilo que ainda é o mesmo. Para o declínio da aura, um elemento no domínio da produção em massa é de suprema importância: a reprodução massiva da imagem. 394

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Na descrição da multidão feita por Poe, o mais importante é a semelhança entre o seu movimento e o ritmo da máquina – não o movimento das pessoas propriamente. Ao se caminhar na multidão, todo aquele que tenha uma meta se vê obrigado a percorrer um labirinto. No segundo império fazia o mesmo na política. O esplendor da prostituição só ocorre na grande cidade e com a emergência das massas, que passam a ser a base do trabalho da prostituta. A produção em massa é uma obsessão, que responde/reage a uma necessidade natural. Sobre o hábito e a eternidade. Produção em massa é a principal causa econômica – e a luta de classes a principal causa social – do declínio da aura. 395

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A mulher é o fundamental da propaganda... A multidão é a moldura vazia da comunidade. O apego do flâneur à multidão faz dele o precursor da paixão pela reunião no grande número. Diferenças contextuais entre a alegoria em Baudelaire e no barroco. Prostituição está apta a reclamar sua condição de trabalho tão logo o trabalho tenha se convertido em prostituição. A prostituta vende poderes de prazer (de conferir prazer). Ela é precursora do capitalismo baseado na venda massiva de mercadorias. Por essa mesma razão, a prostituição na idade média não tinha os contornos tão crus, como aqueles que aparecem atualmente. Tensão emblema – logo: indica as mudanças que ocorreram no mundo das coisas desde o século XVII. Spleen – autoestranhamento: tédio. 396

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O trapeiro: Baudelaire, em sua estética, se reconhece nele. A matéria prima de ambos é o dejeto; o lado sombrio do numinoso. Traduzem o mundo como o advinhador que lia o futuro a partir das vísceras de animais de sacrifício. Comparação entre os olhos e vitrines iluminadas. O esqueleto como maquinaria. Baudelaire. Sadismo e fetichismo intervêm naquelas inteligências que procuram anexar toda a vida orgânica à esfera do inorgânico. MPP: nesse preciso sentido, o fetichismo se relaciona com o sadismo para reduzir o objeto de desejo ao inanimado, esgotando-lhe a vida: ver Encaixotando Helena e Vertigo. Na modelo esquálida, em que a vida está por um fio, quase que lhe escapando do corpo, a mulher realiza o projeto que a sociedade produtora de mercadorias tem para ela. Objeto de culto e, 397

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portanto, petrificação. Ver o Último Imperador: ser tabu. Marx on the second impire: eterna repetição do mesmo. Suicídio como paixão moderna. Tão mais próximo a prostituição se torna do trabalho, mais o trabalho tende à prostituição... O keep smiling mantém no mercado de trabalho o mesmo caráter do sorriso das prostitutas na rua, para seu cliente. Exploração do homem = exploração da natureza, também na forma com que o trabalho é representado. Lindo excerto. 2 §s A moda determina, em cada caso, o limite da empatia. O declínio da aura e da crença em uma natureza melhor são um e o mesmo. No limite, o declínio da aura corresponde ao declínio da potência sexual. Nietzsche: abismos por todos os lados. Alegoria conhece o enigma, mas não o 398

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mistério. No barroco, por exemplo, mesmo o céu foi feito disponível para nós, quase esfregado em nossa cara. Em épocas alegóricas há um declínio da aura, em função dessa proximidade. O prazer que se encontrava no trabalho industrial (Saint Simon) é substituído pelo tédio do trabalho, materializado no sexo. O homem que se assemelha ao brooder (homem que se detém no processo de pensamento, antes que no objeto pensado) resolve um grande problema penas para rapidamente e involuntariamente esquecê-lo. Ele e o alegorista são feitos a partir do mesmo tecido. MPP: intervenção do lúdico, encantamento da coisa. O sadista se encanta com o descobrimento dos elementos mecânicos do organismo. Sade viveu o início de uma era encantada com a idéia de autômato. 399

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O brooder, o alegorista, ao reunirem arbitrariamente as coisas/pensamentos, tentando fazê-las corresponder – sem um esquema prévio – às imagens que se lhe associam repete a mercadoria quando vai ao mercado, em sua relação com o preço de realização. Nietzsche observa que Descarte foi o primeiro filósofo a comparar as descobertas da ciência com uma parada militar. Modernidade tem sua antiguidade, como um pesadelo que veio a ter com ela, durante o sono. Diferença, refletida na mercadoria, entre o trabalho artesanal e aquele feito através da mediação da maquina. O pogrom de poetas do Poeta Assassinado de Apollinaire como antecipação do que já estava ocorrendo (1929) Amor com a prostitua é a apoteose da empatia com a mercadoria. MPP: este é 400

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o fundamento da persistência da prostituição – de todas as ordens e níveis – em um mundo como o nosso. Ama-se na prostituta a redução ao mecânico, a realização da vontade do cliente, contra e sem consideração à sua vontade. Necrofilia e desejo sádico. Como a pornografia fica nisso? Conspirador e o dandy se encontram no conceito do herói moderno. O herói representa para si mesmo, em sua própria pessoal, uma sociedade secreta inteira. Badelaire teve a boa sorte de ser contemporâneo de uma burguesia que ainda não estava preparada para empregar, como cúmplice de sua dominação, o tipo associal que ele representava. A incorporação do niilismo ao seu aparato hegemônico estava reservado à burguesia so século XX. Somente na forma mercadoria as coisas 401

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têm a faculdade de alienar os seres humanos uns dos outros. Ela produz este efeito através do preço. Convolute K: Dream city and dream house, dreams of the future, anthropological nihilism, Jung. Revolução copernicana na teoria da história Relembrar e acordar estão intimamente relacionados. Acordar é nominadamente a dialética, copernicana revolução da lembrança. A criança reconhece o novo uma vez mais (once again). O séculoXIX: fusão singular de tendências individualistas e coletivistas. Diferentemente de todas as épocas precedentes, ela classifica/rotula todas ações individualistas (ego, nação, arte) enquanto, subterraneamente, em desprezo de todos os domínios do diaa-dia, ela necessariamente fornece, 402

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como em um delírio, os elementos de uma formação coletiva... Com este material bruto, nos devemos nos ocupar – prédios cinzas, mercados, lojas de departamento, exibições. A crítica do século XIX deve começar com a crítica da filosofia da história – seu historicismo narcótico -, o que se relaciona diretamente com a crítica conforme ela aparece no Surrealismo. Capitalismo era um fenômeno natural com o qual o sono repleto de um novo sonho veio à Europa, e através dele, a reativação de forças míticas. Tecnologia, urhistória, século XIX, fotogragia. Em Jung o recalcado – que retorna - é um retorno que dá frutos: queda no mito. O filme e o problema do ritmo e do tempo Ktsch, por outro lado, não é nada mais do que a arte com cem por cento, 403

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absoluta e instantaneidade para vender. Só o filme pode explodir o kitsch. Caracterização do problema da forma na atualidade. Enquanto houver um mendigo por perto, ainda haverá mito. No século XV representações da morte eram muito populares, tanto quanto o sex-appeal hoje em dia. Diferença entre memória (projeta impressões) e reminiscência (que as dissolve). O homem existe (identidade) na superfície, dentro ele é uma mecanismo. Paul Valèry

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Convolute L: Dream house, Museum, Spa. Museu: sede do passado ;objeto privilegiado de Benjamin em suas pesquisas. O Ópera de Paris, concebido para ser faustoso: espelho de classes ascendentes. 404

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Na multidão, mas diferenciado: Paris x Baden. Paris (a grande cidade) como palco – fantasmagorias. Museu e loja de departamentos: o acumula de objetos os conecta.

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Convolute M: The flâneur O flâneur vaga por um tempo que evanesceu. Flâneur / colportage Cidade transformada no campo: caça / caçada. Em 1839 era considerado elegante vagar pela cidade como tartaruga. A ociosidade do flâneur é uma demonstração contra a divisão do trabalho. Impressões sobre a cidade grande e a multidão: Engels. Definição de boêmio. O mistério está ligado a se manter 405

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sempre equívoco. A cidade como labirinto. Eu estou com medo de parar – este é o motor de minha vida / Amar me atormenta tanto, eu não quero amar / Ande mais além, então, em sua estrada amarga / A estrada triste espera por você: encontre seu destino. Maxime du Camp, Les Chants modernes A supremacia da visão: novos meios de transporte. A cidade altera a dinâmica humana, ritmo e movimento. Amor: Baudelaire. Sobre os índios e a formação dos americanos. Jung. Flâneru e detetive. A calçada concebida no interesse do carro: pedestre e carro competem, a calçada serve para afastar o pedestre e liberar o carro, a sua velocidade. Máxima do flâneur. Descrição de multidão em Baudelaire. 406

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As massas em Baudelaire: a) nova droga para a solidão; b) eliminam todos os traços do indivíduos; c) dentro do labirinto da cidade, as massas são o mais novo labirinto. Através dela traços tectônicos antes desconhecidos são imprimidos na cidade. Indústria da informação Diferença entre aura e traço. A proximidade das pessoas na cidade obriga à distância. Flâneur e o homem-sanduiche: empatia A arquitetura do XIX é coletiva, muito embora erigida para o indivíduo.

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Convolute N: On the theory of knowledge, Theory of progress A reforma da consciência consiste unicamente no … acordar do mundo de seu sonho sobre si mesmo (Marx, carta a Ruge) Diferença de perspectivas entre Benjamin e do projeto das Passagens e 407

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Aragon (surrealismo): enquanto Aragon permanece no terreno da mitologia, nas Passagens trata-se de dissolver mitologia, o que se faz tornando consciente aquilo que permanece adormecido na história. Desenvolver a arte de citar sem aspas. As estruturas em ferro como experiência estética. Sua relação com a filosofia. Reprodução das grandes obras pelo filme. A importância da escala entre o bom e o mau filme, entre o grande e o pequeno. Marx descobriu a relação entre economia e cultura. As passagens se dedicam a delinear a expressão daquela nesta, através do estudo das arcadas. Método: montagem literária. “Eu não preciso dizer nada, apenas mostro.” “Mantenha-se em mente que comentários sobre a realidade (pois a questão aqui é de comentário, de 408

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interpretação em detalhe) requerem um método completamente diferente daquele exigido para comentar um texto. No primeiro caso, o principal suporte é a teologia, no outro filologia.” O projeto consiste no desenvolvimento de um materialismo que aniquile a noção de progresso. Em seu lugar o conceito fundamental é atualização. Como trabalho foi escrito? Degrau por degrau, ao longo de um desfiladeiro, por entre abismos; sem olhar em torno. De certo modo, o prêmio é o cume e o panorama. Progresso e declínio são o mesmo. Contra a grande estrutura do marxismo vulgar, a montagem, que se fundamenta pelo trabalho meticuloso sobre aquilo que é pequeno. Na alegoria o observador é confrontado com a face hipócrita da história: uma paisagem primordial petrificada. Tecnologia e mitologia estão ligados. 409

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A verdadeira imagem reúne o presente e o passado; seu lócus é a linguagem. Dialética daquilo que remanesce inerte. Origem em Benjamin: ur-fenômeno, transposto da natureza para a história. Teoria marxista da arte: em um primeiro momento esnobismo; depois escolástica. Confirmar tradução. A apresentação materialista da história leva o passado a trazer o presente para um estado cristalino. Meu pensamento está relacionado à teologia como o mata borrão à tinta: ele está saturado com ela. Se alguém observasse o mata borrão, contudo, nada do que foi escrito remanesceu. Jung – expressionismo - fascismo. É tendência inerente à dialética desfazer a similitude eterna e mesmo a repetição na história. A experiência política autêntica é absolutamente livre da semelhança. Quando a imagem é retida na ausência 410

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de movimento, acumulando no seu interior tensões incomensuráveis, ela está pronta para saltar sobre a cadeia de significados, apresentando-se em sua unicidade. Ocorre o mesmo com a história. Escrever história significa atribuir fisionomia. Sobre a doutrina elementar do materialismo histórico: 1) um objeto histórico é aquele em que o conhecimento é constituído como resgate do objeto ; 2) história decai em imagens não em estórias; 3) onde quer que um processo dialético se realiza, estamos lidando com mônadas MPP: pois se atinge a unicidade do fato/imagem ; 4) a apresentação da história segundo o método materialista se faz acompanhar da crítica do progresso; 5) materialismo histórico fundamenta seus procedimentos em longa experiência, senso comum, 411

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presença de espírito e dialética. O autêntico conceito de história universal é messiânico. A história universal como se compreende atualmente é um negócio de obscurantistas. Proust: eu acredito que toda sentença lindamente construída é direito exclusivo daquele a que ela se destina, por força do destino.

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Convolute O: Prostitution, gambling Há coisas do destino que só podem ser reconhecidas no dinheiro, e coisas do dinheiro que só podem ser reconhecidas no dinheiro. O jogador e o investimento da libido em torno “zonas” pré-genitais. Fundamental para entender a compulsão ao jogo, mas igualmente aquela em que tem fundamento a propagando. Ver drop 1, abaixo. Paixão do jogo tem elementos 412

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autoeróticos, resultando como um solução de compromisso pela qual se tenta manter genitalidade e analidade unidos. Esconde, portanto, elementos narcisistas (primários?) e bissexualidade. Prostituição abre um mercado de tipos femininos. MPP: que relação isso tem com a pornografia moderna?

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Convolute O: The streets of Paris Através do nome das ruas a cidade é um cosmos completo. A verdadeira Paris como cidade assombrada. (Texto sobre as cidades)

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Convolute Q: Panorama Convolute R: Mirrors Dois espelhos colocados um de frente para o outro: infinito. Paris tem paixão por perspectivas que emergem desses espelhos. (ver Lady from Shanghai, 413

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Wells) Convolute S: Paiting, Jugendstil, Novelty História tem duas faces, que olhando quer para o passado, quer para o presente vêem o mesmo. O sonho coletivo não conhece qualquer história, sendo o mais novo e o moderno, eterno retorno do mesmo. Folhetinismo moderno. Barcelona e Jugendstil: a sagrada família, Gaudi. Ver sítio: http://www.pbase.com/bauer/jugendst il_art_nouveau_belle_epoque Zaratustra e sua relação com Jugendstil: o herói se apropriou do vazio, em lugar de tomar o que estava repleto. (Artnouveau) A mulher estéril “incorpora” o ideal de beleza da Jugendstil Jugendstil: morte na beleza, se relaciona com a firme sensação de se estar sendo superada pela história: 414

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burguesia. Homem moderno é escravo da modernidade: precisa criar continuamente o novo. Valèry x Baudelaire. Como o modernos se torna Jugendstil?

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Convolute T: Modes of lighting Convolute U: Saint-Simon, Railroads Sob o ponto de vista do jornalismo, um pequeno acidente no subúrbio é muito mais importante do que um grande evento nos EUA. SAint-Simon: burguesia e operários, uma só classe. Engels on Feuerbach. Jornais eram vendidos por subscrição. Em 1824 havia 56.000 subscritores, relativamente aos 12 maiores jornais. As classes dominantes queriam afastar o “povo” dos jornais. Origem do romance de folhetim – 415

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remuneração de Dumas. Jornais eram vendidos por subscrição. Em 1824 havia 56.000 subscritores, relativamente aos 12 maiores jornais. As classes dominantes queriam afastar o “povo” dos jornais. De outra fonte. Girardin, como editor do L apresse, introduz propaganda, folhetins e venda em cópias simples – sem subscrição. Saint-Simon queria transformar a física e nada além dela em religião.

593

593

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Convolute V: Conspiracies, Compagnonnage Divisão do trabalho entre os conspiradores.

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Convolute W: Fourier O falanstério é uma máquina feita de seres humanos. Em Fourier a ciência oculta adquire uma nova forma: a da indústria. Dialética do ragpicker – Fourier. 416

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Fourier – Mickey Mouse – humor –Marx – teologia natural procede em conformidade com o humor. Cabala – Fourier – agitadores como cabalistas. Falanstérios e a torre de controle. Fourier e a antecipação do rádio – joke. Fourier era chauvinsita: ele odiava os ingleses e os judeus, que via como incivilizados, por manterem-se nos quadros de uma sociedade patriarcal.

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Convolute X: Marx Homem como um ser desumanizado. Alienação. A transcendência positiva da sociedade privada, como apropriação da vida humana, é ... a transcendência positiva de todo estranhamento; significa dizer, o retorno do homem da religião, da família, do Estado, e assim por diante, para sua existência humana – i.e., 417

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social. Comunismo primitivo – comunidade das mulheres. Marx. Citação da Crítica o Programa de Gotha, que aparece nas Teses sobre a História. Fontes de Marx e Engels: segundo Korsch. Crítica de Marx à separação entre direitos do cidadão e do homem. O fetichismo da mercadoria adere às representações que a sociedade faz de si mesma. PASSAGEM ESSENCIAL.

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Convolute Y: Photography Industrialização na literatura. Utilização da ilustração na propaganda já em 1845: vantagem em trocar um texto árido pela imagem.

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Convolute Z: The doll, the automaton Relação autômato fêmea fatal – relação morte sexualidade. 418

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Convolute a: Social movement Litografia

717 Convolute b: Dumier

Convolute d: Literary history, Hugo Um observador astuto observou, um dia, que a Itália fascista estava sendo governada como um grande jornal e, mais ainda, por um grande jornalista

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Convolute g: The stock exchange, economic history Convolute i: Reproduction technology, lithography Convolute k: The commune Convolute 1: The Seine, Oldest Paris Convolute m: Idleness Marx: o processo de atrofia da experiência começa já com a 419

804


manufatura, ou seja, com a produção mercantil. Phantasmgoria is the intentional 804 correlate of immediate experience. Convolute p: Anthropological materialism, history of sects Convolute r: Ecole Polytechnique First Sketches Pessoas que habitam as arcadas: zoo. Imbricamente da pobreza e da riqueza, do luxo e da miséria: paisagem original do consumo. Século XIX: ruídos que penetram nossos sonhos, os quais, acordados interpretamos. Esquema: moda /cadáver ... Nomes de magasins de nouveautés. Elitricidade causa loucura... Dialética como recusa do gradualismo. Toda época tem sua face voltada para o 420

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sonho, seu lado infantil (para o séc. XIX são as Arcadas o sonho). É preciso acordar. As arcadas são casas de passagem, sem portas, como nos sonhos. A cidade como labirinto. Nome das ruas: revolução na linguagem: nomes próprios. Conceito de tempo em Bérgson. Modernidade como tempo do inferno. No novo como sempre o mesmo há um prazer sádico (MPP: de viver para além da vida e dominar a posteridade – domínio de classe) No XIX, as casas como o mais profundo sono. No XX e XXI, o que seria... Empatia: é no que termina a leitura de jornal. A coleção como enciclopédia. O colecionador como fisionomista e, portanto, como leitor do destino. Reencantamento do mundo. Método do projeto: montagem. 421

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Na montagem se procura trazer a proximidade mais perto, com fundamento no refugo. Tédio: mercadoria esperando por ser vendida. Boneca: sua repulsividade. Os dois sentidos do projeto: passado => presente; presente=> passado. Explosão / revolução. De acordo com Marx a burguesia jamais será autoconsciente: não se pode falar então de sonho coletivo? Método do projeto e fissão nuclear: liberação da energia contida no era uma vez da história. O colecionador se perde na memória.

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Early drafts Arcades The arcades of Paris O consumidor como o dinossauro da 422

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Europa. 876 Topologia da cidade (o abissal e o 875 infernal) Dois espelhos: infinito. Ambiguidade 877das arcadas como ambiguidade do 878 espaço O material humano das arcadas: o 879 cafetão e a prostituta. Paris é como o Vesúvio: as forças 882 catatônicas que produzira a lava que cobriu Pompéia a transformaram em um sítio de turismo. Em Paris, as energias revolucionárias que fluíram e que foram esmagadas, agora estão direcionadas para as artes, festividade e moda. Revolução copernicada na teoria da 883história. 884 The ring of Saturn or Some remarks on iron construction Adenda

423


Exposé of 1935, early version A sociedade nova retém imagens da velha, à medida em que se desenvolve, como uma utopia que também é uma memória do que já se foi... Moda sempre se opõe ao orgânico. Boneca como símbolo do desejo O flâneur só está em casa na multidão. Prostituição, onde a mulher é mercador e mercadoria. Ruínas. Excerto essencial. Traduzir.

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Materilas for the Exposé of 1935 Mulher como um triângulo equilátero (crinoline) Propagana iluminada (néon) novo tipo de escrita (ausência de tal tipo de propaganda nas Arcadas). O novo como antítese do que se conforma a um plano Flâneur: fantasmagoria do espaço; jogador, fantasmagoria do tempo. 424

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Propaganda e pôster (business e política) Polêmica contra Jung: quem quer distanciar o acordar do sonho? Dialética do velho e do novo: o mais velho como o mais novo – o noticiário diário; o mais novo como o mais velho: o Império. MPP: o segundo império como prenúncio do fascismo. O sonho é um fenômeno coletivo e histórico. Teoria do colecionador: elevação da mercadoria a alegoria. Dialética da moda: prazer e cadáver. Psicologia do jornal: necessidade da novidade. Alegoria e propaganda: personificação da mercadoria, antes que conceitos. Art-nouveaut. O conceito de cultura como o mais alto desenvolvimento da fantasmagoria. Experiência de nossa geração: capitalismo não morrerá de morte 425

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natural. A história humana e a profecia.

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Materials for “Árcades” Dinâmica da luz e da luminosidade no interior das Arcadas (sombras)

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Dialetics at a Standstill Benjamin procurava pela expressão da economia na cultura e não pela origem econômica da cultura. Seu materialismo era uma fisionomia, a busca da identidade de uma época, sua individualidade e unicidade. MPP: do ponto de vista teológico procura-se pelo nome da época, como aquilo que a cria para o reconhecimento, conferindo-lhe uma face. O conceito de mônada e a dialética na concepção de Benjamin. The story of old Benjamin

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Drops: 1.

Todo ato sexual tem um componente sádico que remanesce necessariamente insatisfeito, de tal modo que o desejo encontra nele amparo e, portanto, se relança continuamente. A propaganda se baseia em larga medida na descoberta desse mecanismo. A regra da propaganda, portanto, é a insinuação da exclusão, a fruição estritamente privada do objeto, com o que cria artificialmente as condições do exercício sádico, ativando continuamente o desejo (por analogia mesmo do processo primário, diretamente sexual). Nesse mecanismo a mulher permanece como índice, catalizador, que detona mais rapidamente o impulso sádico e, correlatamente, o investimento do objeto sexual (ou de consumo). A mulher, portanto, infinitamente mais do que o homem, é a imagem da propaganda.

2.

Sala de cinema sem funcionar, assentos vazios, projetor parado, pipocas no chão, a tela desfalecida, como o rosto branco do defunto: o espetáculo do cinema como fantasmagoria.


Imagens correlatas: teatro vazio, desmanche de carros, hospital de bonecas, feira de antiguidades, aterro sanitário. A mercadoria, uma vez subtraída ao uso (consumo), revela as marcas da violência que a instituiu, na condição, agora, de violência material perpetrada contra a coisa – abandono, descaso, desleixo, destruição e destrutividade. Por isso no colecionador a mercadoria se eleva necessariamente à condição de alegoria: ao salvá-la da destruição necessária, do desuso como condenação, preserva seu esqueleto – sua forma mineral. Sua face transfigura-se, portanto, em máscara mortuária: sacada do tempo, das relações funcionais que tinha com o mundo em que teve origem, a mercadoria preserva sua materialidade, mas sob a condição de expressar sua “coisidade”, como o boneco de cera representa nossa humanidade. Na coleção, ainda que perfeitamente preservada, toda mercadoria está embalsamada. O colecionador, portanto, é um necrófilo. Este é o lado sombrio do colecionador, seu lado luminoso consiste em, por meio da coleção, 428


presentificar o passado. O colecionador sabe, intuitivamente, que a mercadoria estava impregnada de músculos, suor e imaginação. Ele quer reencantar aquilo que já esteve vivo, ainda que, sem o saber, institua relações inteiramente novas. 3.

Quando se escreve, se o faz em primeiro grau movido pela intenção. A verdadeira escrita só se inicia, contudo, quando o autor se entrega à palavra, depondo a intenção de origem e submergindo no texto que, por seu intermédio, e apenas por ele, vem ao mundo. Nesse contexto, o autor age rigorosamente como o xamã, o astrólogo ou o adivinho, porque busca e propicia o reencantamento do que parecia inanimado. Esse modo de proceder por parte do escritor, contudo, nada tem de místico ou, se o tem, é em decorrência de algo material e objetivo: a linguagem escrita apropriou-se do repertório de técnicas que se vinculava às artes divinatórias. Ou seja, a percepção do que ia para além do imediato, a que se tinha acesso por meio da leitura de búzios, da astrologia, 429


etc. transferiu-se para a linguagem escrita. Não há nada de fantástico nisso, além da lenta construção de um patrimônio perceptivo comum, que registra a ligação e vínculo entre as coisas e os fenômenos em um código sintético e, por assim dizes, instantâneo. Ao pensar, estamos submerso na linguagem e, portanto, nadando no universo de significações que a humanidade construiu ao longo de toda sua história. O bom escritor põe a potência desse oceano a serviço da consciência. Ver Benjamin: sobre a faculdade mimética. 4.

On haxixe: http://www.wbenjamin.org/protocol1.html

5.

Para desenvolver uma obra que não possa ser utilizada pelo capitalismo é preciso desenvolvêla sem qualquer expectativa de publicação, ou seja, sem qualquer ordem de concessões. Em nossa época nada avilta mais a literatura do que o firme intento de publicar e, para tanto, de ceder às exigências do mercado editorial,

430


que vão muito além do livro, para açambarcar a própria vida privada do autor. A boa literatura, portanto, é um legado. Para a forma, portanto, é fundamental compreender a reunião de objetos que materializam aquele ser que, para todos os efeitos, para a ordem natural das coisas, permanece desconhecido. No legado estão as entranhas daquele que escreve, seus intestinos, tanto quanto seus sonhos e esperanças. O legado é, ainda, um salto sobre tempo, resistência à dissolução: o presente que se intromete no futuro. Como reunião, como constelação discreta de coisas, imagens, textos, etc. o legado é avesso à determinação do sentido, que só existe como construção, por parte daquele que o recebe. Nisso ele é absolutamente anti-burguês: pois o burguês exige do mundo um sentido, mesmo que terrível, no qual possa descansar e submergir no sono. O legado é como a luz que interrompe o sono...

431


“In the stairways of Eiffel Tower, or better still, in the steel supports of a Pont Transbordeur, one meets with the fundamental esthetic experience of present day architecture: through the thin net of iron that hangs suspended in the air, things stream – ships, ocean, houses, masts, landscape, harbor. They lose their distinctive shape, swirl into on another as we climb downward, merge simultaneously.” Sigfried Giedion, Bauen in Frankreich (Leipzig and Berlin), p. 7. In the same way, the historian today has only to erect a slender but sturdy scaffolding – a philosophic structure – in order do draw vital aspects of the past into his net. But just as the magnificent vistas of the city provided by the new constructions in iron (again, see Giedion, illustrations on pp. 61-63) for a long time were reserved exclusively for the works and the engineers, so too the philosopher who wishes here to garner fresh perspectives must be someone immune to vertigo – an independent and, if need be, solitary worker. (BENJAMIN, 1999, p. 459). (*)

432


O legado, em grande medida, é amor fati... 6.

Gaudi: http://www.sergiosakall.com.br/artistas/personalidade_gaudi.htm http://www.greatbuildings.com/

7.

Bergman e Antonioni, por Walter Salles: Nós que os amávamos tanto: Walter Salles analisa legado de Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman, ambos mortos em 2007. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0601200811.htm

8.

Seria interessante pensar a questão pornográfica desde o ponto de vista de Lua de Fel. Encontram-se ali, ainda não dissociados, ou seja, expostos no interior de uma genealogia, o desejo sexual e o sadismo; as forças do amor e o desejo imediato de destruição e autodestruição. Há um vínculo com Encaixotando Helena. A pornografia, em certo sentido, tem fundamento em um impulso sádico. Mas em qual sentido? Em sua acepção moderna a pornografia é a 433


antinomia do erótico, para ser abraço fraterno no maquinal. A pornografia é da instância da máquina, da performance, do desempenho. Procura o humano, portanto, apenas para descobrir e estimular o que nele, igualmente, há de maquinal. Isso ocorre, contudo, em uma instância que é inferior àquela da superfície do indivíduo, da pele. O ato pornográfico, portanto, é da órbita da dissecação, pois é na morfologia que se resolve a questão propriamente mecânica do corpo humano. Por isso, exatamente por isso, a cena pornográfica procura adentrar o humano até o mais íntimo de seu interior, até quase lhe mostrar por dentro, a partir das entranhas. Diga-se de passagem, essa invasão do corpo se resolve, em toda sua potência, exatamente na exposição de entranhas, razão pela qual o mesmo olhar curioso que acompanha o filme pornográfico, acompanha os seriados de estilo “médico”, que se dispõem a mostrar cirurgias, cortes e recorte e assim por diante.

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The uncovering of mechanical aspects of the organism is a persistent tendency of the sadist. One can say that the sadist is bent on replacing the human organism with the image of machinery. Sade is the offspring of an age that was enraptured by automatons. And La Mettrie’s “man machine” alluded to the guilhotine, which furnished rudimentary proof of its truth. In his bloody-minded fantasies, Joseph de Maistre – Baudelaire’s authority on matters political – is cousin to marquis de Sade. (BENJAMIN, 1999, p. 368) Na abordagem mecânica e previsível que propõe, a cena pornográfica revela-se, ainda, como extensão da mecanicidade a que está exposto o homem em sua vida desperta. Parte do prazer que proporciona está exatamente nessa continuação, pois à mecanização do sexo corresponde a sexualização da atividade do trabalho, como brilhantemente se indica em A classe operária vai ao paraíso (La classe operaia va in paradiso. Elio Petri, 1971 http://www.imdb.com/title/tt0066919/). Por essa razão, a 435


pronografia é um fenômeno de massa em nossa época: ela está associada à dinâmica mesma do trabalho, especialmente em sua natureza repetitiva. 9.

Grande parte dos heróis, que de fato mobilizaram Benjamin, escreveram a partir do ponto de vista da morte; eram em certa medida moribundos em vida: Baudelaire, Kafka, Proust. Sua obras, portanto, tinham um vínculo evidente com o legado, eram testamentos. Menos óbvio, contudo, é o quanto isso os coloca proximamente à teologia. Se fosse esse o caso, o que se deveria compreender desses vínculos? “Mantenha-se em mente que comentários sobre a realidade (pois a questão aqui é de comentário, de interpretação em detalhe) requerem um método completamente diferente daquele exigido para comentar um texto. No primeiro caso, o principal suporte é a teologia, no outro filologia.” Tradução livre (BENJAMIN, 1999, p. 460)

436


10.

Grande parte do projeto das passagens está sistematizada através dos ensaios e resenhas produzidos por Benjamin a partir de fins da década de 1920. A rigor esses vários ensaios estavam subvertidos pelo projeto, sendo oportunidades em que suas ideias fundamentais podiam ser publicadas, como “testes” de receptividade. Não encontrei apoio documental para essa ideia, mas parece-me muito plausível à luz de minha própria experiência. De todo modo, em O narrador já estão claramente lançadas as bases do projeto: como resgatar os efeitos da narrativa, senão a própria narrativa, nas condições da modernidade? Como imprimir, a quente, imagens em indivíduos que estão submetidos à motilidade alucinada? A rigor é preciso desenvolver as formas negativas da positividade que representam o jornal (a informação) e, especialmente, o filme. Quando a oralidade estava regida pela mão, a imagem viajava no próprio ato de narrar. O que rege a oralidade em nosso mundo é o olho.

437


11.

A alegoria insurge-se contra uma palavra que se afasta do físico; ela quer manter-se unida, ao contrário, à physis. Para tanto, ela é o registro de muitos duplos. O mais importante deles é, contudo, aquele em que a palavra se imprime sobre a mente, em associação com a imagem. Essa imagem não permite uma apropriação meramente intelectual da coisa. De certo modo, a imagem não representa a coisa; ela é uma coisa e o é materialmente (a imagem materializada no suporte é uma coisa, ainda que distinta nessa materialidade daquela que lhe deu origem). Essa sensação estranha nós temos na fotografia, que não copia o figurado, mas o reproduz materialmente, arrastando-o por todos os lugares em que circula, como um supliciado arrastado por um cavalo. É preciso considerar, contudo, que coisa a imagem materializa. Devese pensar, ainda, o quanto a digitalização na fotografia e no cinema, por exemplo, mudam a natureza da imagem.

12.

Dado seu caráter francamente arbitrário a alegoria não reconhece nada que seja natural, 438


mas apenas a natureza como humanização. Recusa, portanto, não apenas o símbolo que quer fazer corresponder o significante ao significado, como uma relação necessária, mas, igualmente, a ideia de um belo como presentificação da natureza. Sob o ponto de vista da alegoria, a natureza não é bela, nem é feia, porque ela, em si mesma, não existe. O que se vê como belo na natureza ainda é o homem e um determinado homem. Para a alegoria a única coisa que interessa, em lugar do belo, é o sublime: a dimensão daquele desejo de superação, que nasce apenas e tão somente do abissal. 13.

Parece haver uma ligação entre Benjamin e os ditos pós-modernos em um tópico de grande relevo. Refiro-me ao modo como entenderam a teoria da linguagem e, em certo grau, a própria língua. Grosseiramente falando, nossa escrita registra, através de signos arbitrários, sua manifestação fonética que, em último grau, remete às coisas e ao existente. Os signos, contudo, tendem a ganhar autonomia 439


relativamente à sua origem - às coisas apagando-as ou, melhor dito, uniformizando-as segundo o conceito. Uma vez existindo em sua forma abstrata e conceitual, como signo, a palavra passa praticamente a uma condição de operador lógico, matemático. Bem, tendo se tornado abstrata, a linguagem nos permite estabelecer entre as coisas relações puramente formais, onde a coisa mesmo não está compreendida, mas sim o signo. Pode-se, justamente por isso, cometer as maiores violências, sem que elas se apresentem àquele que enuncia o discurso. Exatamente contra isso se insurge Walter Benjamin e, em seu rastro, os pós-modernos. Eles reivindicam contra o signo e sua arbitrariedade os direitos da coisa apagada e abstraída, suas particularidades, sua condição fenomênica. Pretendem que, tanto quanto possível, a palavra esteja ancorada no corpo (na coisa), de tal modo que o discurso não possa se realizar como algo puramente formal, ou seja, sem evidenciar suas implicações para o que é concretamente existente. O estudo do 440


fenômeno da moda em Benjamin tem essa importante função, pois a moda trás sempre consigo um passado "apagado". Essas considerações determinam também parte das preocupações estéticas de Benjamin e dos pósmodernos. 14.

Todos somos em algum grau estrangeiros, aos quais se deve ensinar uma falar a língua que não é de nosso domínio: a dos vivos. Chegamos ao mundo com todas as possibilidades linguística do reino dos mortos. Se o processo pedagógicoeducacional não for violento o suficiente para soterrar sob o peso do preconceito aquela “vivência” pode-se fazer maravilhas.

15.

A academia, em que pese sua importância para a preservação do pensamento, envenena-o com suas pequenas questões e o excessivo respeito pela obra e pelos mestres. Além disso, partilha de uma concepção de verdade que se faz por exclusão do erro. Ora, o erro é parte integrante da verdade, que só se oferece quando o vê devidamente presente e representado. 441


Outro problema aqui reside no fato de que, para a academia, a verdade é obra individual, enquanto postulamos a ideia de que ela é obra coletiva, da qual se participa tanto evidenciando acertos, quanto disseminando erros (necessários, segundo cada determinada concepção teórica). O importante, de todo modo, é a saturação que institui a fisionomia de uma época e, talvez, a imagem terrível na qual ela possa espelhar-se, para acordar de seu sonho dogmático. Digital cuts Mais um recorte da Ana Junho 23, 2008 Recebi da Ana textos que me ocorrem, agora, pertencerem à categoria dos textos confiados. Não saberia dizer isso de outra forma, pois eles parecem ser daquela ordem de coisas que conectam o contingente à mais pura necessidade. Foram também, nessa medida, por um lapso de dias, textos incidentais: andaram na minha mala, viajaram comigo alguns milhares de quilômetros e, 442


sem jamais terem me cobrado o que quer que fosse, me caíram nas mãos sexta-feira à noite, bem noitinha. Se no primeiro fragmento encontrei meu velho conhecido (Walter Benjamin), no segundo me deparei com ninguém menos que Mallarmé, na escrita poderosa de Haroldo de Campos. Deleite, prazer, tranquilidade e euforia. Descubro, fascinado, que Mallarmé havia dado forma precisa a algo que de há muito procuro: a natureza do livro, em sua contemporaneidade. Sim, porque o livro não é uma forma acabada, mas um devir. Legítimo dizer, portanto, que se existe um fotográfico, como bem lembrou a Branca, deve existir também um “livrático”. Ana foi generosa por me confiar seus textos em bom Xerox, ainda com o cheiro das iniciações intelectuais, que se fazem pertinho da máquina copiadora – quando faltam tanto o dinheiro para os livros, quanto o tempo para os ler por inteiro. E não parou aí: a máquina copiou além do original uma escrita miúda, que abstraída sua intenção primeira, confere ao papel ranhuras delicadas, que 443


o tornam agradável aos olhos, independentemente de qualquer leitura. Olho essas ranhuras e me ocorre que no sempre novo do Xerox haverá um elemento arcaico, um elo indissolúvel, com mãos que desconhecemos ou desconheceremos. Essas mãos são da natureza das luvas esquecidas, das mulheres que amamos sem ter verdadeiramente conhecido: a estranheza, o inusitado, a perplexidade que efetivamente nos pertence. Fado (devaneios em torno de uma crônica não lida) Dizem do maior avião do mundo que pode transportar quase oitocentas pessoas. Ora, um avião de papel carrega sobre suas asas de mariposa a eternidade de um momento e os olhos reversos de meninos entardecidos:  a rua, no canto inferior da soleira, como elemento feminino de um abraço incontornável, se insinua em um convite a encontros polifônicos;

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 os pés amassam as pedras, da rua, descrentes de sua dureza consonantal, de suas palavras agudas: epifania, policromático, dissonante. A língua, toda língua, já foi metálica, como gritos sujos de terra, das brincadeiras de antigamente. Guarda-se, em toda palavra, o som, um som, lança que vara o tempo, para ser apenas alma de lobo, flertando com uma lua inatingível. Uma mulher velha grita, grita eternamente, na tela CinemaScope de olhos evasivos: um filho morto, um corpo partido, um universo divergente, a dor, a dor, o parto, a parte que parte. Terra, haveria de comê-la para reter essas muitas partidas, os infinitos encontros, que ao se abraçarem, já acenam distantes. Culpo o mar, bebo o mar, desespero desse infinito ínfimo onde o amor distante, um mimo ausente, vai apagar-se para sempre, como realização delicada de uma boa morte.

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Em toda a morte doce há um Portugal, porque toda cidade, na sua mais perfeita conformação, é não mais do que pátina composta, segundo instantes que nos excedem. Tijolos são casas com que se constrói outra cidade, em que habita não mais do que um ontem eterno. Eu o olho nos olhos e não vejo mais do que um eu sem nexo. O sentido que se me recusa é a ponte sobre os abismos de muitas noites, em que o homem velho deita ao pé do menino, que jogava, e jogando, criava a trama e a urdidura de dias sem nenhum propósito. A cadeira de balanço, velha, de uma velha que já não se encontra, balança, balança, como o mar do primeiro dia, que tragou o sol. Noite, noite, noite noitinha. Todo acalanto é uma pequena morte, um beijo terno, como uma janela, de que se vê não mais que uma luz ao longe . Pequena morte: rastilho de fogo sobre a superfície úmida de um mar sem fim 446


[sem começo]. Deliro com Bergman aquele toque, que na carícia de uma parede fria, rompesse a finíssima película, que separa o rosto do ser: abismo sem fim. O que há além, o que está para além? Um Portugal eterno, em que se nasce e se morre, sem nunca ter estado. Lendo com tesoura na mão Junho 20, 2008 [...] tenho uma biblioteca só minha e que eu não recomendo. Eu me mexo muito durante o dia e à noite gosto de descansar no meu canto com meus livros. É meu refúgio [...]. Há livros de todo tipo, mas se você for abri-los, vai se espantar. Estão todos incompletos; alguns só guardam dentro da encadernação algumas poucas páginas. Sou de opinião que se deve fazer com comodidade o que se faz todos os dias; então eu leio com tesoura na mão, me desculpe, cortando tudo o que me desagrada. Tenho assim leituras que nunca me cansam. Do Homem dos Lobos, conservei dez páginas; um pouco menos de Viagem ao Fundo da 447


Noite. De Corneille Polieto inteiro e uma parte do Cid. De meu Racine não suprimi quase nada. Guardei de Baudelaire uns 200 versos e de Victor Hugo um pouco menos. De La Bruyère o capítulo “Do coração”; de Saint Evremond, a conversação do Padre Canaye com o Marechal de Hocquincourt. De Madame Sevigné, as cartas sobre o processo de Fouquet; de Proust o jantar na casa da duquesa de Guermantes; “a manhã de Paris” de A Prisioneira. Nisto encontra-se o caráter limite da leitura, a exemplo de um autor que Benjamin conhecia tão bem. Trata-se de Valéry que lê como quem espreita: “leio com rapidez, na superfície, prestes a cingir a minha presa”. O leitor, como o historiador, é um flâneur que captura instantâneos do atual, instantâneos que marcam a forma nova do pensar e do agir, reconciliando o homem consigo mesmo e com suas esperanças utópicas. O que hoje desaparece, não são as utopias, pois estas como “os deuses não morreram: o que morreu foi a nossa visão deles. Não se foram: deixamos de os ver”. 448


A musicalidade da palavra (Junho 19, 2008) Quando penso na musicalidade da língua, em sua contemporaneidade, tenho em mente algo como o que se desenvolve em Koyaanisqatsi, onde música e movimento nos falam de um ritmo inorgânico, não harmônico. Lindos tanto por sua aparente antinaturalidade (o que é natural para o homem?), quanto pelo fato de não tomar o belo como matéria, mas o existente em suas demandas de superação e redenção. Para Ana: sinapse # 1 (Julho 3, 2008 ) É preciso muita coragem para aceitar a contingência. Ela nos lembra desse acidental que inevitavelmente somos, de nossos limites e de que, a escrita, é em grande medida uma linguagem dos mortos, que também somos, como vivos. A mão tece na escrita, autônoma para com relação ao intelecto, memórias e reminiscências que jamais recuperaremos e que, geradas e maternadas por nós, nos são estranhas. A escrita

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diz tanto de nós, portanto, quanto do daquele outro que também somos. “É querer escrever antes de saber o quê, antes de escrever esta ou aquela história. Escrevemos o tempo todo, temos uma espécie de abrigo em nós, de sombra, para onde tudo vai, onde a totalidade do vivo se comprime, se amontoa. Ele representa a matéria-prima do texto, a mina de toda escrita. É ‘esquecimento’, é o texto não escrito: é o próprio texto. No filme, o caminhão transporta esse todo. Todo o texto do mundo. Como se isso pudesse ser medido, pesado; trinta e duas toneladas de texto, isso me agrada. É isso que eu chamo: a imagem”. (DURAS, 1977, p. 83 apud GUIMARÃES, 2007, p. 201). Ana: digital cut # 3 (Julho 6, 2008 ) E quase sempre nos esquecemos de que a vida das pessoas não são somente isso: cada trajetória se compõe também de nossas perdas e de nossos desperdícios, de nossas omissões e de nossos desejos irrealizados, do que deixamos uma vez de lado ou não escolhemos ou não atingimos, das 450


numerosas possibilidades que não chegaram a se realizar - todas menos uma afinal de contas -, de nossas vacilações e nossas fantasias, e projetos frustrados e de desejos falsos ou débeis, de medos que nos paralisam, do que abandonamos ou nos abandonou. Nós talvez consistamos, em suma, tanto do que somos quanto do que não fomos, tanto do que pode ser comprovado e quantificado e rememorado, quanto do mais incerto, indeciso e difuso, talvez sejamos feitos em igual medida do que foi e do que poderia ter sido. (MARIÁS, Javier apud GUIMARÃES, 2007, p. 62) *** Bergman é sem dúvida , o autor que mais insistiu sobre o elo fundamental que une o cinema, o rosto e o primeiro plano: “Nosso trabalho começa com o rosto humano *...+” Bergman foi quem levou mais longe o niilismo do rosto, isto é, sua relação no medo com o vazio ou a ausência, o medo diante do nada [...] Então o rosto único e devastado une uma parte de um a uma parte de outro. A esta altura, ele não reflete nem ressente mais nada, apenas experimenta um medo surdo. Ele absorve dois 451


seres e os absorve no vazio. E no vazio ele é o próprio fotograma que queima, tendo o Medo por único afeto: o primeiro-plano rosto é ao mesmo tempo a face e seu apagar. (DELEUZE, 1985 apud GUIMARÃES, 2007, p. 79) *** É certo que tudo tem que desaparecer. Todas as tentativas de lutar contra a morte, o desaparecimento, são em vão. Tudo que essa pessoa soube, suas histórias, seus livros favoritos, suas coleções… Tudo que nos constitui e nos cria desaparece completamente quando morremos. A grande história está nos livros, mas a pequena história é muito frágil. No começo de minha carreira, o primeiro trabalho que eu fiz foi uma tentativa de guardar a minha vida em latas de biscoito, conservar tudo no equivalente a um cofre. Naturalmente eu já sabia que isso é impossível, e digno de chacota. (BOLTANSKI, 1997, p. 36 - Tradução de Paula Cavalcanti apud GUIMARÃES, 2007, P. 123) *** 452


A LINHA DESIGUAL Algumas coisas têm linha desigual: as barracas populares do Nordeste com seleções cromáticas, desiguais: igual em Paulo Klee. Idem as cores do xadrez-arlequim. O xadrez é a lógica As cores são a antilógica. Há uma linha que atrai oculta na profusão cromática como esse indecifrável nas mulheres ou nos cascos das tartarugas idem nas lajes antigas nas rimas de Marianne Moore. Nas cantorias de pés quebrados ouço o fascínio símil da desigualdade.

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(LEITE, Sebastião Uchoa, 1986 apud GUIMARÃES, 2007, p. 188 ) Mônica (sketch #1) A janela e a câmara escura Diz-se que na morte a retina retém a última imagem que o olho viu. Houve quem tivesse tentado procurar, então, a imagem supostamente impressa, dissecando o olho. A palavra, para o poeta, talvez seja esse momento extremo, que só lhe ocorre, na condição de estar ausente. A palavra que se escreve é, em algum grau, o dizer a morte (dizer o outro). A janela guarda um caráter análogo ao olho, de tal forma que, aquele que sobre ela se debruça, a vislumbrar a cidade, vê duplamente: segundo sua própria vista, mas também a partir do ângulo de visão de um ser mítico - o interior. Não podemos evitar deixar traços; investimos afetivamente os locais onde existimos, de tal modo

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que, ao fim, aquele lugar, matéria inerte, também adquire vida própria, identidade e alteridade. Ruim, mas bom de morar. Esse é o sentimento no Mercúrio Moradores ainda resistem à ideia de deixar o prédio (Estado de São Paulo, 29 de junho de 2008 ) Da janela do apartamento 224, no 22º andar do Edifício Mercúrio, no número 3.163 da Avenida do Estado, a enfermeira aposentada Maria Soares, de 85 anos, tem ao acordar a visão que a faz se “sentir viva”. Mineira que cresceu e morou até os 50 anos no Rio, a senhora de cabelos brancos diz estar “bem firme”. Ela pega metrô quase todos os dias para atuar como voluntária em projetos sociais ou simplesmente para ajudar amigas doentes. “Olha essa visão, a torre branca do Banespa, o Mercadão, o azul-esmeralda da Catedral da Sé, todos esses prédios em volta. Depois minhas filhas não sabem o motivo de eu preferir ficar sozinha aqui em São Paulo e não voltar para o Rio. Sou 455


louca por essa cidade desde a primeira vez que estive aqui”, aponta a aposentada ao observar o skyline do centro velho, da janela de sua sala, no imóvel onde mora desde 1982. Pelo apartamento de 39 m², a Prefeitura ofereceu R$ 25 mil - a indenização vai de R$ 20 mil a R$ 30 mil. [...] Pelos corredores, há “gatos” para o fornecimento de luz em alguns apartamentos. Os vidros quebrados tornam as noites ainda mais frias. O único elevador, para quatro pessoas, até que funciona, mas é demorado. Alguns imóveis, contudo, estão ocupados apenas por mercadorias de camelôs da região da Rua 25 de Março. Depois das 20 horas, quase ninguém se arrisca a sair a pé do degradado edifício. “À noite, só tem mendigo e ‘nóia’, até fantasma tem medo deste lugar”, brinca o metalúrgico Romeu Antunes, de 36 anos, inquilino há 5. O gigante São Vito, fechado desde 2004, com 624 apartamentos em 27 andares, também é invadido 456


nas madrugadas por pichadores e usuários de crack, segundo os vizinhos. Há 12 anos na portaria do Mercúrio, Aparecido Stocho, de 62, diz que nem os funcionários da Prefeitura que vão ao local sabem como notificar sobre a desapropriação. Morador da Freguesia do Ó, revela: “Tô fora de morar aqui. Gosto do centro só para trabalhar e passear.” A janela e a câmara escura Escrevo com meu corpo em neon extemporâneo. A cidade recolhe instantes desconexos. [As esquinas coordenadas de um lugar, o outro]. Poderia tingir as calçadas, com os sonhos cândidos do meu múltiplo: ele só me pertence como tormento. [A parede, um abismo]. A sala é um repositório de cadáveres: 457


eu os afasto, mas são o mesmo, que não se esquece. Câmara escura, on top of it, o inferno, segundo sua ótica precisa. Os outdoors caíram. Eles nos carregam no cortejo, cujos fractais giram, indolentes, para compor o branco do papel, em que, agora, dano o meu olho. [o vazio]. O sino badala na igreja, longe, ouço palavras sem carne, 458


como eletrocução da espinha. A morte próxima, a palavra que não se diz. Mônica sketch # 4 (Julho 7, 2008) Para Walter Bejamin as passagens (galerias) se relacionam com a privatização do espaço público, a transformação de todo elemento urbano em uma “concha”, ambiente interior. Há, nisso, um sonho burguês, que é preciso perverter. Benjamin dedicou-se a essa perversão como projeto político, como desfazimento a que dedicou o melhor de suas capacidades estéticas. Porque é preciso fazer isso? Ora, simplesmente porque esse sonho cândido é uma distopia, um ataque à sociabilidade, para se edificar uma sociedade sem diferenças ou distinções, plana e reta. Essa sociedade que se proteje, que se edifica como bunker, sociedade da indiferença, é uma ataque ao republicanismo da cidade, uma incivilidade que se justifica com bom tom e

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maneirismo, que se racionaliza na forma daquilo que é prático e cômodo. *** Mônica digital cut #1 Julho 18, 2008 Talvez seja necessário aceitar que a vida é um acidente, às expensas de todas as tentativas de fundá-la sobre a necessidade. Essa percepção leva a uma tensão extrema a noção de que o existente tenha uma natureza arquitetural, bela e articulada. Abre o espaço, portanto, para a rua, para o contingente, que não sendo belo é sublime, nos arranjos improváveis e incidentais que produz. A recusa estética do belo, do harmônico, do objeto digno em favor daquilo que é mundano e vil, regular, ordinário, prosaico é uma opção política e, em grande medida, de crítica à sobrevivência do divino no secular. “Uma das vantagens da palavra vulgar, na minha opinião, é que, do ponto de vista discursivo, ela aponta para duas direções: para o objeto em si, para algo de abjeto 460


ou absurdo em sua constituição, algum sinal de infâmia, uma característica abominavelmente visual que o objeto nunca deixará de trair por mais que tente; e para a existência do objeto em determinado mundo social, para um conjunto de gostos e estilos de individualidade que ainda estão por definir, mas que de certo modo já estão ali, na palavra, mesmo antes de ser pronunciada.” CLARK, T J. In: SALSZTEIN, Sônia (org). Em defesa do expressionismo abstrato in Modernismos Trad. Vera Pereira, São Paulo, CosacNaify, 2006, p. 12 “… G. tem um mérito profundo que lhe é peculiar; desempenhou voluntariamente uma função que os outros artistas desdenharam e que cabia sobretudo a um homem do mundo preencher. Ele buscou por toda a parte a beleza passageira e fugaz da vida presente, o caráter daquilo 461


que o leitor permitiu chamar Modernidade.” (Charles Baudelaire)

de

“Baudelaire aclamava o belo na bastardia das ruas porque era delas que o poeta retirava o suprassumo da experiência[...] e porque a matéria mais sublime da arte só se revelaria a ele mediante a imersão desabusada no vulgar.” (Sonia Salztein) Note, contudo, que mesmo esse raciocínio ainda é insuficiente para um pensamento completamente mundano. Mesmo o Deus bíblico permite que o último instante, o derradeiro, seja um momento de redenção completa, na mais total descontinuidade com a história de vida de cada qual. A questão, portanto, talvez resida i) ou na impossibilidade total de qualquer pensamento consequentemente mundano, ou ii) na renúncia de extrair do existente qualquer juízo de natureza moral. Môncia: Cut on a book # 1 A vida doméstica é repartida, porosa e entremeada. O que distingue Nápoles de todas as 462


grandes cidades é a afinidade com o Kral* dos hotentotes: cada atitude e desempenho privado é inundado por correntes da vida comunitária. O existir, para o nórdico o assunto mais privado, se torna aqui, como no Kral, objeto da coletividade. Por isso a casa é muito menos o asilo, no qual pessoas ingressam, do que o reservatório do qual afluem. Não apenas de portas irrompe a vida. Não apenas para os átrios, onde, sentadas em cadeiras, as pessoas executam seus afazeres (pois têm a faculdade de transformar o corpo em mesa). Lides domésticas pendem das sacadas como plantas em vasos. Das janelas dos andares mais altos vêm cestas em cordas para correio, couve. Do mesmo modo como o quarto retorna à rua com cadeiras, fogão e altar, a rua peregrina quarto adentro, só que com muito mais rumor. Mesmo o mais pobre dos quartos está tão repleto de velas, santos de argila, tufos de fotografia na parede e beliches de ferro, quanto a rua está de carretas, gente e luzes. A miséria efetuou uma extensão dos limites, que é o reflexo da mais radiante liberdade 463


de espírito. Comer e dormir não têm hora, muitas vezes nem sequer lugar. Quanto mais pobre o bairro, tanto maior o número de tavernas. Quem pode, vai buscar aquilo de que precisa dos fogões em plena rua. Os mesmos pratos têm gosto diferente de acordo com o cozinheiro: nada é processado ao acaso, mas de acordo com receitas experimentadas. Como na vitrine da menor trattoria peixes e carnes se amontoam à frente do freguês que as avalia, aqui há uma nuança que ultrapassa as exigências do conhecedor. Para isso, no mercado de peixes, esse povo de marinheiros realizou o magnífico refúgio neerlandês. Estrelas-do-mar, caranguejos, polvos da água do golfo, onde formigam rebentos monstruosos, cobrem as bancadas e são freqüentemente engolidos crus com gostas de sumo de limão. Até os animais terrestres mais corriqueiros se tornam fantásticos. No quarto, quinto andar dessas habitações coletivas se criam vacas. Os animais nunca vêm à rua, e seus cascos cresceram tanto que já não podem mais se erguer.

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Como seria possível dormir em tais aposentos? Sem dúvida, neles existem tantas camas quantas o espaço permita. Mas, mesmo que sejam seis ou sete, o que há de moradores frequentemente é mais do que o dobro. Por isso ainda se veem meninos na rua tarde da noite, à meia-noite e mesmo às duas da madrugada. Ao meio dia eles se deitam então atrás dos balcões de loja ou num degrau de escada. Esse sono, não importa como homens e mulheres o recuperem em cantos sombreados, não é, portanto, o sono protegido dos nórdicos. Aqui também há uma interpenetração do dia e da noite, do ruído e do silêncio, da luz de fora e da escuridão de dentro, da rua e do lar. Isso prossegue até nos brinquedos. Diluída e com as pálidas cores do Kindl** de Munique se acha a Madona nas paredes das casas. O menino que ela estende à sua frente como um cetro se encontra desse mesmo jeito, rígido, enfaixado, sem braço e sem perna, como um boneco de madeira nas lojas mais pobres de Santa Lúcia. Com essa peça os pirralhos podem bater onde queiram. 465


Porém, o demônio da impudicícia penetrou muitos desses bonecos, que jazem nas vitrines entre papel de carta ordinário, pregadores de madeira e cordeirinhos de latão. Nos quarteirões superpovoados, mesmo as crianças travam rapidamente conhecimento com o sexo. Mas, se em algum lugar seu aumento se torna devastador, se morre um pai de família ou se adoece u’a mãe, não vão carecer de um parente mais próximo ou mais afastado. Uma vizinha aceita à sua mesa uma criança por prazo curto ou longo, e desse modo as famílias se interpenetram em relações, que podiam se equiparar à adoção. Os cafés são verdadeiros laboratórios desse grande processo de interpenetração. Neles a vida não tem tempo de se estabelecer para se estagnar. São espaços aberto e insípidos, de gênero botequim de políticos, e os vienenses, de caráter aristocrático, restrito à burguesia, são a sua antítese. Cafés napolitanos são exíguos. É praticamente impossível uma permanência mais longa. Uma xícara de café fervente de caffé espresso – nas bebidas quentes esta cidade é tão 466


insuperável como nos sorbets – despacha o freguês com uma saudação. O cobre das mesas reluz; elas são pequenas e redondas, e um grupo de aspecto grosseiro já dá meia-volta, hesitante, na soleira. Apenas poucas pessoas conseguem montar assento aqui e por poucos instantes. Três gestos rápidos, e está feito o pedido. A pantomima é aqui mais usada do que em qualquer outra parte da Itália. Para o forasteiro, a conversa é insondável. Ouvidos, nariz, olhos, peito e ombros são postos de sinais ocupados pelos dedos. Essa divisão retorna e seu erotismo meticulosamente especializado. Gestos solícitos e toques impacientes são notados pelo estrangeiro com uma regularidade que exclui o acaso. Sim, aqui ele seria traído e vendido, mas o napolitano bonachão o despede. Manda-os alguns quilômetro mais à frente, para Mori. – Vedere Napoli e poi Mori. – Ver Nápoles e depois morrer, diz o alemão corroborando. (BENJAMIN, 1995, pp. 152 -155).

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(*) Kral: aldeia africana em forma de círculo, defendida por paliçada. (**) Refere-se ao Menino Jesus, em dialeto de Munique (N.T.) GPS Esta obra está organizada segundo os seguintes princípios:

Legado: sob esse conceito se realiza a obra como aquilo que excede a autoria, ou seja, como um espaço onde se reúnem o que é próprio e as afinidades eletivas do autor. Sua idéia-força é a morte, ou seja, a necessidade de transmitir à posteridade não apenas o que de fato se materializou na obra, mas as esperanças, os vínculos de amizade e afinidade. Representa, deste modo, o esforço extremo da intelecção; a oferta do pensamento enquanto ele ainda permanecia como indeterminado, como potência.

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Comentário/indicação: a transmissão do legado já se materializa na própria reunião de documentos, como aquilo que foi destacado do infinito, independendo, em sua transmisibilidade, da compreensão (pelo autor) do material reunido. A natureza magistral desta tarefa os monges copistas compreendiam infinitamente melhor do que nós, os modernos. O comentário e a indicação são recursos auxiliares para a constituição do legado, na medida em que criam um sistema de referências entre os documentos sacados do indiferente e a obra, que quer se organizar como um espaço arquitetural, saturado de manifestações. Espaço de manifestações: para a montagem como técnica literária, a autoria dos elementos individuais da obra é absolutamente irrelevante. A pretensão da obra consiste, a rigor, em compor um espaço de manifestações, no qual a coisa se exprima em toda a sua amplitude, até revelar sua idéia força, ou seja, seu centro na qualidade de sol em uma constelação, que, de todo modo, continua divergindo da identidade conceitual, por não 469


dissolver o particular no universal, e por preservar o detalhe como tal. Escuta: o fundamento da montagem como técnica literária não se encontra na escrita, mas sim na escuta. Se a verdade se apresenta é apenas por conta disso. I. A academia, em que pese sua importância para a preservação do pensamento, envenena-o com suas pequenas questões e o excessivo respeito pela obra e pelos mestres. Além disso, partilha de uma concepção de verdade que se faz por exclusão do erro. Ora, o erro é parte integrante da verdade, que só se oferece quando o vê devidamente presente e representado. II. Outro problema aqui reside no fato de que, para a academia, a verdade é obra individual, enquanto postulamos a idéia de que ela é obra coletiva, da qual se participa tanto evidenciando acertos, 470


quanto disseminando erros (necessários, segundo cada determinada concepção teórica). O importante, de todo modo, é a saturação que institui a fisionomia de uma época e, talvez, a imagem terrível na qual ela possa espelhar-se, para acordar de seu próprio sonho.

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Resenha: Acepções ■ substantivo feminino ato ou efeito de resenhar 1 descrição feita com detalhes, com pormenores 2 contagem, conferência, verificação 3 Rubrica: jornalismo. tipo de resumo de texto de extensão maior que a da sinopse 4 Rubrica: jornalismo. análise crítica ou informativa de um livro; recensão 5 Rubrica: jornalismo. notícia jornalística que desce a detalhes da ocorrência e a analisa por diversos ângulos 6 Rubrica: jornalismo. sinopse geral do que de fundamental ocorreu em determinado período, em matéria de noticiário (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa – versão eletrônica UOL) 2 Ouvi de uma artista plástica, certa vez, que olho não vê apenas, que ele também pensa (Branca Coutinho). 3 Sujeito este que pode ser até mesmo um coletivo, uma vez que aquilo que importa para sua caracterização é a suposição de uma identidade, ou seja, a organização do processo de reflexão a partir de um centro ao qual todo o pensamento encontra-se referido, apartando-se perfeitamente de tudo que está fora, e de tudo que é excêntrico. 4 A recepção do jornal, justamente por se fundar na condição do transeunte, deve ter por elemento central o conceito de choque. A rigor a partir do o choque o organismo cria um conjunto de respostas automáticas a estímulos, de modo a preservar sua energia, evitando que ela se desvie continuamente para o exterior. Trata-se de uma interpretação, uma leitura, virtualmente instantânea de classes de acontecimento que o indivíduo reconhece e classifica por afinidade. Ocorre sempre, então, uma atenção distraída, de tal modo que o indivíduo é chamado à cena para, no momento seguinte, dela evadir-se. É exatamente por isso que a informação massiva veiculada pelo jornal não traz novidade alguma: em sua novidade radical ela é lida sempre e recorrentemente como o mesmo evento, não trazendo ao leitor, efetivamente, qualquer 5 experiência nova. O que caracteriza a sociedade de consumo é a universalidade do “fait divers”, na comunicação de massa. Toda a informação política, histórica e cultural é acolhida sob a mesma forma, simultaneamente anódina e miraculosa, do ―fait divers”. Atualiza-se integralmente, isto é, aparece dramatizada de modo espetacular – e permanece de todo inatualizada, quer dizer, distanciada pelos meios de comunicação e reduzida a sinais. O acontecimento irrelevante não constitui, pois, uma categoria entre outras, mas

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A categoria cardial de nosso pensamento mágico e da nossa mitologia. (BAUDRILLARD, 1975, p. 30) Lês faits divers: les événements du jour (ayant trait aux accidents, délits, crime) sans lien entre aux, faisant l’objet d’une rubrique dans les medias. “tout ces horribles faits divers: enfant martyr, enfants noyés par leur propre mère. (Le petit Robert, 2000, p.748) 6

A legenda não se constitui, contudo, em uma forma aprioristicamente degradada. Pode e deve desenvolver-se para os fins da emancipação, subvertendo o modo como se apresenta correntemente no jornal e, muito particularmente, no anúncio publicitário: Mas o que nem Wirtz nem Baudelaire compreendera, no seu tempo, são as injunções implícitas na autenticidade da fotografia. Nem sempre será possível contorná-las com uma reportagem, cujos clichês somente produzem o efeito de provocar no expectador associações lingüísticas. A câmara se torna cada vez menor, cada vez mais apta a fixar imagens efêmeras e secretas , cujo efeito de choque paralisa o mecanismo associativo do espectador. Aqui deve intervir a legenda, introduzida pela fotografia para favorecer a literalização de todas as relações da vida sem a qual qualquer construção fotográfica corre o risco de permanecer vaga e aproximativa. Não é por acaso que as fotos de Atget foram comparadas ao local de um crime? Não deve o fotógrafo, sucessor de augures e arúspices, descobrir a culpa em suas imagens e denunciar o culpado? Já se disse que ―o analfabeto do futuro não será quem não sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar‖. Mas um fotógrafo que não sabe ler suas próprias imagens não é pior que um analfabeto? Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia? Tais são as questões pelas quais a distância de noventa anos, que separa os homens de hoje do daguerreótipo, se descarrega de suas tensões históricas. É à luz dessas centelhas que as primeiras fotografias, tão belas e inabordáveis, se destacam da escuridão que envolve os dias em que viveram nossos avós. (BENJAMIN, 1985, p. 107 – grifos meus)

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O jornal, de certo modo, nos treina para o acontecimento, ainda que só o faça seguindo à risca um programa conservador.

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A cultura que nos promete corrigir a natureza – desviando-nos do curso da degeneração necessária, a doença – não nos ensina a morrer, pois ela mesma se propõe como meta superar a morte, ainda que só possa dar curso a esta intenção sob a fórmula de um domínio irrestrito do natural e sua reconstrução como instância totalmente humana, ainda que dominada e cativa, submetida por meio da tortura e da agressão – no que se mostra, em contrapartida, a face apocalíptica da natureza, que restitui, assim, a violência de sua humanização, conforme a desenvolve a ordem.

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Não é um acidente que também a propaganda se apresente como uma promessa de potência, um auto-elogio, uma espécie de patuá, com o qual vai se afastando e empurrando para diante a obscuridade inexorável. Entende-se, assim, que a notícia e a propaganda, que se apresentam no jornal, convergem e obedecem a um mesmo pirncípio: elas falam não à razão no homem, mas ao ser que, tornado unilateral pela razão, desprovido de qualquer capacidade ritualística, busca alucinadamente expiar a morte. Deste modo, através das manchetes, em que a morte aparece como imagem crua, é um ser atomizado e aterrorizado que grita: estou vivo! Estou vivo!

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Qual a receita para não ficar fora de moda? A moda me ensinou a olhar o futuro, a ser lúcida e interessada. Pode parecer bobagem, artificial, mas essa mecânica de não olhar para trás serve para entender melhor o que está por vir. Quando se trata de moda, pareço adolescente: passo horas navegando por blogs, apesar de meus netos reclamarem muito. (Costanza Pascolato, em entrevista a Sonia Racy: 'A moda me ensinou a olhar o futuro'.) http://txt.estado.com.br/editorias/2008/01/20/cad-1.93.2.20080120.23.1.xml

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O termo é usado aqui na acepção de acontecimento funesto.

A racionalização é pensada aqui em termos weberianos estritos, ou seja, como processo de desencantamento do mundo. 13 É assim, ou seja, como indiferença e desprezo para com toda tradição, como o novo que a mercadoria se recoloca permanentemente, para renovar seu fascínio. 14

João vai à guerra O psicanalista Renato Mezan vê falha nos superegos dos assassinos do menino de 6 anos e alerta para o risco de esgarçamento do tecido social http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1802200706.htm Razão e sensibilidade O filósofo e estudioso do iluminismo Renato Janine Ribeiro repensa a pena de morte à luz da morte de João Hélio http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1802200707.htm Os atos fundadores A pesquisadora Vania Ceccato analisa o combate à violência no Brasil e no Primeiro Mundo http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1802200709.htm 15

No sentido de que ela é recorrentemente produzida para exposição, para ser vista. 16 A Freud a condição precária do homem enquanto tal não passou despercebida:

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Se só uma pessoa consegue gratificar o desejo reprimido, o mesmo desejo está fadado a ser despertado em todos os outros membros da comunidade. A fim de sofrear a tentação o transgressor invejado tem de ser despojado dos frutos de seu empreendimento e o castigo, não raramente, proporcionará àqueles que o executam a oportunidade de cometer o mesmo ultraje, sob a aparência de um ato de expiação. Na verdade, este é um dos fundamentos do sistema penal humano e baseia-se, sem dúvida corretamente, na pressuposição de que os impulsos proibidos encontram-se presentes tanto no criminoso como na comunidade que se vinga. Nisto, a psicanálise apenas confirma o costumeiro pronunciamento dos piedosos: todos não passamos de miseráveis pecadores. (FREUD, Totem e Tabu, Imago, p.4) 17

No cinema Chaplin ainda representa, em grande parte de sua atividade, uma fase anterior ao parcelamento e à divisão do trabalho, ou seja, faz roteiros, música, interpreta, dirige e assim por diante. O cinema maduro, contudo, exige a divisão do trabalho e uma determinada hierarquia, ainda que o seu personagem principal mude de tempos em tempos, para dar destaque ao produtor, ao diretor, etc. No cinema as condições da reprodução são diretamente determinantes da atividade criativa, não somente porque precisa reunir uma imensidão de pessoas, para que se propicie ao capital condições adequadas de valorização, mas também porque prescinde de partida da singularidade do objeto produzido. Uma escultura, uma pintura podem existir independentemente da sua contínua reprodução, ou seja, teoricamente podem remanescer únicas. O cinema, contudo, é diretamente  como processo  a geração de cópias, sem as quais ele não existiria, ou seja, não teria qualquer expressão pública. 18 De modo diverso do que ocorre em literatura e em pintura, a técnica de reprodução não é para o filme uma simples condição exterior a facultar a sua difusão maciça: a sua técnica de produção funda diretamente a sua técnica de reprodução. Ela não apenas permite, de modo mais imediato, a difusão maciça do filme, mas exige-a. As despesas de produção são tão altas que impedem ao indivíduo adquirir um filme como se comprasse um quadro. Os cálculos demonstraram que, em 1927, a amortização de uma grande fita implicava a sua exibição para nove milhões de espectadores. (BENJAMIN, 1980, p. 11, nota 9) 19

Não deixa de ser problemático, contudo, para toda a manifestação artística que exige grandes volumes de recurso para ser realizada, a sua existência como obra de arte, pois se coloca de princípio a exposição maciça como condição de existência. 20 Enquanto o modernismo ansiosamente insiste em preservar a esfera estética e rejeitar a literatura popular como um todo, a vanguarda encontra nelas inúmeros pontos de partida. Descobre ansiedades coletivas e esperanças no trivial — algo que captura para estranhar na montagem.

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Até a controvérsia entre Adorno e Benjamin a respeito da arte de massa — uma controvérsia que normalmente se considera política, ganha sentido quando vista em termos do modelo estético subjacente. Enquanto Adorno pressupõe um conceito de modernismo modelado à Schönberg, o ponto de partida de Benjamin em ―A obra de arte na era da reprodutibilidade‖ é sua interpretação da práxis estética do dadaísmo e do surrealismo. Assim, Adorno luta por uma ―referência aos conceitos estéticos tradicionais‖ da estética idealista, enquanto Benjamin busca uma ―crítica do conceito de arte herdado do século XIX‖. (BÜRGER, Piter. O antivanguardismo de Adorno. Texto em formato eletrônico). Sítio: http://antivalor.atspace.com/Frankfurt/burger.htm 21

Os texto de Renato Janine Ribeiro são: Razão e Sensibilidade (18/02/2007): http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1802200707.htm O indizível (04/03/2007): http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0403200706.htm Eles mereceram os seguintes comentários e críticas: Convite à filosofia da morte (Vinicius Torres Freire, 20/02/2007) http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u68947.shtml O carrasco e sua cena (Manuel da Costa Pinto, 24/02/2007) http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u68946.shtml A razão distorcida (Andrea Lombardi, 25/02/2007) http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u68945.shtml O professor acha que pena de morte é pouco (Elio Gaspari, 25/02/2007) http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u68944.shtml Antinomias do Brasil (Olgária Matos, 25/2): http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u68943.shtml

O direito de julgar (Oswaldo Giacoia Junior, 1º/03/2007) http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u68942.shtml Cartas endereçadas ao ―Painel do Leitor: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u68949.shtml 22

O vouyerismo que aparece em programas como o Big Brother não é genuíno, pois o verdadeiro voyeur está sempre escondido na cena e seu prazer deriva, em grande medida, deste poder da invisibilidade. No programa, contudo,

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o ―voyeur” está presente desde o princípio, sendo o programa organizado para ele. 23 O hábito de ver televisão e comer não estão associados de modo aleatório, representando ao contrário um vínculo necessário, por meio do qual a imediata satisfação do desejo e a saturação dos sentidos conduzem ao completo embotamento da atividade e, especialmente, do pensamento: Ocorre que o tipo de produção de sentido que é próprio das imagens induz o sujeito a um modo de funcionamento psíquico que prescinde do pensamento. Brevemente eu diria que isso ocorre porque o imaginário funciona segundo a lógica da realização dos desejos. Cada imagem apresentada proporciona ao espectador um microfragmento de gozo – e a cada fragmento de gozo o pensamento cessa. (BUCCI,; KEHL, 2004, p. 89) (...) O gozo é incompatível como o pensamento porque ele corresponde exatamente ao momento de pausa na premência da atividade psíquica Ora, a produção imaginária oferece continuamente representantes para a satisfação do desejo. Diante da TV ligada, isto é, diante de um fluxo contínuo de imagens que nos oferecem o puro gozo, não é necessário pensar. O pensamento é um trabalho e ninguém agüenta pensar (trabalhar) o tempo todo . (BUCCI,; KEHL, 2004, p. 90-91) 24

A sopa antes das refeições (uso denominado ―à alemã‖ já nos livros culinários venezianos do século XVI); a carne demasiado cozida; os legumes fervidos com muita gordura e farinha; os doces, duros como ladrilho! – se a isso tudo se acrescentasse a necessidade verdadeiramente bestial dos velhos alemães, e não dos velhos somente, de beber depois da janta, compreender-seia também da onde provém o espírito alemão: dos intestinos empanturrados... O espírito alemão é uma indigestão, não chegando nunca ao fundo de alguma coisa. Mas também o regime inglês, que confrontado com o alemão e o francês, é uma espécie de ―regresso à natureza‖, isto é, ao canibalismo, repugna-me profundamente o seu instinto: parece-me que ele dá ao espírito pés pesados, pés de mulher inglesa... A melhor cozinha é a do Piemonte. (NIETZSCHE, 2007. p. 51)

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(...) O crescimento das perversões não é um tema moralizador que acaso tenha obcecado os espíritos escrupulosos dos vitorianos. É o produto real da interferência de um tipo de poder sobre os corpos e seus prazeres. Talvez o Ocidente não tenha sido capaz de inventar novos prazeres e, sem dúvida, não descobriu vícios inéditos, mas definiu novas regras no jogo dos poderes e dos prazeres: nele se configurou a fisionomia rígida das perversões. (FOUCAULT, 1988. P. 47-48 – grifos meus) 26 Esta difusão chega a ponto de se indicar esta patologia, muitas vezes, como a sucessora da neurose histérica, própria da fase inicial do capitalismo.

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(...) É quando a criança se identifica com a imagem do seu corpo que começa a se constituir o eu; a imagem do corpo proporciona uma precária unidade a este sujeito ainda fragmentado e produz a ilusão de uma identidade, também precária, a partir da identificação da criança, sujeito de uma experiência sem unidade, com esta forma unificada, ―perfeita‖, do corpo no espelho – tomando aqui o espelho como uma metáfora do olhar do Outro, em particular a mãe. É a partir daí que se ancoram todas as seguintes formações imaginárias do sujeito. O imaginário é que dá consistência à experiência, e é o domínio do corpo. Mas esta imagem do corpo no espelho não sou ―eu‖. A identificação com a imagem é uma forma de alienação, em que a consistência da experiência subjetiva se ancora na imagem do que se é para o olhar do outro. Já o simbólico é fundado exatamente no ponto em que essa imagem já não dá conta do ser. É o registro da falta, o registro da morte. O significante vem no lugar da coisa que falta, a palavra, seja ela qual for, sempre vem nos trazer a notícia de uma morte, de uma ausência, de uma falta e da própria falta-a-ser do sujeito, que a identificação não resolve. O conceito psicanalítico de Outro – assim mesmo, como maiúscula, para se diferenciar do outro, nosso semelhante – indica o campo simbólico, que é a própria estrutura da linguagem à qual todos estamos submetidos desde nossa entrada na cultura. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 94-95)

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A imagem do pai desconhecido é construída por meio de elementos que são índices, fragmentos, componentes biônicos, mecânicos e, jamais, por um sentimento. É muito interessante notar nessa montagem que o olho de vidro que se atribui jocosamente ao pai pode ser tomado como metáfora da própria câmera. 29 (...) Como já se tem afirmado, com freqüência e corretamente, a vantagem da matemática – o modelo de todo o pensamento neopositivista – reside justamente nessa ―economia intelectual‖. Complicadas operações lógicas são levadas a efeito sem real desempenho de todos os atos intelectuais em que estão baseados os símbolos matemáticos e lógicos. Tal mecanização é na verdade essencial à expansão da industria; mas se isso se torna a marca característica das mentalidades, se a própria razão é instrumentalizada, tudo isso se conduz a uma espécie de materialidade e cegueira, torna-se um fetiche, uma entidade mágica que é aceita ao invés de ser intelectualmente aprendida. (HORKHEIMER, 2002, p. 31) 30

(...) o mecanismo que garante ao sujeito a visibilidade necessária para que ele exista socialmente (no campo do Outro) já não é o da identificação (com o líder). Na horizontalidade da circulação de imagens/mercadorias, o mecanismo das identificações é substituído pela tentativa de produção de identidades. Já não é mais com a imagem do Outro que o sujeito tenta se identificar, mas com uma espécie de imagem de si mesmo apresentada pela televisão como imagem corporal. Se a publicidade, a telenovela, o jornalismo/espetáculo e o cinema de

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massas dirigem-se permanentemente a um sujeito que deve ser ―todo o mundo‖ e não é particularmente ninguém; se a imagem capaz de convocar a multidão de homens genéricos é a imagem mais abrangente, e portanto a mais vazia possível; se o gozo dessa imagem vazia é elevado à condição de experiência subjetiva (e de experiência estética) para os sujeitos da sociedade de espetáculo; se, finalmente, a eficácia dessa experiência depende de todas as outras dimensões da vida que não caibam no puro tempo presente do acontecimento como aparecimento; então, só a imagem do próprio corpo – tornado o mais parecido possível com um corpo Outro, sem história, sem sofrimento e sem falhas – pode servir de suporte para a construção de uma ilusão de identidade para os sujeitos da sociedade do espetáculo. Observem o que eu escrevi: uma ilusão de identidade. A identidade do sujeito com a imagem suposta no olhar do Outro – ou seja, a realização do Eu Ideal – é impossível. Assim como o apagamento absoluta das diferenças: quando um sujeito supõe dominar a imagem que o Outro espera dele, ele o supõe desde seu fantasma – e, neste ponto, não pode escapar da singularidade. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 1158-159) 31

É preciso estar sempre atento ao fato de que este programa de dissolução no social, como forma de preservar e assegurar o indivíduo, é uma recorrência no campo político, não se diferenciando, inclusive, de formas radicais de esquerdismo. Nestes caso, há sempre uma ânsia de refundar o mundo, um sentimento de final dos tempos, de corrupção generalizada, de perda de valores, ou seja, um clamor do próprio real por redenção, de que o revolucionário exasperado e enérgico é apenas o executor.

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A psicologia social já apresentou hipóteses bastante bem fundamentadas sobre o processo de constituição das massas, especialmente aquelas que são lideradas. 33 A noção de distração só pode ser entendida de modo apropriado de sua situação social e não em termos auto-suficientes de psicologia individual. A distração está ligada ao atual modo de produção, ao racionalizado e mecanizado processo de trabalho a que as massas estão direta ou indiretamente sujeitas. Esse modo de produção, que engendra temores e ansiedades quanto ao desemprego, perda de salário e guerra, tem o seu correlato ―não-produtivo‖ no entretenimento: isto é, num relaxamento que não envolva nenhum esforço de concentração. As pessoas querem divertir-se. Uma experiência plenamente concentrada e consciente de arte só é possível para aqueles cujas vidas não colocam um tal stress, não impõem tanta solicitação, a ponto de, em seu tempo, livre, eles só quererem alívio simultâneo do tédio e do esforço. Toda esfera da diversão comercial barata reflete esse duplo desejo. Ela induz ao relaxamento porque é padronizada e pré-dirigida. Sendo padronizada e pré-dirigida serve, na psicologia familiar das massas, para poupar-lhes o esforço dessa participação (mesmo de ouvir ou observar), sem o qual não pode haver receptividade à arte. Por outro lado, os estímulos que ela providencia permitem uma escapadela da monotonia do trabalho mecanizado. (ADORNO, 1994, p. 136)

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A cada ano, milhares de homens e mulheres levam sua câmera de vídeo para as férias. Conservam-na junto ao rosto e assim eles nada vêem. E é assim que viajam. Mostram o mundo à câmara, que grava tudo. E eles mesmos se esquecem de viajar. Foram-se os cadernos de anotações que se costumava ver, nos quais as mãos e os olhos – fossem profissionais ou amadores – faziam uma seleção.

Deixar a câmara filmar significa não filmar mais. E ninguém vê esses pseudofilmes, nunca mais, nem mesmos os que os fizeram. Por uma razão: eles não têm tempo de vê-los. E agora já é tarde para ver o mundo para o qual fecharam os olhos, enquanto viajavam. (CARRIÈRRE, 1995, p. 194) 35 A forma geral relativa do mundo das mercadorias imprime à mercadoria equivalente, excluída dele, ao linho, o caráter de equivalente geral. Sua própria forma natural é a figura de valor comum a esse mundo, o linho sendo, por isso, diretamente trocável por outras mercadorias. Sua forma corpórea passa pela encarnação visível, pela crisálida social geral de todo trabalho humano. A tecelagem, o trabalho privado que produz linho, encontra-se, ao mesmo tempo, em forma social geral, na forma de igualdade com todos os outros trabalhos. As inumeráveis equações em que consiste a forma valor geral equiparam, sucessivamente, o trabalho realizado no linho a cada trabalho contido em outra mercadoria e tornam, com isso, a tecelagem a forma geral de manifestação do trabalho humano enquanto tal. Assim, o trabalho objetivado no valor das mercadorias não se representa apenas de um modo negativo, como trabalho em que todas as formas concretas e propriedades úteis dos trabalhos reais são abstraídas. Sua própria natureza positiva é expressamente ressaltada. Ele é a redução de todos os trabalhos reais à sua característica comum de trabalho humano, ao dispêndio da força de trabalho do homem. A forma valor geral, que representa os produtos de trabalho como meras gelatinas de trabalho humano indiferenciado, mostra por meio de sua própria estrutura que é a expressão do mundo das mercadorias. Assim, ela evidencia que no interior desse mundo o caráter humano geral do trabalho constitui seu caráter especificamente social. (MARX, 1985, p.67 – grifos meus). 36

De reunir por justaposição ou por contigüidade (atomização); segundo infinitos e distintos vetores de aglutinação; por prescindir de qualquer relacionamento inter-pessoal, para se afirmar como unidade; por compor tal unidade a partir de uma referência externa; por ser passiva; por jamais se deixar subsumir pela institucionalização, que dela diverge, mesmo quando a tem por fundamento e origem, donde: a) prescinde de história e, portanto, não clama um futuro (sua natureza efêmera); b) é anônima e extrai daí sua existência; c) é incidental, acidental – sua qualidade natural, como forma especificamente social de ser. 37 [Adorno] Considera, por exemplo, que a eficácia da psicologia de massas do fascismo tenha se convertido, ela mesma, em uma função essencial da “psicologia dos consumidores”. (AMARAl, 1997, p. 69)

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Note-se, a este respeito, que mesmo o sujeito, que parece ser uma relação abstrata e dialética com um objeto igualmente abstrato, uma categoria, um conceito; também este sujeito tem uma gênese na história, ainda que não se reduza a ela. O sujeito judicioso, discriminante, autor do julgamento e do juízo, não é um ser etéreo. (...) o estabelecimento e a generalização do procedimento do inquérito na prática política e na prática judiciária, civil ou religiosa. Procedimento cujo resultado é determinado pela concordância de vários indivíduos sobre um fato, um acontecimento, um costume, que passam então a ser considerados notórios, isto é, podendo e devendo ser reconhecidos. Fatos conhecidos porque por todos reconhecíveis. A forma jurídico-política do inquérito é correlata ao desenvolvimento do Estado e à lenta aparição, nos séculos XII e XIII, de um novo tipo de poder político no elemento do feudalismo. A prova era um tipo de poder/saber de características essencialmente ritual. O inquérito é um tipo de poder/saber essencialmente administrativo. E é este modelo que, à medida em que se desenvolviam as estruturas do Estado, impôs ao saber a forma do conhecimento: a de um sujeito soberano tendo uma função de universalidade e um objeto de conhecimento que deve ser reconhecível por todos como sendo sempre dado. (FOUCAULT, 1979, p. 116)

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