Cinema da Cidade 3 (Parte II)

Page 1

Cinema da Cidade (Ato III) ExercĂ­cios Benjaminianos Parte II Flash


SUMÁRIO A imagem dialética ............................................... 11 Progresso e recorrência: o eterno retorno ........... 18 O espelho oval...................................................... 20 Sinais .................................................................... 23 O livro................................................................... 27 O monge copista .................................................. 34 Método ................................................................ 39 Maldito................................................................. 42 Oito e Meio (Federico Fellini, 1963) ..................... 46 A cidade ............................................................... 49 Das Passagen-Werk.............................................. 69 Flash ..................................................................... 95 A celebridade: prolegômenos da crítica de cinema ............................................................................. 97 Borat: uma análise não autorizada ..................... 106 Para ler jornal I ................................................... 114 O filme: seu caráter massivo .............................. 120 O filme: propaganda e autorreferência .............. 124 O filme: forma e pseudoindividuação ................ 129 O filme: a produção da identidade como meta .. 133 O filme: o real evanescente ................................ 135 O filme: um mundo sem saída? .......................... 138 2


Baixio das Bestas ................................................ 144 Carne trêmula (Almodovar, 1997) ...................... 147 Encouraçado Potemkin (Eisenstein, 1925) ......... 150 A estrada da vida (Federico Fellini, 1954) .......... 153 Teorema (Pasolini, 1968) ................................... 155 A estreia do Homem-Aranha .............................. 159 Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954) .................... 163 O poder como arquitetura: seu vir a ser ............ 169 Os pássaros (Hitchcock, 1963) ........................... 192 A Última Gargalhada (F.W. Murnau, 1924) ........ 198 Niilismo e pós-modernismo ............................... 204 Oito e meio ........................................................ 211 O diabo veste Prada (David Frankel, 2006) ........ 221 O último tango em Paris (Bernardo Bertolucci, 1972) .................................................................. 223 Psicose (Hitchcock, 1960) ................................... 229 Outubro (Eisenstein, 1928) ................................ 232 Um corpo que cai (Hitchcock, 1958) .................. 240 Nascido para Matar (Stanley Kubrik, 1987) ........ 244 Luzes da Ribalta (Chaplin, 1952)......................... 248 Casablanca (Michael Curtiz, 1942) ..................... 250 O evangelho segundo São Mateus (Pasolini, 1964) ........................................................................... 253 3


Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens (F.W. Murnau, 1922) ................................................... 257 Propaganda e naturalização ............................... 259 A crítica e sua natureza - II ................................. 277 Os limites do jornal: Caras e A Folha de São Paulo ........................................................................... 279 Memória e temporalidade ................................. 281 Moda e grande indústria .................................... 285 Do brinquedo - I ................................................. 291 Do brinquedo - II ................................................ 301

4


ICONOGRAFIA Figura 25 - Morangos Silvestres (Ingmar Bergman, 1957) .................................................................... 13 Figura 26 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936) .................................................................... 16 Figura 27 - Berlim: sinfonia de uma cidade ((Walther Ruttmann, 1927) .................................. 23 Figura 28 - Ivan, o terrível (Sergei Eisenstein, 1943) ............................................................................. 29 Figura 29 - Saturno devorando a un hijo (Francisco de Goya, 1820-1823) ............................................ 32 Figura 30 - Ivan, o terrível (Sergei Eisenstein, 1943) ............................................................................. 33 Figura 31- Oito e Meio (Federico Fellini, 1963) .... 48 Figura 32 - Broadway Boogie-Woogie (Piet Mondrian, 1942-43) ............................................. 56 Figura 33 - O processo (Orson Wells, 1962) ......... 70 Figura 34 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) .................................................. 72 Figura 35 - O processo (Orson Wells, 1962) ......... 74 Figura 36 - Les Contes de Perrault, dessins par Gustave Doré. Paris: J. Hetzel, 1867. .................... 76 5


Figura 37 - Les Contes de Perrault, dessins par Gustave Doré. Paris: J. Hetzel, 1867. .................... 79 Figura 38 - Um homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1929) ....................................................... 85 Figura 39 - Um homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1929) ....................................................... 90 Figura 40 - Metropolis (Fritz Lang, 1927).............. 92 Figura 41 - Salvador Dali para Spellbound, Alfred Hitchcock.............................................................. 93 Figura 42 - A mulher satânica (Josef von Sternberg , 1935) .................................................................. 97 Figura 43 - Borat (Larry Charles, 2006) ............... 110 Figura 44 - Propaganda da Folha de São Paulo .. 116 Figura 45 - Moulin Rouge - Cartaz ...................... 124 Figura 46 - O jardineiro fiel (Fernando Meirelles, 2005) .................................................................. 135 Figura 47 - O sétimo selo (Ingamar Bergman, 1956) ........................................................................... 137 Figura 48 - Baixio das Bestas (Cláudio de Assis, 2007) .................................................................. 145 Figura 49 - Baixio das Bestas (Cláudio de Assis, 2007) .................................................................. 147 Figura 50 - Carne trêmula (Almodovar, 1997) .... 148 6


Figura 51 - Encouraçado Potemkin (Eisenstein, 1925) .................................................................. 151 Figura 52 - Encouraçado Potemkin (Eisenstein, 1925) .................................................................. 152 Figura 53 - A estrada da vida (Federico Fellini, 1954) .................................................................. 153 Figura 54 - Homem-Aranha 3 ............................. 160 Figura 55 - Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954) .. 165 Figura 56 - Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954) .. 166 Figura 57 - Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954) .. 168 Figura 58 - Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954) .. 169 Figura 59 - A Lição de Anatomia do Dr. Tulp (Rembrandt, 1632) ............................................. 171 Figura 60 - Um estranho no ninho (Milos Forman, 1975) .................................................................. 173 Figura 61 - Frenesi (Alfred Hitchcok, 1972) ........ 176 Figura 62 - Fuga de alcatraz (Dom Siegel, 1979) . 177 Figura 63 - Fuga de alcatraz (Dom Siegel, 1979) . 179 Figura 64 - Máscara mortuária Jeremy Bentham 180 Figura 65 - Morangos Silvestres (Ingmar Bergman, 1957) .................................................................. 182 Figura 66 - Panóptico ......................................... 188 Figura 67 - Panóptico ......................................... 189 Figura 68 - Os pássaros (Hitchcock, 1963) .......... 193 7


Figura 69 - Os pássaros (Alfred Hitchcock, 1963) ........................................................................... 196 Figura 70 - Os pássaros (Alfred Hitchcock, 1963) 197 Figura 71 - Os pássaros (Alfred Hitchcock, 1963) 198 Figura 72 - A última gargalhada (F.W. Murnau, 1924) .................................................................. 198 Figura 73 - A última gargalhada (F.W. Murnau, 1924) .................................................................. 200 Figura 74 - A última gargalhada (F.W. Murnau, 1924) .................................................................. 202 Figura 75 - Closer: perto demais (Mike Nichols, 2004) .................................................................. 204 Figura 76 - Closer: perto demais (Mike Nichols, 2004) .................................................................. 206 Figura 77 - Closer: perto demais (Mike Nichols, 2004) .................................................................. 208 Figura 78 - Mulholland Drive (David Lynch, 2001) ........................................................................... 210 Figura 79 - Oito e ½ (Federico Fellini, 1963) ....... 211 Figura 80 - Oito e ½ (Federico Fellini, 1963) ....... 212 Figura 81 - Giulietta Masina ............................... 215 Figura 82 - Luzes da Ribalta (Charles Chaplin, 1952) ........................................................................... 217 8


Figura 83 - Luzes da Ribalta (Charles Chaplin, 1952) ........................................................................... 219 Figura 84 - O diabo veste Prada (David Frankel, 2006) .................................................................. 221 Figura 85 - Marlon Brando ................................. 224 Figura 86 - O último tango em Paris (Bernardo Bertolucci, 1972) ................................................ 225 Figura 87 - O último tango em Paris (Bernardo Bertolucci, 1972) ................................................ 228 Figura 88 - Psicose: o chuveiro ........................... 229 Figura 89 - Psicose (Hitchcock, 1960) ................. 230 Figura 90 - Psicose (Hitchcock, 1960) ................. 232 Figura 91 - Outubro (Eisenstein, 1928) ............... 233 Figura 92 - Outubro (Eisenstein, 1928) ............... 236 Figura 93 - Tempos modernos (Chaplin, 1936)... 237 Figura 94 - Tempos modernos (Chaplin, 1936)... 239 Figura 95 - Um corpo que cai (Hitchcock, 1958) . 241 Figura 96 - Um corpo que cai (Hitchcock, 1958) . 243 Figura 97 - Nascido para Matar (Stanley Kubrik, 1987) .................................................................. 245 Figura 98 - Nascido para Matar (Stanley Kubrik, 1987) .................................................................. 246 Figura 99 - Chaplin: o palhaço ............................ 248 9


Figura 100 - Ingrid Bergman e Humphrey Bogart ........................................................................... 251 Figura 101 - Casablanca (Michael Curtiz, 1942) .. 253 Figura 102 - O evangelho segundo São Mateus (Pasolini, 1964) - Colagem .................................. 255 Figura 103 - Nosferatu (F.W. Murnau, 1922) ..... 258 Figura 104 - Príncipe saudita é o 1º dono particular do maior avião do mundo, o A380 ..................... 265

10


A imagem dialética O progresso como mito é imediatamente o encantamento mecânico do mundo; a roda a girar infinita e monotonamente; o pêndulo que hipnotiza o tempo, que a sua vez perde volume e profundidade, peso, textura e viscosidade, para converter-se na linha, reta e incisiva, como a escada que conduz ao paraíso. Através deste tempo vazio ceifam-se os ângulos e as arestas obtusas, as pequena irregularidades que nos recordam os vieses, os nós da madeira, aquilo que na natureza resiste à redução e à linearidade. Por outro lado, nas formas culturais próprias à nossa época – e contra nossa apropriação intelectual mecanicista - subsistem, conjuntamente com os segundos que se perdem, à medida que o mecanismo do relógio anda continuamente para frente, manifestações tristemente efêmeras e partidas, que reluzem e imantam nossos olhos, para perderem-se inapelavelmente no insondável

11


de um tempo que desconhecemos, posto que não linear. Deste modo, a mercadoria que se insinua na vitrine e que nos quer levar para a cama; os manequins como formas fósseis do feminino; a mulher crucificada no modelo e arrastada nas passarelas, como o Judas que se malha e mortifica; a arma como probabilidade em todo invento; o fármaco para os normais, que se dissimula na meta de supressão de toda patologia; a superação do homem, que se realiza por meio de sua reprodução técnica: a cultura convertida em indústria e o imaginário submetido às regras da produção industrial; a comunicação corrompida segundo a lógica insípida e majestática da informação1 - são fantasmagorias; mineralizações do humano, antecipação da morte, como evasão da morte; realizações de um tempo oco, manifestações diletas do progresso. Essas são, contudo, conquistas tensas e fraturadas, que arrastam consigo, no mais elevado de sua luminescência, a sombra e os despojos de uma humanidade aterrorizada, os corpos 12


dilacerados por entre as potências ciclópicas da imagem e da representação; o pequeno corpo humano, articulado mecanicamente por engrenagens e demandas que o excedem e que só o preservam, na justa medida em que o dissolvem.

Figura 1 - Morangos Silvestres (Ingmar Bergman, 1957) http://br.youtube.com/watch?v=3O01zxTTrQY

(...) O acontecimento não preenche a natureza formal do tempo em que está inserido. Pois não podemos pensar que o tempo é tão somente a medida com a qual se calcula a duração de uma transformação mecânica. Este tempo é uma forma relativamente vazia, e não faz sentido querer pensar as formas do seu 13


preenchimento. Mas o tempo da história é diferente do tempo da mecânica. O tempo da história determina muito mais do que a possibilidade de transformações espaciais de uma certa grandeza e regularidade - concretamente, do andamento dos ponteiros do relógio durante as transformações espaciais simultâneas de uma estrutura complexa. E, sem determinar ainda que coisa para além disso o tempo histórico afinal determina - sem querer, portanto, definir sua diferença em relação ao tempo mecânico -, podemos desde já afirmar que a força determinante da forma histórica do tempo não pode ser totalmente apreendida por nenhum conhecimento empírico, nem absorvida completamente por ele. Um tal acontecimento, que seria perfeito no sentido da história, é antes um elemento empiricamente indeterminável, ou seja, uma idéia. A esta idéia do tempo preenchido chama-se na Bíblia - e esta é a sua idéia historicamente dominante - o 14


tempo messiânico. Em qualquer caso, a idéia de tempo histórico preenchido não é ao mesmo tempo a idéia de um tempo individual. É esta determinação, que, naturalmente, transforma totalmente o sentido desse preenchimento, que distingue o tempo trágico do messiânico. O tempo trágico está para este último como o tempo individualmente preenchido está para o tempo em que esse preenchimento é da ordem do divino. (BENJAMIN, 2004, p. 265-266)

15


Figura 2 - Tempos Modernos (Charles Chaplin, 1936) http://br.youtube.com/watch?v=qDnDaDYZ2AQ

Na face plácida e reluzente do progresso, portanto, tanto quanto ocorre com a mercadoria, existem traços que cumpre evidenciar, exatamente porque são qualidades inerentes a ambos. O que se quer encontrar precisa, no entanto, ser atualizado como imagem, que incorpora à coisa, como verdade sua, tudo aquilo que ela, com ardil, postula como traços insignificantes, pequenos indícios, ornamento e adereço, cacoetes. Por meio 16


da imagem, no instantâneo de sua instituição no aparelho receptivo, as pequenas deformações, as sombras, as imprecisões oferecem a coisa não como auto-retrato e auto-referência, mas como aquilo que é para o outro. To thinking belongs the movement as well as the arrest of thoughts. Where thinking comes to a standstill in a constellation saturated with tensions – there the dialectical image appears. It is the caesura in the movement of thoughts. Its position is naturally an arbitrary one. It is to be found, in a word, where the tension dialectical opposites is greatest. Hence, the object constructed in the materialist presentation of history is itself the dialectical image. The latter is identical with the historic object; it justifies its violent expulsion of the continuum of historical process. (BENJAMIN, 1999, p. 475)

17


Progresso e recorrência: o eterno retorno “Eternal return” is the fundamental form of the urgeschichtlichen, mythic consciousness. (Mythic because it does not reflect) (BENJAMIN, 1999, p. 119) O progresso é mítico, ainda, em um sentido muito particular, ou seja, tem seus olhos sempre voltados para o futuro, não permitindo, portanto, que o passado seja nele refletido, ou que ele próprio se reconheça no passado. Exatamente por isso, adquire uma natureza unilateral e refratária, que não permite admitir como suas, como obras suas, as ruínas que são deixadas pelo caminho e que o progresso recorrentemente imputa não a si mesmo, mas à sua ausência. A ciência, à sua vez, participa desta mesma inapetência para o passado de que é acometido o progresso2. Tão logo, contudo, o tempo tenha perdido suas qualidades densas, a tessitura com que se ata todos os pontos do existente, e tenha se 18


transformado em uma linearidade, ele decaí no sina do eterno retorno do mesmo. Progresso e recorrência, portanto, se reúnem, mas permanecem de costas, de tal modo que o mesmo se eterniza, por não poder comunicar sua natureza arcaica. É exatamente aí que interferem o revolucionário e o alegorista, pois eles revelam o novo com toda sua potência arcaica, com o que o demonstram também na qualidade de mito e ídolo. The belief in progress - in an infinite perfectibility understood as an infinite ethical task - and the representation of eternal return are complementary. They are the indissoluble antinomies in the face of which the dialectical conception of historical time must be developed. In this conception, the idea of eternal return appears precisely as that “shallow rationalism” which belief in progress is accused of being, while faith in progress seems no less to belong to the mythic

19


mode of though than does the idea of eternal return. (BENJAMIN, 1999, p. 119) O espelho oval (Edgar Alan Poe) Com profundo e reverente temor, tornei a pôr o candelabro em sua primitiva posição. Afastada assim de minha vista a causa de minha aguda agitação, busquei avidamente o volume que descrevia as pinturas e sua história. Procurando a página que se referia ao retrato oval, li as imprecisas e fantásticas palavras que se seguem: Era uma donzela da mais rara beleza e não só amável como cheia de alegria. E maldita foi a hora em que ela viu, amou e desposou o pintor. Ele era apaixonado, estudioso, austero e já tinha na Arte a sua desposada. Ela, uma donzela da mais rara beleza e não só amável como cheia de alegria, toda luz e sorrisos, travessa como uma jovem corça; amando com carinho todas as coisas; odiando somente a Arte, que era sua rival; temendo apenas a paleta, os pincéis e os outros sinistros 20


instrumentos que a privavam da contemplação do seu amado. Era pois terrível coisa para essa mulher ouvir o pintor exprimir o desejo de pintar o próprio retrato de sua jovem esposa. Ela era, porém, humilde e obediente, e sentava-se submissa durante horas no escuro e alto quarto do torreão, onde a luz vinha apenas de cima projetar-se, escassa, sobre a alva tela. Mas ele, o pintor, se regozijava com sua obra, que continuava de hora em hora, de dia em dia, e era um homem apaixonado, rude e extravagante, que vivia perdido em devaneios; assim não percebia que a luz que caía tão lívida naquele torreão solitário ia murchando a saúde e a vivacidade de sua esposa, visivelmente definhando para todos, menos para ele. Contudo, ela continuava ainda e sempre a sorrir, sem se queixar, porque via que o pintor (que tinha alto renome) trabalhava com fervoroso e ardente prazer e porfiava, dia e noite, por pintar quem tanto o amava, mas que todavia, se tornava cada vez mais triste e fraca. E, na verdade, alguns que viram o retrato falavam em voz baixa de sua semelhança como de uma extraordinária maravilha, prova não só da mestria como de seu 21


intenso amor por aquela a quem pintava de modo tão exímio. Mas afinal, ao chegar o trabalho quase a seu termo, ninguém mais foi admitido no torreão, porque o pintor se tornara rude no ardor de seu trabalho e raramente desviava os olhos da tela, mesmo para contemplar o semblante de sua esposa. E não percebia que as tintas que espalhava sobre a tela eram tiradas das faces daquela que se sentava a seu lado. E quando já se haviam passado várias semanas e muito pouco a fazer, exceto uma pincelada sobre a boca e um colorido nos olhos, a alegria da mulher de novo bruxuleou, como a chama dentro de uma lâmpada. E então foi dada a pincelada e completado o colorido. E durante um instante o pintor ficou extasiado diante da obra que tinha realizado mas em seguida, enquanto ainda contemplava, pôs-se a tremer e, pálido, horrorizado, exclamou em voz alta: "Isto é na verdade a própria vida. Voltou-se, subitamente, para ver a sua bem-amada... Estava morta!

22


Figura 3 - Berlim: sinfonia de uma cidade ((Walther Ruttmann, 1927) http://www.ruavista.com/berlinbr.htm

Sinais a cidade arrasta meus olhos por poças abjetas em que edifícios envidraçados vem se mirar

a imagem tece camas improváveis

23


um homem passa mastigando o cigarro e eu olho para uma mulher de pernas abertas:

na vulva crucifixada de revista

nossos olhos se encontram, como almas abissais que se evadem

para onde nos levam esse precipĂ­cios vaginais?

ruas e becos deglutem transeuntes um mendigo esmola em nome de um deus morto e

ciganas leem mãos sem traços maldizendo

24


as bocas do metrô que se alimentam do fluxo

Titans domesticados elevadores sugadores de gente

escarram engravatados e

sapatos de torturar pés Nas vitrines os manequim inertes

atraem as mulheres com cadáveres de outros tempos

um ciclope de três olhos orienta o trânsito

as placas me roubam o sentido

sigo um sistema de referências

25


que não leva a lugar algum perambulo pelas cidades

vago por entre ruínas

desprovidas de história o deserto é o fim da linha em um ônibus que não para de circular e por todos lados ouço a multidão se movimenta o pêndulo de um relógio de vidro rachado não há mais tic-tac, tic-

o silêncio 26


tac...

(ruído como forma anódina e vazia) virei na cama, como quem se meche

(a manhã rasgou meu ser)

no túmulo

a navalha de um calafrio

não consigo acordar estou morto? O livro Na condição de verdade canônica a ciência é o livro em sua forma estática e imutável, mortuária, uma representação do mundo como necessidade e uma demanda de sujeição àquele ordenamento. O 27


livro científico, contudo, é uma forma específica e histórica, que se organiza segundo metáforas espaciais, estabelecendo territórios e recortes; vértices e vetores, linhas ascendentes e descentes; podendo culminar na forma arquitetônica da catedral, que em certo momento se pretendeu a síntese total e abstrata do real. Naquilo que edifica o livro é uma cristalização, a tentativa de representar o mundo como o que é preciso e necessário - a lei determinística e, em muitas ocasiões, a representação de um sistema linear. O livro científico, filosófico não é, contudo, apenas a materialização do trabalho intelectual. Ele tem uma unidade, uma face, uma fisiognomia e uma autoridade, que não emana do autor propriamente dito. Bem ao contrário, o autor empresta seu nome terreno e mortal a um títere, que dele se nutre, para consubstanciar uma potência que é o livro como cânone, como artefato mítico - suporte da verdade, apesar da verdade. O livro científico, filosófico é o altar de uma era; elemento necessário e expressivo de sua fisignomia. 28


Figura 4 - Ivan, o terrível (Sergei Eisenstein, 1943) http://br.youtube.com/watch?v=J4QM0RsxtLQ

O livro científico tende, dado o seu próprio dinamismo formal, ao cânone, razão pela qual todo autor, na deificação a que é conduzido em sua apropriação monástica, vê condenada sua negatividade, de tal modo que tudo aquilo que nele era efervescência crítica, simpatia pela vida, abundância, converte-se em discurso frio; domínio exegético de padres laicos, respeito e reverência, produção e funcionalidade. Deste modo, se é marxista apesar de Marx; hegeliano em que pese 29


Hegel, ocorrendo, então, que toda negatividade acabe por tomar a forma necessária, ainda que perversa, da erudição e da devoção mimética. A ciência, portanto, se deita com a erudição, mas só pode procriar com a heresia. E mesmo que toda heresia tenha por fundamento a tradição, existe aquele momento fatídico em que é necessário incendiar o velho mundo e cortar as amarras, lançar a nau. No horizonte infinito - Deixamos a terra firme e embarcamos! Queimamos a ponte - mais ainda, cortamos todo laço com a terra que ficou para trás! Agora tenha cautela, pequeno barco! Junto a você está o oceano, é verdade que ele nem sempre ruge, e às vezes se estende como seda e ouro e devaneio de bondade. Mas virão momentos em que você perceberá que ele é infinito e que não há coisa mais terrível que a infinitude. Oh, pobre pássaro que se sentiu livre e que agora se bates nas paredes dessa gaiola! Ai de você, se fosse acometido de saudade da 30


terra, como se lá tivesse havido mais liberdade - e já não existe mais “terra”! (NIETZSCHE, 2005, p. 147)

31


Figura 5 - Saturno devorando a un hijo (Francisco de Goya, 1820-1823)

32


Figura 6 - Ivan, o terrível (Sergei Eisenstein, 1943) http://br.youtube.com/watch?v=J4QM0RsxtLQ

É tarefa da filosofia e do filosofar, portanto, opor-se à sina mítica que envolve o livro. O pensamento deve desenvolver-se, portanto, e de princípio, como uma reflexão sobre o livro como forma, para que possa ele materializar-se como o que efetivamente regenera e liberta. O livro como forma deve ser o antídoto ao veneno; deve incorporar e antecipar as qualidades materiais do futuro; deve desenvolver os princípios

33


arquitetônicos e as qualidades gráficas que resistem às forças centrípetas da ordem. Na atualidade, por exemplo, o livro não cabe mais na trilha reta e estreita que o contém, como uma seqüência de páginas. O livro se desenvolve para conquistar não apenas porções muito mais amplas do plano, mas igualmente para ganhar volume, figuração, som e textura. Estes requerimentos gráficos não são, como se pode pensar inadvertidamente, fundamentados nos desenvolvimentos tecnológicos. Muito ao contrário, o desenvolvimento da forma do livro é uma luta para dar ao desenvolvimento em geral, o tecnológico incluído, uma estrutura e uma natureza que o redima de suas tendências distópicas, ou seja, do pensamento como prisão e oclusão; como ordenamento forçado e arbitrário do real. O monge copista A força da estrada do campo é uma se alguém anda por ela, outra se a sobrevoa de aeroplano. Assim também é a força de 34


um texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve. Quem voa vê apenas como a estrada se insinua através da paisagem, e, para ele, ela se desenrola segundo as mesmas leis que o terreno em torno. Somente quem anda pela estrada experimenta algo de seu domínio e como, daquela mesma região que, para o que voa, é apenas planície desenrolada, ela faz sair, a seu comando, cada uma de suas voltas, distâncias, belvederes, clareiras, perspectivas, assim como o chamado do comandante faz sair soldados de uma fila. Assim comanda unicamente o texto copiado a alma daquele que está ocupado com ele, enquanto o mero leitor nunca fica conhecendo as novas perspectivas de seu interior, tais como as abre o texto, essa estrada através da floresta virgem interior que sempre volta a adensar-se: porque o leitor obedece ao movimento do seu eu no livre reino aéreo do devaneio, enquanto o copiador o faz ser comandado. A arte chinesa de copiar 35


livros foi, portanto, a incomparável garantia de cultura literária, e a cópia, uma chave para os enigmas da China. (BENJAMIN, 1995, p. 16) O primeiro ato deste texto foram vinte anos de silêncio; cada letra, portanto, está marcada por ele. O silêncio não foi nem ato de renúncia, nem de claustro. Foi uma tentativa contínua de sobrepujar a mimese: esta parece ser a meta precípua de quem quer lidar com a escrita – desenvolver a forma. Mas enquanto requerimento estético é também uma demanda existencial, pois somente na exatidão da forma existe um ser que escreve. A forma quando se coloca, por meio da condição radical de uma individualidade que escreve, remete ao existente apenas quanto tem na mão as chaves que abrem as portas de outros mundos. O silêncio neste texto foi, portanto, a ânsia destes mundos, por parte de um monge copista. Porque não se chega à forma, a não ser por meio de recriar em si mesmo, outras possibilidades formais. Para escrever bem é preciso ver Hegel elevando uma catedral de cristal até o céu – uma 36


Babel cuja única língua era a razão - e sentir a vertigem da altura; ver Marx ordenando os alicerces de um mundo novo e carregar em seu próprio ombro o peso dos blocos que compõem a fundação; ler Nietzsche como quem vai à montanha russa, ou como quem cai em queda livre; ouvir música dodecafônica por meio de Foucault. Apenas por meio da forma o leitor pode ser solidário com quem escreve, pois aqui se compartilha toda a estrutura de um tempo e de uma época, quando eles ainda não são ainda completamente perceptíveis. A forma, de outro lado, preserva a tensão que a realidade quer eliminar para se petrificar; ela é a fresta que permite respirar; que paralisa o mundo para que ele não se transforme em fatalidade e, de certo modo, dissolve esta fatalidade. Por meio da forma o relógio é adiantado ou atrasado, para que o presente se mantenha possível; ela é o ninho do destino, antes que ele alçasse voo. A forma, portanto, é também uma memória do bib-bang, impressão a quente do arcaico supremo sobre a leveza do novo. Desenvolver a forma, portanto, para o escritor, é como salvar-se da loucura, uma 37


vez que se pode prenunciar no texto, aquilo que no existente ainda não se consumou. Na forma, portanto, o inverídico da realidade é desnudado, e pode ser compartilhado. O fundamento oculto da forma, portanto, são a espera e o silêncio; e ainda que eles não participem do produto final, da obra como aquilo que se oferece aos sentidos, é deles que advém seu poder. É que em silêncio se escutam os hinos mortuários que transpassam o tempo; o irrealizado que se cristalizou nas rochas; os reclamos atormentados das ruínas; o duplo que se fixou nas faces, onde toda luz é igualmente sombria3. O silêncio nos permite ouvir a agonia do corpo humano, em uma era que se tornou colossal e desproporcional para com ele; em que a tecnologia gesta ininterruptamente ciclopes, cujas realizações consistem em demonstrar cientificamente nossa fragilidade e pequenez. Em silêncio se ouve mulheres que desesperam por seus filhos; pais cujas lembranças silenciosas foram arrastadas pelo zunido de uma bala; o humano que anseia pelo homem, que ainda não 38


nasceu. Precisamos carregar todos e cada um deles sobre nossos ombros, conduzi-los, conosco, para uma outra dimensão do tempo: a história. Ainda não nascemos para a história. Método (...) Se a filosofia quiser conservar a lei da sua forma, não como propedêutica mediadora do conhecimento, mas como representação da verdade, então aquilo que importa deve ser a prática de sua forma, e não sua antecipação num sistema. Tal prática impôs-se em todas as épocas para as quais foi evidente a essência não delimitável do verdadeiro, sob uma forma propedêutica que pode ser designada pelo termo escolástico do “tratado”, porque ele reenvia, ainda que apenas de forma latente, para os objetos da teologia, sem os quais não é possível pensar a verdade. Os tratados serão doutrinários no tom que assumem, mas sua índole profunda exclui aquele rigor didático que permite à doutrina afirmar-se 39


por autoridade própria. E também eles renunciam aos meios coercitivos da demonstração matemática. Na sua forma canônica, eles aceitam um único elemento doutrinal - de intenção, aliás, mais educativa que doutrinária -, a citação da auctoritas. A representação é a quintaessência de seu método. Método é caminho não direto. A representação como caminho não direto: esse é o caráter metodológico do tratado. A sua primeira característica é a renúncia ao percurso ininterrupto da intenção. O pensamento volta continuamente ao princípio, regressa com minúcia à própria coisa. Este infatigável movimento de respiração é modo de ser específico da contemplação. De fato, seguindo, na observação de um único objeto, os seus vários níveis de sentido, ele recebe daí, quer o impulso para um arranque constantemente renovado, quer a justificação para intermitência do seu ritmo. E não receia perder o ímpeto, tal como um mosaico 40


não perde sua majestade pelo fato de ser caprichosamente fragmentado. Ambos se compõem de elementos singulares e diferentes; nada poderia transmitir com mais veemência o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da verdade. O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o do mosaico depende da qualidade da pasta de vidro. A relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um ponto de vista plástico e mental, demonstra que o conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt) se deixa apreender apenas através da mais exata descida ao nível dos pormenores de um conteúdo material (Sachgehalt). Tanto o mosaico como o tratado, na fase áurea de seu florescimento no Ocidente pertencem à Idade Média; aquilo que permite sua 41


comparação é, assim, da ordem do genuíno parentesco. (BENJAMIN, 2004, p. 14) Maldito Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma idéia de como o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo. Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias. (BENJAMIN, 42


Walter. Sobre o conceito da história. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. Sítio Antivalor) A necessidade pode ser uma forma extrema de liberdade e de libertação; um lampejo e uma fenda, por meio dos quais a eternidade irrompe na vida. Ainda que a necessidade seja da natureza do que é perene e constante, dificilmente sua percepção é mais do que um episódio e um momento total, fechado sobre si mesmo. Ordenase o mundo, porém segundo uma lógica estritamente distinta do romance folhetinesco; no que se oferece a promessa de um destino, mas jamais uma redenção apoteótica. É um lugar no mundo, ainda que não seja uma sobredeterminação; uma posição em que todo acidental é devidamente eliminado, para que se afirme uma correspondência total entre o homem e sua trajetória. A compreensão desta fatalidade, 43


contudo, se ela é verdadeira, se é amor fati, é igualmente uma tranquilidade; a serenidade da brisa que penteia o mar; o sol envidraçado de inverno, vento que balança as árvores e que não se ouve. A compreensão da necessidade nos coloca a um passo além de nós mesmos, de maneira que nos tornamos uma segunda natureza e nos olhamos como uma partida, cujo destino é certo – uma flecha no tempo, mirando a origem. Esta é a essência da questão que me coloco e que a minha conformação obriga. Entre as formas possíveis e úteis de minha existência e o ser que sou existe uma parede, que não posso transpor, tanto quanto não quero fazê-lo. Sigo assim transparente e invisível, como quem perambulasse por um universo paralelo. Somos, então, contíguos sem sermos contemporâneos e aquilo que de mim se pode ver é apenas uma redução espacial, cujo vetor no tempo se tornou refratário e rebelde. Recuso, nesta divergência que sou, tudo aquilo que se pretende inaudito e novo, mas cujas carnes e entranhas já degradaram e apodreceram ainda no nascedouro; renego os requerimentos de um 44


conhecimento que se requer original e inovador, e faz disso a condição de entrada naquilo que está institucionalizado e firme: em suas certezas o vazio se reconhece no abraço caloroso do poder e no ufanismo daqueles que colonizam todos os quadrantes da existência, com sua cultura de morte e ossos. Não compactuo com a hipocrisia e a vilania que se quer afirmar e que prega, de conformidade com suas renúncias, que este é um mundo possível, pois eu o vejo como escombros e ruínas. Repito, reproduzo e reverbero as feridas do tempo, suas chagas; tudo aquilo que se deixou para trás, mas que ainda é um peso de cadáveres, caixões e mausoléus sobre os ombros da existência; mantenho íntegras as cores cinza, de todos aqueles infinitos dias em que acedemos à vida em seus requerimentos de decisões pragmáticas. Nisto eu sou maldito e tomo, portanto, resolutamente a forma que me corresponde, assim como as conseqüências de um estranhamento recíproco. Este livro, portanto, naquilo que afirma, é igualmente uma recusa; um desejo de manter-se 45


improdutivo, mas operante. Nisto, contudo, não há mágoa ou rancor; não há ressentimento, apenas a tranquilidade do que se abandonou à sua própria inclinação. Na conformidade comigo mesmo, poupo ao mundo o acréscimo do meu ódio. Pacificado, portanto, ouço ainda soar a música que acompanha a pantomima: como haveríamos de ser muito mais do que este picadeiro; porque deveríamos estar além de nossas formas diretamente cômicas e burlescas? Não me excluo em absoluto da função; muito ao contrário, o maldito em mim se expressa mais propriamente por tomar como meu o papel do palhaço, requerendo do mundo não as potências do existente, mas as virtualidades de suas promessas. Oito e Meio (Federico Fellini, 1963) No fim do filme o protagonista compreende a razão de ser de sua impotência criativa, da incapacidade de organizar e engendrar o enredo. A esterilidade aparente, portanto, o leva a uma outra natureza de compreensão não apenas do filme, mas da vida como um todo. A figura da pantomima, a dança em círculo, o congraçamento, 46


a reconciliação do diverso no todo: em seu esgotamento criativo estava contida uma surpresa e ela tomou a forma de um lampejo, um pequeno instante cuja intensidade realizava, para ele, a totalidade do tempo. Este flash é a necessidade como realização, reconciliação do externo e do interno; da existência e da história. Estes flashes se assemelham à morte e são, em certa medida, equivalentes a ela como experiência, na justa medida em que abrem a porta de novos mundos, instituindo o sujeito da experiência como novidade. O tempo da revolução se assemelha a esta situação, pois ocorre em primeiro lugar uma contenção, um bloqueio da experiência, uma concentração, que se resolve no flash e no lampejo, como compreensão e articulação completamente novas da realidade. A revolução é sequiosa de imagens porque está obrigada a figurar o real como aquilo que é ainda inexistente. Nisso, tudo o que é velho é arrancado de seu contexto e firma um pacto com o inexistente, para representá-lo em seu vir a ser.

47


Figura 7- Oito e Meio (Federico Fellini, 1963) http://br.youtube.com/watch?v=mzSh3Ijrc6U

“Comparados com a história da vida orgânica na Terra”, diz um biólogo contemporâneo, “os míseros 50 000 anos do Homo sapiens representam algo como dois segundos ao fim de um dia de 24 horas. Por essa escala, toda a história da humanidade civilizada preencheria um quinto do último segundo da última hora.” O “agora”, que como modelo do messiânico abrevia num resumo 48


incomensurável a história de toda a humanidade, coincide rigorosamente com o lugar ocupado no universo pela história humana. (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Ensaio obtido em Walter Benjamin -– Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. Sítio Antivalor) A cidade A defesa da ciência burguesa – com o que espera obliterar sua natureza mítica – é a eficiência, e a isso não se pode objetar: ela é concebida para subsumir e fazer trabalhar. Nisso, contudo, recusa a realidade da coisa, tanto quanto estabelece sua verdade e efetividade. Aquilo que conhecemos através da ciência é também uma redução unilateral, o precário traduzido nos termos da necessidade; a certeza do domínio, fundamentada na crença inabalável na mecânica 49


newtoniana e na causalidade. Deste modo, tudo que cabe na linha do tempo; que pode adquirir um caráter diretamente evolutivo é considerado igualmente racional e lógico; ao passo que aos “acidentes” e às descontinuidades, às revoluções, se associa o atributo do erro, no sentido propriamente estatístico do termo - o qual remanesce, contudo, um resto irracional, como preço do império da razão. A ciência, tanto quanto a religião, neste aspecto particular, é uma antropomorfização e apascentamento; tentativa de imputar ao mundo um sentido, às expensas da própria realidade. (...) Stahl sees, in the freedom of roofing structures a freedom to which modern architects in Paris likewise adhere “a fantastic and thoroughly Ghotic element”. Fritz Stahl, Paris (Berlin 1929), pp. 79-80. apud (BENJAMIN, 1999, p. 148) 50


Acresce, ainda, quando se é efetivamente consequente, que toda direção, vetor, recorte ou organização do real e no real são escolhas arbitrárias, injustificáveis em seus próprios termos, uma vez que um sentido ou intervenção determinados requerem como condição o que lhes antecede. Mas esta experiência anterior jamais é primária, o que exige uma regressão infinita, para legitimar o primeiro passo - demanda-se portanto a totalidade e a história, no exato momento em que elas são negadas. O sentido, portanto, é sempre um lance de dados e um alinhamento precário, contra o qual o mundo permanentemente se revolta. O mundo tende ao caos, de que recolhemos sentidos segundo extrações irremediavelmente arbitrárias – algo que se percebe tão logo assumamos, por exemplo, o tempo geológico como horizonte da experiência, ou as formas naturais que se desenvolvem segundo regras não lineares. Guardemo-nos! - Guardemo-nos de pensar que o mundo é um ser vivo. Para onde ele iria expandir-se? Sabemos 51


aproximadamente o que é orgânico; e o que há de indizivelmente derivado, tardio, raro, acidental, que percebemos somente na crosta da terra, deveríamos reinterpretá-lo como algo essencial, universal, eterno, como fazem os que chamam o universo de organismo? Isso me repugna. Guardemo-nos de crer também que o universo é uma máquina; certamente não foi construída com um objetivo, e usando a palavra “máquina” lhe conferimos demasiada honra. Guardemo-nos de pressupor absolutamente e em toda parte uma coisa tão bem realizada como os movimentos cíclicos dos nossos astros vizinhos; um olhar sobre a Via Láctea já nos leva a perguntar se lá não existem movimentos bem mais rudimentares e contraditórios, assim como astros de trajetória sempre retilínea e outras coisas semelhantes. A ordem astral em que vivemos é uma exceção; essa ordem e a considerável duração por ela determinada tornam 52


possível a exceção entre as exceções: a formação do elemento orgânico. O caráter geral do mundo, no entanto, é o caos por toda eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos. Julgados a partir de nossa razão, os lances infelizes são a regra geral, as exceções não são o objetivo secreto e todo aparelho repete sempre a sua toada, que não pode ser chamada de melodia - e afinal, mesmo a expressão “lance infeliz” já é uma antropomorfização que implica uma censura. (...) (NIETZSCHE, 2005, p. 136 – grifos meus) O sentido, portanto, é ao mesmo tempo uma descrição de regularidades e tensão para com a coisa, que transcende toda teleologia e nossas pretensões antropomórficas. A incompletude necessária da compreensão resta insuperável e é, portanto, como um reclamo da coisa; uma 53


demanda pela integridade e inteireza; força tectônica que busca o caminho para fora e de volta e que requer, por consequência, redenção – e não há descanso nessa luta e na resistência que opõe. O reclamo da coisa é um lugar; o restabelecimento ou, do ponto de vista da história humana, a instituição de uma posição significativa, em que sua realidade possa enunciar-se não como aquilo que já morreu, mas como potência total. A verdade do objeto é um sistema de coordenadas, por meio do qual, ele se reconcilia consigo mesmo, na medida em que se reintegra à totalidade e à história como fluxo, o que pressupõe a superação de um alinhamento, de uma estrutura semântica, em que estas coordenadas já estejam dadas de antemão. Que o pensamento se organize segundo uma metáfora espacial, que excede a linha, ou seja, que se apresente segundo o plano, o registro cartográfico, altera de maneira significativa sua qualidade, especialmente porque uma mesma constelação4 contém infinitos caminhos possíveis; área e regiões, nós e entroncamentos. Este plano, contudo, é atravessado ainda por um eixo, que é o tempo, de tal modo que, ao fim, o pensamento 54


converte-se em uma grandeza tetradimensional, com textura, volume, densidade, profundidade. A topografia da cidade, de certo modo, é uma figuração deste caráter arquitetural do pensamento. A existência de afinidades entre a topografia da grande cidade e as estruturas mentais de seus habitantes era uma concepção cara a Benjamim "Desde há muitos anos, estou brincando com a idéia de organizar o espaço da vida (bios) graficamente, na forma de um mapa. Primeiro, pensei num mapa Pharus [...]". Aqui está ele imaginando um mapa da cidade equivalente à cartografia de sua vida afetiva. Esse mapa mnemônico de Berlim era estritamente pessoal, não destinado à publicação. Do ponto de vista formal, assemelha-se a um esboço de soneto, na tradição dos tableaux urbanos. Mas, sobretudo, esse Pharusplan de 1932 é um texto fundador, na medida em que instaura um código duplo, 55


simultaneamente pictográfico e literário. Com isso, fornece uma chave privilegiada para o deciframento do outro mapa de cidade, constituído pelas siglas do Modelo das passagens, das quais é o modelo rudimentar e o único proto-texto.

Figura 8 - Broadway Boogie-Woogie (Piet Mondrian, 1942-43)

*** O sistema inscreve-se

benjaminiano das siglas na tradição da arte 56


cartográfica e do gênero dos mapas de cidades. Ao mesmo tempo mimética e não-mimética, simples e complexa, essa forma de organização corresponde à necessidade de uma visão de conjunto e de uma orientação numa obra difícil, fragmentária e labiríntica. É uma iniciação ao espaço simultâneo e polifônico da metrópole moderna. Os diferentes planos que se sobrepõem neste mapa de Paris representam o tecido urbano em seus diversos níveis: redes subterrâneas e ctônicas (metrô, catacumbas), o traçado das ruas e praças na superfície, com seus cruzamentos, sinais, anúncios luminosos, e, acima, contra fundo escuro, a escrita do universo. Se reuníssemos todas as 30 siglas numa única página, não linearmente, mas segundo sua sintaxe espacial, obteríamos "a partir desses pontos luminosos, uma figura como uma constelação". (BOLLE, Willi. As siglas em cores no Trabalho das passagens, de W. Benjamin. Texto obtido no sítio Antivalor) 57


O silêncio como fundamento da linguagem É na linguagem que a coisa demonstra-se como existente e seu tornar-se presente exige o uso de toda a extensão da língua. A cidade, por exemplo, tem uma estrutura matricial que é ao mesmo tempo de natureza labiríntica, ou seja, sua conformação espacial faz a junção de qualidades matemáticas e referências míticas. Ambos os traços devem estar presentes como elementos do discurso, como representação gráfica, pois a soma destas qualidades, neste caso específico, nos revela uma natureza distinta e peculiar, concretamente histórica: a cidade como ambivalência; lugar da técnica e da tecnologia, mas igualmente do terror noturno, do pânico, da agarofobia. Sua realidade é este duplo tenso e é assim que ela se representa e apresenta. A apropriação da coisa, para ser plena, precisa conferir a ela, por outro lado, na própria mente que pensa, um espaço “orbital” próprio; uma porção de incerteza e abertura que lhe permita expressar-se para além do significado imediato que lhe atribuímos – o que lhe faculta existir mesmo 58


em oposição àquele que pensa. Quando nos aproximamos da coisa, se tencionamos algo que vá para além do domínio, ou seja, uma relação de libertação recíproca, nós a enunciamos não segundo a rigidez semântica, na qual a coisa e sua expressão mental relacionam-se como aquilo que é idêntico, mas a introduzimos como imagem, como alegoria5; como possibilidade e divergência. (...) A relação entre símbolo e alegoria pode ser fixada com a precisão de uma fórmula remetendo-a para a decisiva categoria do tempo (...). Enquanto no símbolo, com a transfiguração da decadência, o rosto transfigurado da natureza se revela fugazmente na redenção, na alegoria o observador tem diante de si a fácies hippocratica da história como paisagem primordial petrificada. A história, com tudo aquilo que desde o início tem em si de extemporâneo, de sofrimento e de malogro, ganha expressão na imagem de um rosto - melhor, de uma caveira. E, se é 59


verdade que a esta falta toda a liberdade “simbólica” da expressão, toda a harmonia clássica, tudo que é humano apesar disso, nessa figura extrema da dependência da natureza exprime-se de forma significativa, e sob a forma do enigma, não apenas a natureza da existência humana em geral, mas também da historicidade biográfica do indivíduo. Está aqui o cerne da contemplação do tipo alegórico, da exposição barroca e mundana da história como via crucis do mundo: significativa, ela é-o apenas nas estações de sua decadência. Quanto maior a significação, maior a sujeição à morte, porque é a morte que cava mais profundamente a tortuosa linha de demarcação entre a physis e a significação. (BENJAMIN, 2004, p. 180) Esta operação linguística não é absolutamente fortuita, tanto quanto não é aquela que elege o fragmento como elemento discursivo essencial: por meio da alegoria 6 e do fragmento; no efeito 60


ambivalente que proporcionam, o livro resiste, de dentro, à sua canonização; materializa a estranheza e alteridade não como propriedade do sujeito que escreve, mas como manifesto vivo daquilo que é representado e figurado; que se faz presente. O livro deixa de ser, portanto, mimético e só se enuncia à medida que se esconde; se codifica não para significar, mas para resistir. Mantendo-se como estrutura aberta e como constelação de partículas reúne não o sentido, mas suas infinitas possibilidades. Aquilo, contudo, que produz um sentido, que gera um alinhamento é o choque e o atrito, uma explosão e um flash, que tendo existido já não é mais; tendo ocorrido, colocou-se para além da história, porque imergiu nela: o descontínuo e o discreto; o acidente, a revolução - origem. (...) “Origem” não designa o processo de vir a ser de algo que nasceu, mas antes aquilo que emerge do processo de devir e de desaparecer. A origem insere-se no fluxo do devir como um redemoinho que arrasta no seu movimento o material 61


produzido no processo de gênese. O que é próprio da origem nunca se dá a ver no plano do factual, cru e manifesto. O seu ritmo só se revela a um ponto de vista duplo, que o reconhece, por um lado como restauração e reconstituição, e por outro lado como algo incompleto e inacabado. Em todo fenômeno originário tem lugar a determinação da figura através da qual uma ideia permanentemente se confronta com o mundo histórico, até atingir a completude na totalidade da sua história. A origem, portanto, não se destaca dos dados factuais, mas tem a ver com sua pré e pós história. Na dialética inerente à origem encontra a observação filosófica o registro de suas linhas-mestras. Nessa dialética, e em tudo que é essencial, a unicidade e a repetição surgem condicionando-se mutuamente. A categoria da origem não é, assim, como quer Cohen, puramente lógica, mas histórica. (BENJAMIN, 2004, p. 32) 62


Fazer crítica da ciência, por conseguinte, exige que se reconstituam as relações significativas, não conforme elas emergem da causalidade e da linearidade (os vértices), mas de conformidade com uma memória instituída como volume, pois se trata não apenas de explicitar um sistema complexo de relações e posições, mas este sistema em movimento: história da unidade, como reminiscência da explosão. O movimento de ir e vir por entre essas temporalidades constrói um texto aberto que demanda a construção de uma completude e, ao mesmo tempo, aponta para sua impossibilidade; essa dinâmica traz à tona os diversos presentes da obra por meio do presente do historiador/crítico/artista, através de uma leitura que opera por anacronismos, uma vez que concebe a experiência do tempo como um espaço repleto de "agoras". Nesse sentido, o que é inexorável é a mudança acarretada pelo devir do presente. (NASCIMENTO, Roberta 63


Andrade do, Charles Baudelaire e a arte da memória) *** A teoria da história de Benjamin é uma teoria da memória. "Benjamin reafirmou a força do trabalho da memória: que a um só tempo destrói os nexos (na medida em que trabalha a partir de um conceito forte de presente) e (re)inscreve o passado no presente". Para ele, a história está colocada em termos de origem, e a origem em termos de novidade. Isso porque a origem se constitui como uma dinâmica presente em cada objeto histórico; seu movimento é duplamente articulado: de um lado, é restauração, reconstituição (do que foi destruído); de outro, algo aberto, inacabado; ela é objeto dialético, representa um salto para fora da sucessão cronológica, quebrando, pois, a linha do tempo, obrigando, a cada vez, a reorganizar a memória. (NASCIMENTO, 64


Roberta Andrade do, Charles Baudelaire e a arte da memória) *** Tomando como ponto de partida as investigações freudianas e, sobretudo, o tema do recalcamento, Benjamin quer estabelecer claramente a distinção entre o que é da ordem da memória (a memória inconsciente) e a estrutura que se encontra na base do procedimento alegórico e que, em parte, a explica: a rememoração [Eingedenken]. Essa distinção adquire uma importância de relevo, uma vez que é à sua luz que nos é permitido compreender o modo como se constitui a alegoria, quer em Baudelaire ou em Proust. Rememorar a experiência vivida deve ser entendida, assim, como o gesto aniquilador, que leva a cabo essa desintegração necessária da unidade imediata da organicidade das coisas, fazendo estilhaçar a sua falsa aparência (o Schein), mas esse gesto encerra em si uma 65


pretensão redentora, o estabelecimento de uma (re)criação ou (re)construção que obrigue as coisas a significar. (NASCIMENTO, Roberta Andrade do, Charles Baudelaire e a arte da memória) Não há, pois, resto, fator a desprezar: para ser antiburguesa a ciência deve ser uma recusa de um sistema implícito de prioridades e valores - cujas escolhas arbitrárias são enunciadas como necessidades - para eleger como valor a humanização da natureza e a naturalização do homem. A ciência, caso pretenda ser libertária, deve capturar a necessidade como redenção recíproca entre homem e natureza, redenção esta que só poder ocorrer por meio do desenvolvimento desta relação necessária, uma vez que posto o homem, a natureza esta igualmente enunciada. Na luta contra o mito, o passado e a memória são convocados não para atuarem (apenas) em nome próprio, mas para combaterem o mito no tempo que lhe é próprio, ou seja, aquele que funde a experiência temporal, instituindo a 66


intemporalidade como eternidade. A luta que se trava não ocorre no campo da razão e do racional, mas naquele que o antecede, ou seja, da própria estrutura da linguagem, do inconsciente e, portanto, da forma. Se, de outro lado, o filosofar se desenvolve e se constitui na forma, por meio da linguagem através do ritmo, da plasticidade e musicalidade da exposição -, há um lugar reservado ao silêncio nesta edificação, como centro inacessível da própria língua; ausência que esculpe a estrutura formal, lugar a que se deve retornar recorrentemente, para que se possa banhar no indizível, origem ígnea de toda expressão. Um rápido comentário pode ajudar a entender melhor como Benjamin vai opor esse conceito de "exposição" ao de "conhecimento" na filosofia. A forma filosófica do tratado que ele elege como paradigmática (Adorno dirá a forma do ensaio) da exposição filosófica tem um método, sim. Mas esse método consiste, num belo oxímoro, na renúncia ao 67


caminho seguro e bem traçado (a palavra alemã Umweg como que desvia a palavra grega methodos/com caminho, Weg). Dupla renúncia: ao ideal do caminho reto e direto em proveito dos desvios, da errância; e renúncia também ao "curso ininterrupto da intenção", isto é, renúncia à obediência aos mandamentos da vontade subjetiva do autor. Em proveito de quê? De um recomeçar e de um retomar fôlego incessantes em redor da Sache selbst, da coisa mesma (to on ontôs), centro ordenador e simultaneamente inacessível do pensar e do dizer. A enunciação filosófica ordenase em redor desse centro, presença indizível que provoca e impulsiona a linguagem, justamente porque sempre lhe escapa. Essa figura de ausência atuante lembra, naturalmente, os meandros da teologia negativa; mas ela também pode ser pensada, de maneira profana, como o centro indizível de fundamentação da própria linguagem, uma espécie de 68


imanência radical que se furta à expressão. (GAGNEBIN, Jeanne-Marie Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin ou verdade e beleza) Das Passagen-Werk (...) Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre assassinos? O mais forte e o mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais - quem nos limpará desse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos que inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato maior - e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda história até então. (...) (NIETZSCHE, 1995, p. 148) 69


Figura 9 - O processo (Orson Wells, 1962) http://br.youtube.com/watch?v=SXA7RtM_GFY

Uma nova ciência deve renunciar à verdade como elemento extra-cultural, pois naquela pureza canônica ela não é mais que instrumento para a dominação e para submissão ao mito. É o terror desse nada, dessa ausência de uma referência absoluta que queremos evitar, contudo, ao aderirmos ingenuamente à ciência - no que agimos da mesma maneira inconfessa e recorrente com 70


que retornamos à religião e suas manifestações esotéricas. Com a ciência queremos não apenas compreender o real; queremos domesticá-lo e reduzi-lo; esgotá-lo em possibilidades, de tal maneira que ao fim haja uma resposta para nossa ânsia de sentido. Queremos, portanto, de fora, determinantes que preencham o imenso vazio de cada vida, e de todas elas. Que sentido pode haver em viver um mundo que não tenha parâmetros absolutos; referências rígidas para o certo e o errado; que ofereça respostas, cuja validade dependam não apenas da situação estática dos objetos, mas do inteiro conjunto de coordenadas espaço-temporais em um momento determinado? Esta é uma situação verdadeiramente terrível, mas são os termos recorrentes que se colocam para a emancipação humana. São, igualmente, as questões que se apresentam quando se trata da superação da préhistória, do tempo mítico, para o surgimento daquele que será propriamente humano, e que ainda não se inaugurou. Estas são, portanto, as metas da ciência, quando despojada de seu 71


enamoramento com o mito: instituir a história, humanizar a natureza, naturalizar o homem. Elas só serão possíveis, contudo, se compreendermos em definitivo que o compromisso da ciência não é aquele da fixação da verdade, como discurso canônico, ou seja, o da linearidade, da verticalidade; da estabilização semântica, em uma totalidade fechada e inamovível. A verdade existe na medida em que representa a si mesma, por meio da forma:

Figura 10 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) http://br.youtube.com/watch?v=YzZI9bQ0cxA

72


(...) O método, que para o conhecimento é um caminho para chegar ao objeto de apropriação - ainda que pela sua produção na consciência -, é para a verdade representação de si mesma, e por isso é algo que é dado juntamente com ela, como forma. Essa forma não é inerente a uma conexão estrutural na consciência, como faz a metodologia do conhecimento, mas a um ser. Uma das intenções mais profundas da filosofia nos seus começos - a doutrina platônica das idéias - será sempre do postulado segundo o qual o objeto do conhecimento não coincide com a verdade. O conhecimento é questionável, a verdade não. O conhecimento dirige-se ao particular, mas não, de forma imediata, à sua unidade. A unidade do conhecimento, a existir, seria uma conexão estrutural apenas mediatizada, nomeadamente por via de conhecimentos isolados e, de certo modo, da sua 73


compensação recíproca, enquanto que na essência da verdade a unidade é uma determinação absolutamente imediata e direta. (...). (BENJAMIN, 2004, p. 15-16)

Figura 11 - O processo (Orson Wells, 1962) http://br.youtube.com/watch?v=SXA7RtM_GFY

Se a estratégia da ciência conforme a conhecemos não nos convém; se ela é implicitamente um programa de domínio e 74


sujeição; violência do objeto, como meio para violência contra o homem, como se deve proceder em uma abordagem crítica, negativa? Em primeiro lugar, não interessa de onde se parte; não há objeto mais ou menos nobre, mais ou menos digno de atenção. A redenção de cada minúscula partícula, sua reabilitação efetiva, gera luz suficiente para iluminar não apenas a si mesma, mas um completo quadrante do real, como se dá com os fogos de artifício detonados em uma noite escura. É preciso, pois, a contrario senso daquilo que nos indica o cânone, encantar o objeto, iluminá-lo de todos os lados, saturá-lo de significações e perspectivas, de tal modo que, por cumulação energética, ele crie de si o campo que articula o real como constelação: a verdade como gratuidade7 e acréscimo, liberdade, e não como extração a ferro e violência. Luta-se, segundo esta tópica, ao lado da coisa para que ela se revele não naquilo que é para-si, mas como o outro do homem; ambos buscando redenção. Nessa tópica o homem jamais atinge a verdade, mas acolhe o objeto em sua ânsia de representação e redenção; 75


em sua luta pelo lugar preciso na compreensão; em sua necessidade inflexível de fazer-se presente.

Figura 12 - Les Contes de Perrault, dessins par Gustave Doré. Paris: J. Hetzel, 1867.

"If you were to open the door, I should be very angry." 76


(...) O objeto de conhecimento determinado pela intencionalidade do conceito não é a verdade. A verdade é um ser inintencional, formado por ideias. O procedimento que lhe será adequado não será, assim, de ordem intencional cognitiva, mas passa, sim, pela imersão e pelo desaparecimento nela. A verdade é a morte da intenção. (BENJAMIN, 2004, p. 22) *** O que jaz em ruínas, o fragmento altamente significativo, a ruína: é esta a mais nobre matéria da criação barroca. O que é comum às obras desse período é acumular incessantemente fragmentos, sem um objetivo preciso, e, na expectativa de um milagre, tomar os estereótipos por uma potenciação de criatividade. Os literatos do Barroco devem ter entendido assim, como um milagre, a obra de arte. E se esta lhes acenava, por outro lado, como resultado calculável de uma acumulação, 77


as duas perspectivas são tão conciliáveis como, na consciência de uma alquimista, a “obra” prodigiosa com as sutis receitas da teoria. A experimentação dos poetas barrocos é comparável às práticas dos adeptos. O que a Antiguidade lhes legou são os elementos com os quais, um a um, amassam a nova totalidade. Melhor: a constroem. Pois a visão acabada desse “novo” era a ruína. O que essa técnica, que em termos de pormenor se orientava ostensivamente pelas coisas concretas, pelas flores de retórica, pelas regras, procurava era o domínio exuberante dos elementos antigos numa construção que, sem conseguir articulá-los num todo, fosse ainda assim, mesmo na destruição, superior à harmonia das antigas. (BENJAMIN, 2004, p. 193-194)

78


Figura 13 - Les Contes de Perrault, dessins par Gustave Doré. Paris: J. Hetzel, 1867.

They plunged their swords through his body." Benjamin, talvez mais do que qualquer outro filósofo contemporâneo, compreendeu os requerimentos de um novo filosofar, que não fosse violência do objeto e, em decorrência, hostilização do homem. Não é um acidente, portanto, que tenha eleito o fragmento e as representações alegóricas como estratégia metodológica; que se preocupasse com a técnica da montagem como abordagem e com a citação como estrutura discursiva privilegiada, que se ocupasse do mundo 79


como fisiognomia; que revelasse os escombros do passado como permanência no presente. Obviamente não esperava que o real e a coisa falassem por si mesmos, mas, por este meio, procurava saturar o real; oferecer uma infinitude de elementos significativos, de tal modo que, pela miríade semântica se produzisse o acidente significativo que instituísse o sentido como gratuidade; como paga da abundância. O alegorista extrai um elemento da totalidade do contexto vital, isolando-o, privando-o de sua função. A alegoria é, portanto, essencialmente fragmento [...] O alegorista junta os fragmentos isolados de realidade e assim cria o significado. Este significado é construído, não deriva do contexto original dos fragmentos. (Benjamin, citado em Burguer, Theory of the avant-guarde, apud Buck-Morss, 2002, p. 271) Essa estratégia, em que pese ser compreensível enquanto enunciado discursivo, funda-se em uma estrutura lógica completamente 80


distinta da abordagem científica tradicional. Está em questão, em especial, o valor do acidente e do incidente, a compreensão do papel do aleatório e do não intencional, para fins de construção do sentido e do movimento; o choque como elemento ígneo, o estranhamento e alteridade, o descentramento como condições para produzir relações significativas; o significado que se insurge como um lampejo e um raio; um flash ou o eco de uma reminiscência, cuja origem perdeu-se no tempo; o passado como aquilo que é solidário com o presente e o relança no redemoinho da história, permitindo ressignificá-la e libertá-la de suas formas fósseis e estáticas: Não se deveria falar de acontecimentos que nos atingem na forma de um eco, cuja ressonância parece ter sido emitida em um momento qualquer na escuridão da vida passada? Além disso, acontece que o choque com que um instante penetra em nossa consciência como algo já vivido, nos atinge, o mais das vezes, na forma de um som [...]. Estranho que ainda não se tenha 81


buscado o sósia deste êxtase; o choque com que uma palavra nos deixa perplexos tal qual uma luva esquecida em nosso quarto. Do mesmo modo que esse achado nos faz conjecturar sobre a desconhecida que lá esteve, existem palavras ou silêncios que nos fazem pensar na estranha invisível, ou seja, no futuro que se esqueceu junto a nós. (BENJAMIN, Walter. "Infância Berlinense". Obras Escolhidas, v. 3) *** Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento do perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para 82


ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (BENJAMIN, 1994, p. 224-5) *** Considero falso pretender que “o espírito discerniu as relações” das duas realidades em presença. Para começar, nada é discernido conscientemente. É da aproximação, por assim dizer, fortuita dos dois termos que fulgiu uma luz especial, a luz da imagem, à qual somos infinitamente sensíveis. O valor da 83


imagem depende da beleza da centelha obtida; é, por conseguinte, função da diferença de potencial entre os dois condutores. Se esta diferença mal existe, como na comparação, a centelha não se produz. Ora, não está, a meu ver em poder do homem combinar a aproximação de duas realidades tão distantes. O princípio da associação de ideias, tal como o concebemos, opõe-se a isso. Ou então seria preciso voltar a uma arte elíptica, condenada por Reverdy, como também por mim. É forçoso, portanto, admitir que os dois termos da imagem não são deduzidos um do outro pelo espírito em vista da centelha a produzir, que eles são os produtos simultâneos da atividade que denomino surrealista, limitando-se a razão a constatar e a apreciar o fenômeno luminoso.

84


Figura 14 - Um homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1929) http://br.youtube.com/watch?v=IvDEPq2rBaQ

E assim como a centelha aumenta quando produzida através de gazes rarefeitos, a atmosfera surrealista criada pela escrita mecânica, que fiz questão de colocar ao alcance de todos, presta-se especialmente à produção das mais belas imagens. Podese dizer até que as imagens aparecem nesta corrida vertiginosa como os guiões únicos do espírito. Aos poucos o espírito se convence da suprema realidade das imagens. Limitando-se no começo a lhes prestar sugestão, logo ele percebe que 85


lisonjeiam sua razão, aumentam, outrossim, seu conhecimento. Ele toma conhecimento dos espaços ilimitados onde se manifestam seus desejos, onde se reduzem sem cessar o pró e o contra, onde sua obscuridade não o atraiçoa. Ele vai, conduzido por estas imagens que o seduzem, que apenas lhe dão tempo para soprar os dedos queimados. É a mais bela das noites, a noite dos fulgores; perto dela, o dia é a noite. (BRETON, André. Manifesto do Surrealismo) Nas abordagens científicas mais tradicionais, incluindo-se os monumentais edifícios filosóficos, como o sistema hegeliano e marxiano, o sentido e o movimento se produzem a partir de elementos significativos, que se incorporam à estrutura da exposição como depuração do real, em sua manifestação empírica e fenomênica. Cada elemento significativo é resultado de uma lapidação de sua forma bruta, por procedimentos formais e abstratos, produzindo-se então, por conseguinte, um real de outra ordem, igualmente 86


formal e abstrato, mas com poder de especulação e predição, posto que fundamentado no real em sua materialidade original. Por meio dessa estratégia seria possível antecipar os movimentos do real como aquilo que é concreto, ou seja, inferir e antecipar os lances do jogador de dados. A ciência como a conhecemos fundamenta-se, em grande parte, nessa expectativa. Ora, a estratégia de Benjamin é completamente distinta e pressupõe que o sentido só se apresenta quanto todas as cartas se oferecem ao jogo, derivando, portanto, do sistema completo das posições, em um momento determinado. A tarefa, portanto, do cientista e o do filósofo não estaria em inquirir o real, escrutinálo para inferir relações significativas, mas, muito ao contrário, consistiria na disposição de todas e infinitas peças no tabuleiro, de tal modo que um lance, e qualquer lance, desse largada não à organização do real abstratamente concebido, mas propiciasse sua organização como constelação, que contém não o sentido como finalidade, mas as posições prováveis - compatíveis e coerentes - de 87


cada fragmento, gerando relações significativas e efetivas, mas instáveis, transitórias e históricas. (...) A intenção de Benjamin era desistir de toda interpretação manifesta e deixar o sentido aflorar tão somente pelo choque da montagem do material. A filosofia deveria não só subsumir o realismo, mas ela mesma deveria tornar-se surrealista. Ele assumiu literalmente uma frase da Einbahnstrasse, segundo a qual as citações em seus trabalhos seriam como assaltantes de estrada, que atacam e roubam as convicções do leitor. Para coroar o seu anti-subjetivismo, a sua principal obra deveria consistir somente em citações. Só raramente se encontram anotadas interpretações que não tenham ingressado no “Baudelaire” e nas “Teses sobre a filosofia da história”, e não há cânone que ensine como poderia ser realizado algo como uma filosofia despida de argumento, nem mesmo como as citações poderiam ser ordenadas e de um 88


modo até certo ponto significativo. A filosofia fragmentária permaneceu fragmento, vítima talvez de um método sobre o qual não está sequer decidido se é incluível ou não no meio constituído do pensamento. (ADORNO, 1994, p. 198) Não é possível enunciar um conteúdo em tensão com a forma, posto que esta não pode acolher aquilo que lhe é estranho e hostil. A forma não é algo exterior, mas o exato registro gráfico daquilo que o olho que vê: um mundo orientado pela linearidade é efetivamente abstrato, implicando, ainda, na renúncia de tudo que exceda o encadeamento. É preciso, portanto buscar novas formas de abordagem; materializar aquilo que é propriamente filosófico segundo representações gráficas específicas, de tal modo que o conceito corresponda à coisa não apenas através da descrição exaustiva - o esgotamento discursivo de sua existência -, mas por meio de sua representação concreta e plástica - imagem.

89


Figura 15 - Um homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1929) http://br.youtube.com/watch?v=AeKKeiXTBos

Não é acidental, portanto, que o método em Benjamin tenha por fundamento uma miríade de fragmentos e citações. Nessa reunião do múltiplo e da multiplicidade ganha existência material não apenas a multidão, mas também a coexistência entre o exato aqui e agora, e o passado remoto; o presente e todos os ecos e ruídos que viajam no tempo, seja na condição de passado atualizado ou de prenúncio do futuro. Estes elementos, tanto guardam suas posições quanto se chocam, de tal 90


modo que não apenas se articulam, como se iluminam reciprocamente - e em larga medida porque declinam da história como aquilo que foi fossilizado. Tudo que é citado, e que, portanto, é atualizado para a história, reorienta o inteiro curso da vida, porque a perturba como o que é estranho. Criadora de descontinuidades, a citação introduz na leitura a questão do duplo: o "estranho", o "surpreendente", o "perturbador". Aprendemos com Freud que o sentimento do que é "perturbante" alia-se ao "perpétuo retorno do sempre igual", a uma repetição. Uma das ocasiões de temor pânico constitui-se na duplicação de si por obra de um sósia: o duplo põe aos pedaços a identidade de algo, usurpando-lhe os caracteres e o destino. O familiar e o estranho não são estados sucessivos, mas simultâneos (...) (MATOS, sítio: http://www.let.pucrio.br/catedra/revista/6Sem_20.html ) 91


Figura 16 - Metropolis (Fritz Lang, 1927) http://br.youtube.com/watch?v=jyJAbczjB6E

A estratégia metodológica desenvolvida por Benjamin, que permaneceu incompreendida mesmo para Adorno, não pode e não deve ser descartada sem mais. A rigor, para atingir os termos de suas metas, faltavam-lhe os meios, e justamente aqueles meios que prenunciou e antecipou, quando criticou a ciência e sua estrutura discursiva; o texto filosófico e científico como forma; o livro como cânone.

92


Figura 17 - Salvador Dali para Spellbound, Alfred Hitchcock

A construção da vida, no momento, está muito mais no poder de fatos que de convicções. E aliás de fatos tais, como quase nunca e em parte nenhuma se tornaram fundamento de convicções. Nestas circunstâncias, a verdadeira atividade literária não pode ter a pretensão de desenrolar-se dentro de molduras literárias – isso, pelo contrário, é expressão usual de sua infertilidade. A atuação literária significativa só pode instituir-se em rigorosa alternância de agir e escrever; tem de cultivar as formas modestas, que correspondem melhor a sua influência em comunidades ativas que 93


o pretensioso gesto universal do livro, em folhas volantes, brochuras, artigos de jornal e cartazes. Só esta linguagem de prontidão mostra-se à altura do momento. As opiniões, para o aparelho gigante da vida social, são o que é o óleo para as máquinas; mingúem se posta diante de uma turbina e a irriga com óleo de máquina. Borrifa-se um pouco em rebites e juntas ocultos, que é preciso conhecer. (BENJAMIN, 1987, p. 11) Para efetivar o projeto metodológico de Benjamin, na plenitude de suas possibilidades, se requer os recursos que somente a contemporaneidade engendrou, ou seja, a organização de toda a produção intelectual como um imenso sistema de referências indexadas; instantaneamente disponíveis e capazes de influência mútua e recíproca. Tão logo esta estrutura estivesse montada, como de fato está, o livro que restou inacabado (As Passagens de Paris) pode ser levado a seu termo e conseqüências. O livro que Benjamin perseguiu é um artefato, uma 94


máquina que produz imagens e configurações possíveis e prováveis, fotos e instantâneos de um mundo que tanto quanto existe, só emerge de suas dimensões improváveis superando a realidade e nossas formas naturais de representação do real: cinema. O projeto de Benjamin, portanto, não é uma tentativa de representar a arquitetura do real, mas o fundamento possível para uma forma historicamente nova de organização do psiquismo que pensa cientificamente. Adaptar para a história o princípio da montagem. Erguer, pois, as grandes construções a partir dos elementos mais pequenos, elaborados de modo nítido e incisivo. Descobrir na análise do pequeno elemento isolado o cristal do conhecimento total. (Benjamin APUD RIBEIRO, Antonio de Souza, 1994, p.8) Flash Á une passante La rue assourdissante autour de moi hurlait. Longue, mince, en grand deuil, douleur 95


[majestueuse, Une femme prisa, d'une main fastueuse Soulevant, balancant le feston et l'ourlet; Agile et noble, avec sa jambe de statue. Moi, je buvais, crispé comme un extravagant, Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan, La doceur qui fascine et le plaisir qui tue. Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté Dont le regard m'a fait soudainement renaître, Ne te verrai-je plus que dans l'éternité? Ailleurs, bien loin d'ici! Trop tard! Jamais [peut-être! Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!

96


Figura 18 - A mulher satânica (Josef von Sternberg , 1935) http://br.youtube.com/watch?v=lMM3WXEKd9g

A celebridade: prolegômenos da crítica de cinema É bem evidente que crítica de cinema pressupõe o conhecimento de toda sua história enquanto arte, bem como de toda evolução havida do ponto de vista estritamente técnico – compreendendo-se aqui não apenas os equipamentos, mas a própria linguagem cinematográfica. Se não for assim, ela se transforma, quando muito, em uma crítica do enredo, correndo o risco de não ser mais do que 97


uma degradação da crítica literária; uma espécie de sociologia abstrata da arte (porque se desconhece os meios materiais a partir dos quais a obra fílmica se realiza). Ainda neste terreno introdutório é necessário fazer uma remissão para lembrar que a inobservância destes rudimentos críticos é, também, uma imposição do próprio desenvolvimento estético – algo que se torna particularmente mais evidente com o processo de massificação da produção artística. O fato é que, com a emergência da obra de arte na forma de bem cultural, vendável no mercado e dele dependente para se confirmar, ou seja, com o fim do mecenato8 e do patrocínio, ocorre um afrouxamento do cânone estético e, por consequência, a quase completa subjetivação do que se poderia entender ou se entende por gosto. Este fenômeno é correlato da perda de supremacia ideológica da aristocracia e do declínio da função público estamental da arte9, que, com seu aburguesamento, toma por traço e característica definidora a “sensibilidade” burguesa 98


e suas demandas de singularidade e individuação, especialmente em suas conformações românticas. (...) Até então, a burguesia esforçara-se por adotar o idioma artístico das classes superiores; agora, porém, que se torna tão próspera e influente que pode permitir-se uma literatura própria, tenta impor sua individualidade, em oposição a essas classes superiores, e falar sua própria linguagem, a qual, ainda que por mero antagonismo ao intelectualismo da aristocracia, se converte em uma linguagem do sentimentalismo. A revolta das emoções contra a frieza do intelecto é uma parte tão essencial da ideologia das classes ambiciosas e progressistas em sua luta contra o espírito de conservadorismo e convenção quanto a rebelião do “gênio” contra as restrições impostas por regras e formas. A ascensão da moderna burguesia está ligada, como a dos ministeriales da Idade Média, ao movimento romântico; em ambos os casos, a redistribuição do 99


poder social leva à dissolução dos vínculos formais e produz a súbita exaltação da sensibilidade. (HAUSER, 1998. p, 550) Observa-se aqui, portanto, um fenômeno de personalização do gosto, cujo cânone em sentido estrito, converte-se no reconhecimento do gênio artístico. Significa dizer, portanto, que tão logo um artista consiga estabelecer um determinado padrão estético, certa configuração do gosto, ele mesmo, como expressão do gênio, passa a emprestar um conteúdo intrinsecamente artístico à sua produção. A obra, portanto, não é julgada por referência a si mesma, mas pela subjetividade do artista. Esta é a razão pela qual a crítica profissional10 é tão complexa e difícil: ele tem que desenvolver, observar e respeitar, em certo grau, este padrão variável, que é o único existente, na medida em que não há um cânone estabelecido. Do ponto de vista estritamente lógico, este é um primeiro momento de superação da sensibilidade estética regida por determinações aristocráticas, ou seja, aquele em que o cânone funde-se com a personalidade artística. Esta fusão 100


indica, contudo, uma contração: há um cânone estético, nem que seja por relação de pura negatividade com o passado e com a história da arte. Ele, contudo, não é explicitamente formulado, porque nos terrenos estritos do mundo burguês, especialmente o contemporâneo, vive-se o dogma da espontaneidade da criação artística, da liberdade absoluta e da ausência de regras. Esta contração do pensamento e do enunciado oferece a ilusão de que qualquer um poderia ser um artista, ainda que nem todos o sejam. O segundo momento lógico daquela superação traz consigo, no entanto, a própria subversão da criação estética. A produção artística é degradada de um cânone para o dogma puro e simples, a repetição infindável do mesmo, a sacralização da fórmula que permitem fixar o gosto, padronizá-lo, ao custo de alterações infinitesimais em torno do standard. A contrapartida necessária desta fixação no gênio artístico, conjugado com a rigidez do dogma, é a emergência da celebridade e de sua excentricidade; a glomourização do artista e sua celebração. 101


(...) “Outrora, os heróis representavam um modelo: a celebridade é uma tautologia... O único título de glória das celebridades é a própria celebridade, o fato de serem conhecidas... Ora, semelhante celebridade reduz-se à versão de nós próprios enaltecida pela publicidade. Ao imitá-la, procurando vestir-nos como ela, falar sua linguagem, apresentar a sua aparência, nada mais fazemos que imitar a nós mesmos... Ao copiarmos tautologias, também nós nos tornamos tautologias; candidatos a ser o que somos... procuramos modelos e contemplamos o nosso reflexo”. E quanto à televisão: “Tentamos conformar a vida do lar com a imagem das famílias felizes que a televisão nos apresenta; ora, tais famílias limitam-se a ser a síntese divertida de todas as nossas.” (BAUDRILLARD, 1975, p. 335) O propriamente novo, a mudança, consistem, portanto, na estilização deste personagem 102


privilegiado, o artista célebre, que empresta à obra absolutamente estandardizada um mínimo de transgressão e, em decorrência, da vertigem, que permanece como uma reminiscência dos processos pretéritos de produção artística. No seu conjunto, contudo, ocorre uma regressão do gosto, pois o processo que descrevemos é uma fórmula projetiva, a ossificação estética em torno de um padrão estritamente burguês de apreensão do mundo e de criação estética. Esta fórmula, contudo, é perseguida sistemática e racionalmente, sendo a própria negação da espontaneidade; o rebaixamento da alta cultura e o sacrifício e submissão forçada da cultura popular. Na concisão de um conceito: indústria cultural11. Tudo indica que o termo indústria cultural foi empregado pela primeira vez no livro Dialektik der Aufklãrung, que Horkheimer e eu publicamo sem 1947, em Amsterdã. Em nossos esboços tratava-se do problema da cultura de massa. Abandonamos essa última expressão para substituí-la por “indústria cultural”. A fim 103


de excluir de antemão a interpretação que agrada aos advogados da coisa; estes pretendem, com efeito, que se trata de algo como uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas, em suma, da forma contemporânea de arte popular. Ora, dessa arte a indústria cultural se distingue radicalmente. Ao juntar elementos de há muito coerentes, ela atribui-lhes uma nova qualidade. Em todos os seus ramos fazem-se, mais ou menos segundo um plano, produtos adaptados ao consumo das massas e que em grande medida determinam esse consumo. Os diversos ramos assemelhamse por sua estrutura, ou pelo menos ajustam-se uns aos outros. Eles somam-se quase sem lacuna para constituir um sistema. Isso, graças tanto aos meios atuais da técnica, quanto à concentração econômica e administrativa. A indústria cultural é a integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores. Ela força a união dos domínios, separados há 104


milênios, da arte superior e da arte inferior. Com prejuízo para ambos. A arte superior se vê frustrada de sua seriedade pela especulação sobre o efeito; a inferior perde, através de sua domesticação civilizadora, o elemento de natureza resistente e rude, que lhe era inerente enquanto o controle social não era total. Na medida em que nesse processo a indústria cultural inegavelmente especula sobre o estado de consciência e inconsciência de milhões de pessoas às quais ela se dirige, as massas não são, então, o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo; acessório da maquinaria. O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer, ele não é o sujeito desta indústria, mas seu objeto. O termo mass media, que se introduziu para designar a indústria cultural, desvia, desde logo, a ênfase para aquilo que lhe é inofensivo. Não se trata nem de massas em primeiro lugar, nem das técnicas de 105


comunicação como tais, mas do espírito que lhes é insuflado, a saber, a voz do seu senhor. A indústria cultural abusa da consideração com relação às massas para reiterar, firmar e reforçar a mentalidade destas, que ela toma como dada a priori e imutável. É excluído tudo pelo que essa atitude poderia ser transformada. As massas não são a medida mas a ideologia da indústria cultural, ainda que esta última não possa existir sem a elas se adaptar. (ADORNO, 1994, p. 92-93 – grifos meus) Borat: uma análise não autorizada Um dos grandes problemas provocados por Borat consiste no fato de que, em não havendo um cânone estético no antigo sentido do termo; um gosto objetivamente determinado, por referências formais ao desenvolvimento de uma dada manifestação artística – o cinema, no caso -, enfim, um padrão ao qual se referir, toda a crítica passa a ser, aparentemente, uma questão de mera opinião. Revela-se, então, seu caráter diretamente 106


tautológico e infantil: gostei porque gostei ou não gostei porque não gostei – uma decorrência lógica necessária do juízo, se um produto artístico é avaliado por referência direta às inclinações pessoais de cada qual. Dizer, portanto, gostei por que o filme vai ao limite e não respeita convenções, significa afirmar aproximadamente que, para o meu gosto, que é liberal em termos de costumes, o filme é muito bom. Ora, aquele que professa ponto de vista totalmente distinto, afirma o mesmo, somente que em sentido contrário: considero anticristãs e pornográficas as atitudes do filme e, portanto, não gosto dele. Logo, gosto porque gosto, ou desgosto por motivo idêntico. Borat é, portanto, de princípio uma troça com nossa incapacidade de estabelecer juízos e foi calculado, adicionalmente, para navegar neste território incerto da modernidade: o limite. (...) A tautologia – Sim, eu sei, a palavra não é bonita. Mas a coisa é muito feia também. A tautologia é um procedimento verbal que consiste me definir o mesmo pelo mesmo (“o teatro é o teatro”). 107


Podemos considerá-la como um desses comportamentos mágicos de que fala Sartre no seu Esboço de uma teoria das emoções: a tautologia é um refúgio, como o medo, a cólera, ou a tristeza, para que não encontra explicação; a carência acidental da linguagem identifica-se magicamente com aquilo que se decidiu ser uma resistência natural do objeto. Existe, na tautologia, um duplo assassinato: mata-se o racional porque ele nos resiste, mata-se a linguagem porque ela nos trai. A tautologia é um desmaiar propício, uma afasia salutar, uma morte, ou, se se prefere, uma comédia, a “representação” indignada dos direitos do real contra a linguagem. Mágica, ela só pode evidentemente, proteger-se por trás do argumento de autoridade: tal como os pais que, não sabendo mais o que dizer, respondem à criança que insiste em pedir explicações: “é assim porque é assim”, ou melhor ainda, “porque é e ponto final”: um ato de magia vergonhosa, que confere 108


ao movimento verbal um ponto de partida racional, mas imediatamente o abandona, e pensa já estar desobrigado para com a causalidade por ter proferido a palavra que a introduz. A tautologia testemunha uma profunda desconfiança em relação à linguagem, que se rejeita porque não se possui. Ora, toda a recusa da linguagem é uma morte. A tautologia fundamenta um mundo morto, um mundo imóvel. (BARTHES, 1989, p. 172-173) A saída que se aponta normalmente para este beco sem saída são os índices de audiência do produto, ou seja, se muita gente assiste ao filme ele deve ser bom ou, no mínimo, deve apresentar uma novidade (estética) muito interessante. Ora, a opinião pública não passa, neste sentido estrito, de infinitos “gosto porque gosto”, ou “não gosto porque não gosto”. Pode, por decorrência, emprestar pouco suporte a uma crítica verdadeiramente bem fundamentada. Além do mais, fica intacto o problema subjacente a esta grandeza etérea que é a opinião pública: ela existe 109


com anterioridade ao fato, ou ela é uma concentração em torno dele, cujo sentido final já está dado pela predição do que seria a própria opinião pública? Como se pode evitar que o prognóstico e as inferências sobre a dita opinião pública a condicionem em seu sentido e inclinação?

Figura 19 - Borat (Larry Charles, 2006) http://br.youtube.com/watch?v=X2E_44s9orY

Esta situação patética, ou seja, a incapacidade quase absoluta de se determinar se Borat é algo que valha a pena ser assistido já é, no entanto, um 110


maravilhoso prelúdio do próprio filme. Deste elemento já se pode sacar, portanto, um primeiro vetor de avaliação. Borat, mesmo que não o queira e não o pretenda, é um deboche acerca da opinião pública, esta grandiosa Deusa do Olimpo norteamericano e da totalidade da cultura ocidental. O público, portanto, enquanto se mata de rir das situações ridículas a que se vêem submetidos os indefesos cidadãos de Nova York, está, ele próprio, sob o crivo do mais absoluto deboche, pois ri sem saber se deveria fazê-lo; perde o fôlego em gargalhadas, sem saber ao certo de quem ou do que se ri. Não termina por aí. Pode-se legitimamente afirmar que Borat é deliberada e intencionalmente uma paródia do jornal televisivo e, portanto, da sociedade de informação; das CNN, Bloomberg e afins. Trafega, na forma, entre a reportagem e o documentário, no que se transforma em um índice da própria estetização do jornal, sua remissão ao espetáculo. O protagonista é o contra-repórter americano, uma espécie de inversão da realidade, pelo orifício do c... do mundo - simbolicamente o 111


Cazaquistão. Este país imaginário e sua cultura, que são no entanto uma existência efetiva, convertemse na própria subversão da cultura supostamente superior, a relativização de seus princípios absolutos; uma troça necessária. O que o ocidental considera como valor, aparece aos olhos daquela natureza humana “invertida” (Borat) mera afetação, uma exterioridade tão absurda como uma aula de etiqueta com um marciano, ou o chá das cinco com um liliputiano. A paixão de Borat pela celebridade/ícone feminino soma-se como elemento crítico da sociedade de informação, pois é uma referência imediata das motivações arbitrárias da pauta jornalística: a realidade que terminará por apresentar a seus compatriotas, quando do retorno, não é absolutamente a cultura americana, como poderia emergir de um documentário jornalístico, mas o caminho arbitrário que seguiu seu devaneio sexual. O enriquecimento cultural e o aprendizado a que se propôs é, ao fim e ao cabo, a cultura como pastiche, ou seja, a incorporação totalmente arbitrária de elementos, sem qualquer 112


vínculo como a totalidade socioeconômica em que se encontra: o celular, a TV, o ipod, etc. Trouxe da viagem, portanto, mais daquilo que já tinha: a quinquilharia que é e deve ser a cultura ocidental para os povos que estão para além dos seus limites. Do ponto de vista estilístico deve-se salientar que existe o uso farto e pleno de todas as categorias que fazem parte da estética que se propõe pós-moderna: a paródia, o pastiche, a citação (de Peter Sellers, por exemplo), o deboche escancarado. Mesmo aqui, contudo, há excesso e algumas questões: em nome do que se condenaria o tudo poder a que o filme se propõe? Em nome do que rechaçar suas remissões antissemitas, sexistas, racistas, xenófobas, homofóbicas, etc.? É politicamente correto repreender o politicamente incorreto? Quem se atreveria a fazê-lo? Além do mais, no escracho, no deboche, Borat não fez mais do que realizar o desejo mais íntimo e mais acalentado do público: não se impor qualquer limite; expor até o perímetro do grotesco. Este relativismo ético está no filme, mas nós o 113


colocamos lá e a compulsão por ir mais longe e mais além, ela nos pertence. Uma questão não autorizada é pertinente, portanto: É PARA RIR? Sim, é para matar de rir, até o ponto em que o muito rir-se leve ao choro e ao desespero, como quando se dizia, no passado que “dia de tudo, véspera de nada”. Para ter pretensão verdadeiramente estética Borat só poderia pecar se tivesse se acovardado no comedimento. Last, but not least: Borat pode ser visto como uma paródia cômica de O império dos sentidos12, cuja meta estética estava justamente na completa volatilização do sexo por meio do sexo: sua conversão em um jogo mortal de poder, em que a lógica do dominado fulmina o dominador, a partir de sua própria ânsia de domínio. Para ler jornal I O jornal como manchete, na qualidade daquilo que efetivamente vende, que se configura como mercadoria - uma alma monetária que busca redenção pragmática no dinheiro - é o evento extraordinário e bizarro; um emulador da 114


curiosidade e da morbidez do leitor. Neste sentido, o jornal é um parente da rua, do interior das casas, da vida íntima; ele é o paparazzo não apenas como editor, mas especialmente com diretor de arte, pois é a própria vida apropriada de maneira diretamente estética; a verdade para além da verdade, com pinceladas que atraem a atenção, que magnificam certos elementos do evento, segundo a lógica mesma do painel publicitário. Em certa medida a notícia é verdadeiramente este painel, e por isso ela é o amálgama da manchete e da foto ou ilustração; pisca, cintila, luta pela atenção, e tanto mais quanto mais o campo visual se encontra saturado. No jornalismo a ficção e a história se encontram fundidas senão no conteúdo, seguramente na forma que o jornal é. Mas por isso toda distinção é apagada de saída e o leitor rigorosamente não consegue conceber os limites entre aqueles campos; ao contrário, vivencia e experimenta o real como quem lê um romance, concebido para lhe suprir emoções, no pouco de tempo que tem. O processo de contínua negação 115


de sua humanidade; sua educação perpétua para indiferença; a inclinação para viver a afetividade na forma de empréstimo – emotividade adquirida, manifestação comprada, expressão lacrimosa que se representa para o outro, como remissão a uma sensibilidade efetivamente perdida – encontra no jornal a forma que lhe corresponde.

Figura 20 - Propaganda da Folha de São Paulo http://br.youtube.com/watch?v=Wr6CNeC1eRU

No jornal nada se encontra verdadeiramente separado, ao mesmo tempo que não há uma hierarquia rígida entre as matérias e cadernos. O fato, portanto, de que ao lado do crime se 116


encontre o artigo sobre os restaurantes da moda; o entretenimento amalgamado com o programa cultural, isto é parte direta não apenas do modo como ele se apropria do mundo, mas é este mundo como autorrepresentação. Cada fragmento, portanto, está equidistante do centro e o jornal enquanto forma, a primeira página, é uma espécie de caleidoscópio que se concebe para o olho, em seu giro ansioso e apressado. A primeira página no jornal é a organização do interesse e da curiosidade. No jornal como forma a realidade é um produto preparado diretamente para o consumo, segundo a inclinação do leitor; suas necessidades e especialmente as inconscientes; feira livre, mercado de variedades: representa, portanto, a própria indiferença com que as pessoas tornadas coisas, e estas mesmas coisas em ordem direta, se relacionam mutuamente e no mercado. Do mesmo modo que praticamente tudo pode encontrar uma expressão monetária, em uma sociedade em que a mercadoria se tornou forma universal do produto

117


do trabalho, no jornal tudo cobra um espaço, como forma de afirmar esta mesma indiferença ética. O jornal como totalidade, contudo, não se explica apenas pelos faits divers e pela primeira página. E o caderno de cultura, política, internacional, etc., etc., ainda que possam tomá-la de assalto, convertidos em grande acontecimento, são em suas especificidades e particularidades uma proposta acerca da cultura; sua redução a fins diretamente pragmáticos, a subsunção de tudo quanto exista ao superficialismo e ao proselitismo; uma certa cultura geral sem a qual jamais existiria um mundo propriamente burguês. Nisso o jornal é parente em primeiro grau do fascículo de filosofia, da pintura em coleções populares, dos CD´s de música clássica - que se produzem por meio de sua mutilação e redução aos fragmentos fáceis, românticos. Deste modo a cultura não é popularizada, mas, ao contrário, depurada de toda negatividade para massificação ulterior. Ela não é, portanto, uma apropriação rude do povo, mas a imposição a este mesmo povo da cultura já morta, desprovida de substância; um mote para o bate 118


papo, um polimento na aparência, uma galeria de curiosidades – uma biblioteca semovente do diletante. (...) A inovação histórica é que Girardin fixa a assinatura em 40 francos por ano, ou seja, metade da taxa usual, e planeja cobrir o prejuízo com a renda proveniente de anúncios e publicidade. No mesmo ano, Dutacq funda Lê Siècle com o mesmo programa, e o resto dos jornais parisienses seguem-lhe o exemplo. O número de assinantes cresce e atinge os 200.000 em 1846, comparados aos 70.000 de dez anos antes. Os novos empreendimentos obrigam os editores a competir entre si na melhora do conteúdo de seus jornais. Têm de oferecer aos leitores um cardápio tão saboroso e variado quanto possível, a fim de aumentar os atrativos de seus jornais, sobretudo com um olho na renda proveniente dos anúncios. Daí em diante, cada leitor encontrará em seu jornal 119


artigos de acordo com seu gosto e interesses; o jornal vai converter-se na biblioteca e enciclopédia particular do homem comum. (HAUSER, 1998, p. 740) O filme: seu caráter massivo Título

Custo Público** Cópias ** (US$ milhões)*

Shrek Terceiro (2007)

Não divulgado

-

500

Shrek 2 (2004)

75

4.660.000

450

Shrek

60

2.060.000

245

Homem-Aranha 3 (2007)

300

-

660

Homem-Aranha 2 (2004)

200

7.738.091

652

Homem-Aranha 1 (2002)

139

8.499.292

609

Piratas do Caribe 3 (2007)

200

-

600

Piratas do Caribe 2 (2004)

225

3.100.000

480

Piratas do Caribe

140

1.900.000

303

(2001)

(2003)

* Valores estimados pelo site especializado Imdb ** no Brasil, segundo as respectivas distribuidoras 120


Faturamento dos dois primeiros filmes de cada série em termos mundiais: Shrek: US$ 1,4 bilhão Piratas do Caribe: 1,653 bilhão Homem-Aranha: 1,6 bilhão (Fonte: Folha de São Paulo, 25/04/07, Ilustrada, p. E1, E8)

Em uma primeira abordagem o filme pode ser apropriado pelo pensamento como algo efêmero, cuja vida dura uns poucos meses, para logo se subtrair do domínio público e cair no esquecimento. Esta compreensão, contudo, é parcial e empiricamente infundada. O filme é concebido para durar, para ter vida longa e para, de um modo ou outro, fazer retornar o capital que nele se investiu. Desta maneira, ele já existe como fato mesmo antes de vir a público, quando ainda é um trailer sedento de sucesso. O filme nasce, portanto, como propaganda de si mesmo; como antepasto de uma produção em cartaz; como síntese, antes de se converter em sinopse. É igualmente uma estratégia de marketing: quantas cópias, em que momento lançar, por onde começar; que mídias mobilizar, com que cobertura e intensividade. Jornais, entrevistas, exposição de atores e diretor; abordar 121


o consumidor em todas as direções possíveis, desde que se respeite o orçamento. Na Paris do fim do século XIX o cartaz publicitário quase chegou a ganhar status de obra de arte; houve exposições, artigos e ensaios que falavam desta nova linguagem13. No cinema o cartaz preservou este mesmo glamour, como sinopse visual; um clima retrô, mas como quem antecipa a bilheteria. O cartaz era, e assim se mantém, uma promessa; uma tentativa de sedução: nisso Paris recorrentemente o percebeu com o mesmo ardil da prostituta, com sua agressividade e sem cerimônias; a aproximação de quem laça o cliente e o interpela ainda na calçada. O filme, na escala que atingiu como elemento da produção capitalista, requer esse mesmo ímpeto de quem aborda o cliente em seus devaneios citadinos e por isso é completamente massivo em seu esforço de divulgação, de invasão das vidas privadas, para o que mobiliza todas as forças e se desdobra tematicamente em todos os produtos possíveis: bonecos, xampus, camisetas, etc. 122


O filme de grande orçamento é um ataque total ao expectador, a instituição da necessidade insuperável de assisti-lo; sua transformação em fato da cultura, o que por si só constrange a ir ao cinema, na justa medida em que a sociabilidade está fundada não propriamente no diálogo e na troca de experiências efetivas, mas na posse compartilhada de signos de pertencimento. A superprodução tem tal natureza porque ela produz não apenas o filme, mas institui sua audiência; converte-se em índice de pertencimento como mandamento da vida social e, portanto, é obra dileta e possível apenas ao capital concentrado.

123


Figura 21 - Moulin Rouge - Cartaz Fonte: http://www.la-belle-epoque.com/

O filme: propaganda e autorreferência A crítica de cinema – que já nasceu com o meio – é um elemento interior ao próprio processo de divulgação e valorização do capital posto em movimento, pois cria a ilusão de avaliação independente; no que é diretamente a propaganda, sem o rótulo de matéria paga. Tal natureza não depende em nada de que a crítica 124


seja favorável ou desfavorável, ou seja, que a crítica seja “crítica” ou não. Na medida em que todos os olhares se lançam, por dever de ofício para uma produção, geram como decorrência aquele fenômeno de indução e atração que a grande produção requer. Justamente porque em sua especialização a crítica não pode silenciar, ela se converte necessariamente em elemento que movimenta a complexa engrenagem que vincula o filme à massa de consumidores. A força tectônica que está envolvida com um produto cultural desta natureza; o capital posto em movimento condiciona ainda toda a pauta jornalística que, sujeita à concorrência e ao ineditismo, apenas para manter as coisas como estão, ou seja, para informar no tempo recorde, acaba por gerar a simultaneidade que confirma o filme como grande evento, independentemente de sua qualidade intrínseca (desconsidera-se aqui, em nome dos bons modos, a hipótese de que talvez a própria pauta seja não mais do que matéria paga, ainda que a fatura seja liquidada de modo indireto). 125


De todo modo, a potência midiática implicada é imensa. Quando se lança um filme de bom orçamento não é incomum que absolutamente todos os jornais se alinhem em publicar matérias sobre ele. Superpõem-se, ainda, as entrevistas, nos mais distintos canais televisivos, o rádio, o caderno de programação cultural, o out door, a revista, a imprensa dedicada às celebridades - ainda que não ao cinema -, e assim por diante. Desta imensa máquina fazem parte igualmente os festivais e as mostras, até culminar no destino apoteótico do filme, que não é obviamente o grand finale da obra de “gênio”, mas a cerimônia do Oscar. Talvez por ser mais recente, eventualmente porque nasceu diretamente no âmago da cultura burguesa, nenhum filme se apresenta ao mundo sem seu Curriculum Vitae: o festival é a formalização de seus achievements, semelhante aos selos de origem controlada, o que decorre tanto do fato do dinheiro anteceder e substituir o juízo estético, gustativo, etc., quanto da ausência de cânone, de modo que a arte pode ser tudo, mas mais especialmente aquilo que os especialistas 126


afirmam de fato ser. Quando o filme chega, portanto, às salas de exibição ele já é uma existência, mas remanesce como possibilidade: o seu passado de algum modo o recomenda ou o condena, mas seu futuro ainda promete. Como ele existe necessariamente dentro de um certame competitivo, de que o festival e a premiação são, ao mesmo tempo, antecedente e futuro, todo o filme é igualmente uma incitação a outro conjunto de filmes, seus rivais pelos louros do agraciamento. Nenhum ano, portanto, é estritamente de nenhum filme e não há vitória total; todo filme é uma remissão, elemento de uma safra e comercializado como tal. O filme é, portanto, igual e diretamente sua história, uma autorreferência contínua: quanto custou, quantos festivais ganhou, o público em sua forma especificamente quantitativa, suas reações, os escândalos, fatos que envolveram o set, atores que já morreram, os que ainda resistem em estar vivos; as brigas, os amores, as curiosidades de toda a ordem. Tudo isso é elemento para a propaganda contínua e, portanto, para a venda perpétua. Em 127


uma sinopse para vídeo de O império dos Sentidos é salientado seu caráter polêmico, o sexo explícito, quando o sexo explícito não se escancarava em bancas de jornal. Cidadão Kane em versão CD traz consigo um longo documentário contando a história do filme, ainda que o faça naquele modo em que o documentário é também uma obra de ficção. It doesn’t matter at all: tudo conta como referência, são remissões e indexações de fatos, de maneira que se pode voltar a gerar interesse e curiosidade, se não pela novidade, agora pela história, pela particularidade bizarra – o fait diver como lógica e como cerne da notícia. Nada disso pode ser considerado como acidental ou incidental. O filme requer planejamento de marketing, e de longo prazo; é, portanto, um empreendimento que é pensado da estreia até a sessão da tarde; para atingir a madrugada, como elemento da farmacopeia: sonífero quando não puder causar frisson; viagra, quando ainda puder trazer excitement, e assim por diante. Encontra-se aqui, contudo, talvez, o maior problema para o filme, em sua pretensão artística: 128


o último elemento de sua longa jornada, ou seja, o horário marginal de TV, com todas as suas restrições de forma, conteúdo, enredo, etc. estão sempre a sua espreita, determinando possibilidades e impossibilidades. Se, portanto, o filme se deixa envolver pela TV, se é pensado também como produto para sua audiência, ele se sujeita a todas as limitações que ela implica. O filme: forma e pseudoindividuação O cinema não existe de forma direta e abstrata; ele é o gênero e é pensado de saída como tal. Nisso expressa uma necessidade de organização do mercado, do sistema de venda de vídeo e CD, da crítica especializada, do festival, etc., mas também da devida padronização do imaginário do consumidor. Essa segmentação o cinema não a inventou, encontrou pronta no mercado editorial, na literatura e, de certa formal, tornou sua no sentido mais radical do termo: não apenas a reproduziu e aprimorou, mas transformou todo romance em uma promessa de encenação, de obra cinematográfica. O gênero em sua forma mais acabada, perfeita, encontra-se no 129


sistema de TV a cabo, onde os canais dedicados ao filme e ao entretenimento são de antemão organizados por tal critério, indo desde a aventura, até o cult, com direito à passagem pela pornografia leve ou eventualmente hard-core. Recentemente, por exemplo, a Rede Globo anunciou que terá um canal apenas e tão somente para relaxamento; para descanso mental de um dia estressante: o filme como sal de banho e como complemento do ansiolítico. Mas se o destino final do filme como produto da indústria cultural é a TV e sua estratégia, e se, portanto, ele a tem como alvo fixo, a que propósito acaba por servir; qual é o cerne de sua linguagem, ou dito de outro modo, o que lhe determina a forma absolutamente rígida, no que se faz diferenciar apenas pelo enredo e pelas histórias que conta? Da pesudo-individuação fílmica emerge a estrutura imutável, cuja meta é propiciar reconhecimento, identificação e, por meio delas, o sentimento de pertencimento a um ente que excede o indivíduo e com o qual este se relaciona de maneira ambivalente: submete-se e, portanto, 130


mutila-se, mas encontra nessa submissão a potência do grande número, da massa, que o torna poderoso por meio desse rebaixamento. Na massa está seguro, pertence, tem raiz, encontra seus pares, olha e é olhado; é reconhecido por meio dessa visibilidade, confirmase como existente, ainda que seja, no fundo, apenas o retorno estritamente físico, ótico do olhar do outro e não uma individualidade e um campo autônomo. Encontra, então, nessa fórmula, em que o sempre igual é produzido e reproduzido como o infinitesimalmente distinto, a segurança de quem domina o mundo, na medida em que conhece e reconhece seus produtos. Para isso não precisa sequer pensar: esse canto das sereias, distante e hipnótico; o reconhecimento do padrão como vaga lembrança e como familiaridade, essa reminiscência que é o produto como autorreferência e propaganda, afirma sua qualidade independentemente do juízo e apesar dele. Aderindo à massa, submete-se ao juízo dela como elemento de verdade, mesmo que a massa 131


jamais tenha exercitado a faculdade de ponderar, posto que ela não é um ser ou um ente, mas um produto cientificamente gerado e industrialmente produzido – que se calcula, de cujo processo de desenvolvimento é possível apresentar orçamento e assim por diante. No reconhecimento por semelhança o produto cultural já é sua própria avaliação e confirmação, ao passo que a atividade reservada ao indivíduo é a adesão e a submissão, ainda que impregnada de toda a ambivalência que se associa a este movimento. Que o filme tenha evoluído para este formato rígido, percebe-se claramente quando a platéia é submetida a uma forma narrativa que não respeita a evolução do romance de almanaque: em Oito ½ de Fellini, por exemplo, a ausência de uma história, de uma estrutura narrativa, que se possa compreender em suas dinâmicas ao longo do filme, causa grande desconforto à platéia, acostumada a que se lhe ofereça completamente pronto tudo o que se destina à sua fruição.

132


O filme: a produção da identidade como meta A apoteose do filme e do produto cultural em geral não é apenas e propriamente o engendramento da massa, sem a qual não vive, mas a manipulação da própria identidade, sua padronização e subsunção. Quando se identifica e reconhece como familiar, ao aceitar aquilo que lhe entregaram pronto, o indivíduo adere justamente às instâncias que o reprimem e que querem destruí-lo como tal - o que só se faz porque o custo da individuação verdadeira não para de crescer. Como o sistema tende a ser total, a invadir todas as instâncias da existência e ordená-las; como a diferença e a resistência ao padrão são em si mesmas uma sentença de morte; uma condenação à invisibilidade e ao ostracismo, o indivíduo cede, ainda que não saiba e ainda que esta capitulação só aceda à consciência de modo relativamente turvo e opaco. Reside aqui a dimensão verdadeiramente totalitária da existência na sociedade contemporânea: só é existente, visível, capaz de interação social, de desfrutar o progresso aquele 133


que cede incondicional e totalmente, ou seja, de modo tão extensivo quanto se tornou a própria instância da sociabilização. Os que não o fazem não são visíveis, não existem; convertem-se em uma espécie de universo paralelo, são reduzidos a uma vida que jamais atinge o espaço público e que, portanto, não tem uma forma de expressão que possa adquirir uma natureza coletiva. A natureza totalitária da contemporaneidade não está no partido político, no sistema de governo, na polícia, no líder, etc.; é a vida social como um todo que tende à oclusão e à completa formalização; que nega a expressão pública de tudo o que é diferente e a toda individuação. Deste modo, o diferente e o distinto só aparecem quando já submetidos à devida normalização.

134


O filme: o real evanescente

Figura 22 - O jardineiro fiel (Fernando Meirelles, 2005) http://br.youtube.com/watch?v=NyQkPXjlnjk

Aquilo que a Alemanha nazista teve que camuflar e manter como solução possível, até que fosse solução alucinada; que negou, ainda que fosse elemento inerente de sua política, decorrência necessária de sua concepção estética da vida e da realidade – o campo de extermínio -, a contemporaneidade permite que flua livre e abertamente: esta aí escancarado, mas nós não o vemos, e se ocorre que o vejamos, é como espectro que o fazemos. O filme narrando situações de violência política, de miséria e miserabilidade; a música de protesto como toda a 135


galeria dos célebres; eles dão vida aos desgraçados, apenas para que melhor os esqueçamos; para que haja uma indexação mental, que remete à sensação de que eles não estão abandonados à sua própria sorte. Esta vilania nos diz que alguém está fazendo algo, na medida em que denuncia e informa; mas justamente através desta denúncia e desta informação os seres concretamente existentes vivem solitários seu holocausto, ficando mais firmemente subordinados e atados às instâncias da ordem e à natureza total de sua submissão. Não, definitivamente, denunciar e dar visibilidade, publicidade, segundo este projeto que é o artefato midiático e cultural, não é melhor do que não fazer nada, porque este fazer não se destina a uma crítica do real, não tem para com ele qualquer negatividade. Simplesmente o desloca e substitui, apresentando-se como seu sucedâneo, de modo que o real, por meio de sua representação e presença puramente espectral, torna-se completamente inacessível, deslocado que foi por

136


uma gratificação: a liquidação, por compensação meramente imaginária, de nossa dívida real.

Figura 23 - O sétimo selo (Ingamar Bergman, 1956) http://br.youtube.com/watch?v=KQHx0-FrIcw

É por saber disso que a ordem é totalmente impiedosa consigo mesma; que expõe sistematicamente suas mazelas e os infortúnios que causa e a que dá causa. Ao oferecer-se em sacrifício salva-se intacta e impune; ao impor-se a autoflagelação expia não sua culpa - sentimento de que é incapaz, uma vez que a objetividade de suas determinações imanentes elimina as responsabilidades subjetivas de seus agentes e 137


artífices -, mas o desconforto existencial de seus elementos humanos. Como seria, então, o filme a partir dos olhos de um africano em seus muitos campos de refugiados; qual seria o ângulo de visão do favelado e daqueles condenados às muitas ordens de guetos que a contemporaneidade não apenas conhece, mas recorrentemente engendra? O filme: um mundo sem saída? A meta do meio de comunicação de massa e do cinema, na medida em que se subordina à sua lógica, é a infantilização, a satisfação pronta do desejo, para o que a imagem ininterrupta, a aceleração de sua circulação são recursos que tangenciam a perfeição. O meio de comunicação toma deste modo, não de empréstimo, mas como elemento essencial, a própria linguagem publicitária, com sua concisão e incitação direta e imediata ao gozo; promessa reiterada de plenitude. Na medida em que somos mantidos no terreno da infância, por força mesmo da profusão de imagens e da saturação do imaginário, ou seja, 138


como decorrência da produção industrial da cultura e da subjetividade – o que significa dizer que o processo de subjetivação equivale à negação de toda individuação e individualidade – somos reduzidos à condição segundo a qual nossa existência e nossa ação precisam e demandam confirmação exterior, aprovação do olhar do outro. Nossa identidade, nestes termos, é diretamente a confirmação que este olhar outorga e concede, e não a oposição de nossa individualidade às determinações do coletivo. É justamente por isso que o meio de comunicação de massa é reacionário, independentemente dos conteúdos que veicula: como processo de industrialização da cultura ele é a própria expropriação do simbólico e reduz o indivíduo à infância eterna. (...) É quando a criança se identifica com a imagem do seu corpo que começa a se constituir o eu; a imagem do corpo proporciona uma precária unidade a este sujeito ainda fragmentado e produz a ilusão de uma identidade, também precária, a partir da identificação da 139


criança, sujeito de uma experiência sem unidade, com esta forma unificada, “perfeita”, do corpo no espelho – tomando aqui o espelho como uma metáfora do olhar do Outro, em particular a mãe. É a partir daí que se ancoram todas as seguintes formações imaginárias do sujeito. O imaginário é que dá consistência à experiência, e é o domínio do corpo. Mas esta imagem do corpo no espelho não sou “eu”. A identificação com a imagem é uma forma de alienação, em que a consistência da experiência subjetiva se ancora na imagem do que se é para o olhar do outro. Já o simbólico é fundado exatamente no ponto em que essa imagem já não dá conta do ser. É o registro da falta, o registro da morte. O significante vem no lugar da coisa que falta, a palavra, seja ela qual for, sempre vem nos trazer a notícia de uma morte, de uma ausência, de uma falta e da própria falta-a-ser do sujeito, 140


que a identificação não resolve. O conceito psicanalítico de Outro – assim mesmo, como maiúscula, para se diferenciar do outro, nosso semelhante – indica o campo simbólico, que é a própria estrutura da linguagem à qual todos estamos submetidos desde nossa entrada na cultura. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 94-95) Será este um mundo sem saída; uma estrutura total e infernal de poder, da qual não se pode libertar? Mas revelar a própria normalidade como infernal; desnudar a patologia do normal, o que significa isso? Nenhuma luta é uma garantia de vitória e a verdade jamais se impõe por si mesma. A revelação do absurdo não é um assalto ao castelo, nem uma narrativa que se possa oferecer acabada: é o esforço obstinado e total em nome de cada migalha de vida. Como a ordem atingiu a totalidade, determinou o terreno da luta: não há nada do lado de fora. Exatamente porque a oclusão é total, todas as instâncias encontram seu caminho de volta ao todo. Como a subjetividade é a individualidade como negação, o próprio mundo 141


está estilhaçado. O quanto, contudo, este mundo desordenado e caótico que a subjetividade percebe, sem eixos axiológicos que o indivíduo possa antecipar e impor, não é um prenúncio da forma, quando o capital não for mais ele mesmo a síntese, como elemento de destino do mundo? Como o mundo seria representado se ele fosse ordenado não segundo o ponto de vista de um ente-sujeito, mas de acordo com uma multiplicidade de indivíduos subjetivamente existentes? O que é o cerne da revolução, senão a condição de extrair dos movimentos do real as consequências que podem desmaterializar a ordem; desfazer sua pretensão ontológica? E se a cidade não se ordenasse mais em relação à Igreja e ao castelo, ao monumento e ao obelisco, o que ela seria? Quais são as questões que as massas colocam, na medida em que não podem mais ser deixadas de lado? Quais são as metas; quem dá as metas? O problema não pode ser mais colocado como uma liberação aristocrática das massas, porque toda aristocracia se mostrou inautêntica e repôs as 142


condições da dominação, como ampliação da oclusão. A crítica da forma massa, por outro lado, tem que tomar cuidado para não ser mera reação aristocrática, no que se vive o novo com o sentimento de rebaixamento puro e simples. O que é a política, nestas precisas condições? Quem são os heróis e o que se espera deles? A oclusão total, não é igualmente uma demanda total, em nome da liberdade? E se tudo fosse importante, a redenção não deveria ser total; não estaríamos obrigados com todos? Como se educa para a vida coletiva? O filme como sistema total, ou seja, como produto da indústria cultural, é diretamente a oclusão do real enquanto forma e, portanto, um ato contínuo de terrorismo contra o simbólico e contra o imaginário. Revela, neste preciso sentido, que nenhum produto gerado pela indústria cultural é inerte, posto que todos, e cada um deles, destinam-se por meio da diferençiação infinitesimal a deslocar a vida, de modo que ele seja vivida não na qualidade que de fato é – tensão insolúvel -, mas como apascentamento de rebanho. Que no 8 ½ de Fellini o fim permaneça 143


ainda como possibilidade, como abertura, nisso não se reconhece o espectador, que exige que o real se resolva de uma vez por todas: essa é, por sinal, a promessa do filme, seu máximo poder de sedução e sua distopia – um mundo concedido ao indivíduo, ao preço de sua autodeterminação. Baixio das Bestas Segundo a pesquisadora Maria Aparecida de Moraes Silva, livre docente da UNESP (Universidade Estadual Paulista) - conforme relatado pela Folha de São Paulo (29/04/07, p. B1) -, os cortadores de cana apresentam vida útil no trabalho inferior àquela observada no período do escravismo colonial brasileiro. Deste modo, a partir de 2000 parecem suportar sua atividade por aproximadamente doze anos, ao passo que durante o escravismo, uma vez abolido o tráfico, o indivíduo suportava algo como entre quinze e vinte anos de atividade (estimativa de Jacob Gorender). O esforço físico envolvido com a cultura da cana é algo que dificilmente um ser humano citadino poderia imaginar: implica no corte de aproximadamente quinze toneladas dia, para o 144


que se incorre em movimentações da ordem de oito a nove quilômetros. Quanto à remuneração, ela é de cerca de R$ 5,00 por tonelada, sendo que o piso corresponde a seis toneladas por dia, produzindo ao fim de um mês de trabalho o montante de R$ 415,00 (os mais fortes e habilidosos fazem algo como R$ 800,00/mês). A rotina de trabalho começa aproximadamente às quatro horas da manhã e segue até as quatro da tarde, compreendidas três interrupções para comer (7:15; 10 e 13h), além da lavagem de uniformes e utensílios, que ocorre ao fim do período, uma vez que se tenha chegado em casa.

Figura 24 - Baixio das Bestas (Cláudio de Assis, 2007) http://br.youtube.com/watch?v=iABTe2O4GGc http://www.baixiodasbestas.com.br/

145


Indagada quanto ao aumento do número de mortes no setor, a associação patronal aduziu que não existem evidências de que aquelas tenham relação necessária com o desgaste a que estão submetidos os trabalhadores. Apesar disso, o patronato estaria fazendo tudo que está a seu alcance para melhorar as condições de vida dos trabalhadores, o que inclui desde a redução da terceirização, até benefícios como seguro saúde. Este cenário dantesco, que de resto não apresenta qualquer novidade, mantém-se ainda como realidade, no limiar de um boom na produção de álcool e combustíveis que não tenham origem fóssil, o que inclui o biodiesel. Neste contexto os governos se ufanam, os empesários contabilizam a título presente o lucro futuro; a sociedade civil comemora os benefícios relativamente ao aquecimento global. Os cortadores de cana, contudo, permanecem invisíveis e virtualmente inexistentes; são uma história de que ninguém quer propriamente saber, a não ser como um conhecimento via hiperlink, de uma realidade paralela. 146


Figura 25 - Baixio das Bestas (Cláudio de Assis, 2007)

Será que esta ausência da TV, esta invisibilidade programada, se dá pelo mesmo motivo com que se proíbe a propaganda de cigarros? Mas não se vê por aí vinhetas do tipo: Atenção, o Ministério da Saúde adverte! Cortar cana faz mal à saúde. Alguém viu? E as imagens esquálidas, as faces desfeitas e retorsidas, os dentes estragados, a pele na forma de papel de arroz, as pernas amputadas; a cadeira de rodas, o abandono no hospital? Vocês os viram? Carne trêmula (Almodovar, 1997) No amor trágico, obsessivo e obsedado, a certeza de um destino terrível; a fusão do diverso 147


em uma unidade inseparável e insuperável; a consciência da morte como fatalidade; o funesto e o comezinho como preliminares de uma entrega insana; a premonição da traição, a convicção da agressão, antecipação do provável como inexoravelmente necessário.

Figura 26 - Carne trêmula (Almodovar, 1997) http://br.youtube.com/watch?v=YUoI4ceRURc&eu rl 148


Clara e Sancho vivem o amor como quem existe em uma cova, já estão enterrados, soterrados; são uma rendição incondicional ao mítico, a realização de forças que os superam e os vergam. São, portanto, a personificação de potências naturais. Individualidades, mas na estrita condição de representarem e suportarem forças cósmicas, que atuam por meio deles, como se o próprio universo descesse à Terra para desnudar seu íntimo: as forças tectônicas da afetividade, antes que elas fossem verdadeiramente humanizadas. Nesta condição de marionetes de um destino que os transcende e os ata são uma reminiscência da tragédia: história do afeto quando ele ainda existia apenas como elemento da cosmogonia, como realidade dos deuses; como força irresistível e imbatível; como requerimento ao qual não se pode resistir: destino, fortuna; irrupção do inconsciente. Há, contudo, uma contra história, a de Victor e Elena, que realiza e reproduz a natureza intrínseca do romance, ou seja, leva o 149


herói a seu destino apoteótico, em que se consumam o amor feliz e seu fruto - o infante. Carne Trêmula como obra é a tensão e a reunião entre estas duas distintas linhas narrativas; onde a tragédia torna o romance apenas verossímil e, de certo modo, subliminarmente improvável. Reside exatamente neste aspecto sua qualidade distintiva: Carne Trêmula é um discurso metalinguístico; uma crítica implícita do enredo e de nossa apropriação estereotipada do real. Encouraçado Potemkin (Eisenstein, 1925) Neste filme existe um conjunto de cenas clássicas, da qual a mais importante é aquela em que uma mulher sustém nos braços uma criança ferida, diante de um batalhão que reprime a sublevação popular em Odessa. A força desta imagem talvez jamais seja completamente esgotada, remetendo diretamente à representação de uma Pietà. É de se notar, ainda, a desproporção entre as sombras projetadas sobre a personagem e seu próprio corpo, a imaterialidade daquelas mesmas sombras como signo do poder, o qual, exatamente por não ter um corpo, não se pode 150


fazer sofrer, não se pode atacar com as mãos. A posição em que é feita a tomada, a frieza de uma execução que se realiza ao arrepio da civilidade; o caráter maquinal da soldadesca, que avança em ritmo matemático, como se propulsionada por um artefato mecânico, amplificam o efeito daquela desproporção entre o corpo humano e o porder como artefato e maquinaria. Ao capturar essa desproporção com a força dramática de uma imagem síntese Eisenstein faz, ao mesmo tempo, a crítica do passado e a antecipação de um futuro terrível.

Figura 27 - Encouraçado Potemkin (Eisenstein, 1925) http://br.youtube.com/watch?v=ZO7ZWfvCjBE

151


Figura 28 - Encouraçado Potemkin (Eisenstein, 1925) http://br.youtube.com/watch?v=ZO7ZWfvCjBE

Existe aqui, portanto, uma dissertação sobre a natureza mesma do poder, mas o texto é imediatamente imagem; sua potência decorre diretamente da interação do olho com aquilo que se vê e, portanto, não pode ser capturada em plenitude fora desta relação. O que decorre daqui, então? Encouraçado Potemkin, para nós da contemporaneidade, indaga de maneira violenta e insolente qual é o papel do discurso no filme. É de todo evidente que uma estória pode ser narrada sem e apesar do diálogo; ela seria e é completamente inteligível, mesmo dentro da 152


lógica do cinema mudo. De outro lado, não se poderia imaginar que, uma vez tecnicamente disponível, se recusasse a inserção do som em nome de um purismo. Isso não elide, contudo, o fato que se deve buscar e manter uma proporção adequada, para a presença do texto discursivo, uma vez que sua proeminência fatalmente roubaria potência às possibilidades da obra fílmica. Fellini e Pasolini, entre outros, são mestres na busca desta proporção, razão pela qual suas narrativas se mostram tão poderosas. A estrada da vida (Federico Fellini, 1954)

Figura 29 - A estrada da vida (Federico Fellini, 1954) http://br.youtube.com/watch?v=4FMhJ2A2IDQ 153


Em A estrada da vida (1954), por exemplo, Fellini trabalha com personagens que não falam, balbuciam: o caráter tosco, agreste do diálogo é, portanto, igualmente um elemento pictórico, componente da paisagem e de sua miserabilidade, conferindo a ela um elemento humano, ainda que na qualidade de usurpação do humano. Compõese, assim, um realismo radical, em que a crítica social é imediatamente representada por esta fusão entre o ambiente e o homem, por meio da qual passam ambos a compor uma espécie de natureza degradada; retratos e fotogramas do imutável, como naturalização do social. Ainda assim, sua conclusão é uma ode à imagem: o rosto de Zampano (Anthony Quinn) é desfigurado e deformado, retorcido, como se fosse uma máscara no momento em que é moldada, com o que se exterioriza e representa de modo total a potência abissal da dor; o momento da descoberta (ou redescoberta) do humano no homem; sua diferenciação da natureza como queda e promessa de elevação. Aqui, como em Encouraçado Potemkin, a análise discursiva, literária, coloca-se como o finito diante do infinito. Este esgotamento 154


das possibilidades da fala, diante da imagem, é parte inerente da linguagem do cinema e deve, portanto, ser para ele uma meta. Teorema (Pasolini, 1968) Não há dúvida de que a família, como ente, ocupa o lugar central desta obra e sua dissolução é a temática manifesta do filme, algo muito apropriado ao momento em que foi produzido. Mas o verbete teorema14 não é um acidente e, portanto, cabe a indagação: o que se pretende demonstrar? A vida como farsa, a natureza da moralidade burguesa, o conteúdo latente da vida familiar? Um pouco de tudo isso, mas, muito especialmente o conteúdo patológico e anômico do normal e da normalidade; as forças destrutivas no seio mesmo da sociabilidade; as demandas do dionisíaco por oposição ao apolíneo; os aspectos lunares da existência. Ao longo da narrativa nenhum personagem é redimido, sendo que todos, de algum modo, são condenados a uma existência espectral, um meio termo entre seus papéis sociais e a natureza íntima 155


dos seres que são, seus desejos e inclinações. Não se trata, obviamente, de uma abordagem moralista e moralizante da homossexualidade, do feminino e do masculino, mas da degradação a que são conduzidos, quando se tenta manter para com a ordem uma solução de compromisso. Deste modo, a insanidade, a nervosidade e a neurose se apresentam, ao final e ao cabo, como as condições estatisticamente normais, ainda que insanas. Aqui, diretamente, uma velha tese de Freud, ou seja, somos todos neuróticos, fato que guarda relação direta com os modelos parentais e com as formas de sociabilização que eles impõem. Mas existem ainda territórios inexplorados: quais são os elementos que regem os relacionamentos familiares? Não existe propriamente comunicação, não há uma estrutura dialógica, mas um mutismo e toda ação, naquilo que se revela, é igualmente um segredo; tudo que é evidente está envolvido pela opacidade, de modo que ninguém existe de fato em conformidade consigo mesmo. Não se trata de uma farsa, porque não é deliberada; não é um hedonismo, pois não 156


calcula conveniências. Esta disjunção entre o ser e a condição fenomênica de sua existência; a cisão a que se vê condenado são as formas imediatamente sociais em que aparece o homem na sociedade burguesa, de modo que toda vida é igualmente uma morte, e todo aquele que existe concretamente, também um fantasma e um desterrado. Este mundo incongruente e bizarro, mas que se afirma como o existente - em toda sua extensão - deve se apresentar igual e necessariamente como antinatureza, como esgotamento de tudo que é criativo e, por decorrência, como aridez desértica e desterro infernal; sombra perpétua, lócus de retorno e remissão insuperável. Não é um acidente, portanto, que o pai e patrão seja conduzido nu, a uma ambiência inóspita e vulcânica: encontra justamente ali a sua natureza íntima e o elemento sombrio de todo o seu poder produtivo – aquilo que o torna uma potência econômica é exatamente aquilo que o aniquila como ser.

157


Para ele, contudo, como para todos os demais, não há uma superação, porque ela requer, inexoravelmente, a ruptura de todas as soluções de compromisso e, por consequência, a dissolução da própria ordem burguesa. Cabe preservar como indagações finais os seguintes elementos: a) se a vida é disjunção e cisão, exílio necessário de porções do ser, o patológico que a normalidade abriga é a neurose ou a psicose? Que relações a família burguesa, na forma direta de sua existência fenomênica, guarda com a natureza delirante do fascismo e suas configurações paranoides? Será que a militância política de Pasolini não nos autorizaria indagar se o teorema não consiste, ao menos parcialmente, em haver uma relação necessária entre o modelo de sociabilização burguês e as formas políticas totalitárias? ; b) o título Teorema não seria uma crítica implícita, um manifesto contra o cinema como forma romanceada de arte? Pasolini conduz o filme de fato como quem disserta, de maneira deliberadamente cerebral. Não se opõe, portanto, de modo contundente à arte como edulcoração do 158


real, ao esteticismo vazio; ao filme como ornamento de uma vida decaída e degradada? A estreia do Homem-Aranha O terceiro filme da série Homem-aranha estreou no Brasil no dia 04 de maio de 2007, trazendo 690 cópias e ocupando 840 salas de exibição, o que corresponde a 41% das 2045 existentes no país (informações da Folha de São Paulo - 03/05/07, p. E1). As cifras que envolvem este empreendimento são em tudo fantásticas e, obviamente, realizadores, direção e produção não mediram esforços para que o lucro seja certo. O enredo, por sinal, espelha esta necessidade, pois segundo o protagonista do filme, ele e o diretor (Raimi) fizeram de tudo para que o lado sombrio da personalidade do herói, que procuraram explorar, não fosse tão carregado ao ponto de reduzir a audiência e comprometer a bilheteria. Adotaram como fórmula, portanto, a solução de compromisso; o sacrifício do produto em benefício do capital.

159


Figura 30 - Homem-Aranha 3 http://br.youtube.com/watch?v=szh5ZsAcgJU

Este requerimento comercial é desnudado sem qualquer cerimônia e narrado como uma façanha. Mas obviamente isto não é feito como uma tentativa de jogar na cara do público o caráter direto e obviamente mercantil do filme. Por meio deste rebaixamento procura-se apenas e tão somente afirmar que veremos aquilo que desejávamos ver; que tudo foi feito sob medida, de tal modo que, através da arte de prestidigitar, aquilo que o capital concebe para os propósitos da

160


autovalorização, se oferece ao mundo, como produto dileto e quase direto das massas. “Sam Raimi *o diretor+ e eu nos divertimos muito desenvolvendo o lado negro de Peter Parker, mas foi difícil achar o tom certo”, diz Tobey Maguire à Folha. “Obviamente, tivemos que fazer o filme para a maior audiência possível, então não dava para fazer algo muito pesado, sombrio, ou perverso.” Pensando num equilíbrio, a trama abre espaço para momentos cômicos e musicais. Na história, que comporta várias subtramas, uma criatura alienígena chega à Terra. É um parasita do mal em busca de hospedeiros. Peter, em fase de caráter duvidoso, é seduzido pela criatura. Em cena cômica, Peter imita John Travolta em “Os embalos de Sábado a Noite”. “Queríamos algo emoncionalmente forte para refletir os conflitos pessoais pelos quais ele passa. Mas era necessário 161


também diversão. Apesar de ele se tornar sombrio, foi preciso manter algumas características engraçadas para não perder público”, conta Maguire. “Nessa cena em que Peter dança na rua, ele continua ingêuo e nerd, apesar de achar que se torno supercool. Mas foi difícil. Eu não sou um ator cômico”. (Matéria de Bruno Yutaka Satio, que viajou a Tókio a convite da Sony Pictures) Raramente se pôde ouvir algo tão edificante e tão direto. E apesar de não ser um cômico, Tobey Maguire nos coloca diretamente no centro da comédia: o absurdo. Viva o Homem-Aranha! Em tempo: em 06 de maio a Folha de São Paulo trouxe encartado um álbum de figurinhas do nosso herói, para bem lembrar que o segredo do sucesso é o ataque por todos os flancos; tão massivo quanto necessário para não deixar ao consumidor qualquer opção verdadeira. Vale aqui a máxima de Kalecki, ou seja, diferentemente do bom senso, o capitalista – neste caso na figura de uma complexa conglomeração de empresas de entretenimento 162


ganha o quanto gasta: o investimento capitalista é o fator dinâmico do sistema; os modos frugais, a poupança e o recato, mutio cedo nosso paladino deixa às donas de casas e aos pequeno-burgueses, eternamente ameaçados pelo decaimento social. Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954) O elemento mais evidente do filme é o voyeurismo do protagonista, sua determinação em esquadrinhar a vida dos vizinhos, como recurso para mitigar a penúria de sua condição e a monotonia a que ela o obriga: está preso a uma cadeira de rodas, por força da fratura de uma perna. Mas há algo mais: o mundo visto a partir da própria câmera e sua capacidade de desvelar e revelar; o foco, a aproximação e a abertura; a ampliação do sentido da visão, mas igualmente a contínua perda de objetividade e de contato com a realidade, que jamais equivale a si mesma, em suas representações através da objetiva de Jeff. Existe, portanto, uma tese implícita: o cinema não é da ordem do real, mas do fantástico. O seu realismo, portanto, nunca é mimético; não produz 163


a realidade na qualidade do que se conforma imediatamente aos sentidos, mesmo que se considere que a imagem tende a converter-se em gratificação sensual - descoberta que fundamenta e cria o cinema como artefato cultural, produto dileto da indústria de entretenimento. O cinema cria um universo novo, que preservando os elementos imediatos da experiência, ultrapassa-a. O filme e o cinema demonstram-se, então, como mediação e seu realismo aparente discorre sobre uma realidade de outra ordem: o imaginário e, talvez, o inconsciente. Não se deve deixar de considerar, ainda, do ponto de vista metalingüístico, que há um filme dentro do filme, ou seja, Hitchcock filmando Jeff, que à sua vez filma seus vizinhos - em uma película muda. Tratase, portanto, igualmente, de mutismo e da impossibilidade da comunicação; o mundo como aprisionamento e como perda de diálogo.

164


Figura 31 - Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954)

Hitchcock demonstra ter aguda percepção da modernidade, pois capta toda a sociabilidade (a comunidade de vizinhos) como redução absoluta ao privado; um mundo de estranhos que compartilham um mesmo espaço, sem efetivamente estarem em interação. Os vínculos, portanto, são dados pelo lugar, sem que haja um verdadeiro investimento afetivo. As relações estão sobredeterminadas pela posição - o local de moradia, como metáfora da posição social em toda sua extensão - e nesta rigidez é o mundo burguês que se revela, uma vez que nele todo relacionamento é igualmente uma avaliação recíproca, mediada pelo dinheiro e pelos signos de pertencimento a grupos sociais - relativamente restritos e diretamente excludentes. 165


O prédio que se filma - onde cada qual está sob estrito e total domínio da câmera, na sua faculdade de escrutinação - é uma metáfora da sociedade como lócus de subordinação e controle total sobre seus membros; uma distopia na qual, o poder tornado central e invisível, nutre-se da visibilidade absoluta, aterradora e total de cada qual. Trata-se, portanto, do panóptico de Bentham, tão magistralmente analisado por Foucault, como representação da sociedade contemporânea, onde a informação desloca e suprime o diálogo, degradando a comunicação e a linguagem.

Figura 32 - Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954) http://br.youtube.com/watch?v=Ptdey3O4ELk

166


Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores. Para isso, é ao mesmo tempo excessivo e muito pouco que o prisioneiro seja observado sem cessar por um vigia: muito pouco, pois o essencial é que ele se saiba vigiado; excessivo, porque ele não tem necessidade de sê-lo efetivamente. (...) O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem 167


nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto. (Foucault, 2002, p. 166-167 – grifos meus)

Figura 33 - Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954) http://br.youtube.com/watch?v=Ptdey3O4ELk

Cada lar está fechado sobre si mesmo e, portanto, completamente inconsciente desta totalidade que a vizinhança é. É a câmera, portanto, que engendra e institui a totalidade. Será que, em um mundo reduzido ao estritamente privado, é o meio de comunicação que funda a 168


sociabilidade, e a erige para os propósitos da heteronomia e do poder total?

Figura 34 - Janela Indiscreta (Hitchcock, 1954) http://br.youtube.com/watch?v=Ptdey3O4ELk

O poder como arquitetura: seu vir a ser Houve, durante a época clássica, uma descoberta do corpo como objeto e alvo do poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam. O grande livro 169


do Homem-máquina foi escrito simultaneamente em dois registros: no anátomo-metafísico, cujas primeiras páginas haviam sido descritas por Descartes e que os médicos, filósofos continuaram; o outro, técnico-político, constituído por um conjunto de regulamentos militares, escolares, hospitalares e por processos empíricos refletidos para controlar ou corrigir as operações do corpo. Dois registros bem distintos, pois tratava-se ora de submissão, ora de utilização, ora de funcionamento e de explicação; corpo útil, corpo inteligível. “O homem-máquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o corpo manipulável. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado. Os famosos autômatos, por seu lado, não 170


eram apenas uma maneira de ilustrar o organismo; eram também bonecos políticos, modelos reduzidos de poder: obsessão de Frederico II, rei minucioso de pequenas máquinas, dos regimentos bem treinados, e dos longos exercícios. (FOUCAULT, 2002, p. 117-118)

Figura 35 - A Lição de Anatomia do Dr. Tulp (Rembrandt, 1632)

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Rembrandt_Harmensz._van_Rijn_007.jpg

171


O poder exprime-se, também, como arquitetura, um volume e um sólido; uma estrutura. Nesta construção, contudo, a perfeição é para o poder a invisibilidade, que aparece como ausência presente e persistente, contínua, completamente abstrata - ainda que se realizando plenamente na materialidade de seus efeitos. Tudo que é efetivamente sólido, na edificação que o poder é, destina-se a erigir sua transparência; membranas contra as quais nos chocamos, mas que não se enunciam diretamente. Na contemporaneidade não há propriamente formas majestáticas e exteriores, exposições e suplícios, exemplos e exaltação das agências estatais, com o propósito de conduzir à submissão. Aquilo a que se opõe o indivíduo e a sociedade civil tem, antes, natureza flexível, plasmática, coloidal, de tal maneira que toda luta é uma exaustão; toda meta, um processo infindável; toda injustiça uma redução ao código, sobre o qual apenas muito raramente uma subjetividade pode impor-se, de modo a garantir racionalidade ou reparar um absurdo. Toda tensão, portanto, do par indivíduo (sociedade civil) – Estado se resolve, de certo 172


modo, no esgotamento do primeiro, pois se opõe aquilo que é finito e discreto, contra uma potência que se derrama pela vida como uma totalidade gasosa, correspondendo na forma à sua própria meta: domínio total.

Figura 36 - Um estranho no ninho (Milos Forman, 1975) http://br.youtube.com/watch?v=5WJgQ37JmFc

Do lado oposto, ou seja, daqueles que sofrem os efeitos de poder, a absoluta visibilidade é uma regra e uma condição de existência. Seus corpos, suas mentes, suas almas – se é que se pode admitilas – são entes receptores, suportes daqueles efeitos de poder, que transportados por meio da 173


invisibilidade em sua natureza etérea, causam uma reação difusa, confusa, cujo objeto permanece sempre duvidoso e, no máximo, apresenta-se como provável. Neste sentido, todo indivíduo está permanentemente nu, exposto e, nesta condição, ainda de um ponto de vista puramente formal e abstrato, já é uma submissão, mesmo quando se imagina senhor de sua vida.

Cada incidente, todo evento, portanto, podem demonstrar de forma prática esta nudez constitutiva: na doença, não somos donos de nossos corpos; no processo, somos expropriados de nossa intimidade, independentemente da culpa ou inocência objetivas e, o que é pior, somos lembrados que se sabe mais de nós mesmos, e com mais detalhes, que poderiam guardar nossas próprias mentes. A desproporção entre a absoluta normalização da vida, sua codificação até a mais infinitesimal minudência, e o limite da condição humana, para o imenso e para o mínimo implica, em si mesma, uma condenação potencial e perpetuamente possível. A contemporaneidade é 174


vivida, portanto, ao menos em parte, como ameaça difusa; como sentença prestes a ser pronunciada e, nesta medida, como um drama paranoico. (...) O poder disciplinar (...) se exerce tornando-se invisível: em compensação impõe aos que submete um princípio de visibilidade obrigatória. Na disciplina, são os súditos que têm que ser vistos. Sua iluminação assegura a garra do poder que se exerce sobre eles. É o fato de ser visto sem cessar, de sempre poder ser visto, que mantém sujeito o indivíduo disciplinar. (FOUCAULT, 2002, p. 156) Nesta estrutura arquitetônica as relações para com o poder são sempre axiais, ou seja, referem-se direta e exclusivamente a um indivíduo, que se encontra por meio desta discriminação absoluta, completamente só, diante de uma potência que não pode enfrentar, a não ser por recurso à fragilidade do seu ser: uma oferta em sacrifício.

175


Figura 37 - Frenesi (Alfred Hitchcok, 1972) http://br.youtube.com/watch?v=HuoBprPGpzA

O poder é, portanto, de saída, esta desproporção: o ciclope e o homem; a máquina, a engrenagem e o ser. Enquanto forma, portanto, e antes ainda de qualquer atividade, o poder é uma imposição à sujeição, uma demanda de apassivamento, cujas formas exteriores e casuais são os signos de sujeição: algemas, camisas de força, correntes e grades, camisolas de centros hospitalares, cadeiras de rodas, etc. A exuberância do poder, contudo, é estar implícito, pressuposto, mas totalmente potente, na medida em que todos 176


lhes são completamente e irremediavelmente visíveis, e que ninguém lhe escapa – uma espécie de vivência cotidiana e mundana do dia do juízo final. É, nesta medida, uma enunciação simbólica da morte; uma sujeição pelo terror do desconhecido. A pedagogia do poder, sua catequese, é a disciplina, o controle meticuloso sobre os corpos, movimentos, pensamentos, representações. Existe aqui um amor do detalhe, que na normalização mais absoluta, edifica o homem como autômato.

Figura 38 - Fuga de alcatraz (Dom Siegel, 1979) http://www.youtube.com/watch?v=LUwtdwdK63A

(...) O indivíduo é sem dúvida uma átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade; mas é também uma 177


realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama “disciplina”. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objeto e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção. (FOUCAULT, 2002, p. 161) Se o vínculo necessário com o poder é axial, sua simples presença é uma condenação de toda lateralidade, ou ainda, um exigência de que esta esteja transpassada por vértices, de tal modo que toda relação entre pares (cidadãos, trabalhadores, comensais, etc.) é, igualmente, uma relação através do poder e, por isso mesmo, uma relação de poder. Como reverso da submissão, por outro lado, o poder confere e impõe lugares, de modo que toda autorrepresentação individual inclui, como elemento de direito, este lócus. Encontra-se 178


aqui seu aspecto transcendente, metafisicamente maligno e demoníaco – ao conferir lugares e posições, engendrar uma hierarquia necessária, o faz não como algo inerente à sua própria dinâmica e necessidades de domínio, mas como um atributo identitário de cada ser. O poder, portanto, não é algo que se encontre fora de nós, como uma força à qual podemos nos opor de maneira estritamente mecânica, social, filosófica: ele é uma marca aderida à pele, um implante de nanotecnologia, uma prótese espiritual; o vampiro como elemento pertencente ao ser; a sujeição como auto-domínio e redução ao papel; a força descomunal que mobilizamos para nos adaptrar à nossa condição, que ao fim nos surge como natural.

Figura 39 - Fuga de alcatraz (Dom Siegel, 1979)

179


Figura 40 - Máscara mortuária Jeremy Bentham O poder é, também, nosso rosto diante do espelho, sem maquiagem ou adereços; suas rugas e contrações, marcas não apenas do tempo, mas deformações que a máscara impõe à pele: o que nos pertence mais particularmente, na precisa condição de ser denegado e alucinado, como potência estranha e irresistível. O poder é sortilégio e sedução; uma oferta de corrupção da existência; o lado irresistível e sinistro da beleza, quando se apresenta como sistema fechado e completo – é de algum modo, portanto, um 180


prenúncio do paraíso, que se vai fixando lentamente, à medida em que a realidade é condenada, de uma vez para sempre. (...) Nossa sociedade não é de espetáculos, mas de vigilância; sob a superfície das imagens, investem-se os corpos em profundidade; atrás da grande abstração da troca, se processa o treinamento minucioso e concreto das forças úteis; os circuitos de comunicação são os suportes de uma acumulação e centralização do saber; o jogo dos sinais define os pontos de apoio do poder; a totalidade do indivíduo não é amputada, reprimida, alterada por nossa ordem social, mas o indivíduo é cuidadosamente fabricado, segundo uma tática das forças e dos corpos. Somos bem menos gregos do que pensamos. Não estamos nem nas arquibancadas nem nos palcos, mas na máquina panóptica, investidos de seus efeitos de poder que nós mesmos renovamos, pois somos suas engrenagens. 181


(FOUCAULT, 2002, p. 178-179 – grifos meus)

Figura 41 - Morangos Silvestres (Ingmar Bergman, 1957) http://www.youtube.com/watch?v=efrvzuhxiLY

O poder, portanto, é sedução, mas aquela do grande mal, que é uma insinuação, uma inquirição, antes de ser uma tentação; trata-se, pois, de uma contínua incitação ao direito e à posição; uma fusão do ser ao lócus. Mas tão logo esta fusão tenha se dado, todo indivíduo passa a ser uma cristalização, que como fuga de vida, consolida e 182


materializa; plasma, o poder como estrutura. Peça da engrenagem; ser maquinal, autômato, paciente, espectro, fantasma. O poder, como experiência subjetiva, é uma calcificação. Estes atributos do poder, Foucault apropriou de maneira esplendorosa em sua remissão ao Panóptico de Benthan: O Panóptico de Benthan é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito de 183


contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. (...) A visibilidade é uma armadilha. (...) Cada um, em seu lugar, está bem trancado em sua cela onde é visto de frente pelo vigia; mas os muros laterais impedem que entre em contata com seus companheiros. É visto, mas não vê; objeto de uma informação, nunca sujeito numa comunicação A disposição de seu quarto, em frente da torre central, lhe impõe uma visibilidade axial; mas as divisões do anel, essas celas bem separadas, implicam uma invisibilidade lateral. Esta é a garantia da ordem. (...) A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas. Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável; 184


do ponto de vista dos detentos, por uma solidão sequestrada e olhada. (Foucault, 2002, p. 166) Como construção arquitetônica o Panóptico é, no entanto, mais do que uma representação do poder; ele é sua própria presença e codificação como meta, ou seja, um plano de trabalho para que o poder atinja o grau máximo de eficiência e perfeição. Tanto quanto a catedral gótica e a pirâmide, que eram em si mesmas uma cosmogonia completa e uma visão completa e transcendente do mundo, o Panóptico é o registro material de um universo existencial e social, mas que ainda não atingiu seu apogeu; sua forma plena e total. (...) Mas o Panóptico não deve ser compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode bem ser representado como um puro sistema arquitetural e ótico: é uma figura 185


de tecnologia política que se pode e deve destacar de qualquer uso específico. (FOUCAULT, 2002, p. 170) Significa dizer, portanto, que o poder como sistema, segundo sua codificação presente no Panóptico, não está completamente realizado e, portanto, que ainda evoluí para sua forma final e distópica. Os meios de comunicação de massa, a TV, a sociedade da informação deram passos gigantescos no sentido de tornar a visibilidade, e a relação axial quase que totais, além de terem contribuído enormemente para suprimir as relações de mesmo plano, ou seja, aquelas que unem seres humanos em uma mesma comunidade, em um espaço verdadeiramente público e comum. Esta obra pode, contudo, ser continuamente aprimorada; a riqueza material, as novas mídias, têm potencial para nos colocar, em cada segundo de nossas vidas, em uma relação unipessoal e direta com um poder que não enxergamos, mas que estamos obrigados a pressupor. Esta axialidade é, contudo, não apenas a história de uma intimidade sequestrada, mas a 186


depauperação da experiência subjetiva, posto que condenação e redução a uma multitude de seres casulares, isolados: toda vida é uma cela e uma contenção; uma redução a si, como impossibilidade de relações afetivas, mesmo que haja contiguidade. (...) encontramos no programa do Panóptico a preocupação (...) da observação individualizante, da caracterização e da classificação, da organização analítica da espécie. O Panóptico é um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a distribuição individual pelo grupamento específico e o rei pela maquinaria de um poder furtivo. (FOUCAULT, 2002, p. 168)

187


Figura 42 - Panóptico http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Presidio-modelo2.JPG

Este vir a ser do poder que o Panóptico é – como tecnologia política e de domínio – representa, igualmente, uma solapamento da comunicação, pelo depauperamento das relações face a face. Ela degrada, portanto, para a informação, o conteúdo frio, com formas relativamente rígidas; o relatório, o inquérito; o report. A impessoalidade, a exposição obstinada do detalhe, a frieza e o ímpeto, a indiferença e assepsia; o registro fotográfico e audiovisual são, portanto, elementos formais de um texto em que o 188


lugar do narrador foi subsumido pelo do escrivão, do médico, do cientista; do especialista no evento. Não se trata, portanto, de um diálogo, mas de um memorando, que se apresenta como o túmulo da fala. To whom it may concern: na sociedade cujo arquétipo do poder é o Panóptico, toda comunicação decai para um relato; um informe, que traz para o cidadão o evento e o processo como grandezas dele independentes; naturalizações do propriamente humano.

Figura 43 - Panóptico 189


Este poder onipresente, onisciente e invisível, que faz de cada qual um segredo para si mesmo, na medida em que coleciona detalhes e informações que estão para além do humano; que não esquece e tudo registra; este mundo hostil, onde cada face pode esconder uma ameaça, e cada atitude pode dar margem a um desastre, Kafka retratou maravilhosamente em seu O processo. Mas não apenas pelos seus temas foi genial. A forma metódica, rigorosa, insípida e quase dissimulada; este retrato inclemente do infortúnio, já é em si mesma, a linguagem de nossa época: o relatório meticuloso do médico legista. Afinal das contas, em um mundo que se dedicou a suprimir a experiência, tudo que nos chega às mãos já está morto. Na informação, portanto, nos vemos. (...) Mais tarde, ele contou que tinha acreditado ver nos seus lábios o sinal da própria condenação. - Nos meus lábios? Perguntou K., puxou um espelho de bolso e se olhou nele. 190


Não consigo perceber nada de especial nos meus lábios. E o senhor? - Eu também não – disse o comerciante – Absolutamente nada. - Como essas pessoas são supersticiosas! exclamou K. -

Eu não disse? comerciante.

perguntou

o

- Elas se frequentam tanto assim e trocam opiniões? – perguntou K. - Até agora eu me mantive completamente à parte. - Em geral, elas não se frequentam - disse o comerciante. - Isso não seria possível, são tantas! Também há poucos interesses comuns. Quando às vezes emerge num grupo a crença num interesse comum ela logo prova ser um equívoco. Nada que seja comum pode se impor contra o tribunal. Cada caso é examinado em si mesmo, é o tribunal mais cauteloso que existe. Portanto, não 191


se pode obter nada numa ação conjunta, só um indivíduo isolado às vezes alcança alguma coisa em segredo – e só quando o alcança é que os outros ficam sabendo; ninguém sabe como aconteceu. Não há, pois, nenhuma comunidade de interesse, na verdade as pessoas se encontram aqui e ali em salas de espera, mas se discute pouco. As opiniões supersticiosas existem desde sempre, e se multiplicam literalmente por si mesmas. (KAFKA, 1997, p. 214) Os pássaros 15 (Hitchcock, 1963) Neste filme se usou o que de mais sofisticado havia em termos de efeitos especiais à época, e grande parte disso significava o domínio, tendendo à perfeição, de três distintos elementos: a química e a física fotográfica, além da arte da montagem. Há novamente a presença do gênio de Hitchcock, não apenas na escolha do roteiro, mas na sua adaptação à linguagem do cinema.

192


Figura 44 - Os pássaros (Hitchcock, 1963) http://www.youtube.com/watch?v=6uELFbRBEvw

Mas o que é o enigma dos pássaros, que de um momento a outro passam a atacar as pessoas? Uma primeira aproximação: existe aqui uma remissão ao expressionismo, uma vez que elementos aparentemente inertes ou inofensivos do cotidiano passam a se mostrar hostis, ambivalentes, dotados de uma agressividade que não se poderia, a princípio, adiantar16. Ocorre, portanto, uma irrupção do fantástico no quotidiano, que vê subvertida sua natureza. Mudam de qualidade, igualmente, a compreensão acerca do mundo e de suas formas de 193


manifestação. O absurdo e o fantástico se mantêm, contudo, no terreno da ambivalência, pois o inusitado e o inesperado da situação são, em certa medida, cômicos, ainda que suas presenças efetivas se mostrem aterradoras. O terror do filme, portanto, é aquele do riso nervoso, beirando à histeria, que ocorre quando nos deparamos com eventos ou situações que estão para além de toda capacidade de compreensão; onde, portanto, o absurdo afirma-se como tal e mostra-se irredutível a termos raciocinais. É possível, contudo, ousar um pouco na compreensão do enigma: e se a hostilidade que a civilização contém como elemento seu, como grandeza de que não pode se livrar, de repente, tomasse uma forma absurda e autônoma, que não nos fosse dado reconhecer? E se os traços de agressividade mais comuns, correntes e corriqueiros que compõem a existência humana se voltassem contra nós, não em uma forma propriamente humana, mas como uma natureza simbólica irreconhecível e, portanto, potência destrutiva autônoma? Ora, os pássaros são um 194


pouco disso: a hostilidade latente e alienada, que não reconhecemos como nossa, voltando-se contra nós como uma potência que não dominamos; ações minimalistas que, uma vez reunidas, tomam a proporção de um cataclismo; uma revolta que, por suas dimensões tectônicas, só pode ser compreendida como natural, sendo, portanto, naturalizada, ainda que na condição de uma representação bizarra e improvável. Os pássaros, neste sentido preciso, é um filme sobre a modernidade e suas potências destrutivas, que jazem sob a pele fina do comezinho e sob a civilidade amorfa, que nos insta aos cumprimentos recíprocos e formais, como atenuantes mal disfarçados, de uma agressividade latente. A partir de Os pássaros de Hitchcock é possível refletir, ainda, sobre o terrível como elemento próprio à existência humana: a guerra, o morticínio e assim por diante. A resposta, contudo, está no lugar mais improvável. Diferente da personagem que alega estarmos vivendo o fim do mundo; da mãe desesperada que atribui à protagonista a responsabilidade pelos ataques dos pássaros, o 195


grande mal está conosco e com cada um de nós, com nossa incapacidade em renunciar à nossa própria quota do caos. É exatamente por isso, que no final do filme, diante do cenário apocalíptico em que os pássaros transformaram a paisagem, ainda assim, todos deixam a casa arrasada levando consigo o casal de periquitos, com que toda a trama havia se iniciado.

Figura 45 - Os pássaros (Alfred Hitchcock, 1963)

196


Curiosa e terrivelmente, para os protagonistas, aqueles dois pequenos pássaros tinham, apesar de todas as evidências da sublevação hostil do passaredo, uma natureza completamente dócil e benigna. Não é assim que se nos apresenta nossa própria vilania? Não é através de uma forma irreconhecível, para nós, que os aspectos destrutivos de nossa personalidade extravasam para o mundo? O que foi o fascismo como fenômeno de massa, senão uma afirmação minudente de egoísmo e intolerância?

Figura 46 - Os pássaros (Alfred Hitchcock, 1963)

197


Figura 47 - Os pássaros (Alfred Hitchcock, 1963) http://www.youtube.com/watch?v=KwLiH8bWFdM

A Última Gargalhada (F.W. Murnau, 1924)

Figura 48 - A última gargalhada (F.W. Murnau, 1924)

198


Trata-se de uma obra que se insere no contexto do expressionismo alemão, o qual está igualmente associado a filmes como O Golen (Paul Wergener; Henri Galeen); O gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene); A morte Cansada ou as Três Luzes, Metrópolis, A vingança de Kriemhild, A Morte de Siegfried – Os Nibelumgos (Fritz Lang); Nosferatu, Uma Sinfonia de Horror, Fausto (F.W. Murnau), entre outros. Os elementos propriamente expressionistas são bem delineados, trazendo sempre a indicação de que os objetos mais corriqueiros e mundanos podem tomar formas hostis, como, por exemplo, o arranha-céu que se dobra sobre si mesmo, para representar uma ameaça ao protagonista. Existe, ainda, o uso da câmera para expressar estados psicofísicos que são dos personagens. Deste modo, em uma cena em que o protagonista está embriagado, a câmera gira, enquanto ele é mantido inerte. A maquiagem, a sua vez, é trabalhada de modo a emprestar aos personagens um aspecto de fadiga e exaustão; rostos muito brancos, contrastando 199


com olheiras e traços faciais bastante bem delineados. Cenário superlativo, de modo a criar e sugerir a própria atmosfera psíquica em que vivem os personagens: arranha-céus muito elevados são índices de uma ambiência opressiva, em que as coisas se tornam desproporcionais aos homens.

Figura 49 - A última gargalhada (F.W. Murnau, 1924) http://www.youtube.com/watch?v=FULPDnOUg3U http://www.youtube.com/watch?v=Cg9Ssv7UOf8

200


Dentre os inúmeros elementos simbólicos, merece destaque o trabalho maravilhoso que é feito na dialética entre o uniforme do protagonista e seu psiquismo: sua identidade, até atingir a corporalidade, está investida no uniforme, que sendo o de um porteiro de hotel, é também uma remissão ao traje militar e ao poder. Desta maneira, quando perde sua função e, portanto, o direito de portar o uniforme, o protagonista vê subtraída sua própria estrutura corporal, e passa a andar curvado, alquebrado, como se tivesse sido transformado em uma massa coloidal. Nesta condição, desprovido de identidade, sem um lugar definido na sociedade de que faz parte, passa a ser objeto de escárnio e troça, sofrendo todo o tipo de agressões, o que faz dele suporte do sadismo, lado reverso do respeito que merecia, quando ainda contava com os signos distintivos do poder. Não se pode evitar aqui a analogia com os combatentes que voltaram derrotados da primeira guerra, e que, em futuro próximo viriam a compor as linhas do nazismo alemão. Nesta direção é essencial salientar que o porteiro do hotel, quando o saldava os transeuntes, o fazia com os cumprimentos 201


próprios dos militares (a continência) e dos políticos (a saudação com a mão aberta, palmas voltadas para cima).

Figura 50 - A última gargalhada (F.W. Murnau, 1924)

Deve-se indicar, complementarmente, o fim apoteótico, onde o porteiro que havia caído em desgraça é direta e explicitamente redimido por uma intervenção fantástica e arbitrária do diretor; salvo assim de seu inevitável e sinistro fim: a morte. Anuncia-se, deste modo, um elemento 202


completamente absurdo e inverossímil, ou seja, o porteiro recebe uma herança milionária, de um hóspede. Todo o seu destino é alterado; todos aqueles que o agrediam, passam, então a lhe fazer a corte. Os elementos cênicos mudam igualmente – a iluminação, o figurino, a maquiagem, tudo passa a ser mais claro, límpido e otimista. Deve-se, considerar, no entanto, que toda a corte, todas as saudações, todo o respeito são devidos não ao personagem em si; é a presença do dinheiro que reorienta toda a ação. É justo, portanto, inferir que estamos diante de uma vitória de Pirro, ou seja, vence o dinheiro como fetichismo, que, no imenso de seu poder, transforma não apenas a vida do porteiro, mas reconfigura todos os valores, constrangendo as pessoas a amá-lo e respeitá-lo, como meio para atingir aquilo que de fato está em evidência, ou seja, o imã do equivalente universal; vida sem forma e poder sem limite. A redenção do porteiro é, portanto, o modo como o dinheiro afirma sua centralidade.

203


Niilismo e pós-modernismo

Figura 51 - Closer: perto demais (Mike Nichols, 2004) http://www.youtube.com/watch?v=TTJux1U-t1w

Negando noções de progresso linear (e mesmo não linear), os pós-modernistas descrevem a história ou como derrota (distopia), ou como caos. “Para o pósmodernistas”, notou Henry Kariel em seu tratado pós-modernista, The Desperate Politcs of Postmodernism, “é simplesmente tarde demais para opor-se ao ritmo da sociedade industrial. Eles simplesmente resolvem permanecer 204


alertas e frios em meio a ele. Aceitando conscientemente, mas ainda assim longe de dóceis, eles escrevem a crônica, ampliam-na, aumentam-na. Julgam tão pouco quanto ela julga a si mesma. Resolvidos a não atacar coisa alguma, eles se mostram apaixonadamente impassíveis. (FOSTER, John Bellamy in “Em defesa da história – Marxismo e PósModernismo, 1999, p. 198) As criações teóricas e estéticas pós-modernas parecem, em grande medida, obras de uma razão cansada, que resolveu ficar à margem, mantendose como espectadora crítica do que se passa a seu redor. Evita, portanto, assumir posições radicais, ou seja, que almejem superar a ordem, mesmo que a satirizem de maneira intransigente e militante. Justamente por encontrar-se desconfiada de si mesma e assustada com as alturas a que, sem sombra de dúvidas, o conceito pode conduzir o intelecto humano, a razão pósmoderna - na medida em que se possa falar de uma - declina de qualquer responsabilidade 205


propriamente política, para abraçar uma postura francamente esteticista.

Figura 52 - Closer: perto demais (Mike Nichols, 2004)

Os pós-modernos parecem requer da modernidade a compreensão de que o homem só existe como ser dotado de linguagem, estando aquilo que conhece, e pode conhecer do mundo, mediado por ela. Afirmam, portanto, que a linguagem é a verdade do homem, posto a verdade enquanto tal lhe resta inacessível. O que o homem pode conhecer objetivamente é o seu próprio discurso, de tal modo que a crítica do mesmo 206


transforma-se, então, na crítica filosófica enquanto tal. Daí porque, rompida a pretensão de conhecimento da verdade, a filosofia não se ocupa do real propriamente dito, mas de sua representação: o texto. É necessário, portanto, que ela evolua para a linguística e que a crítica do real se realize na análise do discurso, ou dito de modo mais abrangente, através de crítica da cultura. Mas a crítica deste mesmo discurso se faz na perspectiva da redução ao singular, ao particular, transformando-se a reflexão filosófica em uma afirmação subliminar da suprema legitimidade dos distintos pontos de vista - à exceção exclusiva das linhas de pensamento que se pretendem totalizantes ou totalizadoras, as quais, na medida desta pretensão, são o erro e obscurantismo tout court. O pós-moderno, tendo tornado todos os “discursos” igualmente legítimos, procura então, por meio de sua análise, reestabelecer e regenerar uma certa “verdade”, não como o absoluto, mas como revelação ao sujeito que fala, da adequação e propriedade, para si, do seu próprio texto.

207


Figura 53 - Closer: perto demais (Mike Nichols, 2004) http://www.youtube.com/watch?v=XVTUEiUWUcQ

Assim, se existe uma questão envolvendo o gênero, o pós-moderno ensinará às mulheres a desnudar o texto que somente a elas pertence, de modo que o feminino nelas, possa finalmente revelar-se ao mundo. E através da consciência deste feminino reprimido, a liberdade, sem o recurso à violência. O pós-moderno procura, portanto, revelar em cada singular a sua própria identidade, por meio da análise do discurso que lhe é próprio e, em libertando todas e cada uma de tais singularidades, pretende libertar todo o 208


gênero humano. Para ser libertador, portanto, é preciso reconhecer que a felicidade é ser de conformidade a si mesmo. Mas esta reivindicação não deixa de ser, de certo modo, má filosofia. Não se pode demonstrar de nenhum modo razoável que Kant, Marx ou Hegel – apenas a título de exemplos - tivessem dificuldades intransponíveis para aceitar que o ser do homem se forma na e pela linguagem, o que quer dizer, em outras palavras, que é como ser social e sociabilizado, como ser da cultura, que o homem vive o mundo. Parece, contudo, que eles jamais cairiam no erro de banir o universal da filosofia, por meio da afirmação do singular, que na ausência deste mesmo universal, deve tomar necessariamente a forma do singular abstrato. Mesmo o texto requer o contexto, sem o qual ele restaria absolutamente incompreensível e inatingível. O que demandam os negros, as mulheres, os gays? Claro que não exatamente ser aquilo que já são, mas ser exatamente aquilo que ainda não são: cidadãos cujos direitos não sofrem qualquer limitação, por 209


comparação ao cidadão comum, corrente e universal. A desgraça do pós-moderno é que, exista ou não no real em sua imediaticidade, o universal é um elemento do próprio discurso, de modo que não pode ser dele desterrado.

Figura 54 - Mulholland Drive (David Lynch, 2001) http://br.youtube.com/watch?v=96R9MG0DxLc

Se assim o é, se o universal é constitutivo do discurso, que nós não formulemos sobre ele quaisquer hipóteses, que nós o reneguemos como violência contra o singular, não significa que ele não exista. Freud já havia nos ensinado sobre o destino do que é denegado. Em lugar, portanto, de um universal submetido à crítica da razão, o 210


universal deixado a si mesmo. E o que poderia ser ele nesta condição, senão totalidade não humanizada? Oito e meio

Figura 55 - Oito e ½ (Federico Fellini, 1963) http://www.youtube.com/watch?v=PowGcY9wnfs

Dificilmente se pode exceder a maestria com que Fellini conduz a câmera neste filme. Sua capacidade de engendrar o movimento, de tecer a trama por meio da qual os inúmeros personagens e figurantes vão se encontrando e entrecruzando, 211


é algo de verdadeiramente magnífico. Demonstra, deste modo, a particularidade da linguagem do cinema, suas possibilidades - no que difere e excede as próprias possibilidades do enredo, como um elemento narrativo. Não é de estranhar, portanto, que para o espectador acostumado a um fio narrativo “claro”, determinado, o filme reste como excessivamente acadêmico e hermético. O problema está, contudo, no fato de que todo seu lirismo reside na imagem e no trabalho da câmera.

Figura 56 - Oito e ½ (Federico Fellini, 1963)

Mesmo quando o enredo mostra toda sua potência, ou seja, quando disserta sobre a realidade ao misturá-la com o sonho; quando 212


assume o tempo como uma desorientação e não como um vetor; quando propõe e desnuda o bailado do inconsciente se entrelaçando com a vida; os devaneios e os delírios; ainda assim, sua força é aquela que a imagem confere: Oito e ½ é profunda e maravilhosamente surrealista; pictórico e gráfico. Nele não há uma distinção radical entre a realidade e o universo onírico, mas, ao contrário, estas esferas se redimem reciprocamente, nos propondo um mundo ainda vivo e aberto. Justamente aqui o poder imenso deste filme: ele capta a inconclusão, o efêmero e transitório, a impotência, o excesso da vida sobre a compreensão; a própria condição humana e sua fragmentação, não por meio de uma concepção que sonha e alucina uma unidade perdida. Advogase um humanismo radical, ou seja, o amor desta parcialidade insuperável que todo homem singular é; que toda obra, e mesmo a de gênio, está condenada a ser. Celebram-se as precariedades e limites humanos, não na forma de uma autoflagelação, mas como a epifania de um mundo que ainda está aberto às possibilidades e ao novo, 213


e que, portanto, pode ser redimido e resgatado de todos os seus horrores e de toda sua vilania. Oito e ½ não cede ao niilismo porque se coloca para além do aristocratismo, que experimenta o mundo moderno, as dificuldades que suas opções colocam, como a degradação de um padrão mais elevado e pretérito, e não como o momento caótico, que pode efetivamente anteceder uma nova era. Neste preciso sentido Oito ½ é uma utopia e um alerta, que colocam em questão o anseio de ordem e, correlatamente, a valoração da desordem. Um mundo ainda aberto não haveria de se resolver em uma brincadeira de roda e em uma pantomima? Não há aqui um sonho de fraternidade, como o sonhou Drumond? Noites de Cabíria (Fellini, 1957) Independentemente de todos os elementos de crítica social que se possa encontrar neste filme, a grande indagação é relativa ao amor e aos limites de suas possibilidades. Ele está em questão como gratuidade, ou seja, como investimento afetivo 214


sem qualquer expectativa de retorno, como entrega incondicional, cuja única reciprocidade imaginável é sua equivalência em afeto e despojamento. Mas, talvez, para surpresa de muitos, é na pele de uma prostituta que o amor toma esta dimensão gigantesca.

Figura 57 - Giulietta Masina

Que assim o seja, no entanto, é uma necessidade: esta capacidade incomensurável de amar é a negação do encontro amoroso em seus contornos propriamente burgueses, porque nesta 215


sociedade, o dinheiro, ainda que inicialmente invisível e inerte; ainda que negado e repudiado, acaba tornando-se potência que subverte todo e qualquer relacionamento afetivo. Sujeita-o, portanto, mansa mas resolutamente, às formas prosaicas da auto-conservação; da competição simbólica, que o jogo de posições sociais implica; da posse dos signos de pertencimento - em um mundo que, a rigor, é indiferente a tudo aquilo que é do terreno do afeto. O amor burguês é uma mecânica de cálculo, uma matemática existencial; o afeto como contabilidade e como escrituração, no presente, de benefícios futuros; forma fria, insípida e espectral, que sacrifica a vida ao que está morto. O livro contábil é o mapa, o registro cartográfico do coração burguês e nele, portanto, de conformidade com sua natureza livresca, o amor se lança a crédito e a débito, em um equilíbrio tautológico, em que o dinheiro afirma a identidade para consigo mesmo e sobressai como potência que não admite condicionamentos.

216


Neste contexto, o amor se resolve logicamente na puta, porque em seus relacionamentos dinheiro e afeto ocupam pragmaticamente os lugares que lhes cabem, deixando espaço para espontaneidade, como negação pura e direta do papel e da máscara social - no que o amor se afirma como incondicionado.

Figura 58 - Luzes da Ribalta (Charles Chaplin, 1952) http://www.webcine.com.br/filmessc/limeligh.htm http://br.youtube.com/watch?v=ie8elzPavog

Somente a massificação urbana permite à prostituição difundir-se por várias partes 217


da cidade. É por isso que ela fascina, e sobretudo por ser objeto vendável. Quanto mais ela reveste a formamercadoria, mais excitante se torna (p. 427). Filha da metrópole capitalista, encarnação da mercadoria, ela aparece como artigo de massa. Daí a padronização da roupa e da maquilagem, tão bem simbolizada na padronização da roupa e da maquilagem das coristas, no teatro de revista (p. 437). Mercadoria e massa, a prostituta é a síntese do capitalismo e da cidade. Seu feitiço é o do fetichismo. Ao mesmo tempo, ela não é só o fetichismo, história petrificada em natureza; ela é também a promessa de uma relação mais harmônica com a natureza. De algum modo, ela representa a natureza como figura materna, ainda que degradada. Nas condições atuais, a mãe tem os traços da cortesã. Mas a mãe pode ser reencontrada sob os traços da cortesã. A prostituta é natureza corrompida vida que significa morte (p. 424). Mas é 218


também a perspectiva de uma nova natureza, matriarcal, "a imagem distorcida, mas em tamanho natural de uma disponibilidade acessível a todos e que ninguém desencoraja" (p. 457). (Rouanet, Sergio Paulo. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin. "Trabalho das Passagens". Seminário do Instituto Goethe)

Figura 59 - Luzes da Ribalta (Charles Chaplin, 1952) 219


No mundo burguês, portanto, o campeão do amor deve tomar necessariamente as formas do anti-herói, que se encarna nos elementos variáveis de um cortejo de desajustados: seres que são mantidos nos limites exteriores daquilo que se considera um círculo social aceitável. Párias, de que são exemplos as putas, os loucos, os gays e os palhaços (e estes por meio da forma, a um tempo atemporal e extemporânea de suas existências). É por representar a forma diretamente ridícula e absurda do amor, se considerado do ponto de vista estritamente burguês, que Cabíria não pode ser salva nem redimida de seus devaneios. Somente na pantomima ela pode ser resgatada, pois é como elemento lúdico e onírico, como representação estética, que serão preservadas suas demandas impossíveis e bizarras, que se oferecerão oportunamente a um outro tempo, já que o amor se tornou, como o filósofo e o palhaço, póstumo.

220


O diabo veste Prada (David Frankel, 2006) O título indica, a princípio, tratar-se de um filme sobre o mundo da moda. Ele de fato o é, mas como o enorme acréscimo de que é igualmente uma dissertação sobre o narcisismo, por meio da relação de Miranda Priestly com seus subordinados. Nisso repete todos os traços clássicos com que o cinema, em muitas outras oportunidades, discorreu sobre o tema.

Figura 60 - O diabo veste Prada (David Frankel, 2006) http://www.youtube.com/watch?v=zicgut4gpwU

221


Há, no entanto, alguns deslizes que merecem ser observados, como a pseudojustificativa de que Miranda só é criticada por ser mulher; os clichês sobre o casamento como aquilo que se opõe ao desenvolvimento profissional, além do relacionamento ambíguo com o tema necrológico da magreza no mundo da moda. Este convencionalismo temático chega, em certa medida, a converter todos os personagens em algo próximo de caricaturas, formas imediatamente cômicas daquilo que se vê diuturnamente, não apenas nas revistas de celebridades, mas igualmente nos jornais e programas televisivos. Há, contudo, uma cena que provavelmente vale o filme: aquela em que Miranda está reduzida a sua dimensão humana, sem os adereços covencionais, maquiagem, etc. Mostra-se aqui todo seu poder, já quase mitológico, em contraste com a fragilidade do seu corpo, sua face de mulher real e mundana. Na oposição da máscara perfeita e incólume à face real - pródiga em sinais do tempo, registrando um cansaço e uma agonia, que de outro modo não se vê - revela-se não apenas o 222


conflito entre o ser e o papel, mas a edificação do próprio rosto como máscara mortuária, como embelezamento e ornamentação para o túmulo. A beleza como resistência ao tempo, apresenta-se, então, no formato antinatural do tecido cutâneo plastificado e emborrachado, conferindo à face um caráter mórbido e tétrico, que não se esconde sob a superfície, mas se enuncia como elemento fantasmagórico no humano, na mais plena luz do dia. O último tango em Paris (Bernardo Bertolucci, 1972) Em questão as possibilidades do amor e da sexualidade, nos quadros de uma sociedade que revê os papéis feminino e masculino. A rigor não existe uma posição, um lugar que seja naturalmente legítimo, e nesta busca de referências, toda ação também é, em certo grau, uma transgressão e uma perversão. Paul, o protagonista, por exemplo, viveu em seu casamento um papel claramente feminino, que o coloca na condição de hóspede de sua própria 223


mulher, na residência-hotel que pertencia a ela. Esta, à sua vez, o traía com um outro inquilino, em um relacionamento que ia até o detalhe de terem, o marido e o amante, o mesmo robe de chambre.

Figura 61 - Marlon Brando http://www.webcine.com.br/filmessc/ultangpa.htm

224


Figura 62 - O último tango em Paris (Bernardo Bertolucci, 1972) http://www.youtube.com/watch?v=zFNnXd-bWk4

Paul vive, contudo, diante do ser que, para ele, permanece desconhecido e opaco, todas as dimensões do sólido que o amor é: ama, odeia, agride, revolta-se, consola-se; vai até o limite de si, ainda que sem evadir-se de seu vínculo afetivo por meio do suicídio - veículo de fuga de sua esposa. Em meio a esta perda – o suicídio recém ocorrido -, Paul encontra Jeanne, uma jovem para quem o relacionamento possível e provável, com 225


um rapaz de sua idade, parece insosso. Sua opção afetiva é, portanto, em certa medida, uma regressão, pois não deseja aquele ser frágil produzido pela contemporaneidade, mas um protetor; um amante que pudesse acolhê-la com a solidez de um castelo, de que ela sem dúvidas seria a princesa. Seu desejo se resolve, contudo, no encontro com um anti-herói, que não acreditando no papel de príncipe, o exerce apenas para poder ser um tirano e, por esta via, exercer todo seu sadismo e agressividade. O relacionamento entre ambos converte-se, então, em uma dimensão paralela, e não apenas pela recusa de conhecerem o passado e nomes de cada qual; por se encontrarem em um lugar abandonado de todos. Eles, a rigor, caem em um fosso do tempo, de que o apartamento em que fazem sexo freneticamente é uma metáfora: não estão habilitados ou dispostos a viverem os novos papéis sexuais, conforme a contemporaneidade os propõe. Paul, ainda que saiba serem ridículas as demandas afetivas de Jeanne, vive seu romance 226


como uma desforra contra sua mulher, que além de traí-lo, abandonou-o. Jeanne, à sua vez, adere ao jogo, não por ter aceito suas regras, mas por guardar a firme expectativa de que poderia mudálas. Sucumbem, deste modo, à dinâmica sadomasoquista, que só poderia ser superada pela renúncia às regras que se impuseram, quando do encontro original. Houve, de fato, uma tentativa nesse sentido, mas fora daquela realidade paralela em que viviam, Paul já não era mais do que um homem qualquer. Perde-se, portanto, a fascinação e a idealização e, em consequência, rompe-se todo o poder mágico que Paul exerce sobre Jeanne. Tal situação, contudo, não poderia ser aceita, porque fora do vínculo com uma mulher, aquela mulher, provavelmente Paul não suportaria a existência. Talvez a grande questão de O último tango em Paris esteja justamente aqui: até que ponto o amor, conforme ele existe na sociedade burguesa, não é diretamente uma simbiose? Na simbiose, contudo, o amor é a perda da individualidade e, portanto, uma potência de morte, e não de vida. A 227


mulher que mata e a mulher que se mata são elementos de uma mesma asfixia, que o amor nos quadros da sociedade burguesa é. Sob este aspecto Jeanne e a esposa suicida são a mesma pessoa; ainda que representações de diferentes aspectos de uma mesma impossibilidade afetiva, que se resolve, de todo modo, na morte.

Figura 63 - O último tango em Paris (Bernardo Bertolucci, 1972)

Paul, por sinal, enuncia a chave desta questão: quando fala do príncipe, que deveria proteger o personagem feminino, inverte seus termos, para afirmar que aquele herói haveria, por fim, de tomar o corpo de sua amada por uma fortaleza, dentro da qual ele se abrigaria, como um direito de 228


recesso contra o mundo. O amor burguês é, portanto, igualmente, a história de uma individualidade roubada, e esta individualidade é a da mulher, que tem seu corpo e seu ser convertido em remansos de um herói decrépito. Psicose (Hitchcock, 1960)

Figura 64 - Psicose: o chuveiro http://www.youtube.com/watch?v=1YLlqg9l0s8

Psicose é provavelmente um dos filmes sobre os quais mais se escreveu ao longo da história do cinema. Merece atenção particular da crítica a cena do chuveiro, em que Lila Crane é assassinada. De fato ela é um primor como concepção, e talvez 229


não caibam acréscimos a tudo que já foi dito e escrito. Quando se considera a totalidade do filme, por outro lado, compreende-se o que é o virtuosismo no uso da câmera, bem como a linguagem do cinema em seu formato mais puro e estrito: o valor supremo da imagem.

Figura 65 - Psicose (Hitchcock, 1960)

Hitchcock filma como quem escreve poesia, coloca toda a sua capacidade expressiva a favor da linguagem cinematográfica, de modo que a imagem surge límpida e potente; uma presença tão plena que nos traga, como se fora a cena a nos sorver. A potência expressiva que a câmera captura é de tal ordem porque, em certa medida, ela preserva a o máximo de concisão: cada 230


fragmento contém, em si mesmo, algo de épico. Neste aspecto são memoráveis a) o close sobre o ralo da banheira, por onde esvai o sangue, que é sucedido pela tomada do olho da vítima, que se resolve em um afastamento da câmera, até que se evidencie a totalidade do ambiente; b) o corpo inerte de Lila, abandonado a si mesmo, em uma posição provavelmente insuportável para a atriz, mas altamente verossímil, para as condições em que se deu o crime; c) a mosca sobre a mão de Normam Bates, quando a cisão de sua personalidade, se resolvera na predominância da mãe sobre seu psiquismo. Compreende-se, assim, que Hitchcock faz cinema tendo por prioridade a imagem; serve e faz servir à câmera, com o que cria algo que vai muito além da estória que narra: arrasta o olho para um outro mundo, algo que só é dado ao cinema fazer. Por meio deste uso virtuoso da câmera o filme é uma afirmação metalinguística, na justa medida em que se o nega como ilustração de uma estória, forma alusiva e subalterna, em que a imagem se submete de modo imediato ao enredo. 231


Figura 66 - Psicose (Hitchcock, 1960)

Outubro (Eisenstein, 1928) O tema do filme é a Revolução Socialista de 1917 e, dado o fato de que fora encomendado pelo próprio partido, deveria, como o fez, ser um elogio da revolução. Parte do brilhantismo já está contido aqui, contudo: atendo-se ao momento revolucionário em si mesmo, evitou ser uma ode ao poder, que, já à época de sua realização, se estava institucionalizando na União Soviética. Bem ao contrário, no elogio da revolução que faz, na crítica social que busca obstinadamente, Outubro se antecipa como elemento de reflexão quanto aos 232


rumos que tomaria o regime soviético, ou seja, sua propensão à aristocratização e centralização burocrática.

Figura 67 - Outubro (Eisenstein, 1928) http://br.youtube.com/watch?v=x0QAjpeosgU

Eisenstein foi, no entanto, mais ousado ainda, uma vez que abusou do experimentalismo na fórmula, para suplantar as restrições que sofria na condução geral do filme, que chegou a ter vários pontos censurados. O simbolismo é exaustivo e está a serviço da realidade e do realismo, para lhes 233


amplificar a potência dramática. Deste modo, por exemplo, a insensibilidade das classes dominantes é apresentada em várias tomadas, indo desde a metralhada pura e simples contra uma manifestação popular, até o levantamento da ponte que separa o centro da cidade, núcleo do poder, dos bairros operários. Vê-se, aí, um manifestante sendo agredido por personagens, trajados com todos os signos burguesas da época: trata-se de uma espécie de festim, onde ao medo da sublevação popular se segue o prazer sádico de agredir e de humilhar. Naquela mesma ponte, ainda, dois mundos que só se reuniam na condição de o fazerem sob o comando burguês, fixando-se de antemão a condição subalterna do proletariado. Na mesma linha narrativa, o cavalo dependurado na ponte, já morto, é mantido longamente suspenso no ar, contrabalançado exclusivamente pela carruagem, à qual continua atado. Sua longa agonia só é aliviada pela ruptura das amarras que o prendiam ao peso que estava eternamente condenado a carregar – na sociedade burguesa somente a morte, portanto, libertava o proletário. 234


Como elementos de enorme poder simbólico é possível indicar o poder tornado efígie, que se obtém através da sobreposição do busto de Napoleão Bonaparte sobre os dirigentes do governo provisório, anterior à tomada do poder pelos bolcheviques. O aparecimento onírico de inúmeros símbolos religiosos, indo desde um padre ortodoxo, com sua cruz, sucedido por budas e divindades de outras religiões. O giro dos relógios, de outra parte, onde se notam os distintos fusos horários de várias capitais mundiais, indica a importância nuclear e central da revolução, que passa a ser ela própria um novo vetor de tempo, ao qual todos os demais devem, de algum modo, passar a fazer remissão. Deve-se observar, por fim, a sistemática e metódica construção dos personagens coletivos, cujas características são indicadas e elucidadas ao longo de todo o filme, com um verdadeiro rigor pedagógico. Não há, contudo, uma tese quanto àquilo que seria o ente burguês e o proletário, mas uma longa tessitura de suas faces, que se resolve, ao final, através da superação dialética do regime 235


burguês, na revolução. O personagem como um coletivo é uma preocupação presente igualmente em Encouraçado Potemkin, onde a população de Odessa e a tripulação do navio são os verdadeiros protagonistas do filme.

Figura 68 - Outubro (Eisenstein, 1928)

Tempos modernos (Chaplin, 1936) Sobre este filme praticamente tudo já foi dito. É necessário, no entanto, chamar atenção para alguns pontos, que são importantes não apenas para a sua análise, mas mais especialmente para a 236


compreensão da modernidade, conforme ela foi apreendida entre o final do século XIX e início do XX.

Figura 69 - Tempos modernos (Chaplin, 1936)

Em primeiríssimo lugar é de se evidenciar a desproporção entre o corpo humano, sua fragilidade, e a enormidade da máquina e do mecanismo da fábrica. Não por acaso, portanto, esta mesma máquina acaba devorando homens, engolindo-os, no que, a um tempo, deles se nutre, 237


mas igualmente os destrói, restituindo-os a vida apenas como forma espectral e inerte. Há ainda a subversão de todo o ritmo especificamente humano, que acaba por se subordinar irrestritamente à linha de montagem, levando Carlitos, especialmente, a um absoluto descompasso motor, que se resolve no nervous break down. Note-se, a este respeito, que a desproporção entre homem e máquina, quando levada ao seu limite, se demonstra na guerra moderna, que por não diferenciar entre população civil e militar, é diretamente um destroçar de corpos; um aniquilamento inevitável, como forma mesmo de exprimir que aquele gigantismo, no imenso de seu poder, não pode mais discriminar e está constrangido a ser massivo em todas as suas manifestações. A eficiência e a eficácia se realizam, portanto, para além dos limites estritos do progresso, e se desdobram igualmente em destruição aberta e barbárie. O operário de Chaplin, de outro lado, é um proto proletário e, portanto, não luta por pão 238


como aquele que encontramos em Outubro, de Eisenstein. Ele é, ainda, uma espécie de parisiense em 1789, dividido entre sua condição proletária e a possibilidade de se tornar um burguês. Não é casual, portanto, o devaneio com a casa burguesa, com os hábitos e signos da classe média americana. Esta tensão, contudo, não se resolve de modo satisfatório, nem para Carlitos, nem para sua amada: eles não têm um lugar na nova sociedade, porque rigorosamente não foram sociabilizados para ela: guardam ainda frescas as memórias de um mundo pretérito, onírico, que é irredutível à demanda de produtividade que a modernidade exige, como bilhete de entrada.

Figura 70 - Tempos modernos (Chaplin, 1936) 239


http://br.youtube.com/watch?v=VTgeNw1guBs

É claro que muitos, e talvez com legitimidade, vejam neste Chaplin um elemento conservador, que recusa em seu particularismo as formas coletivas engendradas pela modernidade. É possível, contudo, ler um elemento trans temporal naqueles personagens que caminham, de braços dados, por uma estrada entardecida que conduz a lugar algum: somente o lúdico é radicalmente crítico; somente o palhaço, coeterno com o onírico, pode empreender uma crítica radical, pois ele é, em sua não funcionalidade e recusa de operosidade, a reminiscência de um outro estado do ser, que é fraterno para com o universo e que se encontra reconciliado com a natureza. Um corpo que cai (Hitchcock, 1958) Alfred Hitchcock é famoso por tomar como tema o conflito entre seus personagens masculinos e femininos, não sendo incomum que os coloque em posições invertidas, ou seja, o homem apassivado ao lado de uma mulher em condição ativa (situação de Uma Janela Indiscreta, por exemplo). 240


Em Vertigo, contudo, há uma construção psicológica de extremo interesse. Vejamos a situação: o protagonista foi enganado por uma mulher, que havia atuado como sósia da verdadeira vítima em um assassinato, no qual ele fora envolvido como uma espécie de laranja, ou seja, fora usado para acobertar o verdadeiro criminoso – o marido da vítima. Obviamente ele não sabia desta duplicidade: a vítima real e a farsante, por quem acaba se apaixonando, mas como quem se enamora de uma imagem, um portrait (que era o da esposa, que fora verdadeiramente assassinada).

Figura 71 - Um corpo que cai (Hitchcock, 1958) 241


http://br.youtube.com/watch?v=trDqSL_RAsY

Como a representação pela qual se apaixonara está efetivamente morta - ainda que jamais tenha estado em contato com a vítima real - cai em profunda depressão. Fica obcecado então; passa a vê-la e ansiar por ela, em muitas das mulheres que encontra. A certa altura, em sua busca por aquela imagem evadida, acaba realmente por encontrar a farsante; mas se conhecem como quem se reúne em um novo affair. Este encontro, do ponto de vista do protagonista estava motivado, porém, não pelo novo, mas pela imagem do velho, à qual não consegue renunciar. O romance evolui, portanto, como um permanente e contínuo constrangimento do personagem feminino, no sentido de tentar fazer com que ela se aproxime e reflita a imagem que o herói tem em sua mente: ela é, então, forçada a se vestir como a mulher idealizada, a se comportar como tal; a se maquiar, a pintar o cabelo, e assim por diante, até que chegue efetivamente à igualdade total, na qual o protagonista descobre, para seu desespero, tanto o objeto de sua paixão, 242


quanto a mulher que o enganara. Duplo tormento, pois a imagem finalmente realizada impossibilita e paralisa o relacionamento amoroso, que se resolve, para a mulher, no suicídio.

Figura 72 - Um corpo que cai (Hitchcock, 1958)

Hitchcock, portanto, em Um corpo que cai, faz uma rigorosa incursão sobre o amor em geral e o platônico em particular. Conduz, para tanto, o argumento até os extremos de seu poder criativo: o protagonista, a rigor, desde o momento em que encontra a sósia como mulher verdadeira, ou seja, em sua própria pele, passa a atormentá-la para 243


reduzi-la a uma imagem e a uma memória. Constrói, deste modo, sistemática e resolutamente não um ser, mas uma máscara mortuária; o rosto como efígie, e leva esta busca alucinada até o ponto em que a vida se torna impossível. Nascido para Matar (Stanley Kubrik, 1987) O filme retrata as rotinas de treinamento e de guerra de um grupo de soldados americanos, à época do conflito do Vietnã. Seu elemento mais interessante, contudo, está no modo como o oficial prepara a tropa. Ao longo de todo o tempo ele afirma que os recrutas não passam de vermes, excreções de toda a ordem, efeminados, escória, estúpidos; pessoas às quais faltam as mais elementares condições que poderiam definir um ser humano. Este status só irão adquirir, segundo o oficial, no dia em que completarem seu programa de treinamento e se tornarem efetivamente membros do exército americano. Há, como elemento complementar, uma tentativa de excluir os soldados da realidade normativa, conforme ela se oferece ao comum dos 244


humanos. O soldado é deliberadamente treinado para matar; para ansiar no combate a possibilidade do extermínio; é verdadeiramente torturado para suplantar qualquer restrição ética, no que se afirmam a vitória e a sobrevivência como valores supremos. Estas metas são levadas até os limites extremos da sanidade, de tal modo que, a certa altura um recruta acaba por assassinar o oficial, para depois cometer suicídio.

Figura 73 - Nascido para Matar (Stanley Kubrik, 1987)

245


Com relação aos princípios que orientam o treinamento dos recrutas é de se notar que há uma dinâmica perversa em jogo: quando o soldado deixar sua condição infra-humana, quando se converter em uma potência mítica – a força irresistível do american army, no qual todos são instados a se dissolver, como renúncia explícita da individualidade – ele verá automaticamente, como seres desprezíveis, todos aqueles que dele diferem e, especialmente os inimigos, que perdem sua condição humana.

Figura 74 - Nascido para Matar (Stanley Kubrik, 1987)

246


De outro lado, a subtração da realidade em favor de um mundo em que o não matarás se converte diretamente em uma ordem de assassínio, já se podia encontrar na própria ideia de campo de concentração. Em certo momento do filme, um soldado que atira a esmo contra camponeses vietnamitas é indagado se já havia matado crianças e mulheres. Ele diz que sim, pois são alvos de menor mobilidade. Justifica ainda a série de assassinatos que perpetra afirmando que aqueles que correm são comunistas; ao passo que os que não fogem são comunistas disciplinados. Nesta indiferença para com o outro, continua a matança.

247


Luzes da Ribalta (Chaplin, 1952)

Figura 75 - Chaplin: o palhaço http://br.youtube.com/watch?v=ZUpiD8vEw2Y

O roteiro tem um tom claramente melodramático e muitos dos diálogos, rigorosamente falando, não passam de “humanismo de folhetim”. Ainda assim, há um elemento perturbador nesta película: quem é, verdadeiramente falando, o palhaço que aparece recorrentemente nos filmes de Chaplin, como alguém que está de partida? De que trata efetivamente esta despedida do mundo? Em Limelight há uma morte em sentido estrito, mas em Tempos Modernos trata-se de uma cena 248


antológica, em que o herói, de braços dados com a heroína, caminha por uma estrada cujo destino é o horizonte, um sunset, completamente vazio de edificações humanas – um firmamento primeiro, original, como prenúncio da morte. Na figura completamente patética do palhaço decadente de Limelight, que perdeu contato com o público, o que se está perdendo? Ainda que o enuncie de maneira desesperada; ainda que confunda a tendência que captura com sua própria autobiografia, Chaplin não dá a esta antevisão uma forma fechada e coerente, mas faz o bastante para que possamos compreender que é o lúdico que está se evadindo. É o mundo onírico que, de certo modo, está sendo esvaziado de seus componentes verdadeiramente arquetípicos - de que o palhaço é um exemplo notável -, para ser invadido por representações prontas, de encomenda; onde tudo que é verdadeiro e original passa a ser, igualmente, uma fraude e uma manipulação. A pureza beirando o piegas de Chaplin é, deste modo, um lamento pelo morticínio do espontâneo, uma agonia diante da evidência segundo a qual toda expressão passa 249


a estar sujeita e determinada pelo esquematismo, no qual o palhaço como ser indomável, como o improvável no possível, não tem mais lugar. Casablanca (Michael Curtiz, 1942) A grande estrela de Casablanca é a película em preto e branco e, consequentemente, a iluminação. Revela-se, deste modo, o enorme poder dramático da imagem, quando ela ainda não estava completamente subordinada ao mimetismo da cor.

250


Figura 76 - Ingrid Bergman e Humphrey Bogart http://br.youtube.com/watch?v=q_904RjfdhQ

Em Casablanca a beleza de Ingrid Bergman não resulta de si mesma, mas é um produto, uma construção, na qual seus traços são ressaltados até o limite, como se expressos por um desenho. Suprema simplicidade, através do terrível poder 251


expressivo das linhas: sua beleza, deste modo, é também um desespero e uma angústia; o terror de uma cisão, aquela de um amor partido. Esta ambivalência, que é a da época, ou seja, da guerra, na qual a luz vive uma fusão mórbida com a sombra, é exaustivamente retratada em cada personagem. Na enorme maioria dos closes, portanto, a tomada é feita pelo lado oposto ao da iluminação, de maneira que cada face traz um lado escuro, sombrio; a guerra como elemento individual - ameaça, incerteza e indeterminação. O que nos destina a vida, quando o aleatório da morte se converte em realidade insofismável? No preto e branco do filme existe, portanto, um longo exercício sobre a potência expressiva da luz, como elemento da linguagem fílmica. Dificilmente se pode, de outro modo, representar de maneira tão aguda e violenta aquela luta mítica, arquetípica, entre o diurno e o noturno; o que é claro e aquilo que resta subliminar; o solar e o soturno.

252


Figura 77 - Casablanca (Michael Curtiz, 1942)

O evangelho segundo São Mateus (Pasolini, 1964) Raramente se pode ver em uma película um tratamento tão primoroso da imagem: uma tentativa de representar o drama divino por intermédio da beleza suprema, enquanto simplicidade. Há momentos em que o fotograma quer ser não apenas uma foto, mas uma representação pictórica da história de Cristo; uma obra de mestre, no que almeja estar ao lado de 253


toda a tradição artística da humanidade, especialmente em sua vertente latina. Nas figuras de Jesus e seus apóstolos, Maria, José há uma altivez que se afirma como superação da miséria; um para além do humano, como dignidade diante do mundo e de suas impossibilidades; uma compreensão da necessidade como desprendimento perante a vida. Nega-se, deste modo, o supremo valor da vida burguesa - a autoconservação -, pois o próprio Cristo, no cumprimento exato e obstinado de sua missão, é o amor como entrega; a renúncia de si, para a afirmação e engendramento de uma nova comunidade. Existe, igualmente, ao longo de todo o filme uma exaltação da palavra, do texto bíblico, em sua forma direta e, portanto, anterior e avessa à institucionalização que a Igreja representa. A potência da palavra e seu poder advêm, portanto, não do discurso organizado por uma agência, mas exatamente da negação daquela mesma institucionalização. Fala aqui o Pasolini poeta, que compreende ser a palavra e o discurso, já e em si 254


mesmos, uma tentativa de organização total do mundo, razão pela qual a palavra jamais é inocente, ainda que possa ser santa.

Figura 78 - O evangelho segundo São Mateus (Pasolini, 1964) - Colagem

Deve-se tomar atenção, por fim, à figura de Judas. Ele é reiteradamente contrastado com Jesus, mas não é de oposição exatamente que se 255


trata. A rigor, tanto um quanto outro, cumpre seu destino, que os transcende e ao qual devem ambos, de todo modo, se sujeitar. O mal supremo perpetrado por Judas é de tal ordem que não poderia ser evitado; é a representação de uma potência cosmogônica, de que ele é apenas um agente. Esta potência, contudo, serve de contraste e matiz para o mal que poderia ser superado e recusado; aquele dos homens que escolhem, por iniciativa própria, a conveniência e o poder - seres de coração duro, que jamais poderiam perceber Cristo como Messias. Talvez seja exatamente esta a missão de Judas, especialmente segundo a interpretação de Pasolini: ele revela o crime, a ignomínia, como obra do pequeno mal, da pequena vilania, do pequeno apego, sem os quais nenhum grande mal terreno teria verdadeira substância. Judas, neste aspecto, é um elemento de natureza; uma força no drama de Cristo e, em certa medida, uma porção inerente a ele mesmo como ser e personagem. O que fazem os homens, contudo, não é de modo

256


algum natural; fazem história e, portanto, têm sobre ela responsabilidades diretas. Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens (F.W. Murnau, 1922) O Nosferatu de Murnau revela porções do vampiro que as versões mais modernas, de um modo geral, não preservaram: a condição simbólica de uma sombra que ronda a civilização. O mal como grandeza metafísica, como o absoluto, não existe por si e em si, mas é uma relação com o pequeno mal, sem o qual não poderia haver o mestre da noite. O servo de Nosferatu, portanto, não é tipificado de uma maneira aleatória: assemelha-se a um notário; é um representante do dinheiro; um ávido pelas sobras de poder, pelas migalhas que seu senhor deixa cair da mesa. A representação de Drácula, conforme ela nos é indicada por Nurnau, tem muito pouco a ver com aquilo que o clichê nos proporciona: um tipo enorme, claramente supra-humano, feio e repugnante; cujas mãos são indicadores de uma natureza maquinal, como se nelas se reunissem 257


poderosas lâminas de uma ceifadeira. E, de fato, ele ceifa vidas; é uma grandeza da morte. Estranhamente, contudo, Nosferatu representa também uma transação, no sentido mais estrito do termo: o preço de sua partida, ou seja, do mal como grandeza metafísica, é a pureza da heroína. Satisfeito nesta demanda, ele se reduz novamente a pó, libertando o mundo de sua presença e do vaticínio que representa. Mas o que isso indica?

Figura 79 - Nosferatu (F.W. Murnau, 1922) http://www.youtube.com/watch?gl=BR&hl=pt&v=hoTeq9h8cv4

258


Talvez que o mal supremo seja irmão gêmeo do bem supremo, de tal maneira que o custo da civilização é a renúncia a estas potências extrahumanas. Esta assertiva é rica em possibilidades: se pensarmos os fundamentalismos como tentativas de absolutizar o bem; de torná-lo uma força que transcende a experiência propriamente humana, eles não equivaleriam em resultado ao poder destrutivo que seu oposto, o supremo mal, representa? E os servos destas causas extremas, o que são senão espectros, cujas vidas se dedicam a preservar algo que os transcende, mas de onde resgatam a sua extrema fraqueza e insignificância como poder supremo de vida e morte? O Nosferatu de Murnau é uma equação mítica, cujo outro termo é a pureza virginal e a perfectibilidade. Propaganda e naturalização Na realidade, aquilo que permite ao leitor consumir o mito inocentemente é o fato de ele não ver no mito um sistema semiológico, mas sim um sistema indutivo: onde existe apenas uma equivalência, ele vê um sistema causal: o 259


significante e o significado mantêm, para ele, relações naturais. Pode-se exprimir esta confusão de um outro modo: todo sistema semiológico é um sistema de valores; ora, o consumidor do mito considera a significação como um sistema de fatos: o mito é lido como um sistema fatual, quando ele é apenas um sistema semiológico. (BARTHES, 1989, p. 152) A meta precípua da propaganda é a naturalização, razão pela qual, ainda que ela incite e solicite, seduza e conquiste, flexiona todo verbo no imperativo: por se propor como sendo “da natureza das coisas”, tudo que ela revela e apresenta é uma determinação; uma obrigação insuperável de fazer; demanda de adesão incondicional. Segundo sua lógica peculiar, não trata, pois, de valores, mas de fatos contra os quais não adianta opor-se: reside nesta transmutação seu poder de seduzir e, capacidade sub-reptícia, de fascinar e escravizar. É deste modo que se constrói a necessidade sobre o terreno pantanoso do contingente: a propaganda é uma operação 260


simbólica; uma manipulação científica do imaginário; invasão do mais profundo intimismo, que é, porém, recorrentemente esvaziado de seus conteúdos, por uma vida completamente administrada e sem sentido; heterônoma. Trata-se, portanto, de programação e do mais sofisticado planejamento, mas sob a condição estrita de ser representado como aquilo que é absolutamente espontâneo; que nasce diretamente das entranhas do ser, como se independente de qualquer relação social. Este processo de prestidigitação, ainda que fundamentado na modelagem do imaginário, visa em caráter final fabricar identidades, operação que torna a atração em direção ao objeto não algo de exterior ao ser – consumo de entes materiais e símbolos, para sua manutenção e satisfação -, mas uma determinação e condicionamento de sua própria existência enquanto tal; ontologia moderna. Na propaganda fabricam-se identidades como fatos de natureza, justamente porque a vida societária é diretamente o processo de eliminação 261


e negação de toda individualidade. Ou seja, justamente porque na vida social destrói-se recorrentemente o indivíduo, a propaganda pode recriar as identidades não como aquilo que particulariza e afirma a individuação, mas em conformidade com o modelo, que é da ordem da série. Seu pluralismo, diversidade e diferenciação são, portanto, a negação de tudo que é espontâneo; o múltiplo como o que é igualmente estéril; o exemplar na sucessão infinita; ordenamento estético do mundo, na forma da submissão de toda estética às necessidades da produção e reprodução da coisa-capital. Em um mundo árido, estéril e devastado, a propaganda é a árvore artificial; o choro pedagógico do filme B; o sentimento de empréstimo; o amor que não corre riscos; o relacionamento com o outro como autoelogio e cálculo de conveniências; a network como sucedâneo do relacionamento interpessoal. Na propaganda o homem coisificado simula uma humanidade, ao mesmo tempo que dissimula sua monstruosidade constitutiva e seu caráter 262


fantasmático. Sob seu domínio entende-se o significado mais extenso da obra de arte em sua fase de reprodutibilidade técnica: a estética tornase potência política, uma vez que, é por meio do engendramento de identidades e da manipulação do imaginário, que se produz o homem, de conformidade com as necessidades da ordem – o autômato em lugar do ser autônomo. Nisso se compreende o quanto a estética está relacionada, às expensas da vontade de todo artista, às determinações e exigências da propaganda: in fact qualquer obra é uma possibilidade de manipulação e subversão para os fins da ordem, em sua ânsia de subordinar todas as possibilidades de representação. No terreno da estética trava-se, portanto, uma luta de vida e morte, em nome da liberdade. A propaganda é, igualmente, um flerte ambivalente com a massa, que ora é representada com todo o poder do grande número, sendo nisso uma demanda de adesão às possibilidades avassaladoras e irreprimíveis da turba; ora se insinua como aquilo que deve ser evitado, e de que 263


se faz necessário diferenciar a qualquer custo. Trabalha-se, portanto, exaustivamente sobre os mitos constitutivos da modernidade: a cidade, o trânsito, o tráfego, a multidão – o poder aterrador que encerram; a contínua ameaça de desindividualização; os sentimentos atávicos, a raça reunida, mas também a torcida enlouquecida no estádio, os consumidores de tênis Nike, de Coca-Cola, etc. Abrigado na massa, mas igualmente ameaçado pela dissolução individual: por isso toda propaganda, no universal que propõe e almeja, é uma declaração de exclusão. Ao identificar alguns ou muitos, nega tantos outros, aos quais se recusa acesso ao objeto de consumo e signos a ele associados. Da mesma ordem do prazer de pertencer a um grupo, mais ou menos restrito, é, portanto, aquele de constranger à exclusão tantos indivíduos quanto possível. Mas de que ordem é este prazer? Isso nós já o vimos: trata-se de sadomasoquismo; identificação incondicional com o ingroup e projeção das tendências agressivas contra o out-group. 264


Figura 80 - Príncipe saudita é o 1º dono particular do maior avião do mundo, o A380

Resta, contudo, um enigma nesta formulação: e aqueles que, no consumo, tem condições de excluir praticamente todos os mortais; os compradores de jatos do porte de um Airbus A 380 para uso pessoal: com quem eles se identificariam, se seus padrões de consumo são praticamente impossíveis de serem reproduzidos? Esses são as subjetivações do capital enquanto potência produtiva; representações humanas de sua natureza descomunal e hostil – homens tabus, que denegam, por sua condição objetiva no processo de produção da vida material, o propriamente humano, para serem representações diretas e imediatas de uma relação social. Nessa 265


despersonalização, nesse desfazimento da subjetividade, em que pese seu poder absoluto de exclusão, cada um desses superconsumidores é igualmente uma fusão, qual seja, entrega total aos desígnios do capital, de que seu próprio consumo conspícuo não é mais do que índice imediatamente funcional: despesa de representação; investimento em um sistema simbólico. O preço do cinema (...) A quantificação da qualidade – (...) Reduzindo toda a qualidade a uma quantidade, o mito faz economias de inteligência: compreende o real por um preço reduzido. Já dei vários exemplos deste mecanismo, que a mitologia burguesa – e, sobretudo pequeno burguesa – não hesita em aplicar aos fatos estéticos, fatos esses que, por outro lado, ela diz participarem de uma essência imaterial. O teatro burguês é um bom exemplo desta contradição: por um lado, é apresentado como uma essência irredutível a qualquer linguagem, e que se 266


revela somente ao coração, à intuição; esta qualidade confere-lhe uma dignidade desconfiada (é proibido como crise de “lesa-essência” falar do teatro cientificamente, ou melhor, qualquer forma intelectual de colocar o teatro é desacreditada sob o nome de cientismo, de linguagem pedante); por outro lado, a arte dramática burguesa repousa numa pura quantificação de efeitos: todo um circuito de aparências computáveis estabelece uma igualdade quantitativa entre o preço do bilhete e as lágrimas do ator, o luxo do cenário; aquilo que se chama, por exemplo, o “natural” do ator é, antes de mais nada, uma quantidade bem visível de efeitos. (BARTHES, 1989, p. 173-174) Uma das convicções mais caras ao mundo burguês é aquela segundo a qual a arte é uma manifestação do território do coração, do sentimento e da sensibilidade, e na qual a racionalidade e o pensamento, o trabalho 267


sistemático e a busca obstinada do equilíbrio dos elementos formais seriam não mais do que convivas indesejados e, em certo grau, incompatíveis com a espontaneidade e fluência que a criação estética requer. Conseqüente com esta maneira de conceber, recusa-se toda compreensão intelectual da estética e da obra de arte, que remanescem, portanto, irredutíveis aos termos do pensamento, para se converterem em sensualismo degradado, apreensão tátil: “o filme sensível, a peça que me tocou profundamente”. Segundo este modo de conceber, o artista converte-se em um médium, que põe o público em contato com porções obscuras de sua alma, levando-o em consequência a uma elevação existencial (espiritual). Por meio desta experiência lacrimosa e eivada de boas intenções salvam-se todos, de tal maneira que ao fim, aquilo que o preço paga é o retorno aliviado ao lar, na firme convicção de que se é um ser humano de qualidade superior àquele que entrou originalmente em contato com o artefato cultural.

268


Este modo de apropriar-se da arte independe das intenções do criador e resiste obstinadamente a todo e qualquer intento crítico, pois reflete a religião burguesa, naquilo que é o seu cerne: a crença resoluta que o mundo está fadado a redimir-nos; que todo final reserva, de algum modo, um desfecho feliz, com que se afirma de maneira categórica que a contradição é uma falsa compreensão e ilusão, que se verá devidamente esclarecida e resolvida no momento adequado. Esta maneira de compreender a vida, que se reproduz continuamente como programa estético da industrial cultural, é uma forma necessária: uma vez que o mundo se apresente como oclusão; que a vida em suas determinações se torne tão certa e pré-determinada, que todas as probabilidades estejam devidamente calculadas, a esperança é depositada em uma aposta estética, esteticista, que nega justamente esta rigidez e total determinação, na qualidade de desfechos eterna e recorrentemente abertos, onde as contradições são negadas e superadas pela falsa síntese, onde todos, com enorme alívio, se reconhecem e redimem. 269


Compreende-se, então, que o artefato da indústria cultural, em suas manifestações particulares, consista simples e diretamente na reprodução diferencial da fórmula do livro de autoajuda, onde se faz a mescla mais ou menos absurda e bizarra de todas as sortes de patuás, mantras, pequenas rezas e tradições culturais. A cultura que denega a contradição, que transforma o final feliz em ornamento utópico de uma distopia industrialmente produzida rejeita, por esta artimanha sistemática, a morte e seus índices, com o que afirma a ilusão e a autoilusão como os elementos mais materiais e palpáveis da realidade. Supondo provisórias e transitórias, contingentes, as estruturas ossificadas e fossilizadas da existência, a religião do final feliz perpetua as condições de uma vida espectral; transforma as formas cadavéricas, vazias e degradadas do humano em seres exuberantes, cujas vidas psíquicas não passam de território obsedado por conteúdos imagéticos e simbólicos que não produziram.

270


Na arte, portanto, o bom burguês procura e demanda não apenas o efeito de elevação, mas um suporte etéreo para sua vida privada de conteúdo; requer um rosto para sua face estraçalhada e estilhaçada. O ingresso que paga, o valor que despende devem, em consequência, resgatar centavo a centavo sua alma já hipotecada, de tal forma que o efeito estético; a sensação que produz sobre si, é mesurada até a mais completa perfeição. Se este toque mágico não se produz; caso não ocorra a operação alquímica da transformação e transmutação do que é miserável no ser redimido, vive-se a certeza irremediável da traição, cujo gosto final é aquele do dinheiro inutilmente desperdiçado. O burguês é, como todos o sabemos, um pragmático: na arte como no sexo, requer performance e o dinheiro é o avatar de seu poder. Enxerga, portanto, na arte a imagem sublimada da prostituta, em quem deposita os mesmos sentimentos ambivalentes: esperança de prazer sensual e fúria pela frustração – afinal de contas, seu dinheiro deve lhe comprar o paraíso. No 271


mundo burguês, portanto, o artista no mais alto de sua elevação não é mais do que um escravo sagrado, razão pela qual, tão logo tenha deixado de cumprir seu único propósito, ou seja, o de suporte para as esperanças e ilusões de uma existência desesperada, passa a ser investido de toda a agressividade gerada pela frustração de seus fãs, que passam a desprezá-lo com a mesma intensidade da antiga devoção. A crítica e sua natureza - I Insensatos os que lamentam o declínio da crítica. Pois sua hora há muito tempo já passou. Crítica é uma questão de correto distanciamento. Ela está em casa em um mundo em que perspectivas e prospectos vem ao acaso e ainda é possível adotar um ponto de vista. As coisas nesse meio tempo caíram de maneira demasiado abrasante sobre o corpo da sociedade humana. A “imparcialidade”, o “olhar livre” são mentiras, quando não são a expressão totalmente ingênua de chã incompetência. O olhar mais essencial 272


hoje, o olhar mercantil que penetra no coração das coisas, chama-se reclame. Ele desmantela o livre espaço do jogo da contemplação e desloca as coisas para tão perigosamente perto da nossa cara quanto, da tela de cinema, um automóvel, crescendo gigantescamente, vibra em nossa direção. E assim como o cinema não apresenta móveis e fachadas em figuras acabadas de uma consideração crítica, mas unicamente sua proximidade teimosa, brusca, é sensacional, assim o reclame genuíno aproxima as coisas a manivela e tem um ritmo que corresponde ao bom filme. Com isso, então, a “objetividade” é finalmente despedida e, diante das imagens gigantescas nas paredes das casas, onde “Chlorodont” e “Sleipnir” estão ao alcance da mão para gigantes, a sentimentalidade sanada se torna americanamente livre, assim como as pessoas a que nada mais toca e comove reaprendem no cinema o choro. Para o homem da rua, porem é o 273


dinheiro que aproxima dele as coisas dessa forma, que estabelece o contato conclusivo com elas. E o resenhista pago, que no salão de arte do marchand manipula as imagens, sabe, se não algo melhor, algo mais importante sobre elas que o amigo das artes que as vê na vitrine. O calor do tema desata-se para ele e o põe em disposição sentimental – O que, afinal, torna os reclames tão superiores à crítica? Não aquilo que diz a vermelha escrita cursiva elétrica – mas a poça de luz que espalha sobre o asfalto. (BENJAMIN, 1987, p. 54-55) É preciso superar a concepção segundo qual a crítica é exterior ao campo cultural propriamente dito, pois ela não é apenas parte dele, mas algo de todo essencial ao seu correto funcionamento. Não se trata em absoluto de um preconceito maniqueísta, que a imagina atuando com um propósito conscientemente comercial, apoiando a venda de livros, filmes, etc. As coisas não se passam de um modo assim tão simples e direto. 274


Em primeiro lugar porque a crítica atua segundo uma taxonomia necessária, ou seja, cataloga, classifica, cria gêneros, dos quais se torna especialista e última palavra sobre a história, tendências, biografias, etc. Neste preciso sentido ela é uma potência de organização e orientação, uma força correlata e necessária à estruturação do campo cultural como indústria de imensa produtividade. Em sua atividade frenética, na metástase a que dá causa, a crítica vai muito mais longe, contudo: ela ajuda a compor e referendar os valores e a estrutura simbólica que convertem um determinado produto cultural em obra digna de consumo; codifica a produção de um campo que não tem um código implícito, e que renega o cânone, na firme convicção de que a obra de arte e o produto cultural em geral devem ser elementos de autoexpressão - decorrentes, portanto, da liberdade do artista em criar. Na ausência do cânone cabe à crítica, então, delimitar os contornos legítimos da produção cultural, certificar cada um de seus elementos, de modo que o 275


produto chegue ao público já devidamente submetido ao crivo da “vigilância sanitária” e dos “órgãos de defesa do consumidor”. Nesta atividade necessária, segundo a lógica de organização interna à indústria cultural, a crítica é, contudo, uma potência imediatamente mercantil. Não apenas porque normaliza o gosto ao ponto de catalogá-lo para reduzir as angústias do consumo e, em consequência, evitar o drama do dinheiro jogado fora e da frustração de comprar aquilo que não se deseja -, mas especialmente porque é propaganda, às expensas da vontade do crítico, e segundo uma linguagem que oblitera o marketing. Em seu caráter massivo obrigatório, em sua simultaneidade e contemporaneidade com objeto analisado, em sua ânsia de se antecipar e, portanto, antecipar, a crítica já é o reclame; a versão não autorizada, ainda que ansiosamente aguardada, do trailer, da sinopse e da resenha. Em sua concisão obrigatória, na leveza a que a constrange o jornal e os meios de comunicação de massa, a crítica funciona segundo a lógica formal da propaganda, de tal modo que incita ao 276


consumo, mesmo quando é destrutiva. Afinal de contas, seu juízo é sempre do terreno do gosto, está marcado pela tautologia e autorreferência, de tal maneira que toda negação é, igualmente, um desafio para ser contraditado; uma ambivalência que deixa a porta aberta, o que faz de toda sentença de morte uma declaração subliminar de clemência. (Ver BORDIEU, 1996, p. 259) A crítica e sua natureza - II Todo crítico é, em certa medida, um artista, o que se reconhece não apenas por suas veleidades e idiossincrasias, mas também pela agressividade que resulta de não ser reconhecido enquanto tal. Quando se pensa na natureza sistêmica da indústria cultural, compreende-se de modo categórico que ele tem razão, ao se irritar com o público, quando este não faz justiça à sua importância para o desenvolvimento da arte e às suas qualidades criativas e criadoras. No passado, com grande margem de certeza, a indiferença do público produzia enorme ressentimento, de tal maneira que o crítico tendia 277


com certa naturalidade ao anti-intelectualismo. Como, na atualidade, a própria arte é, em larga medida, anti-intelectual e francamente funcional, a própria realidade redimiu o crítico, que se adquiriu o status próprio à sua condição: é funcionário legítimo da indústria, com crachá e cartão de visitas, tanto quanto o é o próprio artista, que desliza, segundo o mesmo movimento, para a condição de simulacro e marionete. O produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas necessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da 278


obra, mas também a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra. Ela deve levar em conta, portanto, não apenas os produtores diretos da obra em sua materialidade (artista, escritor, etc.), mas também o conjunto dos agentes e das instituições que participam da produção do valor da obra através da crença no valor da arte em geral e no valor distinto de determinada obra de arte, críticos, historiadores da arte, editores, diretores de galerias, marchands, conservadores de museus, mecenas, colecionadores, membros das instâncias de consagração, academias, salões, júris, etc. (...) (BORDIEU, 1996, p. 259) Os limites do jornal: Caras e A Folha de São Paulo O jornal não se resolve em sua linha editorial. Ela, ao contrário, é ditada pelos movimentos sísmicos de seu público, que, de certo modo, o 279


editor procura desesperadamente acompanhar e antecipar. O jornal é um microuniverso, uma linguagem, um modo de ser e, em larga medida, uma estratégia de marketing e uma pequena fábrica de identidades. Nessa simbiose com o público leitor, recusa seu caráter republicano de origem, convertendo-se em mais um elemento a operar em prol da naturalização da existência. Não deve causar estranheza, portanto, que o jornal incorpore como elemento seu, de forma mais ou menos explícita, tudo aquilo que encanta a multidão: o sensacionalismo de tabloide, a violência da imagem, a comercialização do corpo e a invasão da privacidade, a celebridade e sua celebração em revista – este é um movimento expansivo ao qual não pode resistir. Exatamente por isso, o jornal sério flerta com tudo aquilo que entende degradado e, ainda que lhe atenue as formas, não pode recusar o conteúdo. Em nome e em benefício do leitor, portanto, alinha-se com as forças que querem reduzi-lo a pó.

280


Memória e temporalidade Nossa época elegeu a juventude como valor, mas o fez de tal modo que se recusou a entendê-la como uma condição e uma fase, um estado que se entrega ao tempo: nós a erigimos em perpetuidade. Privilegiamos, portanto, acima de tudo, a face perfeitamente esticada, o corpo moldado, a tez regularmente bronzeada, como se o corpo fosse destinado a ser refratário e hostil ao fluir do tempo. Este investimento do corpo, ainda que seja benéfico quando se o concebe de um ponto de vista puramente mecânico – a máquina, a engrenagem -, ou quando ele é pensado desde um ponto de vista estritamente biomédico - controle do peso, gestão do estresse, medicina preventiva, etc. - deixa pelo caminho elementos essenciais, sem os quais não é possível instituir a própria humanidade do homem, que é irremediavelmente um afluente do tempo: história, memória, afeto incomensurável pelo que foi e é, bem como por tudo aquilo que ainda virá a ser. Somos história no sentido mais absoluto do termo, pois existimos como relação com nossa 281


comunidade de origem e anseio de nosso território de destino; vivemos imersos no universo, de tal modo que de sua infinitude insondável ele não pode nos ser indiferente. Não se deve, portanto, almejar a saúde e a juventude, como expatriamento angustiado do tempo, pois nesta renuncia ao envelhecimento nos convertemos em seres unilaterais, cuja sina é viver um presente eterno, que não nos habilita à vida afetiva, uma vez que esta requer que amadureçamos, e de modo inexorável. As rugas – estas pequenas reentrâncias no rosto, sulcos na pele, que vão se alastrando pouco a pouco – e das quais nós somos ensinados a apercebermo-nos negativamente, são os suportes necessários, os ninhos e receptores, aonde a memória vem encontrar lugar e fixar território. Grava-se, assim, aos poucos, sobre nosso corpo, não o castigo que nos empregou a vida, mas os infinitos fotogramas que constituem, em sua soma, a totalidade de nossa trajetória e, portanto, nossa identidade como aquilo que excede a consciência que temos de nós mesmos: em nosso corpo 282


encontra-se, portanto, o registro cartográfico da totalidade de nossa existência. A cada pequeno traço talvez corresponda, como uma espécie de genética implícita, uma recordação e uma reminiscência, uma vértebra imaterial e sutil que, ao fim, nos empresta não apenas um rosto ou uma compleição física, mas um lugar significativo no mundo; um sonho de fraternidade e redenção; uma afirmação resoluta de que ainda esperamos por algo que excede o aqui e o agora - nossa alma ainda obstinada e inflamada quando, por fim, o tempo nos vencer e vivermos imateriais no amanhã, que tivemos coragem de desejar. Justamente nisso, quando nos defrontamos com o tempo, na condição daquilo que é finito, pode-se ver o quanto a modernidade, com o imenso de seu poder e produtividade, também é uma perda. A sociedade que nos quer eternamente jovens, e que renega a memória é exatamente a mesma que rejeitou toda oralidade, uma vez que esta pertence aos velhos, repositórios da tradição e, muito especialmente, da ancestralidade - índices vivos de uma continuidade 283


no tempo, que nos irmana e que requer, portanto, a comunidade e a frátria (mátria), como condição pragmática e como realidade prática. A modernidade, ainda que tenha nascido sob a égide das demandas por liberdade, igualdade e fraternidade, solapou as bases em que tais reivindicações poderiam ser “naturais”, uma vez que eliminou todas as formas de vida comunitária, para construir uma sociedade articulada a partir de outras ordens de vínculos. Os conservadores contemporâneos sonham, então, com o retorno à origem, como se tivesse havido e fosse possível, portanto, reconstruir uma ordem “natural”. Os que se mantêm, contudo, alinhados com o projeto iluminista e humanista, que sonham em superar a menoridade a que nos condena a ordem, sabem que o mundo do homem é o da cultura e, nesse sentido preciso, compreendem-no como irremediavelmente “artificial”. Exatamente por isso, contudo, lutam pela memória e pela história, pois somente nesta dimensão existe um homem integral e material; um ser dotado de projetos e expectativas, 284


batendo-se por direitos e justiça. É preciso, pois, não apenas conservar a memória; faz-se necessário edificá-la, por que ela é uma ponta de lança no tempo, nossa coexistência efetiva e palpável com todos aqueles que herdarão nossos sonhos e lutarão nossas lutas. Na memória, portanto, nos encontramos e reconciliamos com os homens pretéritos e futuros, para edificar tudo aquilo que a existência ainda nos nega. A memória, portanto, em certa medida, se opõe à ideologia, pois não renuncia a qualquer dos sonhos que fundamentaram o projeto da modernidade, mas os denuncia obstinadamente como irrealizados, na inabalável expectativa de que nossa luta haverá de materializá-los. Moda e grande indústria Ainda se pode considerar que o romantismo ao constituir a arte num objeto de livre escolha e gostos variáveis, desassociando-a de uma função direta na vida cotidiana, a mercadoria como bem cultural acessível a um consumo que se realiza pelo status que representa 285


(BOURDIEU, 1989). A moda fez igualmente aos seus produtos aquilo que os artistas românticos fizeram as suas obras e dinamiza o sistema econômico, onde foi gestada, de tal forma que não há capitalismo, sem a renovação sistemática dos gostos e nem grupo social dominante, sem a possibilidade de sua adoção imediata (BAUDRILLARD, 1995). Para Benjamin, como para Baudelaire, o conceito de modernidade origina-se do de Moda, pois esta exprime com propriedade aquilo que caracteriza a modernidade: a eterna volatização dos fenômenos. Contudo, em Baudelaire o conceito restringe-se ao campo das experimentações artísticas, sendo que o cotidiano, com sua velocidade e efemeridade, torna-se arte. Para o boêmio do século XIX, a moda seria o esforço de superar a natureza, o “gosto pelo ideal que flutua no cérebro humano acima de tudo o que a vida natural nele 286


acumula de grosseiro, terrestre e imundo” e, sendo assim, todas as ofertas que a Moda faz seriam “uma deformação sublime da natureza, ou melhor, como uma tentativa permanente e sucessiva de correção da natureza” (BAUDELAIRE, 1988, 202). Para Benjamin, a questão é mais radical e, logo, considera que em tudo a necessidade do novo torna-se vital, sendo a velocidade da obsolescência a garantia de sua condição. Por isso, a Moda como dinâmica de produção do novo é mais do que o próprio novo que surge aqui e acolá, que se constitui num traje, num desenho, numa literatura ou numa tela. A Moda seria o motor deste devir sempre almejado, a impulsão em busca do novo, a justificativa para todos os ensaios sobre o inusitado. Com esta dinâmica tão fremente de busca do novo, a Moda torna-se a eterna via de inspiração do surreal. 287


Tal como Baudelaire, Benjamin tinha razões filosóficas de admirar a moda. Para esse importante pensador da modernidade, o passado é algo inacabado, que não está fechado e que, pelo trabalho da memória, recria-se num processo antropofágico. Diante desta concepção o conceito de história é construtivo e não hermenêutico, pauta-se pela descontinuidade, opera-se pela interrupção e se constitui em imagem, as quais são efêmeras como a instabilidade de sua compreensão. Logo, a história possível de ser construída por seus eruditos sofre a mesma impulsão da Moda, ou seja, faz com que a função do historiador seja de interromper um acervo memorial a partir de uma questão premente do presente e em vista de uma proposição ao futuro. Afirmou Benjamim que “a história se decompõe em imagens, não em histórias”, dizendo que como imagem a história 288


contempla a fragmentação de uma sociedade múltipla, cujas identidades firmadas em representações “duras”, ou seja, explicativas e firmadas na tradição, foram substituídas por identificações fluidas, nas quais a plasticidade dos grupos, a velocidades das comunicações, as intersemioses infinitas agenciam as recepções e fazem de cada sujeito um sujeito histórico ao seu gosto, onde a surrealidade é tão “real” quanto qualquer outra possibilidade. (SANT’ANNA Mara Rúbia. Moda, desejo e morte: explorações conceituais. Artigo Eletrônico – formato pdf.) Pequenos retratos da intimidade. Havia um elemento detetivesco na curiosidade de Proust. As dez mil pessoas da classe alta eram para ele um clã de criminosos, uma quadrilha de conspiradores com a qual nenhuma outra pode comparar-se: a camorra dos consumidores. Ela exclui de seu mundo 289


todos os que participam da produção, ou pelo menos exige que eles se dissimulem, graciosa e pudicamente, atrás de uma gesticulação semelhante à ostentada pelos pefeitos profissionais do consumo. A análise proustiana do esnobismo, muito mais importante que sua apoteose da arte, é o ponto alto de sua crítica social. Pois a atitude do esnobe não é outra coisa que a contemplação da vida, coerente, organizada e militante, do ponto de vista, quimicamente puro, do consumidor. E como qualquer recordação alusiva às forças produtivas da natureza, por mais remota ou primitiva que fosse, precisava ser afastada dessa feéri satânica, o comportamento invertido, no amor, era para Proust mais útil que normal. Mas o consumidor puro é o explorador puro. Ele o é lógica e teoricamente, e assim aparece em Proust, de modo plenamente concreto, em toda a verdade da sua existência histórica contemporânea. Concreto, porque impenetrável e difícil de 290


situar. Proust descreveu uma classe obrigada a dissimular integralmente sua base material, e que em consequência precisa imitar um feudalismo sem significação econômica, e por isso mesmo eminentemente utilizável como mascara da grande burguesia. Esse desiludido e implacável desmistificador do Eu, do amor, da moral, como o próprio Proust se via, transforma sua arte imensa num véu destinado a encobrir o mistério único e decisivo de sua classe: o econômico. Com isso, ele não se pôs a serviço dessa classe. Ele está à sua frente. O que ele vive começa a tornar-se compreensível graças a ele. Grande parte do que faz a grandeza dessa obra permanecerá oculta e inexplorada até que essa classe, na luta final, revele seus traços fisionômicos mais fortes. (BENJAMIN, 1985, p. 44-45) Do brinquedo - I Um poeta contemporâneo disse que para cada homem 291


existe uma imagem que faz o mundo inteiro desaparecer; para quantas pessoas essa imagem não surge de uma velha caixa de brinquedos. (BENJAMIN, 1996, p. 253) Para a criança todo objeto pode converter-se em um brinquedo, mesmo que sua preferência espontânea sempre recaia sobre os mais prosaicos: aros de bicicleta que se fazem timão, madeirame sem uso, que costura os contornos de barcos alados que sobrevoam quintais, os quais, à sua vez, deixaram as casas onde nasceram, para habitar livros, com que crianças contemporâneas e citadinas sonham brincadeiras de antigamente. Uma bola é um mundo, de que a representação, na forma surpreendente de um globo terrestre, não passa de uma aproximação limitada, incapaz que é de capturar a grama entardecida e a rua interior, em que meninos e meninas jogam futebol e queimada, taco e bola de gude. Cidades e bairros, que não se conhecem, se assemelham através do redondo, que tanto está na 292


cartografia que os conecta, quanto nos pés e nas mãos, de gente que só requer da forma esférica uma porta aberta, para deixar-se inebriar por um tempo, que brigou com os relógios há milhares de anos: brincar. Entende-se, por esses exemplos brincantes, quanto é problemática a relação entre o interior e o exterior, entre o essencial e o aparente, entre o determinado e o indiferenciado, quando ainda não assumiram a forma da monomania, que pretende conhecer o existente à parte do exercício de vivenciá-lo, de sorvê-lo em grandes goles. Deveríamos admitir ao menos como hipótese, como gentileza feita a um mundo, que nos excede e nos esgota, que talvez a coisa, em sua natureza imediata, seja divergente de si mesma, e que se movimente através de linhas de fugas, mesmo que também tenda a um centro. Afinal de contas, as recusas não são em algum grau afirmações; aquilo que se perdeu, parte essencial do ser efetivamente existente? Onde principia o início, onde termina o fim; o dia não é a mais delicada promessa da noite

293


e a noite, o mais singelo e reconfortante ninho do dia? Muito do esforço intelectual da modernidade, contudo, foi despendido no sentido de reunir em um todo integrado essas instâncias díspares, sob a forma de uma síntese identitária. Por essa abordagem compreende-se os sentidos determinados de tudo quanto existe, mas se nega o direito que têm as coisas de serem multiplicidades, que acolhem como propriedade suas, propriedades materiais, o contraditório, a não conformidade, a alteridade, o excêntrico, o bizarro. Perde-se, portanto, com aquela representação lisa da história a textura, o tenso, o errático, o episódico, o momento, o acontecimento enfim, que realiza o existente como aquilo que é igualmente humano, ancorado no corpo, na physis. Uma história que não está para além do homem tem cor, cheiro, tez; ocorre em uma determinada manhã; tem olhos que a espreitam e que se cruzam, em vislumbres incertos e angustiados. 294


A rigor, naquele momento preciso, em que se destacou ao fluxo indiferente do tempo um acontecimento – Revolução Russa! Lenohn morreu! o homem chegou à Lua! mas igualmente, nasceu meu filho! apropriei-me de uma idéia nova! aprendi um teorema! – muitos casais faziam amor, uma pequena pétala se despregou de uma rosa que estava no Jardim de Versailhes, chovia em Honk Kong, Vertov continuava a delirar o cinema, em seus filmes que desvendaram um outro tempo. Obviamente ao primeiro conjunto de eventos não corresponde o segundo e, ainda que eles possam ser simultâneos, não se vinculam pela causalidade, ou por qualquer relação uniforme ou matemática. Mas o acontecimento não é produto da causalidade, é um salto em direção ao novo e ao inaudito, para o qual contribui o sincrônico, o correlato, mas igualmente o diacrônico, o destoante e o diverso; as distintas qualidades do existente. O novo que o acontecimento é produzse por saturação, por acúmulo, por afinidades, mas igualmente por tensões, divergências e fugas, escapes. O acaso é tão próprio à natureza do 295


acontecimento, quanto é a intenção e o desejo. O acontecimento, na justa medida em que ocorre, é o amor de um mundo que não encontra um fim, mas, em todo novo, as pegada de um outro que ainda não nasceu, que já é real, e que anseia o tempo que lhe corresponde. O acontecimento, portanto, é sempre o inusitado e o surpreendente, mesmo que pudesse ser antecipado e compreendido. É o instante do grande e decisivo assalto, em que o tempo salta para fora de si, instituindo um objeto-tempo; uma contração espaço-temporal, na qual, o ser, sendo ainda o que sempre foi, é outra qualidade, outra relação com o mundo. Essa mudança é material, impressa no corpo, como um acréscimo que obriga ao completo reordenamento do passado, para que ele corresponda, vivo e potencializado, aos requerimentos do presente. É assim, como acontecimento, como conhecimento e memória involuntários, que a cabra-cega inventa do escuro as formas absolutamente corporais do espaço, o volume à parte de toda visão, a distância que se rege pelo 296


tempo, e que revela as propriedades físicas da ansiedade, da angústia, do medo; que o dentro e o fora, o próprio e o alheio, a identidade e a alteridade, a angústia e a aflição de descobrir e se ver descoberto são apropriados e fundados na experiência sensual, antes de se efetivarem na forma abstrata do enunciado e da formalização. Do mesmo modo, todo canto, qualquer poste, muitos galhos contêm o esconde-esconde, como sua extensão espacial imediata. É segundo a voz grave da mão que batuca a madeira, que esta promete o carrinho de rolimã, como sua realização desde sempre pretendida. Do carrinho de rolimã não se aprende, contudo, apenas sobre a natureza da madeira, mas se experimenta a velocidade e a aceleração, o atrito, a textura dos sólidos, a impenetrabilidade dos corpos. Todo brinquedo e toda brincadeira são máquinas de produzir materialmente o inusitado, o inaudito, o que ocorre tantas vezes, quantas são as vezes que se brinca, porque a natureza – a propriamente natural e a antropológica, cultural – carrega em seu ventre, como promessas por serem 297


juradas, os infinitos segredos do mundo, que se deleita nesse revelar-se, onde se desnuda sua própria incompletude – um eterno estar por fazer. O brinquedo em sua agoridade, como acontecimento, é, contudo, uma realidade afetiva e que, portanto, não se pode esgotar intelectualmente. Deste modo, aquele brinquedo que nos olha não cansa de repetir que é brincando que se brinca, vivendo que se vive, amando que se ama, em uma sucessão infinita, com o que simplesmente nos lembra que o existente não é propriamente um duplo. Mesmo aquilo que se crê abstratamente representar, já é uma presença, toda imagem é material, o sorriso é de fato um abraço fraterno; aquilo que está em outro lugar não é o mesmo, mas um outro, que talvez deseje voltar para casa. Existir como acontecimento, neste preciso agora, é da natureza do brinquedo, é sua forma necessária, porque em sua construção abstrata ele é não mais que um cadáver: não mais do que indícios, ainda que materiais, do que já partiu. O 298


brinquedo é a repetição e, através dela, a produção contínua da diferenciação. Não se deixam ver, tem que ser ativamente vistos; devem existir concretamente, pois não se deixam apanhar pelos contornos abstratos da representação. Caminhemos um pouco mais. Já podemos supor que o brinquedo é um acontecimento, uma agoridade. Mas não é nem madeira, nem tecido, nem as regras segunda as quais se brinca. O que, no final das contas é um brinquedo? Ora, ele é a forma elementar de uma máquina de gerar surpresas; é o artefato que cria uma intensidade, um bloco de sensações, cujo centro ativo é a surpresa e o surpreendente. Mais ainda, ele é uma máquina lúdica e, por isso, extremamente poderosa. Para um artefato como uma máquina de criar surpresas a descrição intelectual de seu funcionamento, ainda que perfeitamente possível, carece completamente de sentido. Ela não é melhor compreendida por essa abordagem, porque seu produto é algo que não pode ser experimentado intelectualmente, ou seja, a 299


própria surpresa surpreendente.

e

o

acontecimento

A surpresa, contudo, não se produz sem que essa máquina se ponha a operar. Na cabra-cega, por exemplo, existe um dentro, um fora, um escondidinho, corações em sobressalto, gritos e urros, um assombro verdadeiro, um frisson quase mecânico e maquinal do próprio corpo. Enfim, uma máquina de criar surpresa só pode ser apropriada em funcionamento, e à medida em que funciona, porque precisa se materializar através da totalidade do homem, o que inclui seu corpo, suas enervações e texturas, o tônus de sua carne, o timbre de sua voz, o brilho de seus olhos, uma outra surpresa, um susto avassalador, a imagem de seu pai na penumbra, os santinhos que sua avó pendurava na parede, a ladainha das carpideira em um enterro no interior, o prenúncio de sua própria morte, um último beijo, um sonho com Marylin Monroe de mãos dadas com Andy Warhol, um preto velho fumando cachimbo, o calafrio da navalha cortando a imaginação.

300


Do brinquedo - II O mundo da criança preserva, como presença viva, muitos dos elementos oníricos da existência. Deste modo, em suas mãos, tudo é potencialmente um brinquedo. Incentivá-la, portanto, a extravasar sua subjetividade na objetivação da imaginação, usando como recurso aquilo que tem às mãos, é um convite à preservação de seu mundo pela atividade lúdica e, igualmente, um apascentamento. Entre os vários elementos possíveis para se criar brinquedos, a madeira goza de um grande privilégio, pois ela pode exceder em durabilidade o período de vida daquele que o confeccionou. Esta permanência do brinquedo de madeira no tempo é, portanto, um flerte com a eternidade: rememora a época em que as ferramentas com que trabalhava o artesão, a oficina e conhecimento, excediam sua existência singular, de modo que toda vida era, implícita e efetivamente, uma ponte para a posteridade. Por este mesmo aspecto é preciso pensar criticamente o brinquedo de plástico, senão pelo fato óbvio de que ele é sempre industrializado e claramente 301


artificial, também porque é de sua natureza ser algo que se impõe à criança, como aquilo que vem de fora. Além do mais, o artificialismo acompanha sua própria estrutura molecular, de modo que já nas cores diretamente sintéticas e quase invariáveis, se denuncia seu divórcio para com a vida e para tudo aquilo que é vivo. A efemeridade, por outro lado, é o índice sua obsessão industrial e mercantil – negação do lúdico. O brinquedo como heteronomia, como molde pelo qual se forma o adulto como uma redução maquinal, atividade mecânica; reprodução catotônica daquilo que é exterior só se realiza, contudo, nos artefatos eletrônicos: um brinquedo que brinca, e para o qual a criança é telespectador – no que repete à perfeição a televisão como fórmula. Neles a criança antecipa em seu mundo lúdico a mutilação que gera o autômato, que é embalado e aninhado, com carinho de estufa, pela ordem. Na perfeição do brinquedo eletrônico está contida a programação do homem e a conversão automática da criança no pequeno adulto: inicia-se ainda tenro na submissão ao ritmo da máquina; é 302


treinado para a indução hipnótica que, ao fim, o fará dormir na mais intensa luz do dia. O brinquedo moderno recusa, portanto, a rua, as árvores, a luz e o sol; nega a inquietude, para se transformar em movimento frenético e crise ansiosa. Não quer os pequenos cortes, teme a impureza da terra, resiste à circularidade da bola, toma por risíveis os aviões de papel; vê na pipa o choque elétrico e no carrinho de rolimã uma ladeira proibida. Não quer saber de jogo de botão, não derruba a casa no taco, não entende as regras da mãe da rua. Não brinca de espada, não sobe em árvores, nuca viu uma enxurrada, esqueceu o que significa um bodoque. Não usa tripa de mico, não tem chapéu de jornal; nunca andou de bicicleta em turma, e muito menos transformou-a em uma antecipação da moto, com uma tampinha de sorvete e um prendedor. O brinquedo moderno apartou-se, há muito, do vento, do cheiro da chuva, dos navios que se fazia com cabeças aéreas e timão de aro de bicicleta. Naqueles brinquedos incompletos e imperfeitos, contudo, o mundo vivia ofegante, correndo com a criançada; de pé no chão 303


e coração mergulhado no lúdico: desconhecia a vida como uma forma acabada, ou como uma fórmula para o sucesso. O aburguesamento do brinquedo não se reconhece só pelas suas formas, sempre funcionais, mas também pela sua substância. Os brinquedos vulgares são feitos de matéria ingrata, produtos de uma química e não de uma natureza. Atualmente muitos são moldados em massas complicadas: a matéria plástica tem assim uma aparência simultaneamente grosseira e higiênica, ela mata o prazer, a suavidade, a humanidade do tato. Um signo espantoso é o desaparecimento progressivo da madeira, matéria no entanto ideal pela sua firmeza e brandura, pelo calor natural do seu contato; a madeira elimina, qualquer que seja a forma que sustente, o golpe de ângulos demasiado vivos, e o frio químico do metal: quando a criança a manipula, ou bate com ela onde quer que seja a 304


madeira não vibra e não range, produz simultaneamente um som surdo e nítido; é uma substância familiar e poética, que deixa a criança permanecer numa continuidade de tato com a árvore, a mesa, o soalho. A madeira não magoa, não se estraga também; não se parte, gasta-se, pode durar muito tempo, viver com a criança, modificar diminuindo, e não inchando como esses pequenos brinquedos mecânicos que desaparecem sob a hérnia de uma mola quebrada. A madeira faz objetos essenciais, objetos de sempre. Ora, já praticamente não existem objetos de madeira, esses “redis dos Vosges” (*), só possíveis, é certo, numa época de artesanato. O brinquedo é doravante químico, de substância e de cor; a própria matéria prima de que é constituído leva a uma cinestesia de utilização e não de prazer. Estes brinquedos morrem, aliás, rapidamente, e, uma vez mortos, não tem para a criança 305


nenhuma vida p贸stuma. (Barthes, 1989, p. 42) (*) Redis dos Vosges: brinquedo de madeira consistindo numa s茅rie de miniaturas de animais (carneiros, vacas, etc.) que utilizam normalmente as pastagens das montanhas (Vosgues) (Nota dos tradutores).

306


1

(...) a informação precisa provar sua veracidade e, com isto, impõe ao leitor explicações que a tornem verificável. Mas sua qualidade mais característica está em que seu mérito “reduz-se ao instante em que era nova. Vive apenas nesse instante, precisa entregar-se inteiramente a ele, e, sem perda de tempo, comprometer-se com ele” (1983: 61-62). Não é guardada na memória, mas consumida instantaneamente. Do mesmo modo como surge, esvai-se no esquecimento. (ABREU, Eide Sandra Azevedo. Walter Benjamin o Tempo da Grande Indústria. Ensaio obtido no sítio Antivalor)

2

Ao atribuir às coisas propriedades de seu próprio psiquismo, conforme ele é instituído a cada momento histórico determinado, o homem conhece não a coisa como ela de fato é, mas a si mesmo, de conformidade exata com os pressupostos teóricos e metodológicos que tomou no início do seu salto sobre a realidade. Partindo, portanto, do pressuposto de um tempo vazio e linear, a ciência reencontra e se reconhece, recorrentemente, no conceito de progresso. 3 O aspecto sombrio que nos pertence pode vir à tona mesmo em representações que não procuram necessariamente uma apropriação crítica do real. Em Casablanca (Michael Curtz, 1942), por exemplo, os protagonistas do filme se vêem permanentemente envolvidos por uma duplicidade, que se faz espelhar em seus rostos, divididos entre luz e sombra.

4

Constelações. Esta palavra é outra das metáforas de Benjamin, que vincula seus primeiros textos metafísicos com seus textos tardios, materialistas. Aparece centralmente em sua teoria da verdade, e para mim constituiu uma idéia muito produtiva. Se entendemos as estrelas como dados empíricos - fatos e fragmentos do passado - virtualmente ilimitados em número, virtualmente intemporais em sua existência, então nossa tarefa científica enquanto acadêmicos é descobri-los (ainda acredito em trabalho de arquivo), ao passo

307


que a tarefa filosófica, logo política (como Benjamin, eu equiparo estes termos) é vincular esses fragmentos e fatos em figuras legíveis no presente, produzindo “constelações”, variantes da Verdade (é ainda o trabalho de arquivo que nos permite usar esta palavra). Numa sociedade ideal, conta-nos Benjamin, todas as estrelas seriam incluídas, e toda constelação seria legível. Mas na nossa isso é impossível. O poder distorce a visão dos céus, impondo seus pesados telescópios sobre certas áreas, de modo que sua importância se amplia, obstruindo outras de forma tão avassaladora, que ficam completamente invisíveis. Tal poder não é apenas imposto pelo Estado, mas está alojado na própria estrutura de nossas disciplinas - elas próprias aparelhos de ampliação, que encorajam a inserção de novas descobertas nas suas constelações de discurso já cartografadas, mudando seu foco apenas lentamente, para se adaptar à maré dos tempos. Nós, intelectuais, praticamos a agência crítica quando recusamos as cadeias dos signos astrológicos dominantes. Contudo, ignoramos os fatos (as estrelas) e ignoramos as tendências de nosso tempo ao próprio risco - tanto mais se queremos velejar contra a corrente. Ainda uma vez, em termos da abordagem de Benjamin, não basta produzir outras constelações, como as de história das mulheres, história dos negros ou semelhantes. Os fatos revelados por esses estudos visam explodir o contínuo cultural, não substituí-lo por um novo. Mais do que um fim em si mesmos, são estrelas a nos orientar em nosso próprio tempo, deixando ainda a desvendar a posição das velas e o próprio rumo da viagem. (BUCK-MORSS, Susan. Walter Benjamin: entre moda acadêmica e Avant-garde) 5

Benjamin opõe claramente o conceito de alegoria ao de símbolo: o símbolo representa a figuração estética de uma relação de unidade entre o particular e o universal, transporta, portanto, sempre uma dimensão transcendente, exprime um conceito de harmonia ao incorporar organicamente o presente e o ausente. A alegoria, por seu lado, é a figuração da não-identidade que renuncia a qualquer transcendência, traduz a perda de uma relação imanente com o sentido e a perda da evidência do sentido e exprime-se como relação puramente arbitrária: o significado da alegoria é sempre apenas o significado que lhe é atribuído pelo sujeito, depende inteiramente do ato de construção. Como tal, constitui o protótipo de uma relação de ambivalência e da deslocação do sentido. É esta, pois, a forma, absolutamente não-mimética (uma vez que a relação entre signo e referente é nela tornada absolutamente convencional, independentemente de qualquer sentido anterior) adequada a uma época como a barroca em que se perdeu a relação utópica com a natureza em que a história surge como pesadelo e como radical sem-sentido (não se esqueça que o contexto do barroco alemão é o das tremendas devastações da Guerra dos Trinta Anos). Os autores do barroco alemão, da perspectiva de Benjamin, defrontam-se com um mundo caótico e recusam-se, ou melhor, não estão em condições de postular uma ordem, seja ela imanente ou transcendente. Assim, o drama trágico do barroco alemão oferece um mundo sob a forma de um mar de ruínas: neste mundo, qualquer pretensão de totalidade surge, à partida, como puramente falsa e fictícia. O ideal clássico de beleza está, pois, posto de

308


lado: o domínio da alegoria, com efeito, não é o do belo, mas sim do sublime, traduzindo assim uma relação incomensurável e necessariamente fragmentada com o mundo. (RIBEIRO, Antonio de Souza, 1994, p.13 ) (Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Centro de Estudos Sociais. Artigo em formato eletrônico, em que “[r]eproduz-se, praticamente sem altrações, o texto de uma conferência proferida, em 3 de Março de 1994, no 9º Encontro da Associação dos Professores de Filosofia, no âmbito da temática “Pensar a estética hoje” – grifos meus) 6

A alegoria é, portanto, uma trama complexa que impede a cristalização do sentido; nesse contexto, a imagem alegórica é vista como possibilidade de construção do conhecimento, pois convoca os vestígios do passado, trabalhando-os de maneira crítica para ultrapassá-los dialeticamente à luz de um olhar situado no presente. O anacronismo, que só se torna pensável a partir da consciência da multiplicidade, liga-se ao conceito benjaminiano de alegoria no sentido de apontar para uma tensão temporal, para uma operação que nasce do sentimento de destruição permanente, para uma memória que se reconfigura incessantemente. (NASCIMENTO, Roberta Andrade do. Charles Baudelaire e a arte da memória)

7

Em seu estudo Sobre a incompreensibilidade Schlegel quer mostrar “que frequentemente as palavras se compreendem melhor a si mesmas do que aqueles que as usam, [...] que a incompreensibilidade a mais pura e a mais sólida advém exatamente da ciência e da arte, que, partindo da filosofia e da filologia, têm em mira justamente o compreender e o tornar compreensível”. (BENJAMIN, 2002, p. 55) 8 Após meado do século, o mecenato chega a um fim absoluto e, por volta de 1870, já nenhum escritor conta um apoio particular. Cresce dia a dia o número de poetas e homens de letras independentes que vivem de seus escritos, assim como o número de pessoas que lêem e compram livros, e cuja relação com o autor é absolutamente impessoal. Johnson e Goldsmith escrevem agora exclusivamente para tais leitores. O lugar do patrocinador é ocupado pelo editor; a subscrição pública, que, muito acertadamente, foi chamada de patrocínio coletivo, é a ponte entre os dois. O mecenato é a forma puramente aristocrática de relações entre o autor e o público; o sistema de subscrição pública enfraquece o vínculo, mas ainda mantém certas características do caráter pessoal da relação; a publicação de livros para o grande público, completamente desconhecido do autor é a primeira forma dessa relação a corresponder à estrutura de uma sociedade burguesa baseada na circulação autônoma de mercadorias. O papel do editor como intermediário entre o autor e o público tem início com a emancipação do gosto burguês com respeito aos ditames da aristocracia e é, em si mesmo, um sintoma dessa emancipação. Constitui o ponto de partida histórico da vida literária no sentido moderno, tal

309


como exemplificado não só pelo aparecimento regular de livros, jornais e periódicos, mas, sobretudo, pelo surgimento do especialista em literatura, o crítico que representa o padrão geral de valores e a opinião pública no mundo literário. (HAUSER, 1998, P. 547-548) 9

Até o século XVIII, toda a música era escrita mais ou menos para uma ocasião específica; era encomendada por um príncipe, pela Igreja ou por uma municipalidade, e tinha por tarefa entreter uma sociedade palaciana, adicionar profundidade ao culto público ou contribuir para o esplendor das festividades públicas. Os compositores eram músicos da corte, músicos da igreja ou músicos da cidade; sua atividade artística estava limitada ao cumprimento dos deveres relacionados com o exercício do cargo – apenas em raras ocasiões, provavelmente, ocorria-lhes compor por conta própria, sem uma encomenda. (HAUSER, 1998, p. 577) 10 Quando nos referimos a uma crítica profissional não pretendemos emprestar a ela qualquer distinção teórica, mas ressaltar, muito pelo contrário, que ela é parte intrínseca e inerente dos mecanismos que geram a obra de arte como artefato industrial, e o artista como um produto daquela mesma indústria:

O produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas o campo de produção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estéticas necessárias para a conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a produção do valor da obra ou, o que dá no mesmo, da crença no valor da obra.

11

Ela deve levar em conta, portanto, não apenas os produtores diretos da obra em sua materialidade (artista, escritor, etc.), mas também o conjunto dos agentes e das instituições que participam da produção do valor da obra através da crença no valor da arte em geral e no valor distinto de determinada obra de arte, críticos, historiadores da arte, editores, diretores de galerias, marchands, conservadores de museus, mecenas, colecionadores, membros das instâncias de consagração, academias, salões, júris, etc. (...) (BORDIEU, 1996, p. 259) (...) Os consumidores devem permanecer aquilo que eles já são: consumidores; por isso, a indústria cultural não é a arte dos consumidores, mas estende a vontade dos que mandam para o interior das suas vítimas. A automática auto-reprodução do status quo em suas formas estabelecidas é expressão da dominação. (ADORNO, 1994, p. 105)

310


12

A história que é ambientada em 1936 é sobre uma ex-prostituta que envolve-se em um caso de amor obsessivo com o chefe de uma propriedade onde ela é contratada como empregada. O que começa como uma diversão inconseqüente transforma-se em uma paixão que ultrapassa todos os limites. Inspirado em um caso real, mostra a história de um amor total, onde dois amantes vivem uma paixão absoluta, uma busca incessante pelo prazer. Seus desejos se confundem quando eles são envolvidos em uma delicada e sensual atmosfera. Para os amantes não há fronteiras na busca do puro e ilimitado prazer. (Fonte: Wikipedia). Direção: Nagisa Oshima. Gênero: Adulto e Drama. Duração: 105 Minutos (Original) / Reino Unido :109 min / Argentina:103 min / Austrália:107 min / Noruega:104 min / EUA:101 min. País: Japão e França; Linguagem: Japonês/ 1976. Cor

13

Ver link:

http://www.artmuseum.gov.mo/showcontent.asp?item_id=200 50430020100&lc=2 14

(do Lat. theorema < Gr. theórema, assunto de estudo < theoréo, examinar s. m., proposição que, para se admitir ou se tornar evidente, precisa de demonstração - Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa – versão eletrônica) 15 Grande parte dos desenvolvimentos de Os pássaros foram - segundo informação de Robert Boyle (Production Designer), primeiro membro da equipe de Hitchcock a trabalhar sobre o conto The Birds, que deu origem ao roteiro idealizados com base no quadro de Edvard Munch (12/12/1863 – 23/01/1944), O grito, obra prima do expressionismo na pintura. 16

Sujeitos, portanto, a uma apropriação antropomórfica.

311


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.