Cinema da Cidade 1

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Cinema da Cidade (Ato I) ExercĂ­cios Benjaminianos

Figura 1- Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens

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SUMÁRIO Cinema da Cidade: este projeto tem uma infância .............................. 11 O nome .................................................................................................. 25 O normal e o limite do provável ........................................................... 33 Memória e filosofia I ............................................................................. 41 Memória e filosofia II ............................................................................ 53 Memória e Filosofia: o lugar de Auschwitz ........................................... 59 Memória e filosofia: o lugar da ecologia ............................................... 69 O arcaico no moderno ........................................................................... 77 Auschwitz e a filosofia da história ......................................................... 78 As tarefas da filosofia ............................................................................ 83 O elogio da ordem: neoliberalismo & pós-modernismo ...................... 92 A solidão impossível ............................................................................ 100 O homem na multidão (Edgar Allan Poe) ........................................... 113 Devolver o indivíduo ao indivíduo ...................................................... 131 Do slogan ............................................................................................. 137 Morre o deputado Enéas Carneiro ..................................................... 139 O capacitor I ........................................................................................ 144 Do estereótipo ..................................................................................... 150 Taxi Driver ............................................................................................ 156 Alemanha, Ano Zero ............................................................................ 161 O capacitor II ....................................................................................... 167 O clone: o humano como série ........................................................... 169 Blade Runner (Ridley Scott, 1982)....................................................... 174 Fascismo e modernidade .................................................................... 180 A sociedade invencível ........................................................................ 190 As possibilidades da razão iluminista .................................................. 196 A Escolha de Sofia................................................................................ 201 "O homem natural, em estado bruto” ................................................ 211 Um dia de fúria (Joel Schumacher, 1993) ........................................... 219 3


A política como esteticismo I .............................................................. 225 A política como esteticismo II ............................................................. 231 Imigração e chauvinismo ..................................................................... 235 Da revolução ........................................................................................ 262 A razão enferma .................................................................................. 272 O romance de folhetim ....................................................................... 275 A delinquência necessária ................................................................... 280 A ordem econômica e o infra-humano ............................................... 286 As possibilidades distópicas da redundância ...................................... 291 Dormindo com o inimigo ..................................................................... 301 A guerra justa ...................................................................................... 304 Globalização e o dom de iludir ............................................................ 312 Neoliberalismo I .................................................................................. 317 A democracia através do meio de comunicação ................................ 323 A celebridade e apolítica ..................................................................... 333 A celebridade: Sunset Boulevard ........................................................ 349 A funcionalidade da burguesia ............................................................ 360 Cubismo e surrealismo ........................................................................ 370 A eterna infância ................................................................................. 386 A especificidade política do fascismo ................................................. 393 A sociabilidade sob assalto .................................................................. 407 Educar para competir e sobreviver ..................................................... 412 O telejornalismo barato ...................................................................... 419 A razão e a perversão .......................................................................... 427 A Primeira Guerra e o fascismo ........................................................... 431 A economia alemã pós Primeira Guerra ............................................. 437 Grande Hotel ....................................................................................... 444 A Revolução Russa e a política continental ......................................... 447 Nacionalismo e fascismo ..................................................................... 450 Psicologia das massas: as teses de Gustave Lebon ............................. 453 Psicologia das massas: as teses de Freud ........................................... 456 Little Great Man .................................................................................. 462 4


Os limites da s贸cio-psicologia ............................................................. 468

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ICONOGRAFIA Figura 1- Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens ................................ 2 Figura 2 - Que viva o México! (Sergei Eisenstein, 1932) ....................... 14 Figura 3 – M. Antonioni; S. Soderbergh; Kar Wai Wong (Eros, 2004) .. 19 Figura 4 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) 27 Figura 5 - Triumph des Willens (Leni Riefenstahl, 1934) ...................... 35 Figura 6 - Triumph des Willens (Leni Riefenstahl, 1934) ...................... 37 Figura 7 - http://www.archives.gov/research/ww2/photos/ ............... 41 Figura 8 - Através de um Espelho (Ingmar Bergman, 1961) ................. 43 Figura 9 - Midnight Express (Alan Parker, 1978) ................................... 45 Figura 10 - Herr Tartüff - O Tartufo (Friedrich Wilhelm Murnau, 1926) ............................................................................................................... 46 Figura 11 - Guera Civil Espanhola .......................................................... 46 Figura 12 - O Circo (Charles Chaplin, 1928)........................................... 48 Figura 13 - Los Solitarios (Edvard Munch)............................................. 50 Figura 14 - Roma, cidade aberta. (Roberto Rossellini , 1945) .............. 52 Figura 15 - Que viva o México (Sergei Eisenstein, 1932) ...................... 55 Figura 16 - Entrada de Auschwitz no inverno ....................................... 59 Figura 17- Prestando atendimento médico aos prisioneiros encontrados no campo de concentração de Wobbelin, Alemanha, 5 de Abril de 1945 ......................................................................................... 64 Figura 18 - Foto: Marcos Santilli............................................................ 66 Figura 19 - Crianças em subúrbio de Londres, Setembro de 1940 ....... 71 Figura 20 - Vítimas da bomba atômica - Hiroshima .............................. 74 Figura 21 - Bombardeio de Londres, 1941 ............................................ 75 Figura 22- Nuremberg, 1945 ................................................................. 77 Figura 23 - Fausto (Murnau, 1926) ....................................................... 78 Figura 24 - Hitler é aclamado pela aquisição pacífica da Áustria. ........ 79 Figura 25 - Metropolis (Fitz Lang, 1927) ............................................... 82 Figura 26 - James Ensor - Masks Fighting over a Hanged Man ............. 83 Figura 27 - James Ensor - Skeletons Trying to Warm Themselves ........ 88 6


Figura 28 - Edvard Munch - Moon Light ............................................... 91 Figura 29 - Feira Universal Chicago, 1893 ............................................. 95 Figura 30 - Feira Universal (Chicago, 1893)........................................... 97 Figura 31 - Feira Universal (Milão, 1906) .............................................. 99 Figura 32 - Almas Perversas (Fritz Lang, 1945) ................................... 100 Figura 33 - Fausto (Murnau, 1926) ..................................................... 103 Figura 34 - Poster, propaganda nazista 1936 ..................................... 105 Figura 35 - O Grande Ditador “Napaloni e Hynkel” (Chaplin, 1940)... 108 Figura 36 - Hitler e Mussolini .............................................................. 112 Figura 37 - Greta Garbo (Mata Hari, 1932) ......................................... 134 Figura 38 - Mata Hari ........................................................................... 136 Figura 39 - Gilda (Rita Hayworth, 1946) .............................................. 138 Figura 40 - Deputado Enéas Carneiro ................................................. 139 Figura 41 - Almas Perversas (Fritz Lang, 1945) ................................... 144 Figura 42 - Almas Perversas (Fritz Lang, 1945) ................................... 147 Figura 43 - Green Street Hooligans (Lexi Alexander, 2005) ................ 148 Figura 44 - Santana (Woodstock) ........................................................ 151 Figura 45 - Jimi Hendrix (Woodstock) ................................................. 153 Figura 46 - O testamento do Dr. Mabuse (Fritz Lang, 1933) .............. 155 Figura 47 - Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens (Murnau, 1922) ............................................................................................................. 156 Figura 48 - Vertigo (Alfred Hitchcock, 1958) ....................................... 158 Figura 49 - High Anxiety (Mel Brooks, 1977)....................................... 158 Figura 50 – Colagem: Robert de Nitro - Cho Seung-Hu (Virginia Tech Massacre) ............................................................................................ 159 Figura 51 - Alemanha, Ano Zero (Rosselini, 1947) .............................. 162 Figura 52- Alemanha, Ano Zero (Rosselini, 1947) ............................... 164 Figura 53 - Alemanha, Ano Zero (Rosselini, 1947) .............................. 165 Figura 54 - Colagem: Metropolis (Fritz Lang, 1929) ............................ 170 Figura 55 - A morte cansada (Fritz Lang, 1921) .................................. 174 Figura 56 - Blade Runner (Ridley Scott, 1982) .................................... 176 Figura 57 - A morte cansada (Fritz Lang, 1921) .................................. 178 7


Figura 58 - Metropolis (Fritz Lang, 1929) ............................................ 183 Figura 59 - Metropolis (Fritz Lang, 1929) ............................................ 185 Figura 60 - Metropolis (Fritz Lang, 1929) ............................................ 189 Figura 61 - Triumph des Willens (Leni Riefenstahl, 1934) .................. 192 Figura 62 - O Grito (Edvard Munch, 1893) ......................................... 198 Figura 63 - Triumph des Willens (Leni Riefenstahl, 1934) .................. 203 Figura 64 - A Escolha de Sofia (Alan J. Pakula, 1982) .......................... 205 Figura 65 - Buchenwald em Abril de 1945 .......................................... 206 Figura 66 - Corpos de prisioneiros dos nazistas Weimar, Alemanha . 209 Figura 67 - A Escolha de Sofia (Alan J. Pakula, 1982) .......................... 211 Figura 68 - Dr. Mabuse, Der Spieler (Fritz Lang, 1922) ....................... 212 Figura 69 - O Eclipse (Michelangelo Antonioni, 1962) ........................ 214 Figura 70 - Wall Street (Oliver Stone, 1987) ....................................... 217 Figura 71 - Dr. Mabuse, Der Spieler (Fritz Lang, 1922) ....................... 219 Figura 72 - Um dia de fúria (Joel Schumacher, 1993) ......................... 219 Figura 73 - Um dia de fúria (Joel Schumacher, 1993) ......................... 221 Figura 74 - Um dia de fúria (Joel Schumacher, 1993) ......................... 222 Figura 75 - Um dia de fúria (Joel Schumacher, 1993) ......................... 224 Figura 76 - Príncipe William ................................................................ 225 Figura 77 - Top Gun (Tony Scott, 1986) .............................................. 227 Figura 78 - Guerra do Iraque (David Leeson, Abril 2003 ) .................. 229 Figura 79 - Cidadão Kane (Orson Wells, 1941) ................................... 231 Figura 80 - Cidadão Kane (Orson Wells, 1941) ................................... 234 Figura 81 - Sacco & Vanzetti (Giuliano Montaldo, 1971) .................... 238 Figura 82 - Sacco & Vanzetti (Giuliano Montaldo, 1971) .................... 241 Figura 83 - Sacco & Vanzetti (Giuliano Montaldo, 1971) .................... 242 Figura 84 - Sacco e Vanzetti pelo pintor e fotógrafo Ben Shahn ........ 244 Figura 85 - O poderoso chefão (Francis Ford Coppola, 1972) ............ 248 Figura 86 - The Stranger (Orson Wells, 1946) ..................................... 262 Figura 87 - O sétimo selo (Ingmar Bergman, 1956) ............................ 263 Figura 88 - O sétimo selo (Ingmar Bergman, 1956) ............................ 266 Figura 89 - Ladrões de Bicicleta (Vittorio de Sica, 1948) .................... 275 8


Figura 90 - A última gargalhada (Murnau, 1924) ................................ 277 Figura 91 - A última gargalhada (Murnau, 1924) ................................ 279 Figura 92 - Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971) ........................ 280 Figura 93 - Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971) ........................ 283 Figura 94 - Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971) ........................ 284 Figura 95 - Kids (Larry Clark, 1995)...................................................... 287 Figura 96 - Kids (Larry Clark, 1995)...................................................... 290 Figura 97 - Amen (Costa-Gravas, 2002) .............................................. 298 Figura 98 - Adeus, Lênin! (Wolfgang Becker, 2003) ............................ 305 Figura 99 - Adeus, Lênin! (Wolfgang Becker, 2003) ............................ 311 Figura 100 - A dama de Shanghai (Orson Wells, 1948)....................... 314 Figura 101 - A dama de Shanghai (Orson Wells, 1948)....................... 316 Figura 102 - Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968) ............................... 319 Figura 103 - Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968) ............................... 321 Figura 104 - Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968) ............................... 322 Figura 105 - Cidadão Kane (Orson Wells, 1941) ................................. 323 Figura 106 - Ronald Reagan Commercial break for Boraxo ................ 326 Figura 107 - The Killers (Don Siegel, 1964) ......................................... 327 Figura 108 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) ................. 334 Figura 109 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “Set de filmagem da Paramout” ...................................................................... 336 Figura 110 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “O ex-marido mordomo” ........................................................................................... 339 Figura 111 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “A diva: Norma Desmond” ................................................................................ 340 Figura 112 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) ................. 341 Figura 113 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) ................. 343 Figura 114 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) ................. 349 Figura 115 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “O exterior da casa” ............................................................................................... 351 Figura 116 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “As imagens da diva” ................................................................................................ 353 9


Figura 117 - Colagem: Nosferatu & O Crepúsculo dos deuses ........... 354 Figura 118 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “O chimpanzé morto” ............................................................................... 355 Figura 119 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “Bonecos de Cera (Montagem)” ............................................................................... 356 Figura 120 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “Gillis morto na piscina” ........................................................................................... 359 Figura 121 - O fantasma da liberdade (Luis Buñel, 1974) ................... 360 Figura 122 - O fantasma da liberdade (Luis Buñel, 1974) ................... 362 Figura 123 - O anjo exterminador (Luis Buñel, 1962) ......................... 363 Figura 124 - A dama de Shanghai (Orson Wells, 1948)....................... 376 Figura 125 - Saraband (Ingmar Bergman, 2003) ................................. 377 Figura 126 - Diamantes de sangue (Edward Zwick, 2006) .................. 386 Figura 127 - Diamantes de sangue (Edward Zwick, 2006) .................. 389 Figura 128 - Triumph des Willens (Leni Riefenstahl, 1934) ................ 392 Figura 129 - Hotel Ruanda (Terry George, 2004) ................................ 395 Figura 130 - Hotel Ruanda (Terry George, 2004) ................................ 396 Figura 131 - A noite de São Lourenço, 1982 Paolo Taviani / Vittorio Taviani.................................................................................................. 398 Figura 132 - A noite de São Lourenço (Paolo Taviani / Vittorio Taviani, 1982) .................................................................................................... 400 Figura 133 - Amarcord (Federico Fellini, 1973) ................................... 413 Figura 134 - Amarcord (Federico Fellini, 1973) .................................. 415 Figura 135 - The Fly (Kurt Neumann, 1958) ........................................ 419 Figura 136 - The Fly (Kurt Neumann, 1958) ........................................ 422 Figura 137 - Kagemusha – A sombra de um samurai (Akira Kurosawa, 1980) .................................................................................................... 433 Figura 138 - Grande Hotel (Edmund Goulding, 1932) “A estenografa” ............................................................................................................. 438 Figura 139 - Grande Hotel (Edmund Goulding, 1932) ........................ 440 Figura 140 - Grande Hotel (Edmund Goulding, 1932) ........................ 442 Figura 141 - Outubro (Sergei Eisenstein, 1927) .................................. 448 10


Cinema da Cidade: este projeto tem uma infância Tema: Walter Benjamin e a representação da modernidade. Palavras-chave: Filosofia; escola de Frankfurt; fascismo; sociedade de massas; indústria cultural, estética, estetização, obra de arte. Objetivo geral: Elaborar, a partir das indicações da escrita filosófica de Walter Benjamin, o conceito de fascismo como correlato necessário da modernidade, tendo por fundamento expositivo e formal a figuração alegórica. Objetivos específicos: Qualificar e desenvolver o conceito de modernidade em Walter Benjamin. Desenvolver como elemento formal, expositivo, o conceito de alegoria, de modo a representar 11


figurativamente a modernidade, apropriando-a em seus elementos infernais e saturninos. Apresentar a especificidade histórica do fascismo, introduzindo-o como fenômeno pertinente exclusivamente à moderna sociedade de massas. Indicar elementos e instâncias da sociedade contemporânea que são logicamente associáveis ao fascismo, tendo sua dinâmica por fundamento. Desenvolver conceitos e categorias de base do pensamento de Walter Benjamin, a saber: método, verdade, tempo messiânico, tempo mecânico, revolução, citação, alegoria, ruína, origem, colecionador, alegorista, flâneur, trapeiro, crítica. Problema: Como representar a modernidade em sua ambivalência constitutiva e em seus aspectos denegados e sombrios? Quais soluções formais permitem capturá-la nesta tensão imanente que a constitui? Qual deve ser a natureza da escrita filosófica ao deparar-se com a modernidade? Qual é o papel da estética na superação das determinações 12


da ordem? Qual é o peso do procedimento alegórico na representação do real? Justificativas: A sociedade produtora de mercadorias é, ao mesmo tempo, produtora da experiência alienada e da heteronomia. Uma primeira dimensão desta natureza é a autonomia do produto do trabalho com relação a seu produtor e a condição fetichista em que o primeiro se reapresenta ao segundo. A forma mercantil, na universalização que implica e requer, ou seja, por força da materialização de suas tendências imanentes e constitutivas leva, portanto, à danificação da experiência como tal, que propende à unilateralidade. Significa dizer que todos os valores passam a ser, de algum modo, requerimentos para a afirmação da perpetuidade da própria sociedade produtora de mercadorias. Sob tal aspecto o desenvolvimento objetivo do sujeito implica em sua redução aos requerimentos da coisa, e para seus fins inumanos. O ambiente objetivo do homem adota, cada vez mais brutalmente, a fisionomia da mercadoria. Ao mesmo 13


tempo, a propaganda se propõe a ofuscar o caráter mercantil das coisas. À enganadora transfiguração do mundo das mercadorias se contrapõe sua desfiguração no alegórico. A mercadoria procura olhar-se a si mesma na face, ver a si própria no rosto. Celebra sua humanização na puta. (BENJAMIN, 2000, p. 163)

Figura 2 - Que viva o México! (Sergei Eisenstein, 1932)

Esta alienação, conquanto possa ser experimentada como uma reminiscência saudosa e abstrata da autodeterminação perdida - que a rigor, como experiência histórica é insubsistente, ainda que recorrente na representação - também se insurge contra o homem, na qualidade de força e potência hostil, sombra, na qual aquele mesmo homem não se reconhece, ocorrendo, portanto, uma disjunção. Esta 14


disjunção é o ninho da alegoria e da figuração alegórica, que captura o duplo e o tenso como o que é constitutivo da coisa. A alegoria reconhece, portanto, no efêmero que caracteriza a modernidade - na novidade - os traços e as marcas que remetem recorrentemente àquela cisão de origem e à fuga concomitante. A alegoria representa, então, a natureza íntima da modernidade como sendo uma fixação no movimento: o tempo vazio e mecânico; o eterno retorno do mesmo, na condição de contraponto alucinado do progresso linearmente concebido. A normalidade, portanto, já neste primeiro movimento do pensamento, é uma obsessão; luta contínua para afastar do campo especular os elementos fisionômicos que prenunciam a degradação e a decadência, assim como a redução ao puramente maquinal. Da alienação como experiência surge, portanto, um duplo desgarrado, porém sequioso de unidade e violento no afã de fazer valer os termos de seus requerimentos. Na ambivalência do afeto, na disjunção a que se o conduz, a agressividade que o homem faz recair sobre si mesmo, como 15


desdobramento da alienação a que se submete, não é mais percebida nas instâncias conscientes, nem se oferece como elemento propriamente social, ou sujeito à ação política e às suas formas peculiares de mediação de conflitos. A disrupção transforma a própria sociabilidade em força cega, potência da natureza, recurso catastrófico através do qual se salva a sociedade produtora de mercadorias, que tende a se fixar nesta fórmula terrível - que prevê explicitamente, como único fundamento de estabilização da civilização a que dá causa, a recorrência da barbárie. Esta barbárie como repetição pode tomar as formas imediatas que lhe correspondem, ou seja, o fascismo e o genocídio, mas não é menos bárbara em tempos de “normalidade”, desde que se considere que o preço da calmaria é a destruição sistemática e compulsiva da natureza, assim como o depauperamento indiferente daqueles que já não pertencem a este mundo. (...) Todos os processos das nossas sociedades caminham no sentido da desconstrução e dissociação da 16


ambivalência do desejo. Depois de totalizada no gozo e na função simbólica, ela anula-se, mas segundo uma lógica idêntica em dois sentidos: toda a positividade do desejo se degrada na cadeia das necessidades e das satisfações, resolvendose em conformidade com a finalidade dirigida – toda a negatividade do desejo vai impor-se na somatização incontrolável ou no “acting out” da violência. Desta maneira se esclarece a unidade profunda de todo o processo: nenhuma outra hipótese pode explicar a multiplicidade de fenômenos discordantes (abundância, violência, euforia, depressão) que em conjunto caracterizam a “sociedade de consumo”; é verdade que se percebem como necessariamente interconexos, mas a sua lógica permanece inexplicável na perspectiva da antropologia clássica. (...) Já vimos que a teoria do corpo é essencial para a teoria do consumo – uma vez que o corpo constitui o resumo de todos estes processos ambivalentes: investido ao 17


mesmo tempo narcisisticamente como objeto de solicitude erotizada, e investido “somaticamente” como objeto de preocupação e de agressividade” (BAUDRILLARD, 1975, p. 316-317) O marxismo, de algum modo, e especialmente por meio de seus teóricos mais ingênuos, sempre esperou que a superação da sociedade produtora de mercadorias fosse, de modo imediato, a própria libertação da experiência danificada: há um halo de Rousseau aqui, para não falar da grandiosa presença do otimismo iluminista. A superação desta experiência danificada, decorrente da subordinação de toda a atividade à produção de mercadorias não pode, contudo, restringir-se à superação da forma capital, ainda que a pressuponha como condição necessária.

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Figura 3 – M. Antonioni; S. Soderbergh; Kar Wai Wong (Eros, 2004)

http://br.youtube.com/watch?v=OeelMIOBp8g

Que o processo de trabalho se converta em processo de produção de mercadorias subverte toda a experiência de elaboração do objeto, uma vez que o submete às regras de realização do valor, da qual a produção no tempo mínimo, e reduzido ao padrão pré-estabelecido são regras fundamentais. A produção passa a ser, portanto, violência contra o objeto – se fosse possível tomar o ponto de vista do produto do trabalho, também para ele o processo de 19


produção se materializada.

apresentaria

como

heteronomia

Recuperar o aspecto lúdico no interior da atividade produtora é, portanto, indissociável das metas políticas de superação do capitalismo, porque, em não sendo assim, o socialismo se converte apenas em variante do industrialismo – concepção de que, fatalmente, Lênin foi vítima (apenas para dar um exemplo significativo). A meta que se propõe, portanto, ao sujeito político consiste em transformar o processo de trabalho em processo de produção artístico e, por meio dele, libertar a experiência das deformações que a sociedade capitalista lhe impôs. Nos termos de Benjamin: Um poeta contemporâneo disse que para cada homem existe uma imagem que faz o mundo inteiro desaparecer; para quantas pessoas essa imagem não surge de uma velha caixa de brinquedos.(BENJAMIN, 1996, p. 253) Ou mais enfaticamente em Nietzsche:

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Maturidade do homem: significa reencontrar a seriedade que se tinha nas brincadeiras de infância (NIETZSCHE, 2005-b, p. 91). Porque esta redenção da produção, na forma do processo de produção artístico é essencial? Simplesmente porque a sociedade que produz homens sem a experiência sensível do prazer criativo no interior do próprio processo de trabalho - que subsumem suas vidas aos requerimentos mutiladores da sobrevivência, ou seja, do se virar e pairar sobre as circunstâncias sempre estatísticas da sociedade mercantil, a qual transforma todo valor ético em subvariedade dos requerimentos da autoconservação; homens cuja própria condição de existência é, portanto, a violência contra si e contra o objeto de trabalho (em sentido extenso a natureza) -, já é a formação societária que produz o fascista. O homem da experiência danificada e deformada, que a contemporaneidade produz, é um ser que não pode apresentar uma narrativa própria de sua vida e esta é afirmação precisa de sua miséria e monstruosidade - ele é um espectro, um ser sem 21


substância, uma fantasmagoria. Mas o perceber-se nesta miserabilidade absoluta, dissociado de qualquer experiência a que pudesse referir como efetivamente sua, o obriga a evadir-se de si mesmo, para viver fora de si, aquilo que jamais lhe pertenceu. A sua desgraça é momentaneamente sobrepujada, portanto, pelo fascínio do consumo, que outorga à ausência de sentido de sua vida, o signo que a mercadoria implica. Deste modo, o ser impotente, castrado, frustrado, redime-se no carro, a virilidade vermelha sobre quatro rodas; no superatleta da academia, na coquete que jamais envelhece. Mas este feitiço tem a duração do próprio fascínio que a mercadoria exerce, e ele é calculado para acabar, por força de sua própria lei de constituição. Deste modo, o processo adquire o formato da circularidade e da compulsão e, por meio da infinitude do seu repetir, o real se vê suplantado pelo hiper-real; real segundo a versão de uma estética perversa: a produção de mercadorias. Enquanto forma, este esteticismo ensandecido reproduz exatamente o mecanismo que se pode encontrar nas irrupções fascistas que se materializaram na história. Ou seja, o indivíduo que 22


não pode se ver na nulidade que sua vida concretamente implica, redime-se de sua insignificância pela identificação com o herói da raça, de modo que o impotente que a sociedade produz como tipo médio, resgata sua mendicância no cavaleiro nórdico, o ariano puro. Mas a condição de permanecer como esta divindade escandinava é justamente a de perpetuar a desgraça do objeto por meio do qual afirma seu poder. Daí porque foi tardia a compreensão da natureza do programa nazista para os judeus: não se tratava das necessidades da guerra, não era nem mesmo um antissemitismo no sentido convencional do termo. Seu conteúdo era protopolítico, era esteticista, ou seja, a realidade insuportável da miséria do homem contemporâneo encontrou uma solução regressiva, que em lugar de superá-la - a miséria - por meio da transformação do real, salvou o real em sua rigidez mineralizada: a ordem na plenitude de seu horror; a realidade como alucinação do real. Mas como se supera esta alucinação em que o real se converteu? Por recurso à memória. Esta assertiva se desdobra em duas vertentes: 23


a) a irrupção nazista não pode ser esquecida e não pode ser resignificada. Ela é uma dor que a humanidade deve viver, como condição mesmo preservar sua humanidade. Significa dizer que considerada como constelação, a modernidade tem como ponto focal - origem no sentido de Benjamin a figuração do genocídio, como representação de sua agressividade e violência inerentes e insuperáveis, a quais se dirigem contra o homem, ainda que na condição de ser uma rebelião contra a cultura e contra a natureza. b) é preciso resgatar a coisa de sua unilateralidade, representando-a em seu duplo, ou seja, na condição do que ainda está vivo e respirando. Faz-se necessário subtraí-la do ciclo infernal de repetições, em que ela só se apresenta como o novo, na condição de ser ainda exatamente o mesmo. Impõese, portanto, dar à coisa uma oportunidade expressiva, de modo que ela possa falar de seus tormentos e da tortura a que se submete, quando reduzida à unilateralidade que lhe impõe a modernidade. Mas este é exatamente o procedimento alegórico. 24


Todo o percurso deste trabalho, portanto, fundamenta-se neste mesmo procedimento alegórico, com o que almeja revelar os traços fisionômicos da modernidade, de tal modo que ela tenha onde espelhar-se, reconhecer-se como aquilo que é igualmente sombra e sombrio, de tal modo que, tendo se refletido, possa se imaginar para além do mito. O nome A sociedade burguesa é indiferente a qualquer trabalho particular, sendo esta a fórmula mesma com que se enuncia a natureza progressiva da produtividade do trabalho nesta conformação societária. Justamente porque o trabalho é reduzido a mera capacidade de trabalhar - energia despendida por unidade de tempo -, a produtividade do trabalho tende a se ampliar continuamente. O mesmo processo que conduz a desprezar quaisquer habilidades específicas, reduzindo todo trabalho particular à sua condição abstrata, a trabalho social médio, introduz a máquina como elemento potencializador do processo produtivo. Significa, portanto, que cada trabalhador individualmente 25


considerado põe em movimento massas crescentes de capital fixo (capital morto), gerando volumes igualmente crescentes de produto, processo que acompanha e corresponde, no entanto, à sua permanente desqualificação - que deve ser compreendida não como redução da complexidade de sua atividade em termos históricos comparativos, mas como fracionamento recorrente de toda e qualquer operação complexa, em um determinado estado da técnica, a seus componentes mais simples, com o que se procura codificar, na máquina ou naquela mesma infraestrutura técnica, o savoir faire que envolve a compreensão da totalidade do processo, que gera um produto determinado. Esta determinação geral do modo capitalista de produção reaparece, mais desenvolvida, na tendência declinante da taxa de lucro, que não é nada além da expressão contraditória - em termos da produção capitalista, que tem por fundamento o lucro - do aumento contínuo da produtividade do trabalho.

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Figura 4 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927)

(...) La tendencia progresiva de la tasa general de ganancia a la baja sólo es, por tanto, una expresión, peculiar al modo capitalista de producción, al desarrollo progresivo de la fuerza productiva social del trabajo. Con esto no queremos decir que la tasa de ganancia, transitoriamente, no pueda descender también por otras causas, pero com ello queda demostrado, a partir de la esencia del modo capitalista de producción y como una necesidad obvia, que en el progreso del mismo la tasa media 27


general del plusvalor debe expresarse en una tasa general decreciente de ganancia. Puesto que la masa del trabajo vivo empleado siempre disminuye en relación con la masa del trabajo objetivado que aquél pone en movimiento, con los medios de producción productivamente consumidos, entonces también la parte de ese trabajo vivo que está impaga y que se objetiva en plusvalor debe hallarse en una proporción siempre decreciente con respecto al volumen de valor del capital global empleado. Esta proporción entre la masa de plusvalor y el valor del capital global empleado constituye, empero, la tasa de ganancia, que por consiguiente debe disminuir constantemente. (Marx, El Capital, Tomo III, Edição Eletrônica, p. 153)

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O processo capitalista de produção funda, portanto, no mesmo movimento que torna recorrentemente indiferente qualquer trabalho particular, a indiferença geral para com as coisas, ou seja, para com o produto do trabalho. A atividade produtiva não liga mais o homem afetivamente àquilo que produz; não há qualquer vínculo mágico ou halo, mas apenas e tão somente o não reconhecimento universal e recíproco, como potência social. A coisa, portanto, só volta a ser capturada pelo indivíduo - como aquilo que 29


estabelece um vínculo para com ele - no momento do consumo. Mas mesmo aí, no momento em que se subtrai a mercadoria de sua existência social, para fazê-la imergir no mundo estritamente privado, a coisa retorna ao homem como aquilo que é desprovido de aura, ou seja, não estabelece para com ele um vínculo orgânico, mas uma relação mediada pela necessidade, que foi social e culturalmente produzida - sendo, também ela, esta necessidade, um momento da própria reprodução do capital, mediada pelo homem. Não por acaso, essa coisa, que foi elevada à condição de objeto depositário de todo o desejo; que adquire ares de entidade dotada de poderes mágicos, logo se vê transformada em alvo de indiferença, quando não de escárnio. A promessa quebrada da mercadoria, que não pode entregar felicidade senão por um curto período (anestésico) de tempo, faz com que se volte contra ela, o elemento exato de que partiu todo o movimento - a indiferença.

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Esta indiferença que se dirige à coisa é, contudo, ao mesmo tempo, a própria indiferença recíproca dos homens, que são para todos os fins e propósitos, individualmente não essenciais à produção capitalista que, a rigor, está fadada a tentar se dissociar de seu elemento humano, como meta alucinada de sua plena e mais perfeita realização. A vitrine e o shopping center, as exposições universais do século XIX são, portanto, o lado luminoso de uma face igualmente sombria, que recorrente se apresenta na forma do dejeto e do rejeito; no

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aspecto desolador da casa de penhores, do depósito de lixo, e assim por diante. Esta ambivalência para com a coisa - ou seja, o desejo de que ela se vê investida, mas igualmente a violência a que se encontra sujeita -, e que se materializa no consumo compulsório como realização da natureza heterônoma da ordem capitalista, culminando na posterior indiferença e abandono, não é inerte para o homem. A brutalidade a que se vê exposta a coisa, é aquela mesma que retorna ao homem como golpe fatal e indiferente contra sua própria humanidade. Às coisas que se amontoam, sem referência e sem história; sem vínculos de qualquer ordem, mas que sobrevivem como uma reminiscência do que já existiu, somam-se os homens cujas individualidades foram igualmente suprimidas, e que também se amontoam, de tal forma que a indiferença universal em que se fundamentam suas vidas possa se expressar na totalidade de sua verdade. Qual é o nome dessa terra de indiferença universal, em que as coisas e os homens se reúnem apenas como espectros do existente?

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O normal e o limite do provável Durante um tempo considerável, a normalidade do mundo normal é a mais eficaz proteção contra a denúncia dos crimes em massa dos regimes totalitários. “Os homens normais não sabem que tudo é possível” e, diante do monstruoso, recusamse a crer em seus próprios olhos e ouvidos, tal como os homens da massa não confiaram nos seus quando se depararam com uma realidade normal onde já não havia lugar para eles. O motivo pelo qual os regimes 33


totalitários podem ir tão longe na realização de um mundo invertido e fictício é que o mundo exterior não-totalitário também só acredita naquilo que quer e foge à realidade ante a verdadeira loucura, tanto quanto as massas diante do mundo normal. A repugnância do bom senso diante da fé no monstruoso é constantemente fortalecida pelo próprio governante totalitário, que não permite que nenhuma estatística digna de fé, nenhum fato ou algarismo passível de controle venha a ser publicado, de sorte que só existem informes subjetivos, incontroláveis e inafiançáveis acerca dos países dos mortos-vivos. (ARENDT, 1990, p. 487) Muito mais comumente do que se pode imaginar o senso comum e a normalidade não nos conduzem ao que é real e verdadeiro, mas a uma fuga desesperada de ambos: um completo desterro da razão e da racionalidade. Justamente quando a realidade se torna terrível e o horror se erige em potência cotidiana; nos momentos em que o poder se perverte completamente, para se tornar negação 34


de tudo que é humano, a afirmação do normal é, concomitantemente, uma defesa contra a realidade, que se tornou insuportável. Justamente porque o absurdo e o insano não cabem nos quadros de referência da normalidade, ela se torna um refúgio seguro, de modo que a vida pode ter uma sequencia tranquila, fundamentada na convicção inabalável de que a mais pérfida ignomínia não poderia ser mais do que uma suposição sem fundamento. Esta pressuposição segundo a qual, o mal e a loucura têm limites, que não se pode sobrepujar certas regras básicas de civilidade; a certeza de que o poder jamais tomaria um caráter francamente hostil e homicida são as próprias garantias subjetivas dos absurdos que perpetra, e sem as quais eles seriam impossíveis.

Figura 5 - Triumph des Willens (Leni Riefenstahl, 1934)

http://br.youtube.com/watch?v=GcFuHGHfYwE 35


Deste modo, convicto de que o normal tornou o absurdo e o horror uma extraterritorialidade - lugar, portanto, em que os termos da barbárie podem ser impostos e exercidos sem qualquer resistência que se lhe oponham -, o poder se empenha em levar sua perversão até os limites do realizável: e tanto mais monstruoso e efetivo em sua tarefa de destruição; quanto mais improvável em sua desumanidade, tanto menos ele é percebido pela normalidade - que, à sua vez, se exilou em outro mundo, como ato de defesa e impulso de autopreservação, relativamente àquela bestialidade em que se converteu o poder. Nessa geopolítica do afeto, todos os indícios que deveriam demonstrar à exaustão, a natureza da monstruosidade que se pratica servem, exatamente e ao contrário, para dissimulá-la em meio à vida corrente, como seu desdobramento imaterial; um mundo de outra ordem, sem substância, pelo qual se transpassa sem ver; se escuta sem ouvir; se vê sem enxergar. Essa disjunção serve ao poder, tanto quanto serve ao homem normal e, nesta negativa recíproca, de ver e de informar, a ignomínia deixa seu rastro de sangue, mas apenas como indicação tênue; 36


insinuação do monstruoso, como demanda tácita para realizar e dar sequencia à barbárie.

Figura 6 - Triumph des Willens (Leni Riefenstahl, 1934)

Neste sentido, o apego desesperado ao normal e à normalidade são elementos da mesma doença que nutre a loucura, pois nesta oclusão que nega o absurdo, o mundo se apresenta como cisão e como licença e escusa para o assassínio. O país dos mortosvivos, o campo de concentração, o gulag e o gueto são uma cegueira, mas apenas na condição de se apresentarem como uma recusa da visão; a instituição do normal como negação de tudo aquilo que excede a vida cômoda, as explicações fáceis e as 37


pequenas conquistas. É por isso que a revelação do genocídio se apresenta como uma surpresa: ele é o desnudamento do ponto cego da visão. Tão logo se revele, contudo, retoma-se o caminho da negação, uma vez que o normal volta a opor resistência àquilo que o ameaça, na condição de território do que é conhecido, comezinho e razoável. Recusa-se, deste modo, substancialidade ao mal que, por isso mesmo, encontra o terreno próprio através do qual pode se perpetuar. O caminho para sanidade exige, portanto, que se mantenha uma tensão para com as formas aparentemente inofensivas e inertes da vida cotidiana, pois elas aninham, com ventre quente e maternal, a monstruosidade que se predica inexistente e insubsistente. Ao Leitor A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez Habitam nosso espírito e o corpo viciam, E adoráveis remorsos sempre nos saciam, Como o mendigo exibe a sua sordidez. Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça; 38


Impomos alto preço à infâmia confessada, E alegres retornamos à lodosa estrada, Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça. Na almofada do mal é Satã Trimegisto Quem docemente nosso espírito consola, E o metal puro da vontade então se evola Por obra deste sábio que age sem ser visto. É o Diabo que nos move e até nos manuseia! Em tudo o que repugna uma jóia encontramos; Dia após dia, para o Inferno caminhamos, Sem medo algum, dentro da treva que nauseia. Assim como um voraz devasso beija e suga O seio murcho que lhe oferta uma vadia, Furtamos ao acaso uma carícia esguia Para espremê-la qual laranja que se enruga. Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos, Em nosso crânio um povo de demônios cresce, E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce, Rio invisível, com lamentos indistintos. 39


Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada Não bordaram ainda com desenhos finos A trama vã de nossos míseros destinos, É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada. Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais, Aos símios, escorpiões, abutres e panteras, Aos monstros ululantes e às viscosas feras, No lodaçal de nossos vícios imortais, Um há mais feios, mais iníquo, mais imundo! Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito, Da Terra, por prazer, faria um só detrito E num bocejo imenso engoliria o mundo; É o Tédio! - O olhar esquivo à mínima emoção, Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado. Tu conheces, leitor, o monstro delicado - Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão! (BAUDELAIRE. Charles. As Flores do Mal.)

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Figura 7 - http://www.archives.gov/research/ww2/photos/

Memória e filosofia I Deve-se fundar o conceito de progresso na ideia de catástrofe. Que “tudo continue assim”, isto é a catástrofe. Ela não é o sempre iminente, mas sim o sempre dado. O pensamento de Strindberg, o inferno não é

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nada a nos acontecer, mas sim esta vida aqui. A salvação se apega à pequena fissura na catástrofe contínua. (BENJAMIN, 2000, p. 174) O futuro é no presente, ou, ainda, é o presente que de si mesmo diverge. Deste modo, tão logo o dia tenha nascido, ele já é expectativa de todas as outras manhãs, as quais se apresentam à mente como negação infindável da faticidade. Assim, o romper do dia é tanto mais sublime, porque contém em si, como elemento material (efetivo) e não apenas como idealização, toda a energia de um sol perpétuo, o qual, absolutamente irreal na sua imediaticidade, é possibilidade que se oferece a nós, como lúmen inesgotável. O novo, portanto, como o indeterminado, o devir sem mediações, é potência infinita, todo o futuro neste preciso momento, o que como ímpeto, é incomparavelmente maior do que qualquer elemento histórico determinado. O futuro é, pois, o solvente de toda experiência cristalizada.

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Figura 8 - Através de um Espelho (Ingmar Bergman,

1961)

Mas o futuro também é uma reminiscência e, por meio desta condição, se apresenta como o determinado; marcado pela imediaticidade e pela memória. A reminiscência, contudo, tão logo se apresente nesta condição, é a própria história em sua totalidade. Compreende-se, portanto, que o presente que de si mesmo diverge, apresente-se neste âmbito, não como o radicalmente novo, mas como um olhar recíproco entre o presente e o passado. E ainda que o futuro reste sempre indeterminado, posto que absolutamente inexprimível em seus próprios 43


termos, ele é, de algum modo e em algum grau, portanto, uma fascinação entre o presente e o passado. No contexto deste fascínio, cabe à filosofia zelar pela integridade da memória, de maneira que o futuro não se veja condenado a perambular de unilateralidade em unilateralidade, encantado por signos exteriores que dissimulam o velho na pele do novo. A própria teoria filosófica não pode determinar se deve predominar no futuro a tendência barbarizante ou a visão humanística. Contudo, ao fazer justiça àquelas imagens e ideias que em determinadas épocas dominaram a realidade exercendo o papel de absolutos – por exemplo a ideia de indivíduo tal como predominou na época burguesa – e que foram abandonadas no curso da História, a filosofia pode funcionar como um corretivo da História, por assim dizer. Assim os estágios ideológicos do passado não seriam identificados simplesmente à estupidez e à fraude – tal como o veredito estabelecido contra o pensamento medieval pelo 44


Iluminismo Francês. As explicações sociológica e psicológica das crenças antigas seriam distintas da condenação e supressão filosóficas das mesmas. Despojadas do poder que tinham em sua situação na época, serviriam para lançar alguma luz no rumo atual da humanidade. Assumindo esta função, a filosofia seria a memória e a consciência da espécie humana, e deste modo ajudaria a evitar que a marcha da humanidade se assemelhasse à circulação sem sentido da hora de recreio de um manicômio. (HORKHEIMER, 2002, p. 186 – grifos meus)

Figura 9 - Midnight Express (Alan Parker, 1978)

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Figura 10 - Herr Tart端ff - O Tartufo (Friedrich Wilhelm Murnau, 1926)

Figura 11 - Guera Civil Espanhola

http://www.english.uiuc.edu/maps/scw/photessay.htm http://www.sbhac.net/Republica/Introduccion/Introduccion.htm

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Se a empreitada do futuro parece menos gloriosa, quando colocada nestes termos, ou seja, como dependente da tradição e do passado, isso decorre apenas e tão somente da incompreensão de que mesmo aqueles que se foram têm o direito de participar das primícias do devir, como simples tributo a sua condição humana; por sua carência que se perpetua como uma espécie de resto renitente do tempo: o irrealizado. O futuro, colocado nestes termos, tem o condão de redimir não apenas a nós, mas ao gênero enquanto tal e, portanto, ele não é exatamente apenas uma dimensão do tempo, mas um local de destino, no qual, a porção de humanidade que o presente (a faticidade) perpetuamente nos nega, é gratuitamente oferecida 1 . Obviamente este lugar é inatingível e irrealizável, posto que está para além do humano. Mas são exatamente este déficit, este hiato e este inexprimível que dignificam a vida, na justa medida que em lugar de esgotá-la declaram a insuficiência de sua realização. No texto, portanto, resta sempre o silêncio como marca daquilo que remanesceu insondável e, na declaração desta insuficiência, 47


permanece aberta a porta por meio do qual o tempo se dobra sobre si mesmo, reclamando a realização de seus sonhos. Por isso, a verdadeira filosofia aparece para a época que lhe vê nascer como uma reivindicação absurda: pois ela sempre irá requerer do homem não o puro isto, mas tudo aquilo que ele poderia ser; não a sua perversão referendada pela ordem, mas toda a sua dignidade e possibilidades. A filosofia que ainda não se colocou em condição de tornar, a cada época, tal reivindicação incontornável, permanece inconclusa, quando não é pura e simples frivolidade travestida de erudição.

Figura 12 - O Circo (Charles Chaplin, 1928)

http://br.youtube.com/watch?v=9blB50d4M00 48


Mas se a filosofia se propõe tal meta, ela faz uma reivindicação total: não lhe interessa o homem tornado unilateral pela ordem, não lhe convêm os cânones, as regras de bom comportamento, os ordenamentos da especialização, a epistemologia racionalista. Quer o homem por inteiro, com corpo e sangue, intelecto, afeto; um ser cuja métrica possa apropriar-se da vida, na sua dimensão verdadeiramente humana. Requer o homem em sua totalidade imediata, de modo que a memória se apresente, também ela, na sua integridade e potência, prenhe de consequências e responsabilidade. Evita assim a recordação na forma pasteurizada do filme - cujo final nos é oferecido para proporcionar tranquilidade -, colocando em seu lugar a dramaticidade solitária da escolha: pois o passado que existe para nós, não é a história em sua forma imediata, mas nossa valoração da memória; a contemporaneidade na forma concentrada da totalidade da história.

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Figura 13 - Los Solitarios (Edvard Munch)

http://www.edvard-munch.com/

Negar como nosso o sofrimento que transpassa a história equivale a perpetuar a sua realização; descuidar de entender as circunstâncias pelas quais o humano se perde na barbárie, não só torna vazio o seu repúdio, como atualiza a violência cometida, de modo que indiferença para com o terror ressurge, subliminarmente, como violência contra nós. Isto é, contudo, o pior do pior, pois nesta falha da memória, perde-se o passado e o presente da violência, de modo que ela é vivida de maneira inconsciente, ainda que absolutamente efetiva em consequências. 50


Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento do perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição com os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (BENJAMIN, 1994, p. 224-5) 51


Figura 14 - Roma, cidade aberta. (Roberto Rossellini , 1945)

*** A economia da tortura consiste em demonstrar a fragilidade do corpo humano, diante da potência irresistível do instrumento de tortura. Na idade média, contudo, o suplício se relacionava ao exemplo terrível, à exposição do corpo supliciado, de tal modo que em uma sociedade em que era relativamente fácil submergir ao controle, ficava sempre a certeza do tratamento brutal, no caso da captura. Na modernidade, de outra parte, partindo-se da certeza absoluta da impossibilidade da evasão das várias agências de controle, a tortura procura demonstrar didaticamente a superioridade total dos aparatos 52


coletivos sobre indivíduo. No primeiro caso se pune simbolicamente a tentativa de regicídio, ou seja, o atentado contra o corpo do rei - que em caráter pessoal representa a nação. No segundo trata-se de punir a ousadia de pretender divergir da ordem, de que cada indivíduo não deveria ser mais do que exemplar, em uma série idêntica e infinita. Memória e filosofia II As exigências que a memória apresenta devem levar a resultado oposto daquilo que tem sido um denominador comum de nossa época: a convicção de que só está submetido à história o pensamento de nossos oponentes, ao passo que, nossa apreensão torna-se, ela mesma, realização potencial da história, portanto grandeza supra-histórica. Esta violência contra o pensamento exterioriza-se sob a forma do terror, que só pode ser superado na condição de que o pensamento se submeta à memória (historicidade) e, deste modo, se reconheça como humano, ao compreender a natureza mesma de suas reivindicações. Sem este ato de contrição o pensamento jamais poderá ser verdadeiramente

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crítico, pois apenas perpetuaria a violência de que é vítima. (...) encontrei o instinto de arrogância, próprio dos teólogos, por toda parte onde, hoje em dia, alguém se sente “idealista” – por toda parte onde alguém, em virtude de sua mais elevada origem, se arroga o direito de olhar parar a realidade com superioridade e distância... O idealista, tal como o sacerdote, tem na mão todos os grandes conceitos (...) vê tais coisas abaixo de si como forças perniciosas e sedutoras, sobre as quais paira o “espírito” no puro serpara-si (...) (NIETZSCHE, 1997, p. 21)

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Figura 15 - Que viva o México (Sergei Eisenstein, 1932)

http://br.youtube.com/watch?v=HG1jNh4_0wc

Na nossa época, porém, tão logo o pensamento se submeta à memória e se reconheça na história - se for intelecção obstinada - causa a si mesmo horror, pois vê no espelho do tempo, além daquilo que sempre considerou idêntico a si (o progresso), a sombra que supôs ser de si distinto (a barbárie). A surpresa desse horror, no entanto, só pode ser compatível com a estabilidade deste mundo, sob a condição de racionalizar-se sob a forma de um 55


propósito, em um programa finalista (uma teleologia do espírito ou da sociedade), ou ser negada como irreal – efeito que pode ser obtido, igualmente, por tomá-la como o real sem mediações, de modo que a mente só pode apropriar-se daquele horror como patologia individual, exilando-o, portanto, do mundo percebido como corrente, normal. A compreensão estritamente “idealista” devidamente requentada segundo o gosto pósmoderno - do fenômeno nazista é correlata desta última abordagem, pois, fazendo-o depender do desenvolvimento cultural estrito senso, sem vínculos com a totalidade social e as condições materiais de sua produção e reprodução, contribui para o obscurantismo geral. Pelo recurso de condenar unilateralmente o espírito, salva-se a ordem material, sem a qual o horror seria impossível e ineficaz. Esta abstração, um tornar o espírito absoluto mais que absoluto, posto que desprovido de todo o vínculo com a história concreta, é má filosofia, que conduz ao culto da ordem, uma vez que sua crítica torna-se impossível. Por meio desta pirotecnia, a própria cultura declina de suas pretensões de elevação, 56


preferindo restar no solo, de modo que a coruja de minerva transmuta-se no pavão pós-moderno. Se a crítica filosófica se transformou em rejeição pura e simples da filosofia, tão extensa que se possa incluir mesmo os gregos, isso se fez apenas para afirmar o irracionalismo, que não sendo capaz de atribuir ao mundo qualquer sentido, toma a imediaticidade como prancha de náufrago - ainda que não sem antes cobri-la de adereços, patuás e ornamentos mágicos, ou seja, saturá-la de significações insignificantes. É natural, portanto, que o culto da ordem não seja proferido apenas a partir das posições historicamente conservadoras; ele se converte também na crítica cáustica do imutável que remanesce imutável, resolvendo-se na ironia fina, no non sense e no deboche. Aqueles que, há tempo e com palavras sempre novas, querem sempre o mesmo: que não haja progresso, dispõem aí de pretexto mais perigoso. Ele se nutre do sofisma segundo o qual, já que até hoje não teria havido progresso, tampouco deveria havê-lo. Apresentam o triste retorno do 57


mesmo, como mensagem do ser que deve ser captada e respeitada, enquanto, na realidade, o próprio ser a quem se atribui a mensagem é um criptograma do mito, liberar-se do qual equivaleria a uma parcela de liberdade. Na tradução do desespero histórico em norma a ser seguida, ressoa mais uma vez o abjeto arranjo da doutrina teológica do pecado original, segundo o qual a corrupção da natureza humana legitimaria a dominação, e o mal radical, o mal. Esta mentalidade tem atualmente uma palavrachave [Stichwort] para prescrever de forma obscurantista a idéia de progresso: a crença no progresso. O ‘habitus’ daqueles que tacham de positivista o conceito de progresso é, quase sempre, ele mesmo positivista. Eles apresentam o curso do mundo que, constantemente, tem revogado o progresso – no qual ao mesmo tempo, sempre consistiu – como instância para argüir que o mundo não tolera o progresso e que, quem não renuncia a ele, age mal. (…) (ADORNO-b, 1995, p. 51) 58


Memória e Filosofia: o lugar de Auschwitz O horror que se procurou exilar do mundo, através de sua desconexão com a totalidade - por recurso a uma abordagem “idealista” ou à racionalização -, pertence a ele não como desenvolvimento patológico ou acidente, mas como recorrência e necessidade, pois é apenas a forma concentrada da violência que se perpetra continua e corriqueiramente contra o homem e a natureza, a partir da própria vida em sociedade, e como afirmação de sua normalidade2.

Figura 16 - Entrada de Auschwitz no inverno

http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Auschwitz-Work_Set_Free.jpg

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A recusa em reconhecer no horror qualquer propósito, o aceitá-lo como o absurdo que não pode ser resignificado, equivale, portanto, à exigência de que nossa época se reveja em sua totalidade, que ela retome os fundamentos a partir dos quais se formou, e que encontre lá não a recordação idílica de um passado heroico, mas as deformações que se impuseram ao homem e ao pensamento, e sem as quais aquele mesmo horror não poderia ter sido perpetrado. (...) Anteriormente dizíamos: “Bom, nós temos inimigos. É a ordem natural das coisas. Porque um povo não teria inimigos?” Mas foi completamente diferente. Foi na verdade como se um abismo se abrisse diante de nós, porque tínhamos imaginado que todo o resto iria de alguma forma se ajeitar, como sempre pode ocorrer na política. Mas dessa vez não. Isso jamais poderia ter acontecido. E não estou me referindo ao número de vítimas, mas à fabricação sistemática de cadáveres etc. – não preciso me estender mais sobre o assunto. Auschwitz não poderia ter 60


acontecido. Lá se produziu alguma coisa que nunca chegamos a assimilar. Deixando isso de lado, devo dizer que a vida era por vezes um pouco difícil; nós éramos pobres, estávamos encurralados; tínhamos de fugir e viver de expedientes etc. Assim era. Mas éramos jovens e cheguei mesmo a encontrar naquilo um certo prazer, não posso dizer de outra maneira. Mas Auschwtiz era uma coisa completamente diferente. Como todo o resto, podia-se pessoalmente dar um jeito. (ARENDT, 2002, p. 135) O que é, portanto, filosofar neste mundo que é nosso, o único no qual podemos estar verdadeiramente presentes enquanto sujeitos éticos? O que é fazer ciência nessas condições? Aqui e agora estas questões se impõem como exigência e requerimento insuperáveis: a experiência nazista, de que Auschwtiz é a culminação, nos obriga a este recomeço radical. Tudo que acreditamos como possível, nossa autoimagem; os limites entre o 61


humano e o inumano, entre a sanidade e a patologia; a política, a filosofia e a metafísica; tudo, absolutamente tudo, passou a estar em questão. E o fato de que a guerra tenha sido simbolicamente encerrada pelo recurso à bomba atômica, o que faz, senão confirmar a lógica (de poder) que se pretendeu vencer? Auschwitz nos obriga ao recomeço e, reclama, portanto, que toda continuidade pura e simples é capitulação; que todo novo amanhã estará ainda sob os escombros do passado; toda a luz nos chegará por meio de uma refração e toda existência estará envenenada, enquanto a razão não nos colocar na presença ainda viva, de uma infâmia que não pode se despedir do mundo, na justa medida em que lhe pertence. Não se requer aqui o concurso do sentido, pois admiti-lo seria como conferir remanso ao espírito; o que se faz necessário é que afirmemos o absurdo como absurdo, o sem sentido como o que de fato é, para que o homem, seu artífice, possa renascer de si mesmo, não como o mutilado que extirpou o passado, ou que se desculpou, mas como o herói que constrói um novo eu sobre a memória. Para que o homem nasça como o novo, é preciso que 62


ele carregue pelo tempo o fardo desta dor e que ela permaneça como uma dimensão puramente existencial do ser; um desconforto do eu diante de si mesmo, um lamento do humano que se despede da pretensão da divinização e do senhorio da natureza. A filosofia já de há longo tempo vem lidando o problema de um Deus banido do mundo, ou, pensado de outro modo, de um mundo com o qual o homem tem que se ver usando a si mesmo como referência e medida. Auschwitz levou esta questão até o ponto de fusão: ficou demonstrado ali que a razão pode perfeitamente dissociar-se de si mesma, decompor-se, cindir-se, reduzindo-se à técnica e à tecnologia, sem qualquer valor humanista, sem ética imanente, sem juízo moral e, por meio desta redução, apresentar-se não como elemento da civilização e da cultura, mas como meio para os fins da própria barbárie. Filosofar e fazer ciência em nossa época devem, portanto, de algum modo, ser uma remissão a Auschwitz, quando não uma reflexão sobre o fenômeno nazista enquanto tal.

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Figura 17- Prestando atendimento médico aos prisioneiros encontrados no campo de concentração de Wobbelin, Alemanha, 5 de Abril de 1945 http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Wobbelin_Concentration_Camp.jpg

Impõe-se aqui, a rigor, um princípio metodológico: se a razão uma vez cindida não pode mais ser declarada uma; se a razão pode se apresentar como razão e como razão instrumental e no interior desta cisão, opor-se a si mesma; faz-se necessário, então, que a razão critique a si mesma e que, por meio desta crítica, estabeleça limites à sua atuação e validade. Esta razão fraturada, cindida, em 64


dúvida, fragilizada e, exatamente nesta medida, pode aspirar a ser humana. Pois a razão que anteriormente havia expulsado o mito, desterrado Deus, pretendeuse ela mesma, um sucedâneo do mito e de Deus. Ora, esta elevação a uma altitude super-humana, não poderia e não pode conduzir a outro lugar que não o infortúnio, de vez que o desenvolvimento da ciência como unilateralidade, ou seja, como aposta total da cultura e como redução de toda a cultura à ciência, prenuncia a desgraça, não como decorrência do pecado original - de uma culpa arcaica e constitutiva do humano -, mas como restabelecimento necessário da harmonia rompida com elementos não racionalizáveis da existência (o resto irracional, o ponto cego da visão). Uma razão esquálida, escombro de sua própria grandeza, terrena, irremediavelmente terrena, é o que nos resta e é justamente na imensa benignidade de sua fragilidade que devemos nos apoiar, pois ela é para nós, equivalente à nossa proporção no Universo. Não podemos mais argüir um estatuto de superioridade, uma quase semelhança à natureza de Deus. Reconhecer a razão como limitada e todo o conhecimento como provisório significa não apenas 65


conferir legitimidade a outras formas de apropriação do real; implica igualmente na obrigação metodológica de levar em consideração o ponto de vista do outro, e por meio da legitimação da oposição deste outro, rever-se.

Figura 18 - Foto: Marcos Santilli http://www.geocities.com/HotSprings/Sauna/2018/floresta.htm

Ora, fatalmente haverá aqueles que digam que este princípio já é uma prática corrente no mundo da ciência. É verdade: ninguém em sã consciência se oporia ao fato de que o conhecimento deve ser 66


dialógico. Ainda assim, o que se declara como princípio, é cuidadosamente revogado na prática; o que se afirma no particular, é negado no universal. Deste modo, ainda que não saibamos o resultado final do brutal desenvolvimento da técnica e da tecnologia, das interferências sem limite e proporção sobre a natureza, apesar disso, mantemo-nos indo adiante; recusando todas as evidências, minimizando as consequências, fazendo vistas grossas perseguindo como naturais, metas que são históricas. O conhecimento como ânsia de domínio; o desejo de reduzir à passividade; o exercício plenipotenciário da vontade são violências ao diálogo, cuja faceta exterior necessária é a ralação com a natureza como violação e humilhação. Tendo cedido em sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. No aspecto formalista da razão subjetiva, sublinhado pelo positivismo, enfatiza-se a sua nãoreferência a um conteúdo objetivo; em seu aspecto instrumental, sublinhado pelo pragmatismo, enfatiza sua submissão a conteúdos heterônomos. A razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo 67


social. Seu valor operacional, seu papel no domínio dos homens e da natureza tornouse o único critério para avaliá-la. Os conceitos se reduziram a uma síntese das características que vários espécimes têm em comum. Pela denotação da semelhança, os conceitos eliminaram o incômodo de enumerar qualidades e servem melhor assim para organizar o material do conhecimento. São pensados como simples abreviações dos itens a que se referem. Qualquer uso dos conceitos que transcenda a sumarização técnica e auxiliar dos dados factuais foi eliminado como último vestígio da superstição. Os conceitos foram “aerodinamizados”, racionalizados, tornaram-se instrumentos da economia de mão-de-obra. É como se o próprio pensamento tivesse se reduzido ao nível do processo industrial, submetido a um programa estrito, em suma tivesse se tornado uma parte e uma parcela da produção. Toymbee descreveu algumas das consequências desse processo no ato de 68


escrever História. Ele fala da “tendência para o oleiro tornar-se escravo do seu barro... No mundo da ação, sabemos como é desastroso tratar animais ou seres humanos como se eles fossem pedras e paus. Porque deveríamos supor que esse tratamento fosse menos equivocado no mundo das ideias”? (HORKHEIMER, 2002, p. 29-30) Memória e filosofia: o lugar da ecologia The description of the labor process in its relations to nature will necessarily bear the imprint of its social structure as well. If the human being were not authentically exploited, we would be spared the inauthentic talk of an exploitation of nature. This talk reinforces the semblance of “value”, which accrues to raw materials only by virtue of an order of production founded on the exploitation of human labor. Were this exploitation come to a halt, work, in turn, could no longer be characterized as the exploitation of nature by man. It would henceforth be conducted in the model of 69


children’s play, which in Fourier forms the basis of the “impassioned work” of Harmonians. To have instituted play as the canon of a labor no longer rooted in exploitation is one of the great merits of Fourie. Such work inspirited by play aims not at the propagation of values but at the amelioration of nature. For it, too, the Fourierist utopia furnishes a model, of a sort to be found realized in the games of children. It is the image of an earth on which every place has become an inn. The double meaning of the word <Wirtschaft> blossoms here: all places are worked by human hands, made useful and beautiful thereby; all, however, stand, like a roadside inn, open to all. An earth that was cultivated according to such an image would cease to be part of “a world where action is never the sister of dream”. On that earth, the act would be kin to dream. (BENJAMIN, 1999, p. 360-361) O pressuposto metodológico que a experiência de Auschwitz requer à intelecção, para não ser mera tergiversação, implica em fazer da ecologia uma ética 70


imanente à ciência. Para se manter terrena, humana, a ciência deve ser necessariamente ecológica, pois, o contrário, seria subordinar cada um dos problemas que se coloca à ciência a seus próprios termos, rezando a Deus, à noite, para que tudo dê certo no futuro3. A necessidade desta limitação não decorre de um requerimento teológico, antes é uma exigência da potência da ciência enquanto tal: justamente porque se converteu efetivamente em poder de escala planetária, a ciência deve ser ecológica.

Figura 19 - Crianças em subúrbio de Londres, Setembro de 1940

http://www.archives.gov/research/ww2/photos/images/ww2-87.jpg

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A ciência que trata a natureza como elemento a ser dominado, subjugado, para fins da produção da riqueza alienada, violenta a dignidade do homem, pois é meio para a opressão e não para a liberdade. No seio de nossas relações sociais, tanto quanto o homem espécie é meio humano para a reprodução da coisa-capital, a natureza é meio material para a perpetuação do domínio. Deste modo a libertação do homem do vaticínio da barbárie implica na desalienação de sua relação com a natureza, para que essa se lhe ofereça não como possessão ou elemento hostil, mas como o outro do homem, natureza humanizada, alteridade. A violência do homem contra a natureza já é a violência do homem contra o homem e essa agressão contínua, vivida e revivida na e por meio da indiferença, é Auschwitz como possibilidade e recorrência. Neste sentido preciso, a declaração do estatuto da natureza é, em cada formulação teórica, a filosofia como o condicionado; nada existe depois de feita a opção, a não ser o território do eterno retorno do princípio de que se partiu. Note-se que não ser requer aqui um retorno a estágios pré-científicos ou pré-industriais, mas que a 72


lógica da relação com a natureza não se faça sob o espectro do domínio ou do valor (que se valoriza), os quais a tornam o alvo de toda a agressividade que a civilização acumula em seu interior. Transformar-se a ecologia em uma ética imanente da ciência equivale a exigir que a civilização supere, em seu próprio território, a agressividade que lhe é inerente transformando-se a reprodução infinita da alienação universal em acolhimento terreno e planetário do homem. Para tanto é preciso investir, contudo, no desenvolvimento da ciência como diálogo, como realidade dialógica. O outro que a natureza dialógica da ciência requer e exige, contudo, não é o outro determinado, o colega cientista, o filósofo da ciência, o oponente político; ele é um outro universal, indeterminado: a natureza, as gerações que virão, os sonhos de justiça e fraternidade, a esperança que todo começo traz consigo e da qual, todos nós, em um sentido absolutamente tangível e determinado, somos filhos. A natureza dialógica da ciência, quando devidamente compreendida, é a própria exigência de hospitalidade e respeito para com o outro, o olhar para além do uso instrumental, funcional e traduz-se em uma 73


relação completamente distinta com o mundo: não a submissão, a imposição e a violência, tão necessária quanto natural, quando o outro é concebido como mero meio, para um fim, que se propõe e se predica imanente ao desenvolvimento do ser.

Figura 20 - Vítimas da bomba atômica - Hiroshima

http://students.umf.maine.edu/~donoghtp/Images.htm

O produto do diálogo, à sua vez, não é somente o consentimento, o assentimento; seu produto mais significativo é o revelar-se, o desnudar-se e, portanto, o colocar-se em evidência para si mesmo – o entregar-se, o comprometer-se, o empenhar e 74


confiar a vida, para recebê-la de volta. Se a ciência é verdadeiramente dialógica, deixa-se o campo do domínio e do conhecimento, para ir ao território do autodomínio e do autoconhecimento. Neste sentido preciso, a ecologia de que se trata é também uma ecologia do espírito e este avanço seria igualmente um retorno.

Figura 21 - Bombardeio de Londres, 1941

http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Blitzaftermath.jpg

A ciência dialógica é, portanto, de certo modo, uma terapêutica: ela cura o homem, recorrentemente, de sua ilusão de potência. 75


Entende-se, então, que esta natureza dialógica da ciência implica e requer que ela se desenvolva como elemento da política, ou ainda, submetida ao domínio da polis, no espaço público; como problema de todo cidadão, que nesta pura e simples qualidade, tem o direito de comparecer no terreno do debate e do diálogo. Mesmo porque, se a ciência é dialógica, esta nasce no território da linguagem, subsumida às suas possibilidades e, de sentença da coisa-em-si sobre si mesma, replicada pelo cientista, ela se transforma, portanto, em conhecimento possível, de um homem verdadeiramente humano. A ciência, para ser mais do que técnica e, portanto, para encontrar em si mesma uma referência humanista, não pode e não deve ser assunto de especialistas, razão pela qual, quando falamos que para atender ao quesito dialógico ela deve ser também ecológica, não pretendemos submeter tudo aos ditames de uma nova especialidade. Ecológico, nos nossos termos, significa compreender que todo e qualquer ato de violência perpetrado contra o outro, é uma ato de violência contra si mesmo, do mesmo modo que a violência que cada qual impõe a si redundará em violência 76


contra o mundo. Ecológico é estar diferenciado e implicado; individuado e ainda assim sentir-se reunido ao universal; é o conter-se a partir da compreensão de que haverá sempre algo que me escapa e que isto, justamente isto, poderá ser fundamental; é o não opor violência à violência, por amor do diálogo; ecológico é fazer profissão de fé na política e não antropomorfizar a natureza, esperando dela uma revolta contra as coisas que são de homens. É especialmente anti-ecológico esperar que a natureza possa ser um instrumento em sua própria causa, e avocar a condição de seu intérprete. O arcaico no moderno

Figura 22- Nuremberg, 1945

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Figura 23 - Fausto (Murnau, 1926)

http://br.youtube.com/watch?v=WbLz22dS1A0

Modernity has its antiquity, like a nightmare that has come to it in its sleep. (BENJAMIN, 1999, p. 372) Auschwitz e a filosofia da história Sem embargo, origem e fim permanecem obscuros. Quando a História nos atinge, não nos permite repouso. Gostaríamos de encontrar fora da História, uma posição a partir

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da qual nos fosse possível viver nela. (JASPERS, 1985, p. 33).

Figura 24 - Hitler é aclamado pela aquisição pacífica da Áustria.

http://www.archives.gov/research/ww2/photos/

A experiência do terror nazista nos legou algo de insuperável, ou seja, nos levou a duvidar da filosofia da história. Não se quer estabelecer com essa afirmação a redução simplista e bizarra, que faz Auschwitz derivar dos próprios fundamentos da cultura ocidental. Auschwitz não nasce da razão, nem mesmo da razão instrumental, mas do irracionalismo; é uma negação da cultura e um mergulho no mito; produto não das forças que 79


clamavam pelo progresso, mas a resolução regressiva dos conflitos inerentes à ordem; resposta arcaica aos desafios colocados pelo desenvolvimento das modernas forças produtivas materiais. Isso não impede que coloquemos em questão a presunção da filosofia da história, segundo a qual o progresso estaria em marcha, sendo cada momento da história apenas a realização de seu desenvolvimento, no caminhar resoluto ao topo do empreendimento humano. A história, aprisionada na fórmula da filosofia da história, transforma-se, de certo modo, em estética, posto que se transmuta no enredo pelo qual o ser, o ente, revela sua ontogênese e, neste caminho épico, depura-se a si mesmo de todos os dejetos que lhe são supostamente estranhos – resultando, então, como síntese artificial e evasão do sujeito concreto, histórico, para afirmação do esqueleto e do fantasma animado. (...) A história não tem “sentido”, o que não quer dizer que seja absurda ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser analisada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade das lutas, das 80


estratégias, das táticas. Nem a dialética (como lógica da contradição), nem a semiótica (como estrutura da comunicação) não poderiam dar conta do que é a inteligibilidade intrínseca dos confrontos. A “dialética” é uma maneira de evitar a realidade aleatória e aberta desta inteligibilidade reduzindo-a ao esqueleto hegeliano; e a “semiologia” é uma maneira de evitar seu caráter violento, sangrento e mortal, reduzindo-a à forma apaziguada e platônica da linguagem e do diálogo. (FOUCAULT, 1979, p. 5) Como, no entanto, o terror nazista não ocorreu fora da história, mas na história; como sua proporção foi de tal ordem, que ele jamais poderá ser resignificado; como deu mostras, até à exaustão, que o progresso convive com as forças da regressão, não se pode mais manter na visão ingênua, segundo a qual o espírito absoluto se desenvolve de si mesmo, até a perfeição, não importando aqui se ele anda sobre os pés ou sobre as mãos. O fato é que não podemos mais derivar a partir da filosofia da história, ou da história, a necessidade como lei natural e, 81


muito menos, que ela, em existindo, o faça para garantir os propósitos do progresso.

Figura 25 - Metropolis (Fitz Lang, 1927)

A história como necessidade e lei natural, é a história já realizada e, portanto, ontologia ex post. A necessidade, como regularidade que se pode avocar, para demonstrar o sentido do futuro, mostrou-se uma quimera e a história foi cautelosa em desmentir todas as tentativas de prognóstico, não interessa de que campo elas tenham sido lançadas. O futuro permanece sempre como possibilidade e, portanto, como espaço em que se pode exercer a liberdade. E é 82


por conta justamente desta indeterminação que, novamente, se requer o recurso à política, que reafirma que o futuro tem natureza probabilística. As tarefas da filosofia

Figura 26 - James Ensor - Masks Fighting over a Hanged Man

http://www.all-art.org/art_20th_century/ensor1.html

Afastada a ingenuidade segundo a qual o mundo vive um drama épico, cujo sentido é a realização da perfeição na terra, descoberto que o progresso e seu refluxo, na forma de regressão aos domínios da barbárie, convivem lado a lado, quais tarefas se impõem à filosofia e à ciência? Seguramente não se trata apenas de denunciar o nazismo, de compreendê-lo em sua singularidade, em lhe expor 83


os horrores. Porque ainda que a memória não deva esquecer, mesmo que não se possa permitir simplesmente deixar ir, não é propriamente do passado que devemos falar; é o presente e o futuro que nos devem preocupar, pois mais do que uma curiosidade, uma aberração, uma sandice, o fato é que o fascismo existiu nos quadros da moderna sociedade de massas e, nesta especificidade que lhe é inerente, deve ser considerado como uma possibilidade recorrente. É nosso dever, portanto, compreender exatamente o que nela o tornou possível; é necessário ver e antever as pequenas cristalizações que, não sendo elas mesmas o fascismo, podem lhe dar substância. É fundamental estar atento, porque, diferentemente da crença de que o grande mal só se pode edificar pela grande loucura, é da pequena indiferença, de um certo senso de direito adquirido e de corações não especialmente envenenados que ele se nutre. O terrível no fascismo não é apenas a sua crueldade e violência, porque o homem não foi até agora propriamente pacífico; o que o coloca para além de qualquer experiência humana anterior está no fato de que não foram homens de armas, 84


particularmente especializados e preparados para matar, que perpetraram o absurdo; não foram nem mesmo milícias, agindo à margem de um comando central. A escala e a proporção do fenômeno só foram possíveis porque homens comuns preocupados com suas vidas ordinárias, pais de família convencionais, que cuidavam de seu jardim nos fins de semana; que faziam amor com suas esposas; que eventualmente ouviam Mozart ou Beethoven, que iam à ópera, que compreendiam física e astronomia, que talvez tivessem lido Kant e Hegel - foram, de algum modo, corresponsáveis, quando não agentes diretos do horror. O mal só foi verdadeiramente monstruoso porque se tornou, ao mesmo tempo, banal, minimalista, impregnando as vidas em todos os seus aspectos corriqueiros e cotidianos. Não pode ser apreendido na totalidade de sua extensão, portanto, apenas nas alturas em que vaga o espírito absoluto como o querem muitos, e especialmente os idólatras da ordem, de todos os matizes. É preciso buscá-lo, igual e especialmente, no recesso dos lares, na competição da fábrica, no programa de domingo, na tagarelice sobre esportes, na espontaneidade 85


antinatural das piadas de mau tom; na perversidade de sujeitar crianças aos requerimentos maquinais de uma educação para vencer; na violência tácita, mas subliminarmente autorizada, contra as mulheres. O fascismo não é uma irrupção das elites - por mais que elas o tenham apoiado com todo ardor de suas conveniências -, não é um regime oligárquico, predicando um mal metafísico, que pressuponha a erudição e o recurso à alta cultura. É, no essencial, um movimento de massa, cujo fundamento é a revolta do homem moderno contra a civilização, que o reduziu à dimensão de coisa animada. Fantasma em vida, perambulando sem rumo ou sentido, este homem requer a redução de tudo ao mesmo, a eliminação da diversidade, que a massa implica. O mal estar que permanece no interior da civilização, ele mesmo não sendo o fascismo, é prenúncio contínuo de sua possibilidade e requer, portanto, não este ou aquele esforço em particular, não aquela política especificamente. É necessário que a modernidade reveja seu projeto e que o submeta às metas de um humanismo radical.

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As pequenas cristalizações que permanecem no âmbito da sociedade contemporânea não devem ser pensadas, contudo, como propriedade deste ou daquele grupo especificamente; algo que se possa facilmente identificar a partir de signos e insígnias exteriores. Seria muito simples se assim fosse. O que deve nos preocupar está associado ao fato de que muitas das condições que permitiram ao terror nazista ser um elemento banal, envolvendo pessoas medianas, não especialmente aptas para perpetrar atos de violência - mas capazes de sancionar o terror, com indiferença maquinal -, estas mesmas condições estão conosco, aqui e agora, como estiveram no passado recente e na mesma forma que a caracterizavam: sua familiaridade aparente; a falsa ancestralidade de uma concepção mórbida e perversa da vida, que se pretendia inerte em suas consequências sociais e políticas. Nesse preciso sentido, ou seja, para a instituição do contemporâneo como afirmação desfigurada do arcaico - reminiscência do perverso como aquilo que é imediatamente prosaico -, são fundamentais condições essencialmente modernas: o sistemático empobrecimento e aviltamento das subjetividades (a 87


preparação para competir, para fazer o que for, a fim de permanecer pairando sobre a superfície), a indiferença para com o próprio sofrimento, que se exterioriza sob a forma de total insensibilidade para com o sofrimento do outro e, por fim, ainda que não menos, o narcisismo irrefreável, que o consumismo tornado emblema só faz aumentar.

Figura 27 - James Ensor - Skeletons Trying to Warm Themselves

http://www.all-art.org/art_20th_century/ensor1.html 88


A protoforma da horda fascista já se encontra na multidão, que se aglomera no mercado para a celebração da mercadoria, consagrando através desta reunião aleatória e probabilística, acidental, o coletivo como a representação daquilo que é igualmente isolamento e solidão - a vida como indiferença para com a vida, que se retribui ao preço de revolta aberta, sem objeto determinável; ódio atávico que precisa ser sanado, ainda que seja insanável. Esse turbilhão afetivo, essa contradição semovente, se resolvem no progom, e a contínua reposição da multidão como acidente mantém viva, ainda que temporariamente inerte, aquela mesma horda de que ele parte. Pois a multidão é de fato um capricho da natureza, se se pode transpor essa expressão para as relações sociais. Uma rua, um incêndio, um acidente de trânsito, reúnem pessoas, como tais, livres de determinações de classe. Apresentam-se como aglomerações concretas, mas socialmente permanecem abstratas, ou seja, isoladas em seus interesses privados. Seu modelo são os fregueses que, cada qual 89


em seu interesse privado, se reúnem na feira em torno da “coisa comum”. Muitas vezes esses aglomerados possuem apenas existência estatística. Ocultam aquilo que perfaz sua real monstruosidade, ou seja, a massificação dos indivíduos por meio do acaso de seus interesses privados. Porém essas aglomerações saltam aos olhos – e disso cuidam os Estados totalitários fazendo permanente e obrigatória em todos os projetos a massificação de seus clientes -, então vem à luz seu caráter ambíguo, sobretudo para os implicados. Estes racionalizam o acaso da economia mercantil – acaso que os junta – com o “destino” no qual a “raça” se encontra a si mesma. Com isso, dão curso livre simultaneamente ao instinto gregário e ao comportamento automático. (BENJAMIN, 2000, p. 58)

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Figura 28 - Edvard Munch - Moon Light

http://www.all-art.org/modern_art_20cent/munch1.html

*** O homem em sua solidão moderna, apartado dos antigos vínculos comunitários, só existe como elemento da massa. Sua solidão, portanto, é uma forma correlata da multidão, no interior da qual não se distinguem os transeuntes. 91


O elogio da ordem: neoliberalismo & pósmodernismo A submissão irrestrita aos imperativos do mercado, a sujeição de tudo o que é vivo, como condição mesmo de sua existência e reprodução, às leis do valor e da valorização, são os pressupostos abstratos do terror, o qual, à sua vez, é a instância através da qual a ordem pode conciliar a fúria regressiva do homem coisificado, com a imutabilidade necessária de seus pressupostos societários. O que chamamos de civilização permanece, portanto, como uma antevisão, a antecipação idealizada e imaginária, de um estado que ainda não atingimos: sonho que também se realiza como pesadelo. Toda época, de certo modo, abriga no interior mesmo de sua historicidade e materialidade, o sonho como elemento que lhe é próprio, e o universo onírico como um continuum da vida desperta, da vigília - o que leva a realidade a obliterar o real. Cada época gesta, contudo, seu próprio sonho, a partir daquilo que tem de particular e imediatamente histórico. Compreende-se, assim, porque o 92


neoliberalismo é uma marca insuperável do nosso tempo. Linguagem do poder como poder, por meio do seu discurso apologético efetiva-se a glorificação do existente e afirma-se a promessa, como o já verdadeiramente realizado. Através do cientificismo de suas intervenções - neutras do ponto valorativo, uma vez que toda referência humana foi devastada -, a coisa-capital fala sua própria língua. Sem meias palavras, sem peias, toda a crueza de seus requerimentos; o maquinal conforme sua natureza íntima, ainda que explicitado por meio de uma ventriloquia economicista. Em lugar de reflexão, mantra; não o produzido por vozes humanas, mas aquele do sintetizador: as línguas humanas, quando flexionadas pela coisacapital, têm um indisfarçável accent metálico - frieza, indiferença, polidez e perfeição. Tudo absolutamente coerente, explicável, justificável, asséptico, mas sob a condição de se banir o propriamente humano, para realizar a alienação universal como forma geral das relações entre homens. Por força dessa desumanização universal, o tempo evade-se da história, que se resolve em um hoje eterno - o lado enfadonho, mas correlato da novelty -; realização não 93


do espírito absoluto, mas da absoluta falta de espírito: o capital divinizado. Se, contudo, a transcendência é expulsa do mundo por um hoje tornado eterno, faz-se necessário que algo lhe tome o lugar. Uma vez que somente a Cidade Terrena é, então que o seja por meio do máximo gozo, da máxima fruição. Entendese assim que o efêmero seja louvado como o culminar da condição humana, que o sentido seja apeado da vida dos homens, que o narcisismo consumista seja saudado como a afirmação última da individualidade. Colocada diante do horror na história, uma certa filosofia deu seu salto mortal, na esperança de que seu suicídio filosófico redimisse o mundo. Mas esta pretensão não atinge seus fins: o horror não veio ao mundo apenas como um desenvolvimento do espírito, mas como desenvolvimento de uma totalidade histórica determinada, de que este mesmo espírito é elemento, apesar de sua pretensão à ontogênese. Deste modo, o suicídio praticado por esta filosofia, não é mais do que sua tomada de posição em favor do idealismo que abomina e, caso sua reivindicação se concretizasse, estariam perdidos ao mesmo 94


tempo, o pensamento falso e aquele que poderia se opor ao mundo, na sua imediaticidade.

Figura 29 - Feira Universal Chicago, 1893

O receio que o pós-modernismo apresentou à nossa época, como crítica da modernidade, erra o alvo, pois em lugar de condenar a pretensão de que a transcendência humana possa se realizar apesar do homem – e contra ele, portanto -, declara como ilegítimo e funesto o próprio desejo humano de transcender o aqui e o agora. Apresenta-se, então, o pós-modernismo, não como aquilo que a filosofia de fato deve ser – resgate crítico de toda a tradição -, mas ruptura unilateral com toda e qualquer tradição, uma vez que confunde a razão como meta e suas 95


manifestações determinadas na história - com o que, inadvertidamente, passa a flertar com a moda como grandeza estética e filosófica. Em nome de sua crítica filosófica o pósmodernismo mata a filosofia, mas isto não redime o mundo do absurdo. Este homicídio conduz apenas ao empobrecimento de toda a intelecção humana, uma vez que elimina um de seus pontos de vista legítimos: o conceito de universal. Mas na afirmação unilateral do particular como particular e na negação de todo universal, o que resta senão o real sem mediações? E por força desta deformação, o que se afirma como universal, senão os próprios preceitos da ordem? Mas a ordem tornada insuperável e invencível, já é ela mesma o fascismo. Não criticamos o neoliberalismo e o pósmodernismo, contudo, por serem fascistas, o que seria obviamente uma impropriedade analítica. Nós os criticamos porque celebram como plausíveis e desejáveis elementos da contemporaneidade que potencializam o mal estar, que é a presença fascista em sua própria ausência - e neste louvor do presente, eles formam uma unidade. Nós fazemos 96


sua crítica especialmente, ainda, porque em muitas ocasiões, aquilo que não tem substância na ordem teórica, é absolutamente potente no âmbito da vida social - é que a teoria, ela mesma, adere à realidade, como se real fosse. Nessas circunstâncias, e na justa medida em que perdem qualquer precisão teórica, tais doutrinas podem transformar-se no modo pelo qual uma época representa a si mesma e, por meio deste malabarismo, se converterem em argumentos de eficácia máxima: o senso comum e o normal – a realidade como disjunção do real; o onírico em sua forma hostil, pesadelo infernal.

Figura 30 - Feira Universal (Chicago, 1893)

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É apenas na modernidade concentrada, tornada global, contudo, que esta conjunção de esforços intelectuais se realiza verdadeiramente. Na modernidade duplamente alienada, posto que incapaz de conter a irrupção fascista e, uma vez ela ocorrida, tornada inconsciente de seu passado; o conservador canta hinos de louvor à ordem, ao passo que seus críticos temem o futuro e, portanto, preferem o niilismo ao agir. Mas a idolatria da ordem, sua divinização, não é propriamente uma idealização do mundo. O que emerge desta ufania do existente é o ídolo como pedra, a alienação como mineralização e o humano como sacrifício e holocausto contínuos. Os ídolos descomunais do passado, que supostamente haviam perdido seu poder aterrador, são, portanto, continuamente atualizados, mesmo que toda sua dureza e poder, seu caráter colossal, só se realizem sendo igualmente abstratos, invisíveis e imateriais. Qual é a natureza dos vínculos que nos ata a este claustro, de cujos limites estreitos e opressivos, só nos apercebemos como a mais ampla liberdade? O que nos fala a transparência do vidro, no interior do qual nos abrigamos da vida, enquanto vivemos? 98


*** A modernidade carrega consigo o arcaico, não na condição do que é estranho, mas como elemento constitutivo. Sendo a assim, se vê na contingência de construir para a mercadoria os templos que lhe correspondem. As World Fairs são, em certa medida, manifestações deste caráter inerentemente sacro do profano, cujas representações haverão de se suceder no tempo, de modo a elevar a mercadoria até o local mais proeminente do altar.

Figura 31 - Feira Universal (Milão, 1906)

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A solidão impossível

Figura 32 - Almas Perversas (Fritz Lang, 1945)

http://br.youtube.com/watch?v=vS2QlMl__Nw

A resposta à questão de nossa correta estatura na história não é a inação, mas a conclamação à política e ao diálogo; a incitação ao recomeço, feita na firme convicção de que este mesmo começo não está condenado pela tradição, mas, ao contrário, 100


encontra-se fundamentado na instituição desta para os fins da emancipação. Para estar a altura deste desafio é preciso, no entanto, que estejamos em posição não somente de dialogar com o outro, no espaço público, no domínio da polis. Nós precisamos, especialmente, dialogar no nosso íntimo, com esta duplicidade imanente que o nosso ser no mundo implica. Haver um espaço para criticar-se, para refletir, poder recolher-se sobre si mesmo, é condição sine qua non do diálogo com o outro, do reconhecer-se nele. Nos termos da contemporaneidade, contudo, ao desbaratamento do espaço público corresponde a invasão de tudo que é privado, até que do privado só reste a ficção e o significante, vazio de significado. Pois se é verdade que estamos atomizados, completamente isolados em nossas casas, apartados de uma participação política significativa, também é um fato que só vivemos este isolamento totalmente acompanhados e invadidos, por meios que não nos permitem verdadeiramente estar a sós: a TV, o computador e a internet, o vídeo, o ipod, o rádio, o a revista de celebridades, o romance barato, etc. 101


Uma subjetividade assim invadida, à qual não se dá trégua e que não se permite retirar para uma instância verdadeiramente privada, que noção de realidade vai formar? O que é real se não posso experimentá-lo por meio deste eu apartado do mundo e em luta consigo mesmo? Um eu invadido e “colonizado”, que toma de fora e prontos todos os conteúdos simbólicos com que edifica suas representações, talvez vivencie o real por meio de sua estetização e a vida por meio de um enredo tão raso quanto repetitivo. Não se trata apenas de imaginar que a existência possa vir a ser pensada como remissão ao folhetim e ao romance barato, a forma especificamente pequeno-burguesa de expiar a morte. Mais que isso, aquela narrativa barata, com todos os seus mitos constitutivos e representações, pode transformar-se ela mesma na vida, de que a vida real passaria a ser não mais que uma sombra.

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Figura 33 - Fausto (Murnau, 1926)

http://br.youtube.com/watch?v=JpkObnyzPhE

(...) Quando o significado do romantismo ficou problemático revelou-se toda a incerteza do homem moderno – sua fuga do presente, seu desejo constante de estar em algum lugar diferente daquele onde tem de estar, seu incessante anseio de terras estranhas e distantes, porque teme a proximidade e a responsabilidade pelo presente. A análise do romantismo levou ao diagnóstico da doença do século inteiro, ao reconhecimento da neurose, cujas vítimas 103


são incapazes de fazer uma descrição de si mesmas e prefeririam sempre estar na pele de outras pessoas, que não se veem, por outras palavras, como realmente são mas como gostariam de ser. Nessa autossugestão e falsificação da vida, nesse “bovarismo”, como sua filosofia foi chamada, Flaubert capta a essência do moderno subjetivismo que distorce tudo aquilo com que entra em contato. A sensação de que dispomos apenas de uma versão deformada da realidade e de que estamos aprisionados nas formas subjetivas de nosso pensamento recebeu pela primeira vez sua plena expressão em Madame Bovary. Um a estrada reta e quase ininterrupta leva daí até o ilusionismo de Proust. A transformação da realidade pela consciência humana, já sublinhada por Kant, adquiriu durante o século XX o caráter de uma ilusão alternadamente mais ou menos consciente e inconsciente, e gerou tentativas para a explicar e desmascarar, como é o caso do materialismo histórico e a psicanálise. Com 104


sua interpretação do romantismo, Flaubert é um dos grandes reveladores e desmascaradores do século e, portanto, um dos fundadores da moderna forma reflexiva da vida. (HAUSER, 1998, p. 809)

Figura 34 - Poster, propaganda nazista 1936 http://www.calvin.edu/academic/cas/gpa/posters/bauern36.jpg

This poster (…) was issued for the 1936 National Farming Rally, rather a Nuremberg rally for agriculture. The poster takes note of the major anti-Bolshevist campaign then in progress, evident from the Soviet star in the upper right. 105


O espírito maligno, que havia sido desterrado da filosofia, faz então seu retorno triunfal, pois na contemporaneidade o real pode aparecer como sua inversão. Neste contexto, o sonho se apresentaria, à sua vez, não como aquilo que se opõe à vida desperta e a fundamenta em sua ânsia de transcendência, mas como sua continuidade imediata: o onírico como obliteração do real e como gratificação infindável. Não se encontra aqui, contudo, uma remissão a Fausto4? E se o pacto infernal fosse, justamente, a demanda ininterrupta de prazer e sua contínua satisfação? Não é um acidente, portanto, que uma campanha eficiente de marketing explore estas possibilidades contidas no âmago da vida societária, e venda não exatamente produtos, mas meios para ancorar um eu que deseja ir para além de sua imediaticidade – que o coloca inapelavelmente diante de sua nulidade e miserabilidade existencial 5. De maneira correlata, a inflação do eu que as narrativas baratas implicam, e que o mercado de celebridades conduz à escala da pandemia, leva-nos a renunciar à singularidade absoluta que somos, para que nos identifiquemos com aquilo que se oferece 106


como um eu para além de nós mesmos. Coincidem, então, nesta alucinação do real, as necessidades da ordem e do indivíduo alienado, pois este, em lugar de enxergar-se em sua miserabilidade, vê aquela miséria verdadeira como elevação luminescente, que se estabelece e é mediada pela posse e pela mercadoria. Mas justamente porque ninguém pode estar dissociado de si mesmo, a não ser talvez na loucura, o afastamento de si – que tem por fundamento a representação e o conteúdo simbólico que se associam à mercadoria e à sua posse, ou seja, sua condição de fetiche -, já contém como elemento o retorno à presença de si, o que requer um novo lançar-se, e assim até o infinito. E no infinito deste processo, o real vai dando lugar ao hiper-real, que é o real tornado pura fruição estética, gozo, e por meio deste gozo recorrente o eu recusa qualquer negatividade e se reafirma como eu inflado. O real, portanto, não é mais real, é um enredo, que se torna possível porque o eu não encontra mais medida em si mesmo.

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Figura 35 - O Grande Ditador “Napaloni e Hynkel” (Chaplin, 1940)

(...) Ao contrário, o que o espetáculo produz é uma versão hiper-subjetiva da vida social, na qual as relações de poder e dominação são todas atravessadas pelo afeto, pelas identificações, por preferências pessoais e simpatias. E quanto mais o indivíduo, convocado a responder como consumidor e espectador, perde o norte de suas projeções singulares, mais a indústria lhe devolve uma subjetividade reificada, produzida em série, espetacularizada. Esta subjetividade industrializada ele consome avidamente, de 108


modo a preencher o vazio da vida interior da qual ele abriu mão por força da “paixão de segurança”, que é a paixão de pertencer à massa, identificar-se com ela nos termos propostos pelo espetáculo. Por aí se explica o interesse do público que assiste aos reality shows dos anos 2000 na tentativa de flagrar alguma expressão espontânea da subjetividade alheia sem se dar conta de que os participantes desse tipo de espetáculo são tão “formatados” pela televisão, tão “desacostumados da subjetividade”, quanto o telespectador. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 5253) Este mesmo mecanismo alucinado, que a sociedade de consumo com certeza engendrou, o nazismo levou para além de tudo o que a experiência humana havia conhecido: só que em lugar de mais mercadorias, mais vítimas; e vítimas sempre novas. Por isso e infelizmente por isso, não se pode entender a natureza do programa nazista, até que fosse tarde demais: ele não atendia a nenhuma necessidade militar, não satisfazia nenhum propósito produtivo, não era nem mesmo um antissemitismo, 109


no sentido tradicional do termo; ele não se reduzia a termos racionais. A sedução fascista logrou êxito porque direcionou todo o ressentimento que a contemporaneidade trouxe, toda a fúria deste eu infeliz contra si mesmo, para um outro, cuja humanidade foi cassada. E também aqui, em lugar de se ver afundando em sua miséria, o homem se projetou como um eu além de si, o cavaleiro nórdico6, o ariano puro. O programa fascista é puro irracionalismo e como tal, é proto-político, um incitação estética. Nietzsche, ainda que como um prenúncio, soube ver que os contornos possíveis da degeneração da democracia. O fascismo é esta degeneração e não a forma antinômica da democracia: (…) Houve períodos em que um homem acreditava, com rígida confiança e até com devoção, estar predeterminado para justamente um negócio, um ganha-pão, e absolutamente não queria reconhecer ali o acaso, o papel, o elemento arbitrário (…) Mas também há períodos, os genuinamente democráticos, em que esta crença é abandonada e passa a primeiro plano uma 110


atrevida crença e perspectiva oposta, a crença dos atenienses, que na época de Péricles se fez notar pela primeira vez, a crença dos americanos de hoje, que tende cada vez mais a tornar-se europeia: na qual o indivíduo está convencido de poder mais ou menos tudo, de estar mais ou menos à altura de qualquer papel, na qual cada um experimenta consigo, improvisa, de novo experimentam experimenta com prazer, na qual toda natureza cessa e se torna arte. Os gregos, após assumirem esta crença no papel – uma crença de artistas, se quiserem -, sofreram pouco a pouco, é notório, uma singular transformação que não deve ser imitada em todo aspecto: eles se tornaram realmente atores; e como tais, conquistaram, o mundo inteiro, e afinal a própria “conquistadora” do mundo (pois é o Graeculus histrio [ator grego] que vence Roma, e não, como costumam dizer os inocentes, a cultura grega…) Mas o que receio, o que agora já é palpável, caso se quisesse palpar, é que nós, homens 111


modernos, já nos achamos no mesmo caminho; e sempre que o homem começa a descobrir em que medida ele desempenha um papel e em que medida pode ser ator, ele torna-se ator. Com isso emerge uma nova fauna e flora humana, que em tempos mais firmes e limitados não pode crescer – ou fica “embaixo”, debaixo da proibição e da suspeita de desonra -, surge com isso as épocas mais interessantes e mais loucas da história, em que os “atores”, toda espécie de atores, são os verdadeiros senhores. (NIETZSCHE, 2001, p. 252-3)

Figura 36 - Hitler e Mussolini 112


O homem na multidão (Edgar Allan Poe) "Ce grand malheur, de ne pouvoir être seul." La Bruyère De certo livro germânico, disse-se, com propriedade, que "es lässt sich nicht lesen" - não se deixa ler. Há certos segredos que não consentem ser ditos. Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não consentem ser revelados. De quando em quando, ai, a consciência do homem assume uma carga tão densa de horror que dela só se redime na sepultura. E, destarte, a essência de todo crime permanece irrevelada. Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, eu estava sentado ante a grande janela do Café D. . . em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da 113


mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O simples respirar era-me um prazer, e eu derivava inclusive inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo mas inquisitivo interesse por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, divertira-me durante a maior parte da tarde, ora espiando os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas. Essa era uma das artérias principais da cidade e regurgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou, e, quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava 114


dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior. De início, minha observação assumiu um aspecto abstrato e generalizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica. Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas, e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompunham-se e continuavam, apressados, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram irrequietos nos movimentos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço, interrompiam subitamente o resmungo, mas 115


redobravam a gesticulação e esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam detido passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão. Nada mais havia de distintivo sobre essas duas classes além do que já observei. Seu trajes pertenciam aquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, nobres, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas - os eupátridas e os lugares-comuns da sociedade -, homens ociosos e homens atarefados com assuntos particulares, que dirigiam negócios de sua própria responsabilidade. Não excitaram muito minha atenção. A tribo dos funcionários era das mais ostensivas, e nela discerni duas notáveis subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem emplastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à falta de melhor termo, pode-se dar o nome de "escrivanismo", a aparência deles parecia-me exato facsímile do que, há doze ou dezoito meses, fora 116


considerada a perfeição do bon ton. Usavam os atavios desprezados pelas classes altas - e isso, acredito, define-os perfeitamente. A subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitáveis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita afastada devido ao hábito de ali prenderem a caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para pôr ou tirar o chapéu e que traziam relógios com curtas correntes de ouro maciço, de modelo antigo. A deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe, verdadeiramente, afetação tão respeitável. Havia muitos indivíduos de aparência ousada, característica da raça dos batedores de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita curiosidade e achava difícil imaginar que pudessem ser tomados por cavalheiros pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas, assim como o ar de excessiva 117


franqueza que exibiam, era quanto bastava para denunciá-los de imediato. Os jogadores - e não foram poucos os que pude discernir - eram ainda mais facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do mais desatinado e trapaceiro dos rufiões às vestes escrupulosamente desadornada dos clérigos, incapazes de provocar a mais leve das suspeitas. Não obstante, denunciava-os certa tez escura e viscosa, a opacidade dos olhos, assim como o palor e a compressão dos lábios. Havia, ademais, dois outros traços característicos que me possibilitavam identifica-los: a voz estudadamente humilde e a incomum extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em companhia desses velhacos, observei outra espécie de homens, algo diferentes nos hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante. Podiam ser definidos como cavalheiros que viviam à custa da própria finura. Ao que parecia, dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público: de um lado, os almofadinhas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o cabelo 118


anelado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo semblante carrancudo e pela casaca de alamares. Descendo na escala do que se chama distinção, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontrei judeus mascates, com olhos de falcão cintilando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevidos mendigos profissionais hostilizando mendicantes de melhor aparência, a quem somente o desespero levara a recorrer à caridade noturna; débeis e cadavéricos inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, e que se esgueiravam pela multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de alguma consolação ocasional, de alguma esperança perdida; mocinhas modestas voltando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais chorosas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contato direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda idade: a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a 119


repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igualar-se, no vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indescritíveis; uns, esfarrapados, cambaleando inarticulados, de rosto contundido e olhos vidrados; outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, de lábios grossos e sensuais, e face apopleticamente rubicunda; outros, ainda, trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido elegantes e que, mesmo agora, mantinham escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo semblante se mostrava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além desses todos, carregadores de anúncios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo, domadores de macacos ensinados, cantores de rua, ambulantes, artesãos esfarrapados e 120


trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies tudo isso cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente os ouvidos e provocando-nos uma sensação dolorida nos olhos. Conforme a noite avançava, progredia meu interesse pela cena. Não apenas o caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos mais gentis desapareciam com a retirada da porção mais ordeira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergiam com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todas as espécies de infâmias), mas a luz dos lampiões a gás, débil de início, na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascendência, pondo nas coisas um brilho trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido - como aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano. Os fantásticos efeitos de luz levaram-me ao exame das faces individuais, e, embora a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstante, que, no meu peculiar estado de espírito, eu podia ler 121


freqüentemente, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos. Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco anos de idade), um semblante que de imediato se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira coisa alguma que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembro-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzsch, e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do Demônio. Enquanto eu tentava, durante o breve minuto em que durou esse primeiro exame, analisar o significado que ele sugeria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no meu espírito, as ideias de vasto poder mental, de cautela, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor sanguinário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e supremo desespero. Senti-me singularmente exaltado, surpreso, fascinado. "Que extraordinária história", disse a mim mesmo, "não estará escrita 122


naquele peito!" Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri caminho por entre a turba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo, aproximarme dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção. Tinha agora uma boa oportunidade para examinar-lhe a figura. Era de pequena estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram, de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasionalmente, sob algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que trajava, malgrado a sujeira, era de fina textura, e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de segunda mão, que ele trazia abotoada de cima a baixo, de um diamante e de uma adaga. Essas observações aguçaram minha curiosidade, e decidi123


me a acompanhar o estranho até onde quer que ele fosse. Era já noite fechada, e uma neblina úmida e espessa, que logo se agravou em chuva pesada, amortalhava a cidade. Essa mudança de clima teve um estranho efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A agitação, os encontrões e o zunzum decuplicaram. De minha parte, não dei muita atenção à chuva; uma velha febre latente em meu organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário. Amarrando um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu caminho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava grudado aos seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atravessou e tornou a 124


atravessar a rua repetidas vezes, sem propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada, e ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente decrescido, tornando-se o que é ordinariamente visto, à noite, na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a população de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levou-nos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam inquietos, sob o cenho franzido, em todas as direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver que, tendo completado o circuito da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu comigo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco.

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Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontramos menos interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a cair, intensa o ar tornou-se frio; os passantes se retiravam para suas casas. Com um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco relativamente deserto. Caminhou apressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma disposição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha dificuldade em acompanhá-lo. Alguns minutos de caminhada levaram-nos a uma grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho, e ali ele retomou suas maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores. Durante a hora e meia, aproximadamente, que passamos nesse local, foi-me mister muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava galochas e podia movimentarme em absoluto silêncio. Em nenhum momento ele percebeu que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de artigo algum nem dizia 126


qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos com um olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente intrigado com o seu modo de agir e firmemente decidido a não me separar dele antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu respeito. Um relógio bateu onze sonoras badaladas, e a feira começou a despovoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um esbarrão no velho, e, no mesmo instante, vi um estremecimento percorrer-lhe o corpo. Ele saiu apressadamente para a rua e olhou ansioso à sua volta, por um momento; encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de gente, outras despovoadas, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde ficava situado o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Estava ainda brilhantemente iluminada, mas a chuva caia pesadamente e havia poucas pessoas a vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos pela antes populosa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por fim diante de um dos teatros 127


principais da cidade. Este estava prestes a fechar, e os espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por falta de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia compreender a inconstância de suas ações. Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude e vacilação voltaram a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco freqüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas um itinerário que nos levou aos limites da cidade, para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessado. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das 128


pobrezas e do mais desesperado dos crimes. A débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruinados, dispostos em tantas e tão caprichosas direções, que mal se percebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas, arrancadas de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim deparamos com grandes bandos de classes mais desprezadas da população londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como uma lâmpada bruxuleante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente ao dobrarmos uma esquina, um clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemo-nos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança: um dos palácios do demônio Álcool. O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o velho forçou a passagem 129


e, uma vez dentro do salão, retomou suas maneiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a turba. Não fazia, porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna resolvera fechá-la por aquela noite. Era algo mais intenso que desespero o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de volta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não abandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses. Enquanto caminhávamos, o sol nasceu, e quando alcançamos novamente a mais populosa feira da cidade, a rua do Hotel D..., esta apresentava uma aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E ali, entre a confusão que crescia a cada momento, persisti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da 130


avenida. Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendome bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se. "Este velho", disse comigo, por fim, "é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que 'es lässt sich nich lesn' ". Devolver o indivíduo ao indivíduo É preciso, pois, devolver o indivíduo ao indivíduo, mas como fazê-lo? Toda questão verdadeiramente simples envolve uma resposta complexa. De todo modo, qualquer que seja o caminho, ele requer a recolocação do real em seus próprios termos e, portanto, demanda a crítica da estetização do real, ou, dito de outra forma, a análise e superação da sociedade que subordinou a produção da cultura à 131


forma mercantil - o que envolve não apenas seus elementos imediatamente produtivos e reprodutivos, mas também aquilo que a sociedade mercantil tem de ambivalente e arcaico. Mas esta meta é, em algum grau, uma proposta de edificação do homem, a partir de valores totalmente distintos daqueles que têm se cristalizado na modernidade: (…) uma outra espécie de homens é sempre a mais prejudicada e enfim tornada impossível, acima de tudo os grandes “construtores”; a energia de construir é paralisada; a coragem de fazer planos para o futuro distante é desestimulada; começam a faltar os gênios organizadores: - quem ainda ousa empreender obras para as quais é preciso contar com milênios? Está se extinguindo justamente a crença básica pela qual alguém pode calcular, prometer, antecipar o futuro em planos e sacrificá-lo a seus planos, a crença de que o homem só tem valor e sentido quando é uma pedra num grande edifício: para isso ele tem, antes de tudo, que ser firme, ser “pedra”… E, sobretudo, não ser – ator! Em poucas 132


palavras – ah, sobre isso haverá silêncio por muito tempo! – o que doravante não pode mais ser construído, é – uma sociedade no velho sentido da palavra; para construir tal edifício falta tudo, a começar pelo material. Nós todos já não somos material para uma sociedade: eis uma verdade cuja hora chegou! Para mim não faz diferença que o tipo de homem mais míope, talvez mais honesto, certamente mais ruidoso que hoje existe, nossos caros socialistas, pense, espere, sonhe, principalmente grite e escreva mais ou menos o contrário; pois seu lema para o futuro, “Sociedade livre”, já pode ser lido em todos os muros e mesas. Sociedade livre? Sim! Sim! Mas sabem os senhores com que ela é feita? Com ferro de madeira! Com o famoso ferro de madeira! E nem sequer de madeira (NIETZSCHE, 2001, p. 253)

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Figura 37 - Greta Garbo (Mata Hari, 1932)

http://br.youtube.com/watch?v=JjTe2rumJGQ

Sem a libertação da imaginação, não haverá superação da ordem, pois ela, a esta altura, sonha em nós, os delírios da coisa capital. Recuperar o imaginário para si mesmo, este é uma elemento necessário em qualquer programa de emancipação desta sociedade histórica em que vivemos. A razão, portanto, que critica a si mesma, não o faz por ato de renúncia à sua pretensão de elevar o humano a partir do humano: ela quer encontrar para si uma posição a partir da qual esta meta seja possível. Se ela faz, portanto, a crítica do progresso, não é para recusá-lo, mas para humanizá-lo, instituindo-o sob a 134


perspectivas dos desde sempre preteridos; se recusa a história como mero desdobrar-se do espírito sobre si mesmo, não é para negar o universal, mas para afirmá-lo como ainda humano, apesar de sua abstração. Se ela requer uma prática e uma ética ecológicas, não é por reminiscência a um passado idílico, mas porque reconhece que a agressão à natureza não é uma necessidade do desenvolvimento abstratamente concebido, mas um requerimento da ordem, que compensa a miséria subjetiva com o delírio da coisa, que estetiza o real. E a potência desta agressão é tanto maior, quanto maior for o conflito entre as possibilidades materiais da produção e a exigência de que sua realização se dê sob forma de valor que se valoriza; o que se anuncia nos exatos termos da modernidade da seguinte forma: justamente por meio de nossa absoluta riqueza, nossa mais absoluta miséria. O ambiente objetivo do homem adota, cada vez mais brutalmente, a fisionomia da mercadoria. Ao mesmo tempo, a propaganda se propõe a ofuscar o caráter mercantil das coisas. À enganadora transfiguração do mundo das mercadorias 135


se contrapõe sua desfiguração no alegórico. A mercadoria procura olhar-se a si mesma na face, ver a si própria no rosto. Celebra sua humanização na puta. (BENJAMIM, 2000, p. 163)

Figura 38 - Mata Hari

http://pt.wikipedia.org/wiki/Mata_Hari

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Do slogan É curioso perceber como a humanidade se esvai por completo, quando o absurdo se repete infinitamente. As circunstâncias parecem mesmo indicar que nós temos uma inclinação mórbida, se não patológica, pela normalidade e por padrões, de modo que mesmo a loucura e a infâmia acabam de alguma maneira, incorporadas ao nosso psiquismo, como se fossem de fato aceitáveis, desde que devidamente banalizadas. A repetição sistemática e monótona da iniqüidade e do despropósito parece nos lançar em uma espécie de transe hipnótico, custando-nos enorme esforço ver, que não muito além de nosso território pacífico, comezinho e prosaico de homem médio encontram-se o desatino, a irracionalidade e, acima de tudo, o império da submissão ao infra-humano, que se nos apresenta como se fora fatalidade de destino, castigo natural ou infortúnio intrínseco e imanente a povos e populações. Não é um acidente, portanto, que a propaganda nazista se fundamentasse no repetição incessante de slogans: esta espécie de estado hipnótico era 137


conscientemente almejada, sendo o bombardeio incessante do mesmo discurso sobre a massa, um de seus maiores veículos. Não é algo fortuito, igualmente, que a propaganda em geral, para ser eficiente e eficaz deva ser massiva. A meta, lá como aqui, é engendrar uma outra ordem de percepção, onde o onírico se sobreponha ao real e à verdade7. O slogan, contudo, é a realidade como o verossímil.

Figura 39 - Gilda (Rita Hayworth, 1946)

http://br.youtube.com/watch?v=7A-e7UnTa2k

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No desenvolvimento desta noção é necessário um grande cuidado: a propaganda não engana em um sentido convencional, pois ela diz não aquilo que quer falar, mas precisamente o que se pretende ouvir. Não engana, portanto, porque tem a anuência e o aval do consumidor: ele quer e precisa ser seduzido. Compra sempre o fascínio de si, através de uma fascinação que se lhe apresenta como exterior. O que queremos todos nós – homens e mulheres – com as femme fatale, de que Gilda é apenas uma figuração? Morre o deputado Enéas Carneiro

Figura 40 - Deputado Enéas Carneiro

http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Eneas33010.jpg 139


No dia 6 de maio de 2007 morreu Enéas Carneiro, o mais bem votado deputado da história política do Brasil; achievement obtido apesar do tempo ínfimo de que dispunha ao longo da propaganda eleitoral gratuita. Enéas, no entanto, era um “bordão” e um slogan, um refrão: “meu nome é Enéas”. Seu sucesso no certame eleitoral decorre exatamente da fórmula que escolheu e que tomou da própria linguagem publicitária, que sofre das mesmas pressões por concisão que acomete todo candidato anão. Mas o distinto candidato não era apenas um slogan; era igualmente uma imagem, quase uma foto, em que pese veiculada por um pequeno filme. Neste retrato capturou a inteligência na forma direta daquilo que é excêntrico e esquisito, estranho, bizarro; apropriou-se em caráter pessoal, portanto, do estereótipo do intelectual aéreo e etéreo, do sábio para consumo diretamente popular, o inteligente nos moldes das Casas Bahia. Na facilidade e no sintético do slogan e do refrão do tipo “havaianas, as legítimas”; na ambiguidade a que conduziu o atributo de sua pretensa inteligência positiva para aqueles que se queriam fazer representar por um “homem culto”; negativa para 140


aqueles que procuravam um objeto de escárnio, a fim de depositar o próprio ressentimento contra os intelectuais - Enéas Carneiro realizou a política no seu sentido mais escancaradamente perverso: a forma publicitária como paroxismo. O seu programa obviamente reacionário, virulentamente nacionalista, organicista, recheado de pérolas, como o estímulo à fabricação da bomba atômica brasileira, forma a um tempo concentrada e sintética de requisição de respeito, no cenário da política internacional - por pior que fosse, não equivalia em vilania à potência dos elementos formais e subliminares de que se valia para angariar votos. Esta é a história de seu sucesso: Médico cardiologista, Enéas Carneiro nasceu em 1938, em Rio Branco, no Acre. Ele era filho de um barbeiro e uma dona de casa. Aos 9 anos perdeu o pai e começou a trabalhar para ajudar a família. Aos 20 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde cursou a Escola de Saúde do Exército e, em 1959, graduou-se como terceiro-sargento auxiliar de anestesia. Deixou o Exército em 1965 e, no mesmo ano, formou-se na Faculdade Fluminense de Medicina, 141


com especialização em cardiologia. Em 1989 decidiu ingressar na carreira política por insistência da mulher, segundo o próprio Enéas, que afirmava que a companheira estava saturada de ouvir o marido reclamar dos políticos e da situação do País. Em 1989, fundou o Partido de Reedificação da Ordem Nacional (Prona). Com apenas 17 segundos na TV criou o bordão que lhe renderia 360 mil votos na eleição presidencial do mesmo ano. Na campanha, defendia a construção da bomba nuclear brasileira, o aumento do efetivo militar do País e outras bandeiras nacionalistas, de acordo com a Agência Câmara. Enéas apresentava-se como um político radicalmente contrário ao aborto e à união civil de pessoas do mesmo sexo. Em 1994, com pouco mais de um minuto na TV, Enéas ficou em terceiro lugar na disputa presidencial, com 4,67 milhões de votos, perdendo apenas para os então candidatos no primeiro turno Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. Em 1998, com 70 segundos na TV, Enéas conseguiu expor algumas de suas ideias 142


nacionalistas, como a defesa da fabricação "pacífica" da bomba atômica para que o Brasil fosse "mais respeitado". Contudo, não conseguiu manter o bom desempenho da eleição anterior e terminou o pleito em quarto lugar, com 1,4 milhão de votos. Logo após sua votação recorde para deputado federal em 2002, que garantiu vaga no Congresso para outros cinco deputados de seu partido, Enéas foi acusado pela Justiça Eleitoral de São Paulo de promover a venda de legenda a candidatos. Nas eleições de 2006, já debilitado, foi reeleito deputado, cargo que exercia até o agravamento da doença. http://noticias.terra.com.br/brasil/interna/0,,OI1596 231-EI7896,00.html Com agências Redação Terra

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O capacitor I

Figura 41 - Almas Perversas (Fritz Lang, 1945)

http://br.youtube.com/watch?v=vS2QlMl__Nw

O homem médio, inseparável das condições societárias capitalistas – massacrado pela candura do fim de tarde de domingo, de jornal na mão, barba por fazer, enfastiado com a insondável desolação do tempo sem ocupação e com as rotinas sem propósito -, ainda que estranho e extrínseco ao poder que conduz o mundo é, a rigor, a substância nuclear deste mesmo poder, seu elemento energético essencial. Em uma sociedade de massas, ciosa da redução de toda a diversidade a padrões – os quais 144


permitem gerar consumo estável, produção programável, homens previsíveis –, o herói teria necessariamente que se apresentar como uma grandeza mecânica e estatística; um fenômeno probabilístico e, por força desta redução, sucumbir a uma sociabilidade frágil, fugidia, que tende a se transformar em potência claramente hostil; contrapartida necessária de uma vida dissociada do prazer. Deste modo a sedução fascista se faz presente, mesmo quando não se mostra ostensiva - refugiada que está no pequeno aborrecimento; no ressentimento por um reconhecimento pessoal ao mesmo tempo aguardado e eternamente diferido; na existência experimentada como exterioridade e vacuidade. O fascista como tipo, repousando no seio da contemporaneidade, não está no manicômio, não é particularmente perverso e, não traz sobre si qualquer traço distintivo especial: é um ressentido e um impotente. Encontra-se esmagado entre as exigências da ordem - que não se vê em condições de recusar - e a sensação insuperável de desconforto, de ter sido passado para trás, de ter visto oportunidades negadas: é um poeta que não cultiva a poesia; um pintor que tem na pintura um hobby; um jogador de 145


futebol como hooligan; um sensível que é cruel e, no qual, a crueldade pode tomar tanto a forma de uma irrupção violenta, quanto a de uma retribuição metódica, frívola e burocrática de toda a sua frustração para com a vida. O burguês cuja vida se divide entre o negócio e a vida privada, cuja vida privada se divide entre a esfera da representação e a intimidade, cuja intimidade se divide entre a comunidade mal-humorada do casamento e o amargo consolo de estar completamente sozinho, já é virtualmente o nazista que ao mesmo tempo se deixa entusiasmar e se põe a praguejar, ou o habitante das grandes cidades de hoje, que só pode conceber a amizade como social contact, como o contato social de pessoas que não se tocam intimamente. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 145-6)

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Figura 42 - Almas Perversas (Fritz Lang, 1945)

A aproximação meramente instrumental, a familiaridade de conveniência, a solidariedade dada apenas pelo relacionamento entre papéis e exterioridades de mesma ordem forjam, por sua vez, lenta, mas firmemente, uma frieza sem a qual não seria possível haver um fenômeno propriamente fascista. A insensibilidade que a sociedade contemporânea requer, como elemento adaptativo natural e insuperável – a capacidade de decidir o destino do outro, prescindindo de sua humanidade, ou ainda, tomando a humanidade como condição de uns poucos –, é um atributo sem o qual não se pode imaginar soluções verdadeiramente totalitárias. 147


Figura 43 - Green Street Hooligans (Lexi Alexander, 2005)

http://br.youtube.com/watch?v=EAe-1Lv1KYU

O fascista se revolta e pragueja, portanto, por que a modernidade, o tendo libertado de toda sobredeterminação imposta pela tradição, o tendo tornado homem comum, em geral, só o fez deixandoo à própria sorte. Deste modo, o fascismo não é uma revolta contra a ordem, mas justamente a demanda de uma ordem implacável e absolutamente impositiva, que obrigue a todos, de vez que a modernidade é apreendida como um mundo anárquico e cindido, que sobrecarrega alguns e torna libertinos outros. Aos olhos do fascista, a civilização falhou em cumprir suas promessas, razão pela qual sua substituição pela barbárie não se lhe apresenta 148


como mergulho e imersão no leito caudaloso de potências regressivas, mas como construção de um império que deveria durar mil anos, uma ordem total, sem nuances e diferenças – o social como fusão. O déficit imaginativo, a covardia e a submissão mecânica ao aqui e ao agora não se lhe apresentam, portanto, como aquilo que de fato são - atração irresistível e identificação insuperável com a ordem e as potências mesmas que o oprimem -, mas sob a forma de uma necessidade urgente e inclemente de restaurar magicamente o mundo, que só é capaz de apreender na condição do que é corrompido, decadente e obsceno. Deseja, portanto, colocá-lo no verdadeiro caminho, devolver-lhe a pureza original e virginal, de modo a que ele, o herói anônimo, o paladino do para lá de humano, possa encontrar o lugar que lhe cabe em uma ordem devidamente regenerada e redimida. O verdadeiro fascista não aspira ao futuro, mas, pelo contrário, espera que as forças tectônicas de um passado idealizado e alucinado – atávico – venham emprestar, a ele, este esquecido pela história, a ira santa que irá por fim levá-lo ao lugar que lhe cabe. 149


Do estereótipo Na reflexão sobre a redução ao normal, que a sociabilidade contemporânea implica e requer, é preciso muito cuidado para evitar equívocos, e especialmente aqueles que decorrem diretamente da moda e do modismo, em suas manifestações no campo intelectual. A esteriotipia que caracteriza nossa sociedade não é superada pelo rompimento com os preceitos massivos do fordismo, ou seja, pela propensão à multiplicidade de “estilos de vida, segmentação da produção e consumo, com o objetivo de atender públicos distintos e diferenciados”. A natureza essencial do fenômeno, ao contrário do que possa parecer, foi levada ao paroxismo. Agora, não apenas o comportamento médio está devidamente normalizado (no sentido da curva normal estatística). Os desvios, eles mesmos, são objetos de modelagem e moldagem, de tal maneira que, mesmo aquilo que poderia apresentarse como crítico ao sistema, acaba por ser reduzido à condição de demanda a ser suprida e, portanto, necessidade passível de assumir forma diretamente pecuniária. 150


A negatividade envolvida originalmente com a emergência das minorias, ela mesma, não tardou a ser devidamente reduzida a uma ótica mais confortável e funcional para o sistema produtor de mercadorias.

Figura 44 - Santana (Woodstock)

http://br.youtube.com/watch?v=XnamP4-M9ko

Não por acaso, os profissionais de marketing e publicidade, com entusiasmo evidente, descobrem o imenso potencial de consumo do público gay, as particularidades dos consumidores afro-americanos, etc. A contemporaneidade continua seu lento e contínuo trabalho de erosão, estabelecendo a planura indiferenciada por entre os tipos humanos. Se aceita torná-los distintos, portanto, o faz na certeza de que esta diferenciação não tem caráter 151


negativo para a ordem, que, muito pelo contrário, propondo modelos alternativos igualmente esteriotipados, submete à sua lógica mesmo aquelas porções do ser que poderiam ir criativamente para além do aqui e do agora. Daí porque o rapper pode – e deve - ir à MTV cantar odes de repulsa aos brancos, denunciar a redução de sua gente ao gueto: logo se descobre que aquilo com o que se identifica seu público não leva à revolta racial – ainda que ela possa ocorrer -, mas a mais discos e bonés vendidos nas bancas. O rapper na MTV não é a revolta real, mas seu sucedâneo imagético, e por meio desta substituição, quanto mais os fãs se revoltam, quanto mais eles se exaltam, tanto mais discos consomem8. Vivemos sob a égide de um capitalismo sem limites e sem peias, que afastou os elementos exteriores à sua lógica reprodutiva e de valorização, que não se envergonha de subordinar todos os fins e empregar todos os meios para seus propósitos suprahumanos; que não quer mais apenas a energia laboral dos homens, mas o governo de suas almas. Pretende, portanto, domesticar e normalizar o desejo, fazendo com que os sonhos de liberdade e de fruição se convertam no deleitar-se com 152


quinquilharias, que são produzidas com a forma exterior da necessidade humana, mas que são, por sua natureza mesma, apenas e tão somente o modo pelo qual o processo de valorização pode ser mediado pelo do consumo – esta é ao mesmo tempo a forma essencial do capital e uma fórmula, tornada absoluta e universal no presente momento da história (o fetichismo da mercadoria introjetado e a perversão, como afirmação daquilo que é imediatamente normal).

Figura 45 - Jimi Hendrix (Woodstock)

Através, portanto, destes sortilégios e das ilusões que lhes correspondem, uma potência estranha e 153


autônoma sonha em mim, os sonhos que eu pensei serem os meus e, através das coisas do meu domínio, sou eu o dominado, posto que minha própria reprodução, meus desejos, não são fins que se bastem, mas mediações para a reprodução da coisa capital. O capital potencializado e absolutamente coerente com sua própria natureza interna, desprovido das ilusões benemerentes, divorciado da própria tradição humanista burguesa, tem necessariamente que redundar na alienação absoluta e na reificação ilimitada, assim como seus funcionários abnegados, seus serviçais enfeitiçados, têm necessariamente que se converter em déspotas cegos e frívolos, que não falam a língua dos regimes de exceção, ou dos tribunais revolucionários: simplesmente proclamam as leis imanentes e necessárias da reprodução da coisa capital, que não conhecem nada que vá além do eficaz e do eficiente. A fórmula capital exclui como ilegítimas todas as considerações extra-econômicas, o que significa dizer que o próprio progresso acalanta nos braços toda a potência da regressão e a civilização embala o sono da barbárie. A potencialidade e a produtividade muito humanas, uma vez tornadas potências 154


exteriores e exteriorizadas, se opõem ao homem e cobram seu preço de sangue, até que esta dissociação seja superada.

Figura 46 - O testamento do Dr. Mabuse (Fritz Lang, 1933)

http://br.youtube.com/watch?v=9bLMRPpSToI

Um capitalismo, devidamente apartado do sonho revolucionário burguês, de seu humanismo e seu heroísmo, mesmo que limitados; um sistema tornado puramente maquinal e, portanto, divorciado do minimamente humano; preciso como a lâmina de uma adaga, racional e calculista como somente a insanidade permite: este é o legado de nossa época e na indiferença universalizada que ele representa, a 155


produção da riqueza material se potencializa e realiza sobre os escombros da sociabilidade, sobre do ocaso da cultura.

Figura 47 - Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens (Murnau, 1922

)

Taxi Driver (Martin Scorsese, 1976) O protagonista do filme vive uma sensação contínua e inexpiável de mal estar: sua vida é um intervalo matemático, vazio e sem propósito, em que o tempo deve ser engodado; experimentado como auto-ilusão e como evasão. Há, seguramente, uma memória traumática que se insinua - o Vietnã. Mas a guerra é apenas um índice, pois o protagonista de 156


Táxi Driver se debate até à exaustão - como a vítima enredada na teia de aranha -, para se livrar das forças centrípetas que o atraem para um infra-mundo, pelo qual, de todo modo, transita. Ao circular choca-se com homens e mulheres, que se insurgem como ícones de todos aqueles que não têm lugar nessa sociedade, e que perambulam, portanto, em uma região cinzenta, um limbo terreno: o marginal, o cafetão e a prostituta; os pequenos parasitas que povoam as noites por onde circula o herói. Travis Bickle está a um passo do precipício – na exata fronteira entre dois mundos -, e sente todo o peso da vertigem diante do abissal, em sua contínua dor de cabeça. Diferencia-se da escória, da qual está a um ínfimo passo do ponto de vista sócio-econômico, por um ódio atávico a tudo que entende pervertido e que, portanto, clama a ele por redenção. Nosso herói é um anjo vingador; um guarda avançado do apocalipse e do dia do juízo final. Sua missão é limpar o mundo e seu primeiro alvo é um político, como signo da política: Travis é uma revolta contra a civilização, que lhe prometeu o que não pôde realizar e que o reduziu à mesma condição daquilo que 157


odeia. Se o seu ódio toma forma final quando é recusado por sua amada Betsy, isto decorre justamente do fato de tornar-se evidente que existe, para ele, um mundo que é impenetrável e que o condena a uma infraexistência insuportável.

Figura 48 - Vertigo (Alfred Hitchcock, 1958)

http://br.youtube.com/watch?v=trDqSL_RAsY

Figura 49 - High Anxiety (Mel Brooks, 1977)

http://www.youtube.com/watch?v=hNEwcc4MSMY 158


Figura 50 – Colagem: Robert de Nitro - Cho Seung-Hu (Virginia Tech Massacre)

Quando decide tornar o mundo reto, além da fúria que precisa descarregar, Travis procura corrigir um mal de que sofre desesperadamente: sua invisibilidade e insignificância imagética. Por isso treina, ensaia e representa, antecipa aquilo que, a seu modo, é um manifesto estético e que, como obra de arte e redenção de tudo que é pervertido, deve ser visto: sua revolta é concebida para as câmeras e para os holofotes; é direta e explicitamente uma busca desesperada de obter, para si, o justo lugar no mundo, tornar-se visível. Nesse preciso sentido tratase, portanto, de uma fúria metódica, cuja apoteose não é a irrupção como descontrole, mas a execução 159


mecânica e frívola de um programa: forma alucinada do automatismo de partida. Um incidente frustra o final apoteótico que Travis havia planejado. Volta sua fúria, então, não mais para o ícone do seu sofrimento; o elemento de síntese contra o qual se bate: a civilização como promessa irrealizada, na figura do político. Ao fazê-lo não abandona, contudo, sua lógica maquinal, apenas troca a forma figurativa do mal que o assola: alveja a escória e, por meio de sua dizimação, institui para si uma diferenciação e um espaço existencial. Entre o fracasso do plano original e a obra efetivamente realizada existe uma equação: para Travis o que é socialmente mais elevado participa da natureza demoníaca de tudo que rasteja, afirmando-se, em que pese suas diferenças recíprocas, como o mesmo. Travis deseja uma sociedade de sua exata estatura, de homem médio, de tal modo que tudo não passa, em certa medida, de um problema estatístico, como estatística é sua existência e mecânico o tempo em que existe: trata-se de eliminar os outliers.

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Alemanha, Ano Zero A câmera trafega por uma Berlin devastada; cenário apocalíptico, em que se vive segundo a mesma resignação que esteve vinculada ao nazismo. É como se o elemento humano não fosse mais do que um pequeno acréscimo, a um mundo completa e anteriormente naturalizado. O protagonista do filme é, em sua condição infantil, um pequeno adulto: responsável, trabalha por um irmão - que renuncia ao espaço público, por receio de ser encarcerado pelos americanos - e por um pai inválido. Não reclama, não se revolta e nem mesmo se impacienta. Procura em tudo e por todos os lugares, meios para sobreviver e manter sua família. O pai, à sua vez, reduzido à mais completa impotência, reclama de seu estado e clama pela morte, como se ela lhe caísse como um ato de libertação. A irmã, vivendo com todos na mais dura miséria, não tem coragem de se prostituir, mas não tem igualmente firmeza para se manter isenta do clima geral de degradação e desespero que assola a cidade. Flerta e estimula a imaginação, por uns poucos cigarros, enquanto espera por um noivo improvável. 161


Figura 51 - Alemanha, Ano Zero (Rosselini, 1947)

É nesse cenário de total desesperança e desespero, de vidas suspensas por um fio, que se dá o encontro entre o protagonista e seu antigo professor, do período anterior à guerra. Entre as pequenas vilanias - de que a venda de material de propaganda nazista a soldados americanos curiosos é um exemplo -, ocorre um episódio decisivo: ciente do fato de que seu pai deve deixar o hospital, para retornar ao convívio da família, sabendo ainda que isso somente fará aumentar a penúria de todos, o jovem Edmund procura o professor para obter ajuda. 162


Aquele, fixado em um outro garoto que atraíra a seu convívio, responde às indagações de Edmund de modo praticamente mecânico, esquemático. Desfila, então, mesmo que involuntariamente, mas segundo uma programação imutável, todo o rosário de preceitos nazistas, ou seja, a necessidade de tomar iniciativas, os dogmas da eugenia, a crença inflexível no sacrifício dos fracos às necessidades dos fortes, etc. Reverbera, assim, as práticas pedagógicas que Adorno atribuiu como elemento pertencente não apenas ao nazismo histórico, mas também ao fascismo como possibilidade e recorrência: na educação para ser forte, para perseverar a qualquer custo, perde-se a dimensão da dor no outro, juntamente com a ampliação, até as raias da insanidade, da capacidade de se impor suplícios. Instado, portanto, pela situação; tendo que agir e resolver o problema que se lhe impunha; completamente dominado e obcecado pela crença de que os mais fortes devem fazer valer suas necessidades, Edmund resolve, então, matar seu pai. E o faz com eficiência verdadeiramente maquinal e asséptica, de tal maneira que, ao fim, ninguém sequer imagina que um homicídio houvesse ocorrido. 163


Figura 52- Alemanha, Ano Zero (Rosselini, 1947)

http://www.youtube.com/watch?v=4jWi3JymbSI

A materialidade da morte, seus detalhes e pequenos rituais, o fazem, contudo, exasperar-se. Ele procura novamente o professor, para lhe contar o que fizera. Ao ouvir aquela narrativa o professor se desespera, não tanto pelo pai morto, mas pela eventual responsabilidade que pudesse lhe ser imputada. Passa, então, a agredir o pequeno Edmund, que gravitando entre o assassinato e a reprovação que lhe dirige o professor, mergulha no desespero de todos aqueles que caem em um mundo completamente rarefeito, em que o ser não encontra 164


qualquer apoio ou referencial. Torna-se, então, uma existência impossível; a forma hedionda do esquematismo nazista, como síntese de sua própria infância. Seu íntimo está, portanto, devastado, e tão desolado quanto a paisagem que o cerca. A rigor são o mesmo, a forma acabada do esquematismo, da submissão total aos reclamos de uma lógica inumana: ruínas e devastação. Esse desespero, que é a condenação a uma não existência, se resolve no suicídio, forma exterior daquilo que o nazismo sempre demandou do psiquismo: que ninguém fosse mais um indivíduo.

Figura 53 - Alemanha, Ano Zero (Rosselini, 1947)

O isolamento desses filisteus na vida privada, sua sincera devoção a questões de 165


família e carreira pessoal, era o último e já degenerado produto da crença do burguês na suma importância do interesse privado. O filisteu é o burguês isolado de sua própria classe, o indivíduo atomizado produzido pelo colapso da própria classe burguesa. O homem da massa, a quem Himmler organizou para os maiores crimes de massa jamais cometidos na história, tinha os traços do filisteu e não da ralé, e era o burguês que, em meio às ruínas do seu mundo, cuidava mais da própria segurança, estava pronto a sacrificar tudo a qualquer momento – crença, honra, dignidade. Nada foi tão fácil de destruir quanto a privacidade e a moralidade pessoal de homens que só pensavam em salvaguardar suas vidas privadas. Em poucos anos de poder e coordenação sistemática, os nazistas podiam anunciar com razão: “A única pessoa que ainda é um indivíduo na Alemanha é alguém que esteja dormindo”. (ARENDT, 1990, p. 388)

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O capacitor II Ainda que possa parecer uma deformação e uma impossibilidade, a coexistência em um só ser do pai de família responsável, pacato, cioso de suas obrigações e do assassino insensível, cruel e beirando à demência, não é, infelizmente, uma impropriedade empírica, histórica. Muito ao contrário, em nossa época - onde a subjetividade passou a ser cientificamente manipulada, onde o amor à norma e o horror à diferença, passou a ser regra; onde a individualidade é conduzida, portanto, pela força da torrente, à dissolução final na massa - a junção destes contrários, na forma pura e simples da barbárie, é algo até mesmo provável. A contenção da subjetividade nos domínios estritos da vida privada; a reprodução desta mesma vida, com suas pequenas exigências de status, honra, etc., sempre submetida ao risco e ao acaso da probabilidade, já contemplam em si tal desfecho como hipótese. Assim o anti-semita escolheu o criminoso, e criminoso branco: ainda aqui foge às responsabilidades; censurou os instintos de homicida, mas descobriu o meio de saciá-los 167


sem confessá-los. Sabe que é perverso, mas como pratica o Mal pelo Bem, como todo um povo espera dele a libertação, considerase um perverso sagrado. Graças a uma inversão de todos os valores, de que encontramos paralelo em certas religiões e, por exemplo, na Índia onde existe uma prostituição sagrada, à cólera, ao ódio, à pilhagem, ao homicídio e a todas as formas de violência inerem, a estima, o respeito e o entusiasmo, e no próprio momento em que a maldade o inebria, sente em si a leveza e a paz que a consciência tranquila e a satisfação do dever cumprido proporcionam. (SARTRE, 1978, p. 29) Mas para que se possa captar toda a força trágica desta depravação, o seu caráter verdadeiramente abissal, é preciso não deter-se diante da curiosidade mórbida que um Eichamann pode suscitar. Para além da sua culpa incontornável, que transcende até mesmo os limites da compreensão humana, pois extrapolou o propriamente humano, é preciso recuperar a dimensão do homem tomado pelo mito, mito socialmente construído e sempre provável, nos 168


quadros da contemporaneidade. A forma com que Hannah Adrendt captou o problema, ou seja, o mal em sua banalidade burocrática, no corriqueiro, no pequeno detalhe, na ausência de uma metafísica do mal de parte do indivíduo que o pratica: esta é a fórmula pela qual ele se torna massivo, total, absoluto, generalizado e irresistível. O mal tornado banal é o real como sua denegação, a captura da verdade como um produto do universo onírico do sujeito individual e coletivo; a objetivação do mito: a raça como realidade, o cavaleiro nórdico - um outro mundo estetizado, de que o mundo, conforme ele mesmo existe passa a ser apenas e tão somente uma sombra. O clone: o humano como série A dificuldade suprema que se apresenta à crítica cultural reside especialmente no fato de que toda época se percebe, também, como uma decadência e corrupção, reminiscência difusa da expulsão do paraíso e do pecado original – o projeto humano como degradação do divino. A natureza desta elaboração, contudo, é intrinsecamente reacionária e regressiva: sob o argumento de que o mundo tornou169


se decrépito, degenerado e insano, os filisteus querem apenas e tão somente suprimir toda a diversidade; a liberdade em seus mais recônditos esconderijos; o privado nos seus mais tênues limites; tornar transparente toda a individualidade, de modo que o poder do coletivo seja irresistível e toda subjetividade seja apenas sua redução, segundo a fórmula do próprio esteriótipo, de que circunstancialmente a raça é o modelo, mas que pode ser perfeitamente substituído pela profissão religiosa, pela pátria e por grandezas irracionais de semelhante natureza.

Figura 54 - Colagem: Metropolis (Fritz Lang, 1929)

No sonho do stereo type já estamos bem adiantados, já vão avançadas as possibilidades regressivas do progresso, que aninha a 170


universalização do tipo como reprodução estritamente técnica do humano – o sonho da ordem, como delírio da ordem, o deleite do domínio absoluto, como paroxismo mesmo da ciência em sua formulação baconiana: o clone, às expensas de sua ilusão racional e científica, como projeto de poder total. Quando o homem se vê reduzido a informação genética, perde-se o estatuto de sua subjetividade: converte-se em código, informação para a reprodução; formulação diretamente maquinal do humano; homem dócil e descartável: Por conseguinte a clonagem é o último estágio da simulação do corpo, aquela em que, reduzido a sua fórmula abstrata e genérica, o indivíduo está destinado à multiplicação em série. Walter Benjamin disse que o que se perdeu da obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica foi sua “aura”, essa qualidade singular do aqui e do agora, a sua forma estética; ela passa de um destino de sedução para de reprodução e, nesse novo destino, assume a forma política. Perdeu-se o original, e só a nostalgia pode reconstituí-lo como 171


“autêntico”. A forma extrema desse processo é a dos meios de comunicação de massa contemporâneos; neles o original nunca teve lugar, e as coisas são de imediato concebidas em função de reprodução ilimitada. É exatamente o que acontece ao ser humano com relação à clonagem. É o que acontece ao corpo quando concebido apenas como estoque de informações e mensagens, como substância informática. Nada se opõe então a sua reprodutibilidade serial, nos mesmos termos utilizados por Benjamin para os objetos industriais e as imagens. Há uma precessão do modelo genético sobre todos os corpos possíveis. É a irrupção da tecnologia que comanda essa desordem, de uma tecnologia que Benjamin já descrevia como médium total – gigantesca prótese comandando a geração de objetos e de imagens idênticas, que nada poderia diferenciar entre si – mas ainda sem conceber o aprofundamento 172


contemporâneo dessa tecnologia, que torna possível a geração de seres idênticos sem que se possa voltar ao ser original. As próteses da era industrial ainda são externas, exotécnicas; as que conhecemos ramificam-se e se interiorizam-se: esotécnicas. Estamos na era das tecnologias brandas, software genérico e mental. As próteses da era industrial, as máquinas, ainda voltavam ao corpo para modificarem-lhe a imagem, elas mesmas eram metabolizadas no imaginário, e esse metabolismo fazia parte da imagem do corpo. Mas, quando se atingem um ponto sem volta na simulação, quando as próteses infiltram-se no coração anônimo e micromolecular do corpo, quando se impõe ao próprio corpo como matriz, queimando todos os circuitos simbólicos ulteriores, sendo qualquer corpo possível nada mais que sua imutável repetição, então é o fim do corpo e de sua história, o indivíduo não é mais que uma 173


metástase cancerosa de sua fórmula de base. (BAUDRILLARD, 1991, P. 195-196) Blade Runner (Ridley Scott, 1982) At a certain point of time, the motif of the doll acquires a sociocritical significance. For example: “You have no idea how repulsive these automatons and dolls can became, and how one breathes at last on encountering a full-blooded being in this society. Paul Lindau, Der Abend (Berlin, 1986), p. 17 Apud (BENJAMIN, 1999, p. 695)

Figura 55 - A morte cansada (Fritz Lang, 1921)

http://www.youtube.com/watch?v=3HmNWeEnBEM 174


A cidade de Los Angeles (ano 2019) não é apenas um lugar, ou o lócus de uma distopia, mas também uma remissão ao inconsciente, na fusão temporal que implica: convivem aqui, passado, presente e futuro, como dimensões indiferenciadas – carros no formato de espaçonaves, búfalos, elefantes, pássaros e unicórnios; prédios e painéis luminosos futuristas, mas igualmente ambulantes e restaurantes populares ao nível do passeio público; gangues com indumentária démodé. Além disso, sob a tópica do espaço, Los Angeles é um não-lugar, um amálgama de povos e costumes; uma Babel linguística e, portanto, a própria representação da compressão espacial que a contemporaneidade inaugurou, e que vive igualmente na forma de uma contração progressiva do tempo - como experiência compulsiva de aceleração; a neurastenia como estilo de vida e a paranoia como tipo médio. Neste cenário pergunta-se não exatamente quem são os autômatos, os androides (os replicantes), mas o que eles são, e qual sua relação para com os humanos? Estão implicadas nesta questão tanto a experiência, quanto a memória: o androide é incapaz de apropriar-se afetivamente do 175


mundo, além de não ter memória, mas “implantes” experiências de empréstimo, que sendo completamente coerentes e compondo um relato de vida, são dadas de fora, fabricadas.

Figura 56 - Blade Runner (Ridley Scott, 1982)

http://br.youtube.com/watch?v=4lW0F1sccqk

Neste contexto o androide permanece como uma criança eterna, emocionalmente instável e, portanto, potencialmente perigosa; incapaz de solucionar seus conflitos internos, pois não possui, estritamente falando, uma personalidade ou uma individualidade; experiências. Sua perfeição técnica 176


que, considerada do ponto de vista das habilidades e da potência física, supera o homem, acaba por apresentar um problema estritamente social segundo uma representação tecnológica, ou seja, a incapacidade de interagir com o mundo, de modo a criar vínculos afetivos. O autômato converte-se, dada esta condenação a existir como um verdadeiro deserto existencial, em uma revolta contra a morte, pela total incapacidade de exercitar a vida. O tempo que lhe é conferido torna-se, portanto, completamente insuficiente, porque totalmente plano e refratário à profundidade: não deixa marcas, não compõe memórias, não leva à velhice, mas a uma juventude eterna, que é a face externa de uma subjetividade perversa e incapaz de relacionamento. O tempo de sua existência, portanto, é decrépito e assim permanecerá, independentemente de sua duração que, sendo finita, apenas amplia uma angústia original e constitutiva - o autômato apresenta-se perante a morte como vaso fraturado, incapaz de ser continente. Aquilo que existe nele de humano é, portanto, perversão do humano: poder estéril e força devastadora. 177


Figura 57 - A morte cansada (Fritz Lang, 1921)

http://www.youtube.com/watch?v=_DCnxymLbTo

Nossa obsessão pela vida, de outra parte - a preocupação insuperável em corrigir a natureza, de modo a apagar todas e quaisquer marcas do fluir do tempo: o recurso à cirurgia plástica e à lipoaspiração, o botox; a ginástica e a disciplina de si, no exercitarse e no comer - não é de modo algum sua celebração, decorrendo do desespero por uma não-vida, cuja face repulsiva nos impõe não apenas a recusa da morte, mas seu desterro simbólico como obsessão, ou seja, o aniquilamento de todos os seus sinais e indícios, suas pegadas e rastros. 178


Não queremos mais vida, pois somos de saída incapazes dela; queremos dilatar o tempo, na expectativa de que um dia possamos efetivamente existir como aquilo que é verdadeiramente humano. O tempo que nos damos e que nos é dado, contudo, também ele, tanto quanto aquele do autômato, está vazio. Este tempo vazio, exatamente ele, é o elemento infernal sob a aparência do normal e do corriqueiro: a experiência que se divorciou do afeto é repetição mecânica e maquinal. Na circularidade do repetir-se, contudo, o humano já aproximou o autômato, para realizá-lo. A partir de 1936 (...) Benjamin vai reintegrar cada vez mais o momento romântico em sua crítica marxista sui generis das formas capitalistas de alienação. Por exemplo, em seus escritos dos anos 1936-1938 sobre Baudelaire, ele retoma a idéia tipicamente romântica, sugerida em um ensaio de 1930 sobre E. T. A. Hoffmann, da oposição entre a vida e o autômato. Os gestos repetitivos, vazios de sentido e mecânicos dos trabalhadores diante da máquina - aqui Benjamin se refere diretamente a algumas 179


passagens de O capital de Marx - são semelhantes os gestos autômatos dos passantes na multidão descritos pro Poe e Hoffmann. Tanto uns quanto outros, vítimas da civilização urbana e industrial, não conhecem mais a experiência autêntica (Erfahrung), baseada na memória e na tradição cultural e histórica, mas somente a vivência imediata (Erlebnis) e, particularmente, o Chokerlebnis [a experiência do choque] que neles provoca um comportamento reativo de autômatos “que liquidaram completamente sua memória”. (LÖWY, 2005, p. 27-28) Fascismo e modernidade Precisamos, observa Benjamin, (...) de uma teoria da história a partir da qual o fascismo possa ser desvendado (gesichtet) (...). Somente uma concepção sem ilusões progressistas pode dar conta de um fenômeno como o fascismo, profundamente enraizado no “progresso” industrial e técnico moderno que, em última análise, 180


não era possível senão no século XX. A compreensão de que o fascismo pode triunfar nos países mais “civilizados” e de que o “progresso” não o fará desaparecer automaticamente permitirá, pensa Benjamin, melhorar nossa posição na luta antifascista. Um luta cujo objetivo final é o de produzir “o verdadeiro estado de exceção”, ou seja, a abolição da dominação, a sociedade sem classes. (LÖWY, 2005, p. 85) O fascismo, cujas manifestações exteriores são o racismo e o extermínio, tem por elemento interno igualmente brutal - o sacrifício mortal da individualidade, ou seja, a impossibilidade (ou a recusa) da individuação, e o ímpeto de lançar-se a um estado de indiferenciação, que dilui toda responsabilidade, de modo a que reste como subsistente apenas a materialidade inimputável da massa; sua fúria sem remédio, ainda que plena de consequências. O fascismo, nesse sentido, é uma solução regressiva para a agressividade que a civilização moderna implica e contém, o direcionamento de sua potência destrutiva para um alvo fixo - o que permite eternizar os preceitos e 181


demandas da ordem, ainda que sob a forma de uma revanche, cujas vítimas são os elementos dos outgroups. O antissemitismo enquanto movimento popular foi sempre aquilo que os seus instigadores gostavam de censurar: o nivelamento por baixo. Os que não têm nenhum poder de comando devem passar tão mal como o povo. Do funcionário alemão aos negros do Harlen, os ávidos prosélitos sempre souberam, no fundo, que no final não teriam nada senão o prazer de que os outros tampouco teriam mais do que eles. A arianização da propriedade judaica (que, aliás, na maioria dos casos beneficiou as classes superiores) não trouxe para as massas do terceiro Reich, vantagens muito maiores do que, para os cossacos, o miserável espólio que estes arrastavam dos guetos saqueados. O fato de que a demonstração de sua inutilidade econômica antes aumenta do que modera a força de atração da panaceia racista (volkisch) indica sua verdadeira natureza: ele não auxilia os 182


homens, mas sua ânsia de destruição. O verdadeiro ganho com que conta o “camarada de etnia” (Volksgenosse) é a ratificação coletiva de sua fúria. Quanto menores são as vantagens, mais obstinadamente e contra seu próprio discernimento ele se aferra ao movimento. O antissemitismo mostrou-se imune ao argumento da falta de rentabilidade. Para o povo, ele é um luxo. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 159)

Figura 58 - Metropolis (Fritz Lang, 1929)

http://br.youtube.com/watch?v=jyJAbczjB6E 183


O fundamento subjetivo do fascismo encontra-se na miséria afetiva a que nos condenou a moderna sociedade burguesa, que a um só tempo nos atomizou e aglutinou em coletivos, aos quais se pertence apenas de modo circunstancial e contingente. Estamos constrangidos a esta redução a individualidade como massificação - pela natureza apenas probabilística da autoconservação e, na justa medida em que somos preparados para perseverar e vencer, em um ambiente de competitividade feroz e decisiva, nos vemos condenados à insensibilidade e à indiferença, que se consubstanciam na tolerância à dor e em um senso de autodisciplina, que se direcionam, à sua vez, para dentro e para fora, realizando o movimento catatônico de um frenesi sado-masoquista. Neste sentido preciso, o fascismo é uma revolta contra a civilização e contra a cultura, pois a libertação que a modernidade significou também implica em mazelas que restaram irreparáveis, como a redundância econômica e a miserabilidade, além da destruição de todo um quadro de referências culturais tradicionais. Não se pode ser simplista neste item: é fato que a modernidade trouxe consigo um 184


aumento inusitado da riqueza material e de “comodidades” que seriam simplesmente impensáveis, mesmo no passado recente. Não decorre daqui, no entanto, que o lugar de cada indivíduo em seu corpo social se encontre presentemente melhor definido do que no passado. Muito ao contrário, por mais que tenha havido uma enorme evolução material, isso só se fez por um aumento constante do risco de ser alijado dos benefícios deste progresso, risco este que se plasma e materializa a cada inflexão das curvas de crescimento econômico, a cada movimentação no sentido da transnacionalização dos capitais, de relocalização de plantas industriais, etc.

Figura 59 - Metropolis (Fritz Lang, 1929) 185


O mais recôndito desejo fascista é, portanto, o de uma regressão a um passado idílico, estável, onde cada qual encontre um lugar definido, em uma ordem afetiva inamovível. Para os fins desta meta, contudo, a nação ainda é um ente por demais complexo, pois ela implica uma diversidade prática, decorrente da história concreta de sua formação. O verdadeiro fascismo, portanto, deverá ter um elemento mítico, uma regressão ao clã primordial, pois somente ele é verdadeiramente simples, no sentido de definir o pertencimento de cada um de seus membros. Não é uma acaso, portanto, que todo nacionalismo verdadeiro, na simplicidade de sua virulência, é também um chauvinismo: a pátria como idealização de sua história; o território, como afirmação da história do clã e por oposição à política concreta; um destino mítico em lugar de seus antecedentes efetivos. O fascismo, portanto, só pode ser histórico se for igualmente uma falsificação e uma fraude, ou, dito de outro modo, se for uma história mítica, por oposição à história real. Não se deve esperar dele, portanto, qualquer coerência ou qualquer compromisso propriamente empírico; ele é um conto 186


de horror, cujos termos são oferecidos por uma elaboração mítica e fantástica, que deve ser suficientemente elástica para desprezar detalhes que sejam incoerentes com o enredo. O fascismo é uma tentativa de repor ordem, em um mundo pretensamente sem ordem; uma busca de definir valores, para uma sociedade pretensamente corrompida. Mais ainda, ele é afirmação do monopólio da própria cultura e civilização, por parte deste clã primordial, ao qual todos os direitos e prerrogativas estão reservados. Entende-se, então, a economia psíquica da solução fascista: a recompensa pela anulação da individualidade é justamente o pertencimento ao clã, que detém o monopólio de fruição de todos os bens materiais e espirituais, e que os faculta apenas àqueles que a ele pertencem. A promessa fascista implica, portanto, em uma distinção em relação a todos que não pertencem ao clã, uma vez que ela já não pode fazer qualquer distinção no seu interior: seja por que implica na dissolução da subjetividade na massa; quer por que emerge como desenvolvimento peculiar da própria 187


sociedade de massas. Mas o fascínio reside justamente nisso: mesmo um idiota pertencente ao clã é, em seus termos, absolutamente mais importante que um erudito judeu ou um cientista polonês. Para os desafortunados, para os vitimados, para os ressentidos, para os mutilados pelos desenvolvimentos da sociedade de massas, para os eternos oportunistas, que promessa poderia soar mais doce: aplanar e eliminar todas as injustiças de uma só vez, recriando-se uma comunidade afetiva primeva, à qual se liga por nascimento – ou por um critério mágico - e da qual não se pode ser alijado, independentemente do modo como se oferece e realiza cada individualidade concreta. A solução fascista é uma resposta recorrente aos desafios da modernidade e lhe é coexistente e correlata. (...) Para Benjamin, em Das Passagen-Werk, a quintessência do inferno é a eterna repetição do mesmo, cujo paradigma mais terrível não se encontra na teologia cristã, mas na mitologia grega: Sísifo e Tântalo, condenados à eterna volta da mesma punição. Nesse contexto, Benjamin cita uma passagem de Engels, que compara a 188


interminável tortura do operário, forçado a repetir sempre o mesmo movimento mecânico, com a condenação de Sísifo ao inferno. Mas não se trata apenas do operário: toda sociedade moderna, dominada pela mercadoria, é submetida à repetição, ao “sempre igual” (Immergleichen) disfarçado em novidade e moda: no reino mercantil, “a humanidade parece condenada às penas do inferno”. (LÖWY, 2005, P. 90)

Figura 60 - Metropolis (Fritz Lang, 1929)

189


O elemento subjetivo desse inferno – ainda que na forma de uma objetivação mecânica - é o autômato, que se apresenta não como possibilidade, mas na condição de uma humanidade que se realiza como degradação do humano. À potência tectônica desta perversão corresponde não apenas a representação infernal, mas o inferno como realização. A sociedade invencível Na contemporaneidade encontra-se problematizada mais do que nunca a noção de indivíduo. Afinal de contas, a mercantilização absoluta - invadindo todas as esferas da vida privada, tomando-nos possibilidades criativas comezinhas, como preparar uma comida sofrível e fazer amor sem recorrer às pílulas ou ao imaginário de vídeo locadora - não constitui uma invasão de tal magnitude que rouba ao indivíduo sua própria condição definidora? E o que se colhe da dissolução do indivíduo, de sua redução à planura indiferenciada da tipologia, que o aparato de comunicação e marketing gera, para atender às necessidades de reprodução do capital e da forma mercadoria? Onde nos leva a sedução da 190


ordem, que nos propõe a felicidade como uma negação da individuação e uma identificação absoluta e total com os padrões que ela mesma gera? Todos podem ser como a sociedade todopoderosa, todos podem se tornar felizes, desde que se entreguem de corpo e alma, desde que renunciem à pretensão de felicidade. Na fraqueza deles, a sociedade reconhece sua própria força e lhes confere uma parte dela. Seu desamparo qualifica-os como pessoas de confiança. É assim que se elimina o trágico. Outrora, a oposição do indivíduo à sociedade era a própria substância da sociedade. Ela glorificava a “a valentia e a liberdade do sentimento em face a um inimigo poderoso, de uma adversidade sublime, de um problema terrificante”. Hoje, o trágico dissolveu-se neste nada que é a falsa identidade da sociedade e do sujeito, cujo horror ainda se pode divisar fugidiamente na aparência nula do trágico. Mas o milagre da integração, o permanente ato de graça da autoridade em 191


acolher o desamparado, forçado a engolir sua renitência, tudo isso significa o fascismo. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 144)

Figura 61 - Triumph des Willens (Leni Riefenstahl, 1934)

É preciso vagar nesta passagem: o fascínio e a sedução da sociedade contemporânea estão associados ao fato de que ela se propõe como invencível, de modo que aqueles que a ela aderem, que tomam seus referenciais esteriotipados como compromisso de vida; que fazem da sujeição absoluta aos princípios da ordem um programa existencial, tomam dela a força e a potência adquirindo, portanto, eles mesmos, estas qualidades 192


mágicas. O winner e o looser são, desta maneira, faces opostas do mesmo, ou seja, elementos do padrão coercitivo geral que obriga à adesão irrefletida à sociedade invencível. Esta sociedade é, contudo, a um só tempo, expressão do coletivo e exclusão do coletivo e, portanto, tem igualmente a natureza de uma sociedade privada, sociedade entre amigos. Porque o não pertencer-lhe na forma exata de seus requerimentos já é a condenação ao território do infra-humano; no que se transforma a vida em uma concessão provisória, que pode ser cassada a qualquer tempo. Nunca é demais lembrar e enfatizar a ideia segundo a qual o indivíduo, como realidade sensível e categoria do pensamento, é produto direto da ordem burguesa, que desfez os laços de servidão, compadrio, senhorio, etc.; que realizou uma verdadeira clivagem entre homem e natureza, através da eliminação da propriedade comunal do solo, assim como também via urbanização progressiva da vida9. Este indivíduo que surgiu da ordem burguesa para afirmar sua vontade e suas potencialidades, perante um mundo que se supunha estático; que se opôs a Deus, de maneira a fazer 193


valer a sua condição não de criatura, mas de sujeito de sua própria história; que instituiu a razão10 e a racionalidade como orientadores da conduta, em oposição a uma concepção teológica do mundo; este mesmo personagem exuberante do iluminismo e da modernidade se vê, agora, em questão, posto que novamente submerso em um mundo pretensamente estático e sobredeterminado, na imensa maioria de suas facetas, por exterioridades quase totêmicas. O animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas. (...) A partir do momento em que as mercadorias, com o fim do livre intercâmbio, perderam todas a suas qualidades econômicas salvo seu caráter de fetiche, este se espalhou como uma paralisia sobre a vida da sociedade em todos os seus aspectos. As inúmeras agências da produção em massa e da cultura por ela criada servem para inculcar no indivíduo os comportamentos normalizados como os únicos naturais, decentes, racionais. De agora em diante, ele só se determina como coisa, como elemento estatístico, como 194


success or failure. Seu padrão é a autoconservação, a assemelhação bem ou malsucedida à objetividade de sua função e aos modelos colocados para ela. (…) A figura demoniacamente distorcida, que as coisas e os homens assumiram sob a luz do conhecimento isento de preconceitos, remete de volta à dominação, ao princípio que já operava a especificação do mana nos espíritos e divindades e fascinava o olhar dos feiticeiros e curandeiros. A fatalidade com que os tempos pré-históricos sancionavam a morte ininteligível passa a caracterizar a realidade integralmente ininteligível. O pânico meridiano com que os homens de repente se deram conta da natureza como totalidade encontrou sua correspondência no pânico que hoje está pronto para irromper a qualquer instante: os homens aguardam que este mundo sem saída seja incendiado por uma totalidade que eles próprios constituem e sobre a qual nada podem. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 40-1) 195


As possibilidades da razão iluminista Os desenvolvimentos históricos, concretos havidos nas sociedades de massa, colocam necessariamente em questão a ontologia marxiana do sujeito da história 11. Nem tanto porque os desenvolvimentos contemporâneos negam a possibilidade da existência deste mesmo sujeito, mas, muito pior, porque sua ação na história vem se fazendo não segundo o desenvolvimento necessário imaginado por Marx, ou seja, a superação do capitalismo por meio do socialismo, da necessidade pela liberdade. Esta constatação tem levado, como tendência, a um abandono puro e simples do legado de Marx e da utopia socialista, ela mesma, vista como uma vertente das soluções totalitárias. Observa-se, assim, um processo de recolhimento da razão iluminista, rechaçada pela ferocidade de sua própria realização na história. Entende-se, nesse contexto, que a razão não pretenda mais desenvolver um programa positivo e que se transforme em razão negativa, crítica. Mas este recolhimento da razão a um território puramente negativo, sancionando a um só tempo sua perda de potência e o reconhecimento 196


de seus limites, é como um grito de horror diante de sua própria obra e ingenuidade. A dor de se ver no espelho, terrivelmente humano, falível, impotente, contraditório, sendo um golpe profundo na razão compromissada com emancipação, é ao mesmo tempo aquilo que a salva e distingue para permanecer ansiando pelo futuro. A fratura imposta pela contemporaneidade ao edifício da razão iluminista obrigou-a, portanto, a se distinguir em método, pretensões, alcance e sensibilidade, da razão instrumental, à qual ainda permanecia de ligada pela quimera do primado da objetividade, pela clivagem positivista entre sujeito e objeto e, muito especialmente, pela fé no progresso contínuo e ascendente da humanidade. A este propósito, a pretensão da ciência social em enunciar desenvolvimentos necessários, como movimentos do ser social, à parte da ação e compreensão humanas, só fez desterrar a fé no super-humano da religião, para que ele voltasse trajando o manto sacrossanto da razão, ainda que em sua acepção puramente mecânica e positivista.

197


Figura 62 - O Grito (Edvard Munch, 1893)

Note-se que o retorno do obscurantismo cobrou o preço do seu desterro, pois se na ida partiu com uma cosmogonia que disciplinava a relação do homem com o universo, segundo uma compreensão teológica, em seu retorno apresentou-se sob a forma puramente material e terrena do conhecimento, declarando que todo o enunciado ético é uma exterioridade à razão, que só reconhece a si mesma como árbitro - com o que demanda o domínio universal sobre a vida dos homens. A esta pretensão corresponde uma relação de senhorio com a 198


natureza, que nos coloca diante da possibilidade bastante concreta, de que a unidade homemnatureza rompida venha se impor sob a forma de desastre total e final – afirmando-se, então, o progresso também como catástrofe. É sobretudo nos diferentes textos dos anos 1936-1940 que Benjamin desenvolverá sua visão de história, dissociando-se, de forma cada vez mais radical, das “ilusões do progresso” hegemônicas no âmbito do pensamento de esquerda alemão e europeu. Um longo ensaio publicado, em 1937, na Zeitshcrift Für Sozialforschung, a revista da escola de Frankfurt (já exilada nos Estados Unidos), foi consagrado à obra do historiador e colecionador Eduard Fuchs. Nesse ensaio - que contém passagens inteiras que prefiguram, às vezes literalmente, as teses de 1940 - ele ataca o marxismo socialdemocrata, mistura de positivismo, evolucionismo darwiniano e culto ao progresso: “Ele só soube discernir, no desenvolvimento da técnica, o progresso das ciências naturais e não o retrocesso da 199


sociedade [...]. As energias que a técnica desenvolve além desse patamar são destrutivas. Elas alimentam principalmente a técnica da guerra e de sua preparação jornalística.” Entre os exemplos mais claros desse positivismo limitado, ele cita o socialista italiano Enrico Ferri, que queria reduzir “não somente os princípios, mas também a tática da socialdemocracia às leis da natureza” e que imputava as tendências anarquistas encontrado no movimento operário à “falta de conhecimento de geologia e de biologia”. (LÖWY, 2005, p. 2930) A razão iluminista, portanto, agora depurada de suas ilusões mitológicas pode e deve colocar-se novamente em movimento, pois somente ela pode transmutar-se em razão ecologicamente orientada. Somente por ter recuperado os limites estritos e estreitos de sua humanidade, a razão iluminista pode pleitear um código normativo como inerente ao edifício da ciência e, portanto, apresentar um programa terapêutico, que nos permita conciliar possibilidades infinitas, com um repertório limitado 200


de propósitos, que sejam compatíveis com os limites mesmo de nossa condição humana e de nossa relação necessária com a natureza. Se a modernidade pode ser responsabilizada por danos extensos à subjetividade e à relação do homem-espécie com a natureza, o programa da razão iluminista deve transformar-se em uma terapêutica reparadora, uma obra de sensibilização, uma busca do humano em nós - como o que se humaniza a própria natureza, que passará a ter o semblante e a face do homem reconciliado, o outro como reconhecimento e acolhimento, e não como ameaça e hostilidade (na imagem que faz da natureza o homem vê a sim mesmo). A Escolha de Sofia (Alan J. Pakula, 1982) O fascismo, se corretamente entendido, não é apenas um programa político, mas um processo metódico, sistemático e planejado de eliminação da individualidade, para que, por fusão, se criem entes supra-humanos, nos quais toda a vida passa a estar contida e dissolvida. É uma elevação como rebaixamento; arte como ufania e exaltação; a 201


masculinidade como éthos da insensibilidade e do guerreiro bárbaro, o feminino como emulação do poder mítico reprodutivo da mãe terra; a devastação como realização de um ideal idílico da ordem perfeita, do mundo para sempre redimido.

http://www.calvin.edu/academic/cas/gpa/posters/mutterkind.jpg This poster probably dates to the mid-1930's. It promotes the Nazi charitable organization (the NSV). The text: "Support the assistance program for mothers and children."

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No fascismo todo homem é uma redução ao personagem e ao modelo; elemento serial de uma potência escatológica – a raça escolhida e o pária; a perfeição encarnada como mímese do primeiro Adão e a vida do pária como degeneração e corrupção, ameaça epidêmica, virulência. O fascismo é a criação do autômato como método e meta: o super-humano como forma corrompida do homem.

Figura 63 - Triumph des Willens (Leni Riefenstahl, 1934)

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O nazista e suas vítimas são polos de uma mesmíssima equação. No primeiro a supressão da individualidade é diretamente a fusão na entidade mítica da raça; a covardia e a ignomínia como signos exteriores da coragem e do poder; toda a vilania da renúncia em enfrentar o mundo, apresentada como programa para sua redenção mítica. Esse desprezo de si, que o nazista é, opera desde seu inconsciente, no entanto, como uma potência destruidora desmesurada, que nenhuma ação isolada pode sanar, conter ou resolver. O nazista, no terror que exterioriza, é a atividade incessante de um mecanismo - de um artefato - concebido para garantir a sobrevivência psíquica e a preservação egoica do homem moderno despersonalizado, ainda que sob a condição estrita da eliminação recorrente de um determinado outro - o pária, polo negativo na 204


economia psíquica dessa perversão, que só se realiza através da supressão de sua individualidade e humanidade, meta precípua do campo de concentração e extermínio. Nesse sentido, o nazista é um processo contínuo de devastação, de sujeição e humilhação; de confirmação de um poder frágil, cuja condição de existência é exteriorizar-se através do morticínio como obra recorrente e compulsiva.

Figura 64 - A Escolha de Sofia (Alan J. Pakula, 1982)

http://br.youtube.com/watch?v=82Oc5ny3hjg

O poder, portanto, se exerce sobre suas vítimas como algo errático, aleatório e inexplicável; como um golpe desferido ao acaso, que deve superar toda 205


possibilidade de compreensão: por este método se correspondem reciprocamente a fúria assassina, como requerimento sádico, e a necessidade de suprimir na vítima, todo e qualquer resquício de individuação; toda demanda de diferenciação, diante da fatalidade e inexorabilidade de sua própria condição.

Figura 65 - Buchenwald em Abril de 1945

http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Buchenwald_Slave_Laborers_Lib eration.jpg

206


O campo de concentração, nesta medida, é um requerimento lógico inerente à prática fascista. A vítima, uma vez subtraída ao mundo - tornada invisível para todos os efeitos da normalidade; destituída de todos os traços exteriores de sua individualidade; sujeitada a um único padrão, ou seja, o corpo esquálido, o uniforme, o destino como uma promessa de extermínio – passa a viver em uma realidade paralela, um mundo onírico, como realização sistemática do pesadelo. Sua vida, portanto, é reduzida ao degredo para uma zona de não existência e converte-se em uma antecipação da morte, como o fluir metódico e imutável do tempo de existência, já divorciado de toda esperança; em um aniquilamento da vontade como meta e propósito; na vaporização da individualidade, como cisão e fratura entre ser e alma. O campo de concentração produz, através do mais metódico e deliberado processo, o homem como zumbi; a existência como forma espectral e fantasmagórica do ser: um estado evanescente. Nada, portanto, em seus métodos é aleatório, ainda que para ser eficaz toda potência do poder tenha que se apresentar, a cada indivíduo, com uma força cega 207


da natureza. É parte de sua técnica, então, antecipar e realizar de modo concentrado, massivo e aleatório todo o infortúnio que a existência nos serve ao poucos: a separação dos entes queridos; a morte daqueles que se ama; a doença, a fraqueza e a miséria. Mais que o arame farpado, é a irrealidade dos detentos que ele confina, que provoca uma crueldade tão incrível que termina levando à aceitação do extermínio como solução perfeitamente normal. Tudo o que se faz nos campos tem o seu paralelo no mundo das fantasias malignas e perversas. O que é difícil entender, porém, é que esses crimes ocorriam num mundo fantasma materializado num sistema em que, afinal, existiam todos os dados sensoriais da realidade, faltando-lhe apenas aquela estrutura de consequências e responsabilidades sem a qual a realidade não passa de um conjunto de dados incompreensíveis. Como resultado, passa a existir um lugar onde os homens podem ser torturados e massacrados sem que nem os 208


atormentadores nem os atormentados, e muito menos o observador de fora, saibam que o que está acontecendo é algo mais do que um jogo cruel ou um sonho absurdo. (ARENDT, 1990, p. 496)

Figura 66 - Corpos de prisioneiros dos nazistas Weimar, Alemanha http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Buchenwald_corpse_trailer_ww2-181.jpg

No campo de concentração, todos os elementos que constituem uma individualidade, todos seus laços afetivos, são voltados contra aquele mesmo indivíduo como elemento de tortura e como vaticínio de morte, de tal maneira que a vida se transforme em evasão de si; em suicídio como abandono do 209


corpo; uma retirada à moda russa, ou seja, em que todo território é igualmente uma queimada e uma devastação do campo. Não é um acidente, portanto, que às vésperas do fim da guerra, os nazistas, completamente enfraquecidos do ponto de vista militar, conduzissem a pé multidões de prisioneiros, completamente apassivados. Eram corpos esvaziados de alma que marchavam; era a vida como redução mecânica que caminhava. No poder aterrorizante desta catástrofe o autômato em toda sua potência alegórica: o nazista e sua vítima, como o humano esvaziado; o sonho da coisa em sua realização infernal. A Escolha de Sofia traz em si toda esta problemática, ou seja, a vida como um coração partido; a memória como uma acusação e depósito do desespero; a realidade como permanência e prolongamento do suplício. Neste estado, o amor é diretamente um ideal persecutório, um flerte com a loucura e o suicídio o ato de partida de um mundo tornado impossível. Para Sofia, como para cada um dos homens e mulheres que foram vitimados pelo nazismo, a individualidade foi a adaga como que se martirizou o humano: na demanda de escolhas 210


impossíveis, o ser só poderia se resolver em sua dissolução.

Figura 67 - A Escolha de Sofia (Alan J. Pakula, 1982)

"O homem natural, em estado bruto” Consideradas as condições societárias em que se edificam as subjetividades, entende-se como a barbárie em que estamos imersos só se ofereça à consciência como desgraça, incidente, surgindo-nos, então, como se fora um edifício erigido por si mesmo, e não como produto de nossa atividade ou assentimento. Uma tempestade sobre o deserto, um cálido e modorrento dia de verão e o absurdo irracionalista da barbárie se apresentam, então, como exterioridades de mesma natureza, obras 211


assemelhadas, na qualidade de serem erigidas por potências distintas da atividade do sujeito político que somos. Uma vez naturalizado o social, damos passagem fluída e fácil às pequenas vilanias, ao calarse por conveniência, sem os quais não se pode efetivamente construir nenhuma grande atrocidade.

Figura 68 - Dr. Mabuse, Der Spieler (Fritz Lang, 1922)

A indiferença à dor do outro, ao seu destino e infortúnio, a insensibilidade como princípio, antes de serem um programa de supressão da civilização, foram elementos da realidade em suas afirmações mais diletas. Que todo trabalho concreto perca seus 212


traços humanos distintivos; que todas as relações se convertam necessariamente em interesse privado e em requerimentos da autoconservação; que toda independência individual seja a fórmula mecânica segundo a qual se enuncia a adesão irrestrita aos círculos de conveniência, os quais estão desprovidos de qualquer valor autêntico e de toda espontaneidade: tudo isso já é a capitulação ao poder como ausência de critério ou legitimidade. Força como força, coerção como elemento natural irresistível; potência em sua qualidade meramente energética e, portanto, aleatória e irracional; o prenúncio do “homem natural em estado bruto” de Spengler. A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de “participação oportunista” era antes de mais nada interesse prático: perceber antes de tudo sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma lei geral 213


do existente. O silêncio sob o terror era apenas conseqüência disto. A frieza de mônoda social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto. (ADORNO, 1995, p. 134)

Figura 69 - O Eclipse (Michelangelo Antonioni, 1962)

http://www.italica.rai.it/cinema/autori/antonioni.htm

Para este estado de total incapacidade de identificar-se, de reconhecer-se no outro, em muito contribui a naturalização de um estado competitivo 214


inerente à ordem, que conduz ao raciocínio simples segundo o qual “fiz o que qualquer um faria”, ou, ainda, “não poderia fazê-lo de outro modo”. Desta maneira, quando me coloco no lugar do outro, encontro-o fazendo aquilo mesmo que fiz, de tal modo que a ação se justifica e racionaliza por completo. A naturalização da competitividade, do vença o melhor, a necessidade de ser indiferente às dores do perdedor simplesmente nos eximem de quaisquer considerações complementares, ou indagações éticas. Não há responsabilidade, pois esta é a natureza mesma do sistema. Que o mundo seja, portanto, exatamente assim, que seja imutável nesta sua natureza perversa, converte-se em uma autorização tácita para ser igualmente perverso, e cada qual se percebe neste jogo como survivor - um trapaceiro, mas apenas por força das próprias regras do jogo. Seu aspecto lúdico, por consequência, é a autorização tácita para transgredir qualquer limite, para não frear qualquer impulso, porque a única meta é a autoconservação e, de certo modo, todos os demais jogadores são não mais do que inimigos. 215


A solidariedade implicada, portanto, é alucinada: cada qual só garante a pertinência ao todo, na medida em que for portador e executor de todas as suas determinações; em que estiver disposto a levar a sujeição de si tão longe quanto requerido. O lema do guerreiro passa ser, portanto, a suprema virilidade como suprema passividade: uma fórmula corajosa de covardia. O herói moderno, contemporâneo, conforme o erige a ordem, não é aquele que, no passado, a ela se opunha e que, portanto, instituía sua individualidade como negatividade. Nosso herói, ao contrário, adere firmemente a um padrão pré-existente e vai nele tão longe quanto ninguém mais poderia ir; torna-se uma renúncia obstinada e total de si, para ser a própria ordem personificada: o cost killer; o praticante de toda a dureza da ortodoxia fiscal, o paladino do orçamento equilibrado e da superimposição das exigências da racionalidade econômica - todos eles são aparentados de Eichmann, na apropriação do real como naturalização incondicional dos requerimentos da ordem.

216


Figura 70 - Wall Street (Oliver Stone, 1987)

http://www.youtube.com/watch?v=xuQAfgAOMKQ

As intuições de Benjamin sobre a tecnocracia fascista foram confirmadas pela pesquisa histórica recente. Ver, por exemplo, os trabalhos de: J. Herf, Reactionary Modernism; Technology, Culture and Politics in Weimar and the Third Rich (Cambridge, Polity Press, University Press, 1986); Z. Bauman, Modernity of Holocaust (Cambridge, Polity Press, University Press, 1989); e E. Traverso, L’histoire déchirée: essai sur Awschwitz et les intelectuelles (Paris, Cerf, 1997). J. Herf caracteriza como “modernismo reacionário” a ideologia do III 217


Reich e analisa nesse quadro os escritos dos ideólogos fascistas conhecidos e os documentos de associações de engenheiros pró-nazistas. Quanto ao sociólogo Zygmunt Baumann, analisa o genocídio dos judeus e dos ciganos como um produto típico da cultura racional burocrática e como um dos resultados possíveis do processo civilizatório enquanto racionalização e centralização da violência e enquanto produção social da indiferença moral. “Como qualquer outra ação conduzida de maneira moderna racional, planejada, cientificamente informada, gerenciada de maneira eficaz e coordenada - o Holocausto deixou para trás ... todos os seus pretensos equivalentes prémodernos, revelando-os como primitivos, dissipadores e ineficazes comparativamente”. Enfim, segundo Enzo Traverso, nos campos de extermínio nazistas encontramos uma combinação de diferentes instituições típicas da modernidade: ao mesmo tempo, o presídio descrito por Foucault, a fábrica capitalista de que falava 218


Marx, a “organização científica do trabalho” de Taylor, a administração racional/burocrática segundo Weber. (LÖWY, 2005, p. 103-104)

Figura 71 - Dr. Mabuse, Der Spieler (Fritz Lang, 1922)

Um dia de fúria (Joel Schumacher, 1993)

Figura 72 - Um dia de fúria (Joel Schumacher, 1993)

http://br.youtube.com/watch?v=YjhvDTTRp4A

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Bill, o protagonista do filme, é uma vida no limiar, por um triz, um passo aquém do mergulho no irracional. Deste limite extremo existem indícios evidentes: o terror de sua mulher e de sua mãe, ambas explorando em flash backs seu caráter potencialmente violento; a agressão à filha, a quem havia presenteado com um cavalo de balanço, e de quem exigia o brincar, apesar do medo que demonstrava. Para ele, que já atingiu um grau extremo de normalização, de padronização da vida, as ações devem ser igualmente padronizadas; devem seguir a um esquema, fora do qual a própria vida torna-se insuportável e, portanto, sujeita a reações explosivas: que representam uma espécie de ódio da ordem, mas como requerimento de uma ordem ainda mais perfeita - uma saudade da harmonia, que elimina toda e qualquer dissidência. Bill está prestes a explodir, porque se sente oprimido justamente pelas agências com as quais se identifica; porque detesta aquilo que de fato tomou como referência e meta. Odeia como a mulher agredida em uma relação doentia, que assume essa agressão não como violência de seu amante, mas 220


como uma espécie de síntese, por meio da qual o agredido e o agressor se rendem a um destino imutável; a uma tragédia que sempre esteve por acontecer. Sua esperança, portanto, é vã, sua redenção impossível; ele só conhece de si mesmo essa fúria, que é sua única experiência autêntica – põe-se a caminho, então, com resolução total.

Figura 73 - Um dia de fúria (Joel Schumacher, 1993)

http://br.youtube.com/watch?v=T9ckjELRL6Y

Compreende-se, portanto, que ele se lance furiosamente contra o gerente de uma lanchonete e sua atendente, quando ambos, burocraticamente, recusam-se a lhe dar o café da manhã, insistindo para que ele peça o almoço – o horário limite do café da manhã era 11:30h, e ele o havida demando uns poucos minutos depois. Bill não pode suportar esta 221


recusa, assim como não pôde aceitar que o comerciante coreano lhe negasse um desconto sobre o preço da Coca Cola; ele não pode suportar mais nada, pois está completamente tomado pelas restrições, saturado pelos nãos que disse a si mesmo, e por meio dos quais aniquilou tudo o que pudesse dar à sua vida qualquer autenticidade.

Figura 74 - Um dia de fúria (Joel Schumacher, 1993)

Bill é o seu quarto, completamente asséptico, limpo, ordenado e organizado; sem qualquer lugar para aquilo que estivesse fora do planejado e do previsível. Na cena em que o quarto aparece, sua 222


mãe está verdadeiramente aterrorizada diante da possibilidade de que o filho descobrisse sua intrusão. Ela teme por sua vida, pois percebe que Bill se convertera em um autômato - e come como tal, de maneira irrefletida, ausente e maquinal; ruminado seu ódio atávico pelo mundo. Bill repete e repete, mecanicamente, e, portanto, mesmo desempregado há um mês, cumpre ainda todas as formalidades exteriores do antigo vínculo: onde será que ele almoça? Pergunta a mãe. Quem o saberia? Em seu ódio pelo mundo, ainda que não se reconheça no personagem flagrantemente neonazista, Bill tudo vê pela ótica do estereótipo e do clichê: a gangue latina violenta; o coreano que não sabe falar inglês, mas que já dita regras ao americano da cepa; os atendentes burocráticos e frívolos da lanchonete; os velhos patéticos e endinheirados do clube de golfe, o casal de gays que é agredido pelo vendedor de armas neonazista, e sim por diante. Todas estas presenças lhe são familiares, são elementos da cidade e de sua vida corriqueira. Ainda assim permanecem completamente estranhos e não introjetados; são semelhantes a uma praga rogada, mas com toda efetividade do existente. São 223


acidentes geográficos; formas minerais de seres humanos, com as quais topa por seu trajeto pela cidade. Esses malditos devem pagar e pagam, tão corriqueiramente e tão estupidamente, quanto o sujeito que é baleado na discussão de trânsito; que é espancado até a morte na briga da boate e assim por diante. Segundo a lógica da explosão furiosa de Bill, está no agredido a explicação para a agressão.

Figura 75 - Um dia de fúria (Joel Schumacher, 1993)

http://br.youtube.com/watch?v=nhE1rDuOQwE

Bill ainda que não tenha tomado o aspecto exterior e caricato do fascista, que repudia como 224


louco; ainda que recuse sua homilia da intolerância, trabalha para defender a pátria e seus valores – faz mísseis para a defesa americana; ajuda a combater os comunistas. Recusa, contudo, aquele caráter patético, mas apenas para realizá-lo em uma forma extremamente mais eficaz: como cidadão médio prestes a explodir e levar, em sua fúria caudalosa tudo e todos que reconhece e supõe como uma degradação da civilização. A política como esteticismo I

Figura 76 - Príncipe William 225


A proletarização crescente do homem contemporâneo e a importância cada vez maior das massas são dois aspectos do mesmo processo histórico. O fascismo pretendia organizar as massas sem tocar no regime da propriedade, que, no entanto, tende a ser rejeitado por essas massas. Ele acredita encontrar uma solução permitindo às massas, é claro, não que façam valer seus direitos, mas que se expressem. As massas têm o direito de exigir uma transformação do regime de propriedade; o fascismo quer permitir-lhes expressar-se, mas conservando esse regime. O resultado é que ele tende naturalmente a uma estetização da vida política. A essa violência feita às massas quando se impõe a ela o culto de um chefe corresponde a violência que uma aparelhagem sofre quando ela própria é posta a serviço dessa religião. O príncipe William é fotografado durante um treinamento de guerra do regimento de cavalaria do Household Cabalry, na Grã-Bretanha (12/10/2007). UOL Celebridades.

226


Figura 77 - Top Gun (Tony Scott, 1986)

http://www.youtube.com/watch?v=rb2UY2reOZc

Todos os esforços para estetizar a política culminam num único ponto. Esse ponto é a guerra. A guerra, e somente ela, permite oferecer um objetivo aos movimentos de massa maiores sem tocar, no entanto, na estrutura da propriedade. Desse modo são traduzidos os fatos numa linguagem política. Numa linguagem técnica, serão formulados da seguinte maneira: somente a guerra permite mobilizar todos os meios técnicos do tempo presente sem nada mudar no regime de propriedade. (…) (BENJAMIN, 1969, p. 45) 227


A política tornada vazia, transformada em espetáculo e performance, o que nos destina, não como promessa no futuro, mas como desastre no presente? Belicismo, intolerância nos mais variados níveis; renúncia ao diálogo e interposição da força como instrumento que instaura o monólogo, ressurgimento da tortura nas ações - supostamente militares - do “mundo rico”; desfazimento do sonho universalista do pós-guerra, para a afirmação da segregação e do ódio racista e etnocêntrico. Quais são as linhas que tecem a trama, que nos implica a todos, em uma violência que é tanto maior quanto menos percebida como questão interna às democracias? Desde a primeira guerra do Iraque, em que se pôde assistir on line, real time, as atrocidades assépticas, virtuais, comandadas pela primeira tecnologia militar do mundo - ou talvez tão longinquamente quanto no Vietnã - não se pode mais desprezar, como fato sócio-político da maior significação, a natureza cinematográfica da guerra, que dissimula a ação militar em entretenimento. Por este meio, ou seja, transformando a catástrofe em artefato estético, faculta-se ao espectador dormir 228


sono profundo, em meio ao mais intenso tormento. No cenário desta destruição, salva-se intacta a ordem, na condição de ponta de lança da civilização.

Figura 78 - Guerra do Iraque (David Leeson, Abril 2003 )

A guerra hi-tech, a guerra eletrônica, veloz, clean, precisa e fulminante, deveria acontecer imediatamente na televisão. Nenhuma distância no espaço nenhum intervalo no tempo deveriam se interpor entre o telespectador confortavelmente instalado em casa e o campo de batalha em Bagdá, Dahram, Jerusalém, Tel-Aviv… E aqui, o fluxo de imagens da CNN, que vão se atropelando e se substituindo no vídeo, 229


engata diretamente na descarga de ansiedade que faz de todos nós voyeurs do destino dos outros e dos nossos próprios destinos (GARCIA DOS SANTOS, 1996, p. 160). A realidade da guerra que se apresenta nos lares de todo o mundo numa fantástica superprodução é a da guerra sem cadáveres, sem sofrimento, mas com muita emoção - um videogame. E embora o próprio exército aliado tenha reconhecido que 70% das 88 mil toneladas de explosivos tenham atingido seus alvos e que só 70% dos bombardeios foram efetuados com as denominadas “bombas limpas”, o poderio militar dos EUA ganhou feições de ficção científica, como se a humanidade tivesse inaugurado uma nova forma de resolver cientificamente os grandes conflitos ocasionados por interesses internacionais. Nesse incrível teatro de operações, os telespectadores imóveis mas mobilizados cumprem o papel de informar-se, fechar-se em casa e apoiar os militares, integrando uma retaguarda solidária e um público fiel para as estrelas que acenam diariamente em suas maravilhosas aeronaves. Neste momento, a produção da informação pela televisão distingue-se 230


daquelas empreendidas no passado: não se trata mais dede uma teleaudição (Segunda Guerra Mundial) ou de uma “tele-visão” (a Guerra do Vietnã) mas de uma verdadeira teleação, onde os telespectadores atuam como “parceiros de guerra”. (REIS FILHO; FERREIRA; ZENHA (orgs.), 2002, p. 235236) A política como esteticismo II

Figura 79 - Cidadão Kane (Orson Wells, 1941)

http://www.youtube.com/watch?v=tzhb3U2cONs

231


(...) A linguagem publicitária se apossou de tal maneira da campanha política que, independentemente do que um político propuser para seu governo, o debate político já funciona segundo a lógica de realização de desejos. O eleitor não vota mais no candidato que expõe algumas idéias razoáveis, que coloca problemas que talvez possam ser resolvidos; o eleitor vai votar no candidato cuja campanha se orientar no sentido de fazê-lo gozar diante da imagem dele. No momento mesmo em que mesmo a imagem de um candidato se associa a imagens capazes de dar prazer ao eleitortelespectador, por mais fantasiosas que sejam aquelas imagens, por mais que o candidato minta, ele conquista o eleitor ao fazê-lo gozar diante das imagens de campanha, como se aquilo já fosse um desejo realizado, de modo que o eleitor vai votar na esperança de prolongar aquele gozo. Talvez assim se explique também por que, seja qual for o candidato eleito, um mês depois da posse estarão todos 232


decepcionados com ele. Acabada a campanha, acaba o gozo imaginário. Mesmo que uma administração pública se faça acompanhar continuamente de propaganda, a comparação entre aquilo que o governante é capaz de fazer e o que ele promete sempre será frustrante para a massa que elegeu, inconscientemente, um objeto de gozo e não um sujeito da ação política. (BUCCI; KEHL, 2004, p. 105-106) A política como espetáculo não se restringe ao videogame em que a CNN International transformou a guerra. O debate político foi subsumido pelo espetáculo televisivo, o que só foi tornado possível porque o espaço propriamente público foi constrangido até que dele sobrassem apenas vestígios pálidos: da democracia e suas pretensões de emancipação, uma vez depuradas todas as esperanças utópicas, restou apenas o jogo plebiscitário da escolha alternativa de gestores políticos, com distintas competências administrativas. Assim, os partidos não se diferenciam mais necessariamente por programas e projetos, mas por habilidades de gestão, pretensas 233


virtudes morais, etc., ou seja, a partir de uma cosmética política, cujo fundamento é a imagem, como representação verossímil e ninho da fraude.

Figura 80 - Cidadão Kane (Orson Wells, 1941)

Acompanhando esse movimento de desmaterialização dos partidos, o líder político vem mudando de natureza: ele não se elege por força de suas ideias, por suas habilidades no cálculo e no exercício do jogo político, mas por sua adequação a um script, zelosamente construído por seu consultor de marketing. Trata-se de figuras míticas (ou místicas) falando ao povo de sua história de vida, seu 234


caráter, seus sofrimentos, buscando fundar uma identidade que propicie identificação. Mas este folhetim reiteradamente contado, esta redução da política, sua perda de substância e quase inanição servem a que? A própria trama já o denuncia: a subjetividade empobrecida, a inexperiência do pensar, o malogro da cultura, a regressão do espaço público, preparam o campo para as soluções simples e talvez nada seja mais simples e cru que o apelo xenófobo e intolerante. Imigração e chauvinismo A constatação de que os deserdados não se comportem nos exatos termos da teoria marxista do sujeito revolucionário serve, perfeitamente, aos adoradores da ordem, em sua ufania do aqui e do agora. Corresponde, ainda, maravilhosamente, aos propósitos de uma certa esquerda que - por fazer vistas grossas à tragédia que o presente já contém aposta naquele desenvolvimento gradualíssimo, que acabará por instituir o novo Adão como tipo universal: o consumidor, na qualidade de usufrutuário da civilização e da cultura. Entre o presente edulcorado e o futuro que universaliza este 235


mesmo presente se aninha a serpente: a ordem, uma vez petrificada, está permanentemente prenhe da barbárie que lhe é própria, e que é indissociável de suas estratégias de preservação. O antissemitismo burguês tem um fundamento especificamente econômico: o disfarce da dominação na produção. Se, em épocas antigas, os dominadores eram imediatamente repressivos, de tal sorte que não somente abandonavam todo o trabalho às classes inferiores, mas declaravam o trabalho como a ignomínia que sempre foi a dominação, no mercantilismo, o monarca absoluto sofre uma metamorfose e transforma-se nos mais poderosos donos de manufaturas. A produção passa a ser aceitável na corte. Os senhores transformados em burgueses acabaram por despir o casaco colorido e passaram a envergar um traje civil. O trabalho não envergonha, diziam, para se apoderar mais racionalmente do trabalho de outrem. Eles próprios se incluíam entre os produtores, ao passo que continuavam a ser os mesmos 236


rapinadores de sempre. (...) Os trabalhadores tinham de fornecer o máximo possível. Como o verdadeiro Shylock, ele insistia em sua promissória. Com base na posse de máquinas e do material, ele forçava os outros a produzir. Ele se denominava “produtor”, mas como qualquer um sabia no íntimo a verdade. O trabalho produtivo do capitalista – não importa se ele justificava seu lucro como salário do empresário, como no liberalismo, ou como vencimento de diretor, como hoje em dia – era a ideologia que encobria a essência do contrato de trabalho e a natureza rapinante do sistema econômico em geral. Por isso as pessoas gritam: “pega ladrão”! e apontam para o judeu. Ele é, de fato, o bode expiatório, mas não somente para manobras e maquinações particulares, mas no sentido amplo em que a injustiça econômica da classe inteira é descarregada nele. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 162)

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Esta fórmula, como expressão imediata do irracional e do irracionalismo, é inerente à sociedade burguesa, porque é o arranjo que permite converter o ódio que o sistema inspira - a revolta contra a coisificação que ele é -, em ressentimento aparentemente extra-sistêmico, no que ele se concentra e desenvolve como memória atávica, ainda que sob a condição estrita de ser igualmente uma farsa e uma fraude: lembrança forjada da invasão do território original da tribo, por todos os tipos odiosos de estrangeiros e apátridas.

Figura 81 - Sacco & Vanzetti (Giuliano Montaldo, 1971)

O discurso chauvinista em que se esmeram os americanos, mas no que são seguidos pelos 238


franceses, italianos, espanhóis, holandeses, alemães; e, igualmente, pelos paraguaios, colombianos, brasileiros, etc. é apenas o modo eterno como se pode dar ao peso irresistível da realidade uma versão dissimulada, na qual ela pode divergir de si mesma e, portanto, preservar-se como sortilégio. Nisto é preciso contrariar radicalmente do esquerdismo em suas formulações infantis: o chauvinismo é uma dimensão da ordem enquanto tal e não propriedade dos países ricos e imperialistas. Entende-se, então, que como discurso ele seja igualmente eficiente na Europa ou na África; nos Estados Unidos ou no leste asiático. Verificamos que o antissemitismo constitui um esforço apaixonado para realizar uma união nacional contra a divisão das sociedades em classe. Tenta eliminar a fragmentação da comunidade em grupos hostis entre si, levando as paixões comuns a uma temperatura tal que funda as barreiras. E como, entretanto, as divisões subsistem, posto que as causas econômicas e sociais permanecem inatas, visa agrupá-las todas numa só: as distinções entre ricos e pobres, 239


entre classes trabalhadoras e classes possuidoras, entre poderes legais e poderes ocultos, entre citadinos e rurículas etc., ele as resume numa só diferença, a do judeu e a do não-judeu. Isto significa que o antissemitismo é uma representação mística e burguesa da luta de classes e que não poderia existir numa sociedade sem classes. Manifesta a separação dos homens e seu isolamento no seio da comunidade, o conflito de interesses, o fracionamento das paixões: não poderia existir, exceto nas coletividades onde uma solidariedade une pluralidades fortemente estruturadas; é um fenômeno do pluralismo social. Numa sociedade cujos membros são todos solidários, porque todos se acham empenhados na mesma empresa, não haverá lugar para o antissemitismo. Enfim, manifesta certa ligação mística e participacionista do homem com seu “bem” que resulta do regime atual de propriedade. (SARTRE, 1978, p. 85)

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Figura 82 - Sacco & Vanzetti (Giuliano Montaldo, 1971)

A questão migratória é núcleo do chauvinismo na contemporaneidade, o que coloca no centro do debate os problemas envolvendo a cidadania e os direitos de cidadania ou, em uma formulação diretamente econômica, os termos em que uma riqueza produzida globalmente, mundialmente, é apropriada por nacionais - dentro e fora de suas respectivas fronteiras nacionais. No contexto do drama contemporâneo, onde o liberalismo redivivo devolve ao mercado a tarefa de tudo fazer, é preciso ter claro que o racismo, o chauvinismo e muitos preconceitos ancestrais e arcaicos têm eterna funcionalidade para a ordem que, no afã de se 241


perpetuar, explora à exaustão a fúria irracional e inconsciente dos de baixo, para melhor e mais eficientemente erigir as gaiolas em que estes se encontram enclausurados. [o] fascismo também é totalitário na medida em que se esforça por colocar diretamente a serviço da dominação a própria rebelião da natureza contra essa dominação. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 172).

Figura 83 - Sacco & Vanzetti (Giuliano Montaldo, 1971)

Demonstra-se, assim, o perigo de todas as soluções parciais; todas as obras que se fazem aos 242


poucos, como renúncia da grande política: o imigrante que hoje ganha o status de cidadania; que se torna um nacional, ainda que de segunda classe e por força disso mesmo - porque sofre e é espezinhado, rotulado e vilipendiado, massacrado -, este mesmo sofredor vai se transformar, quando a ocasião for propicia, no neorreacionário e, provavelmente, no mais reacionário entre eles. Sua condição de nacional, a tolerância quando muito caritativa de que é vítima e não beneficiário, depende da limitação do fluxo de entrada de novos estrangeiros, de modo que sua solidariedade para com os párias tem por limite natural a própria condição de ilegal. Para além dela, tudo o que foi uma irmandade passa a ser risco, que, por sua própria natureza no interior da sociedade capitalista, deve ser remunerado: o imigrante legal é, para o ilegal, toda a brutalidade da ordem, a exploração como memória recente da exploração e, em decorrência, uma força bruta de sujeição e de conformação. Talvez seja por esta razão que o poder jamais proceda a uma legalização universal de seus ilegais: que a escória se veja dividida em distintas categorias 243


é uma garantia por si mesma de que a exploração será maximamente eficaz e que cada povo cuidará dos seus.

Figura 84 - Sacco e Vanzetti pelo pintor e fotógrafo Ben Shahn

http://it.wikipedia.org/wiki/Sacco_e_Vanzetti

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Deste modo, a imigração massiva que não se quer ver e que não se admite - mas que é absolutamente funcional para o sistema -, a ilegalidade como regra, encontram as formas institucionais que lhe são próprias: a máfia e o gueto. Tudo isso as modernas democracias aprenderam com o fascismo, que impôs como humilhação e como preceito de domínio, que os párias cuidassem dos párias; que se aniquilassem seus impulsos mais tênues de orgulho próprio, na forma compulsória de sua divisão em grupos especializados, nas tarefas auxiliares e subalternas de extermínio. Neste sentido preciso, o ufanismo neoliberal, o autoengano conveniente e leniente dos pequenos beneficiários da ordem, o sorriso satisfeito e triunfante dos potentados, todos convictos da estabilidade inquestionável do regime, de sua propensão à eternidade e, portanto, da legitimidade de sua existência perpétua, independentemente dos fins mobilizados, são mais críticos do que podem parecer, uma vez que suas estratégias mantêm abertas as trilhas largas que levam da civilização à barbárie. As questões nacionais, a exigir soluções urgentes, em benefício dos nacionais, hoje como no 245


passado, têm como uma de suas “soluções naturais” a mobilização do racismo - como forma de mitigar a insegurança e frustração econômica que o regime, endogenamente, impõe aos trabalhadores e deserdados em geral. Obviamente a manipulação nacionalista é tanto mais eficaz quanto mais se pode bombardear a população com slogans, carregados de emotividade evidente e ódio etnocêntrico mal disfarçado: Os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem são atribuídos ao objeto: a vítima em potencial. Para o paranóico usual, sua escolha não é livre, mas obedece às leis de sua doença. No fascismo, esse comportamento é adotado pela política, o objeto da doença é determinado realisticamente, o sistema alucinatório torna-se a norma racional no mundo, e o desvio a neurose. O mecanismo que a ordem totalitária põe a seu serviço é tão antigo quanto a civilização. Os mesmos impulsos sexuais que a raça humana reprimiu souberam se conservar e se impor num sistema diabólico, tanto dentro dos 246


indivíduos, quanto dos povos, na metamorfose imaginária do meio ambiente. Um indivíduo obcecado pelo desejo de matar sempre viu na vítima o perseguidor que o forçava a uma desesperada e legítima defesa, e os mais poderosos impérios sempre consideraram o vizinho mais fraco como uma ameaça insuportável, antes de cair sobre eles. A racionalização era uma finta e, ao mesmo tempo, algo de compulsivo. Quem é escolhido para inimigo é percebido como inimigo. O distúrbio está na incapacidade de o sujeito discernir no material projetado entre o que provém dele e o que é alheio. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 174-5 – grifos meus)

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Figura 85 - O poderoso chefão (Francis Ford Coppola, 1972)

http://br.youtube.com/watch?v=E1DT84QLnG8

*** "Brasileiros são prisioneiros do limbo" Para a brasilianista Maxine Margolis, endurecimento de leis pós-11 de Setembro empurrou imigrantes para a ilegalidade Na opinião da autora, da Universidade da Flórida, os imigrantes que já estão nos Estados Unidos se sentem obrigados a ficar no país

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FOLHA - Como a sra. avalia o caso de Riverside [em Nova Jersey, em que a aprovação de legislação antiimigrantes afugentou a comunidade de brasileiros, o que causou um grande prejuízo econômico à cidade, que teve de revogar as leis]? MARGOLIS - É um desses casos que fez o dia daquele homem repugnante, o Lou Dobbs [apresentador conservador da CNN]. Começou com uma série de reportagens, há um ou dois anos. Terminou com passeatas e grande movimentação antiimigrantes. É horrível. Sei que a cidade tem um índice alto de desemprego, já foi uma zona industrial e recebeu uma onda de brasileiros. Mas norte-americanos com pouca educação têm dificuldade em arrumar bons empregos e facilidade em culpar os imigrantes por isso. E pessoas como o Lou Dobbs são especialistas em botar lenha nessa fogueira. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0912200729.htm

'Retirantes' chineses são clandestinos em seu país

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Milhões de ‘migrantes rurais’ vagam pelas cidades em busca de trabalho Cláudia Trevisan http://www.estado.com.br/editorias/2008/03/09/int1.93.9.20080309.15.1.xml

*** São Paulo, quinta-feira, 22 de maio de 2008 ÁFRICA DO SUL Exército vai ajudar polícia contra ataques xenófobos DA REDAÇÃO O presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, autorizou que o Exército vá às ruas combater ataques xenófobos que, desde o dia 11, mataram 42 pessoas e deixaram 16 mil desabrigadas. Houve 400 prisões. É a primeira vez que os militares ajudarão a barrar a violência desde o fim do apartheid, em 1994. "[A cooperação] será em termos de equipamento e de pessoal. Eles não irão assumir o papel de policiais,

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eles vão dar apoio em operações específicas", esclareceu Sally de Beer, porta-voz da polícia. A autorização foi dada após o governo ser pressionado -pela oposição e pela população- a reforçar o policiamento. Os protestos começaram em Alexandra, na periferia de Johannesburgo, mas depois se espalharam. Seis imigrantes foram feridos num ataque a um bar, cujo dono é um nigeriano, em Durban (Província de KwaZulu-Natal), onde há o maior grupo étnico da África do Sul, os zulus. Na Província de Mpumalanga, na fronteira com Moçambique e Suazilândia, 200 pessoas se refugiaram numa delegacia depois que dois assentamentos informais foram invadidos. O principal motivo dos ataques é uma percepção de que os estrangeiros "roubam" empregos, numa época em que os preços de alimentos e combustíveis sobem. Enquanto a vida nos subúrbios é melhor do que durante o apartheid, muitas pessoas ainda vivem em favelas. Segundo a Fundação Helen Suzman, um instituto político, há imagens de "pessoas sendo queimadas 251


vivas e apanhando com muita violência, além de crianças assustadas entre multidões saqueadoras e policiais disparando balas de borracha". Com "Financial Times" e agências internacionais São Paulo, quarta-feira, 21 de maio de 2008 África do Sul teme efeitos da violência na economia Onda de xenofobia que matou até 26 imigrantes assusta investidores e turistas Violência já diminui; polícia ataca favelados que iriam desalojar imigrantes de seus barracos; até 13 mil estão sob a proteção de delegacias DA REDAÇÃO Agressões a trabalhadores estrangeiros continuavam a ocorrer ontem de modo esparso na África do Sul, mas o forte policiamento impediu que os conflitos voltassem a se espalhar, sobretudo em Johannesburgo, a maior cidade do país. A polícia chegou a disparar balas de borracha contra uma multidão de 700 moradores de uma favela que 252


tentava expulsar estrangeiros de seus barracos. Informações não confirmadas da mídia local dão conta de duas mortes durante a madrugada, o que elevaria a 26 o número de imigrantes vitimados pela violência xenofóbica. O diretor da Cruz Vermelha Sul-Africana, David Stephens, calcula que até 13 mil estrangeiros estejam refugiados em igrejas, delegacias de polícia ou prédios públicos. Anteontem, eles eram estimados em 5.000. Um mutirão de entidades assistenciais tem entregado nesses locais mantimentos, cobertores e produtos de higiene. A onda de violência iniciada no último dia 11 contra imigrantes provenientes do Zimbábue, do Maláui e de Moçambique, tomou essa parcela da população como bode expiatório em razão do alto desemprego (que atinge até 40% da população), da falta de moradias e do aumento da inflação. Os investidores externos estão repatriando capitais. A moeda local, o rand, se desvalorizou em 1,7%. "A violência xenofóbica assusta", diz David Gracey, do Nedbank. 253


Turismo e Copa do Mundo O Ministério do Turismo também teme os efeitos da violência. No ano passado, o país foi visitado por 8,4 milhões de estrangeiros. O turismo representa 8% de toda a economia sul-africana. O presidente da Federação Sul-Africana de Futebol, Raymond Hack, disse que os acontecimentos "são muito tristes para o esporte e para o país". A África do Sul será a sede da Copa do Mundo de 2010, a primeira a acontecer no continente africano. Dirigentes locais desmentiram os rumores de que a Fifa, a federação internacional, esteja cogitando reprogramar o campeonato para outro país. O presidente Thabo Mbeki vem sendo criticado pela forma pouco enérgica com que reagiu à crise. Em lugar de adotar medidas econômicas que aliviem as tensões, ele se limitou a criar um grupo de trabalho para estudar as causas da xenofobia. Jacob Zuma, presidente do ANC (Congresso Nacional Africano), o partido no poder, declarou ontem que "não há lugar para violência xenofóbica na África do Sul". Os atos praticados contra trabalhadores 254


imigrantes, afirmou, "não passam de selvageria e criminalidade". São Paulo, quarta-feira, 21 de maio de 2008 Para entidade, governo podia evitar crise DA REDAÇÃO O Instituto Sul-Africano de Relações Raciais (SAIRR, sigla em inglês) divulgou ontem um duro relatório em que acusa o governo do presidente Thabo Mbeki de negligência pela não-adoção de políticas públicas que poderiam ter evitado a onda de violência xenofóbica. O documento diz que o governo se acomodou às relações frouxas entre a sociedade e as leis. "Quando o Estado de direito cai em descrédito, comunidades mais pobres se habituam ao comportamento violento, levando os criminosos a atuar com impunidade ao furtarem, estuprarem ou saquearem." A entidade também critica o pífio controle de fronteiras que permite a existência "de milhões de imigrantes ilegais". Também cita uma diplomacia 255


conivente com a ditadura do Zimbábue, onde a eleição presidencial terminou em violência contra a oposição, gerando uma multidão de novos refugiados. Há menções à corrupção no aparelho de Estado, que foi instrumentalizado pelo ANC, o partido oficial, e às políticas que, ao privilegiarem sistematicamente a população negra, oprimida pelo apartheid, criaram um clima de animosidade que agora se transfere aos negros emigrados de países vizinhos. O desemprego, prossegue o texto, é o produto da baixa qualificação do trabalhador jovem sul-africano, que sofre concorrência de imigrantes mais qualificados. Isso se deve a um ensino público deficiente. Só a qualificação da mão de obra abrandaria a dependência das famílias mais pobres da Seguridade Social, que, mesmo assim, só beneficia hoje um quarto da população. África do Sul já tem 24 imigrantes mortos

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Arcebispo Tutu e ex-presidente Mandela lançam apelo à calma; onda de xenofobia faz de estrangeiros bodes expiatórios São Paulo, terça-feira, 20 de maio de 2008 "Caça a imigrantes" matou ontem mais dois; temendo por sua segurança, 5.000 estrangeiros se refugiaram em igrejas e delegacias DA REDAÇÃO Mais dois imigrantes foram ontem assassinados, e uma dezena de barracos foram queimados na favela de Tembisa, próxima a Johannesburgo, elevando para 24 o número de mortos na África do Sul desde a eclosão, há nove dias, da atual onda de agressões xenofóbicas. Segundo o porta-voz da polícia local, Govindsamy Mariemuthoo, cerca de 200 pessoas já foram presas por homicídio, estupro, roubo ou furto. O arcebispo anglicano Desmond Tutu, Prêmio Nobel da Paz em 1984 por sua militância contra o regime de segregação racial do apartheid (1948-1994), exortou 257


ontem seus compatriotas a cessarem imediatamente a violência. "Não é assim que devemos nos comportar. Eles [os imigrantes] são nossos irmãos e irmãs." O ex-presidente Nelson Mandela (1994-1999), também Nobel da Paz pela conciliação entre as comunidades branca e negra na sociedade sulafricana, declarou-se entristecido pela violência contra estrangeiros. A fundação que leva seu nome lembrou que em 1995, quando de agressões semelhantes a estrangeiros, Mandela declarou que "não se pode culpar os outros por nossos próprios problemas". Tais problemas, diz a Associated Press, estão na incapacidade de os governos pós-apartheid resolverem questões básicas como moradia, abastecimento e ampliação do mercado de trabalho. Há escassez de eletricidade, alta da inflação e declínio da popularidade do atual presidente, Thabo Mbeki, que cuida menos das questões sociais e privilegia a inserção do país no mercado globalizado.

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A taxa de desemprego oficial de 24,2% -ou 40%, segundo o "Financial Times"- afeta indistintamente os 44 milhões de sul-africanos e a população imigrante, estimada entre 1,5 milhão e 4 milhões. São sobretudo refugiados do Zimbábue, com grupos menores de malauianos e moçambicanos. Só em abril, diz o "New York Times", mais de mil zimbabuanos atravessaram diariamente a fronteira sul-africana na localidade de Limpopo, para escapar da violência desencadeada pelo ditador Robert Mugabe contra grupos que apoiavam o candidato presidencial da oposição Morgan Tsvangirai. A violência é um fator endêmico na sociedade sulafricana. Nos dois últimos anos, foram registrados 19 mil homicídios, 52 mil estupros e 80 mil furtos ou roubos. São números comprometedores para a imagem de um país que hospedará, em 2010, a Copa do Mundo. Bodes expiatórios Os moradores de regiões urbanas de mais baixa renda acusam com freqüência os estrangeiros de serem os responsáveis pela violência. Há, no entanto, 259


denúncias de que grupos do crime organizado sulafricano aproveitam a atual crise para ampliar suas atividades. Vincent Williams, pesquisador sobre imigração no Instituto pela Democracia na África do Sul, diz que responsabilizar os estrangeiros pela criminalidade "é algo também presente em outros países" e que a xenofobia já havia irrompido no país logo após o fim do apartheid. Gina Themba, zimbabuana, refugiou-se com sua filha de dois meses numa delegacia de polícia do centro de Johannesburgo. "Meus vizinhos de havia três anos irromperam domingo em minha casa e me expulsaram de lá", disse ela. Seu caso não é atípico. Outros 5.000 imigrantes buscaram refúgio. Eles foram abrigados em delegacias, igrejas ou prédios públicos, onde se sentem mais seguros. Há o temor de ataques a pedras ou armas brancas. Dois estrangeiros chegaram a ser envolvidos em pneus e queimados vivos.

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Charles Zhambani, moçambicano e expulso da favela de Diepsloot, diz que os agressores "nos acusam de nos apoderarmos de seus empregos e das casas que poderiam ser deles", relata ao "Financial Times". O governo, depois de anunciar um reforço do policiamento, continua imobilizado. Criou apenas um grupo de trabalho para estudar soluções à crise. Os primeiros incidentes ocorreram no dia 11, no bairro de Alexandra, quando dois estrangeiros foram mortos e 40 feridos. Quatro dias depois, a polícia disparava contra grupos que saqueavam pequenas lojas pertencentes a estrangeiros. No domingo, a violência se estendeu para o centro de Johannesburgo e para o bairro pobre de Cleveland. Com agências internacionais

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Da revolução

Figura 86 - The Stranger (Orson Wells, 1946)

http://br.youtube.com/watch?v=4_o_HKSk4HY

A revolução, conforme ela aparece já em sua acepção burguesa, supõe um sujeito revolucionário e organizador do conjunto da paisagem social; uma perspectiva imanente, um ponto de vista. Para a realização de suas metas libertárias dependeu sempre, portanto, de que este sujeito represente efetivamente o universal ou se constitua em um elemento que conduza a ele, por força da dialética

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inerente ao processo, a que aquele mesmo sujeito em ação dá causa.

Figura 87 - O sétimo selo (Ingmar Bergman, 1956)

http://br.youtube.com/watch?v=I9mcTCZwC8Y

Mas o sujeito revolucionário, como premissa da revolução – e conforme ele efetivamente se realizou na história –, não foi jamais um mero catalisador no processo e, portanto, não resulta como inerte para efeitos do resultado final, nem pode ser dele facilmente apartado. Não é um acidente, portanto, que a teoria leninista do partido revolucionário tenha se convertido na forma mesmo de organização do Estado soviético e não em um elemento acessório da tomada de poder, que se poderia descartar tão logo 263


ela estivesse efetivada. O regime nasce com o partido e, em certo grau, morre com ele, exatamente porque não se tratava - e não se tratou jamais - de ver o partido como um fator coadjuvante, pois ele era, bem ao contrário, exatamente a realidade segundo uma perspectiva total e completa – aquela do novo Príncipe e de sua concepção original de poder. A teoria da revolução proletária, conforme nós a conhecemos, carece de inumeráveis problemas, não sendo desprezível aquele que decorre de se eleger um eixo ou um vetor como o elemento central de organização da práxis política, de tal modo que se passa a esperar que todo o real venha a se rearranjar e a se redimir a partir dele, como que por efeito de forças gravitacionais presentes no “sistema”. Ora, tais expectativas se demonstraram absolutamente infundadas e a desalienação que se pensou produzir a partir de um campo determinado – a promessa de desalienação universal através da coletivização da propriedade –, não foi mais do que a afirmação das limitações que se procurava superar: o engendramento de um industrialismo socialista; a obsessão produtivista; a obstinação tecnológica e assim por diante. 264


Os pontos que a revolução diferiu, em que pese serem revolucionários, foram colocados em uma perspectiva linear futura, como se pudessem ser resgatados e materializados a qualquer tempo, ainda que mais especialmente naquele tempo em que o primordial já estivesse realizado. Não se trata, contudo, como é possível demonstrar à exaustão, de uma questão de prioridades a se realizarem no devido tempo; de agenda política, estratégias ou táticas, porque o complexo teórico do qual se partiu, na justa medida que é um ponto de vista e uma perspectiva que organiza a totalidade social, confere a cada um de seus elementos um peso relativo específico, como uma concepção estacionária da realidade, em que aquilo que foi postergado já está condenado à subalternidade. Isso nasce da própria natureza da revolução, pois ela é, em primeiro lugar, uma axiologia que se consubstancia através de um discurso ontológico. (...) A história contínua é o correlato indispensável à função fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe escapou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada despertará sem reconstituí-lo 265


em uma unidade recomposta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a forma de consciência histórica -, se apropriar, novamente, de todas as coisas mantidas à distância pela diferença, restaurar seu domínio sobre elas e encontrar o que pode chamar a sua morada. Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito originário de todo o devir e de toda a prática são duas faces de um mesmo sistema de pensamento. O tempo é aí concebido em termos de totalização, onde as revoluções jamais passam de tomadas de consciência. (FOUCAULT, 2004, p. 14)

Figura 88 - O sétimo selo (Ingmar Bergman, 1956) 266


Há, ainda, na teoria da revolução, resíduos de todas as ordens, que cumpre criticar: a) um resíduo romântico, rousseauniano, que infere que a civilização degrada o homem, de tal modo que sua recolocação revolucionária no terreno da história – ou seja, liberto das forças materiais que o oprimem – dá àquele a oportunidade de se apresentar em sua pureza primeira, agora resgatada. O proletário é este puro como sketch e a violência, se existente, é uma força de coerção em sua direção; b) a presença ainda de um herói igualmente romântico, de cuja dinâmica e desenvolvimento depende a própria realização do enredo. Mas que herói é este? Ora, em larga medida, ele é um herói messiânico, na qualidade de portador da revelação e da verdade e, portanto, ao qual cabe render-se incondicionalmente. Mas o messias, até por força da própria resistência que encontra, pode ser um símile daquele que virá ao final dos tempos, o que julga e que separa - a imagem do anjo vingador; c) existe ainda um esteticismo da violência, um drama épico, no qual ela é percebida não segundo suas consequências e potencial destrutivo, mas apenas como força criadora, potência tectônica de redenção e, nesta medida, o mal em nome do bem; o 267


castigo para fins estritamente pedagógicos; a humilhação e o escárnio como a poda da videira, para que ela dê mais e bons frutos; d) a revolução é, ainda, como forçosamente o percebem os aristocratas e todos os bem nascidos, uma revanche e uma vingança e retira daí grande parte de seu primeiro ímpeto. Na medida, contudo, em que mobiliza as forças secularmente reprimidas sem desfazer as condições que as engendraram, a revolução permanece também como um evento natural; um cataclismo que colocou o mundo de pernas para o ar, mas que se esgota tão logo seu desejo de revanche se resolva, ou seja, assim que se consome a energia destrutiva inicialmente desencadeada. Mas o que decorre daqui? Aparentemente tem-se inferido que a revolução está morta e que a razão que advoga suas pretensões só pode ser considerada sinistra, posto que sua realização na história, também ela, conduz à desgraça e à barbárie. Mas a recusa em ir adiante não deixa de ser uma capitulação à ordem e, portanto, uma reafirmação de seu próprio repertório de atrocidades. Mas o que é a revolução? Correntemente se a imagina como o 268


presente se mirando no espelho do futuro. Mas se fosse assim, como ela poderia redimir o aqui e o agora - os elementos revolucionários diferidos e os infinitos sacrifícios em nome do futuro? E o que dizer do tempo decorrido? O problema da revolução, portanto, em grande parte é o da representação daquele Messias de que inevitavelmente parte. O que é o messias e o tempo messiânico? Em que medida estes termos remanescem teológicos? E se fossem consideradas novas possibilidades: qual seria a mensagem se o Messias olhasse para trás e para o passado? Fixar os olhos no passado, obrigá-los a manterem-se abertos: o que se resgata, senão uma visão clara da materialidade da sombra? Nesta condição, qual seria a qualidade da luz 12? Todo o problema pode estar no fato de que a revolução não deva se referir ao futuro na forma de um programa, mas à natureza essencial do presente - o Messias o iluminaria, portanto, para conferir presença e materialidade a seus elementos sombrios. A revolução, nessa hipótese, seria um despertar para o exatamente aqui e para este preciso tempo, em sua realização como essência infernal. O futuro, portanto, resta aberto a homens que 269


descobriram a natureza terrena do inferno. Talvez a revolução seja o despertar para a história, evadindose do ciclo eterno que repete a catástrofe. Esse texto (*) mostra o aspecto do marxismo que mais interessa a Benjamin e que vai permitir que ele esclareça, por uma nova ótica, sua visão do processo histórico: a luta de classes. Mas o materialismo histórico não vai substituir suas intuições “antiprogressistas”, de inspiração romântica e messiânica: vai se articular com elas, assumindo assim uma qualidade crítica que o distingue radicalmente do marxismo “oficial” dominante na época. Por sua posição crítica em relação à ideologia do progresso, Benjamin ocupa de fato uma posição singular no pensamento marxista e na esquerda européia entre as duas guerras. Essa articulação aparece pela primeira vez no livro Rua de mão única, escrito entre 1923 e 1926, no qual se encontra, com o título “Alarme de incêndio”, essa premonição histórica das ameaças do 270


progresso: se a derrubada da burguesia pelo proletariado “não for realizada antes de um momento quase calculável da evolução técnica e científica (indicado pela inflação e pela guerra química), tudo está perdido. É preciso cortar o estopim que queima antes que a faísca atinja a dinamite”. Ao contrário do marxismo evolucionista vulgar - que pode se referir evidentemente a alguns escritos dos próprios Marx e Engels Benjamin não concebe a revolução como o resultado “natural” ou “inevitável” do progresso econômico e técnico (ou da “contradição entre as forças e relações de produção”), mas como interrupção da evolução histórica que conduz à catástrofe. É por perceber esse perigo catastrófico que ele evoca (no artigo sobre o Surrealismo em 1929) o pessimismo - um pessimismo revolucionário que não tem nada a ver com a resignação fatalista e, menos ainda, com o kultur-pessimismus alemão, conservador, reacionário e pré-fascista de Carl Schmitt, Oswald Spengler ou Moeller van der Bruck; 271


o pessimismo está aqui a serviço da emancipação das classes oprimidas. Sua preocupação não é com o “declínio” das elites ou da nação, mas sim com as ameaças que o progresso técnico e econômico promovido pelo capitalismo faz pesar sobre a humanidade (LÖWY, 200, p. 22-23) (*) História e Consciência de Classes, de Luckács. A razão enferma Se tivéssemos que falar de uma doença que afeta a razão, tal doença não deveria ser entendida como algo que tivesse abalado a razão em um determinado momento histórico, mas como algo inseparável da natureza da razão dentro da civilização, tal como vivemos até agora. A enfermidade da razão está no fato de que ela nasceu do impulso do homem para dominar a natureza, e a sua “recuperação” depende da compreensão interna da natureza da doença original, e não de uma cura dos sintomas posteriores. A verdadeira crítica da razão descobrirá necessariamente os substratos mais profundos da 272


civilização e explorará a sua história mais antiga. Desde o tempo em que a razão se tornou o instrumento para a dominação da natureza humana e extra-humna pelo homem – quer dizer, desde suas próprias origens – ela tem se frustrado em sua intenção de descobrir a verdade. Isso se deve ao próprio fato de que a razão se transformou a natureza em um mero objeto, e não pode descobrir sua própria marca em tal objetivação, nos conceitos de matéria e de coisas, tanto quanto nos conceitos de deuses e espírito. Pode-se dizer que loucura coletiva que hoje vagueia pelo mundo, desde os campos de concentração até as reações aparentemente inofensivas da cultura de massas, já estava presente em germe na objetivação primitiva, desde a primeira vez em que, calculadamente, o homem contemplou o mundo como uma presa. A paranoia, a loucura que erige teorias de perseguição logicamente elaboradas, não é apenas uma paródia da razão, mas está de algum modo presente em qualquer forma de razão que consista na simples consecução de objetivos. Assim, o transtorno da razão vai muito além das óbvias deformações que caracterizam a 273


época atual. A razão só pode compreender a sua racionalidade pela reflexão sobre a enfermidade do mundo como algo produzido e reproduzido pelo homem; com essa autocrítica, a razão permanecerá ao mesmo tempo fiel a si mesma, pela preservação e aplicação, sem motivações ulteriores, do princípio de verdade que devemos apenas à razão. A subjugação da natureza se converterá em subjugação do homem, e vice-versa, na medida que este não compreenda a sua própria razão e os processos básicos pelos quais criou e manteve o antagonismo que está a ponto de destruí-lo. A razão só pode ser maior do que a natureza através da compreensão concreta da sua “naturalidade”, que consiste em sua tendência para a dominação, tendência que, paradoxalmente, a aliena da natureza. E assim, também, sendo um instrumento da conciliação, será mais do que um instrumento. As mudanças de direção, os avanços e retrocesso desse esforço, refletem

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o desenvolvimento da definição de filosofia. (HORKHEIMER, 2002, p.176-7) O romance de folhetim

Figura 89 - Ladrões de Bicicleta (Vittorio de Sica, 1948)

O ser humano redunda a olhos vistos na sociedade contemporânea, perde vínculos e objetividade, se vê reduzido a uma relação contingente com a totalidade e com o sistema, e, à medida que o desemprego, o emprego fortuito e desqualificado, os bicos e as tarefas aumentam, progride a noção de que se está 275


no mundo para fazer o que quer seja e sobreviver. Nesta fórmula tão lânguida e exígua já está contido todo o perigo, mesmo que não queiramos admiti-lo: quando o homem se vê reduzido a uma mera virtualidade; submetido às determinações da autoconservação, por oposição a um ambiente hostil; aceitando fazer aquilo que se lhe apresente, de modo a garantir a mera existência, já se encontra presente o fundamento e a essência da solução totalitária. A que missões pode dedicar-se um homem totalmente indiferente com relação a suas ações e tornado sem qualquer substância própria, pelo reiterado operar do modo de produção e reprodução da vida material? A mera inexistência de uma referência estável, o colocar-se em qualquer posição por absoluta ausência de posição, a apreensão do mundo como natureza amorfa e informe prenunciam e configuram a diferença entre a tragédia e o romance de folhetim (o romance em sua forma corrupta), não como gêneros literários, mas como uma mudança substantiva da própria condição existencial do homem. O personagem trágico encontrava a fortuna e o destino como aquilo que é singular e os realizava, 276


representava, nesta mesma condição. Confirmava, portanto, o mundo objetivo como o existente e materializava os valores humanos, ainda que mediados pelo relacionamento com o mito - que como modelos que eram, explicitavam uma estrutura de valores à qual os indivíduos somente poderiam se opor aceitando um custo existencial que, de certo modo, se passava a conhecer a partir da própria tragédia.

Figura 90 - A última gargalhada (Murnau, 1924)

http://www.youtube.com/watch?v=FULPDnOUg3U

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O romance folhetinesco, no entanto, elide o destino e a fortuna (a necessidade), afirmando a existência como uma grandeza estatística e, em certo grau, aleatória, representando-a como uma decorrência da vontade obstinada e, mais precisamente, da vontade que deseja elevar-se socialmente - apagar as diferenças. Realiza assim as sínteses mais bizarras e arbitrárias, as soluções mais esdrúxulas que se pode imaginar, mas, que tornam plástica a realidade, para que o próprio indivíduo se deixe por ela seduzir; para que se entregue e não resista. Esta entrega por meio de uma promessa de elevação e de liberdade é, contudo, tão logo realizada como forma geral e degradada, a própria dissolução da individualidade, porque é a vida como sonho e a objetividade como grandeza diretamente onírica - eliminação da oposição à totalidade, sem a qual o indivíduo é insubsistente. À absoluta ausência de posição e de referências encontradas no real - que são, em si mesmas, contudo, a indiferença como sentença e condenação a uma existência aleatória; a necessidade segundo os padrões da ordem - opõe-se, portanto, o romance de folhetim, igualmente arbitrário em seu enredo e seus resultados, mas 278


como promessa de superação do aqui e do agora; falsa resolução das antíteses societárias e da heteronomia.

Figura 91 - A última gargalhada (Murnau, 1924)

(...) A própria capacidade de encontrar refúgios e subterfúgios, de sobreviver à própria ruína, com que o trágico é superado, é uma capacidade própria da nova geração. Eles são aptos para qualquer trabalho porque o processo de trabalho não os liga a nenhum em particular. Isso lembra o caráter tristemente amoldável do soldado que retorna de uma guerra que não lhe dizia 279


respeito, ou do trabalhador que vive de biscates e acaba entrando em ligas e organizações paramilitares. A liquidação do trágico confirma a eliminação do indivíduo (...). (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 144) A delinquência necessária

Figura 92 - Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971)

O solapamento das políticas que se associaram ao Estado de bem-estar e o desmantelamento do assalariamento, como relação econômica predominante e típica nas sociedades capitalistas, conferem aos fenômenos de intolerância um combustível complementar, na justa medida em que 280


geram mão de obra disponível para todo tipo de atividade, e especialmente para atividade nenhuma. O fenômeno da delinquência, apropriado como algo remotamente associado à ordem, mas que demonstra reiteradamente sua unidade absoluta com ela - a cidade de Paris e seus árabes e mulçumanos que o digam -, é um elemento constitutivo da contemporaneidade. A consequência política dessa evolução é evidente: o retorno do famoso “problema das classes perigosas” do século XIX, com a possibilidade de revoltas coletivas desestabilizadoras (o melhor resultado possível a meu ver) ou a generalização da delinqüência individual. Neste último caso, reencontra-se o princípio de regulação do liberalismo: o medo da delinquência solidariza os dois primeiros terços da sociedade, até mesmo parte do último terço, contra a “ameaça”. A luta contra a “insegurança” torna-se um argumento político tão mais eficaz quanto se pode isolar como “estranhos” os promotores da desordem, ou até o que se chama “pré281


delinquentes”, gente de cor, jovens de conjuntos habitacionais em via de deterioração, etc. Pode-se até abrir um setor de atividade próspera (a empresas de segurança) para empregar uma parte dos pobres a fim que defendam os ricos contra outros pobres. (LIPIETZ, 1991, p.62) A violência da gangue, segundo a abordagem do filme e do jornal - que a representam de maneira ad hoc; subtendida a partir de seu contexto geográfico e geofísico, uma referência espacial com relação à cidade - é explicada na justa medida em que se recusa seu entendimento: o banditismo e a delinquência são elementos constitutivos do real e do regime de produção, porque a forma específica com que este se desenvolve é a da geração de todo vínculo como o aleatório e a redução de tudo que é individual, ao individualismo. A gangue, portanto, não se circunscreve, e sua forma exterior é tão variável quanto as distintas possibilidades expressivas deste fenômeno que é a malaise - um certo mal-estar, uma determinada fadiga, que se resolvem na violência inexplicável. Mas este inexplicável é sua própria natureza; a recusa a 282


qualquer funcionalidade, racionalidade e causalidade - nisso existe uma correspondência verdadeiramente estética entre o real e as manifestações de fúria: o aleatório da existência, a ação sem qualquer relação de causalidade. E tanto mais aleatório, tanto mais irredutível a uma explicação, mais de conformidade com a própria subjetividade: ela, a violência, é a exteriorização do vazio e redução a ele; a imposição da ação como afirmação de um padrão, cujo caráter é a própria ausência de sentido.

Figura 93 - Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971)

Mas quem garante que estes quadros - cuja lei constitutiva é a anomia - se manterão dentro dos limites “civilizados” da democracia ocidental? Quem assegura que eles não possam ter “usos políticos 283


alternativos”? Pensado ainda sob um outro ponto de vista, mais realista, conforme ensina Hannah Arendt: em um mundo que já se propôs a executar massacres administrativos, burocráticos, sistemáticos; que desenvolveu métodos limpos e rápidos de morte para milhões, que destino se reserva aos redundantes?

Figura 94 - Laranja Mecânica (Stanley Kubrick, 1971)

O horror deste raciocínio, desgraçadamente, não pode ser colocado à parte, porque a reprodução societária o reafirma reiteradamente. A não funcionalidade absoluta, quando confrontada com os termos de uma sociedade organizada segundo a 284


quintessência da filosofia pragmatista, já é uma sentença velada de morte, de que as demandas pelo endurecimento da lei são apenas o eterno prelúdio que enunciam como meta, exatamente aquilo a que a realidade já dá cumprimento cuidadoso e metódico. A indiferença do mundo pretensamente civilizado para com a África em particular e o terceiro mundo em geral, o que revela de sua própria natureza? Não existe, difuso nas mentalidades, a noção de um quase humano, incompletamente humano, que a um tempo é objeto de misericórdia e de descaso. Que são as ações humanitárias, além da conjunção de bons negócios e a redenção da consciência coletiva - uma forma moderna de indulgência? Para os paladinos da ordem, a miséria em qualquer de suas configurações pode ser explicada, racionalizada, teorizada. Mas de um ponto de vista que vai para além da racionalidade propriamente técnica, ela permanece e permanecerá abjeta, não por sua própria condição, que já foi quase universal na era pré-capitalista, mas porque ela não é mais necessária. Essa violência sistêmica, que condena milhões, desnecessariamente, a uma vida 285


delapidada, retorna ao social na forma de uma violência assistemática e irracional, mas como todos os atributos da necessidade. O aleatório da violência da gangue é, portanto, uma grandeza social, elemento correlato da vida que se afirma como fenômeno meramente estatístico e quantitativo. A ordem econômica e o infra-humano A iniquidade socioeconômica, ainda que não sendo propriamente uma novidade, apresenta-se potencializada no mundo contemporâneo e, em particular, em sua fase “globalizada”. Esta potencialização decorre das proporções que assumiram as diferenças entre ricos e pobres; entre países desenvolvidos e terceiro mundo; assim como da possibilidade abstrata (técnica, tecnológica) de suplantar o atual estado de coisas. A permanência da miséria, em um mundo em que ela não é economicamente, tecnicamente necessária, a converte em um absurdo e um ônus, que requer atitudes compensatórias, ou seja, é preciso que intervenham elementos de racionalização que tornem aceitável o despropósito.

286


Figura 95 - Kids (Larry Clark, 1995)

http://www.youtube.com/watch?v=ksloiIQKYec

O operar do mercado, a mão invisível, na sua condição supostamente imparcial, não política, garantindo eficiência e eficácia, presta-se maravilhosamente bem aos requisitos da racionalização, preenchendo de lógica desde as condições nefastas das populações africanas, até a demissão de um vizinho, que não se mostrou suficientemente competitivo, qualificado, etc., relativamente aos requerimentos capitalistas. O mercado transforma-se, desse modo, em uma grandeza moral, muito mais do que em um ente econômico. 287


Este deus redivivo; laico, pagão, burguês e de entranhas jacobinas (na fase do terror), armado dos critérios de eficiência e economicidade, retribui a cada qual conforme sua contribuição para o jogo capitalista, o que significa dizer que para os não funcionais não há possibilidades, além da caridade pública ou da indiferença e insensibilidade gerais. Esse deus sem igrejas, mas amplamente cultuado, e seus seguidores fiéis, do alto de sua lógica maquinal, de coisa-capital, virtualmente eliminam a hipótese de solidariedade e identificação, contribuindo enormemente para a atualização do arcaico. Cabe, então, indagar: qual é o custo macro social de fenômenos recorrentes contemporâneos, como o downsizing, a reengenharia, terceirização, contratos precários, desemprego disfarçado, o bico institucionalizado? Como se compreende o destino daquele que deixou de estar incluído, para deslizar para o mundo economicamente informal? O que estamos dispostos a fazer, para nos mantermos sobre a superfície? Quando se imputa e impinge ao indivíduo, a responsabilidade solitária, por fenômenos que são verdadeiramente sociais, macroeconômicos - como o desemprego crônico e 288


estrutural -, não estamos preparando, no futuro, o refluxo de tal excrescência e estripulia teórica e política, sob a forma de ressentimento e ira contra a própria sociabilidade? A consciência pequeno-burguesa parece se reconfortar no fato de que o apartheid mundial que se vem produzindo, a largos passos, não como fenômeno de além-mar e distante, mas como realidade quotidiana e diuturna, jamais irá cobrar o seu devido preço de cada um de nós. A racionalização do livre “funcionamento dos mercados”, de sua eficiência alocativa e distributiva, como os amuletos e patuás, por ora, nos “protege” do contato com a realidade socioeconômica. Encantados com o elixir de nosso próprio egoísmo e indiferença supomo-nos intocáveis pelo barbarismo que decorre do operar da ordem. Será este mesmo o futuro que nos está destinado?

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Figura 96 - Kids (Larry Clark, 1995)

http://www.youtube.com/watch?v=eKii2Bvpat0

Enquanto os países avançados buscam policiar o movimento dos pobres do mundo e excluí-los, a instabilidade das noções de cidadania e de comunidade política tornarse-á cada vez mais evidente. Os Estados avançados não serão capazes de usar efetivamente, como princípio de exclusão, a demanda de homogeneidade cultural, pois eles são étnica e culturalmente pluralistas. A exclusão será um mero fato, sem qualquer outra lógica ou legitimidade a não ser a de que os Estados temem as conseqüências da 290


migração em grande escala. Um mundo de riqueza e pobreza, com diferenças aterrorizantes e enormes entre os padrões de vida das nações mais ricas e das mais pobres, não é provável que seja um mundo seguro. Os trabalhadores industriais dos países avançados temem o trabalho barato dos trabalhadores bem-educados e qualificados da camada superior dos países em desenvolvimento como Taiwan ou Malásia. Os pobres do Terceiro Mundo se vêem como abandonados pelo mundo rico, que negocia cada vez mais consigo e com uns poucos novos países industrializados favorecidos. Ambos os grupos são colocados dentro dos limites dos Estados, forçados a encarar sues países como comunidades de destino e a buscar soluções dentro dos limites de sua residência forçada. (HIRST; TRHOMPSON, 1998, p.282) As possibilidades distópicas da redundância Na era de um capital repaginado, tornado pósmoderno e arrancado da história, quase tudo que se 291


afirma no texto principal é devidamente suprimido nas entrelinhas, na inação e na impossibilidade mesmo de uma ordem, que transforma homens em contingências, redundâncias que respiram e que, portanto, poderiam deixar de existir sem que daí grande prejuízo pudesse advir. Não chega nem mesmo a haver oposição no velho sentido das lutas capital versus trabalho, pois os redundantes sequer têm um papel que potencialmente poderia apresentar alguma negatividade para a ordem. Não se trata nem mesmo, talvez, de um lumpem proletariado, no sentido marxista do termo, uma vez que parece não haver possibilidades de vínculos entre os redundantes e o emprego. (...) Uma quantidade importante de seres humanos já não é mais necessária ao pequeno número que molda a economia e detém o poder. Segundo a lógica reinante, uma multidão de seres humanos encontrase assim sem razão razoável para viver neste mundo, onde, entretanto, eles encontraram a vida.

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Para obter a faculdade de viver, para ter os meios para isso, eles precisariam responder às necessidades das redes que regem o planeta, as redes dos mercados. Ora, eles não respondem – ou antes, são os mercados que não respondem mais à sua presença e não precisam deles. Ou precisam muito pouco e cada vez menos. Sua vida, portanto, não é mais “legítima”, mas tolerada. Importuno, o lugar deles neste mundo lhes é consentido por pura indulgência, por sentimentalismo, por reflexos antigos, por referência ao que por muito tempo foi considerado sagrado (teoricamente, pelo menos). Pelo medo do escândalo. Pelas vantagens que os mercados ainda podem tirar disso. Pelos jogos políticos, pelas jogadas eleitorais baseadas na impostura de ver em curso uma “crise” provisória que cada campo pretende ser capaz de estancar. E depois, determinado bloqueio atávico das consciências impede de aceitar de imediato uma implosão. É difícil admitir; impensável declarar que a presença de uma multidão de 293


humanos se torna precária, não pelo fato inelutável da morte, mas pelo fato de que, enquanto vivos, sua presença não corresponde mais à lógica dominante, uma vez que já não dá lucro, mas, ao contrário, revela-se dispendiosa, demasiado dispendiosa. Ninguém ousará declarar, numa democracia, que a vida não é um direito, que uma multidão de vivos está em número excedente. Mas num regime totalitário, será que não se ousaria? Já não se ousou? E, embora deplorando, será que já não admitimos o princípio, quando a uma distância igual àquela de nossos locais de férias a fome dizima populações? (FORRESTER, 1997, p. 27-8) Será que já não se admite a eliminação dos redundantes - em princípio -, na justa medida que se aceita como natural a morte de milhões logo ali, a algumas horas de voo; no bairro ao lado, na favela. O que difere os pobres diabos daqui e dali e os judeus húngaros dos poloneses? E a compressão espaçotemporal, que deveria ser libertária e desvincular-nos de nossas limitações locais, tribais, etc.? Será que ela 294


não cumpre igualmente o papel de tornar os “incluídos” indiferentes quanto ao destino dos “excluídos”; será que ela não reforça um certo narcisismo, que permite ir ao safári logo ao lado do campo de refugiados, fazer sexo com menores em várias partes do mundo subdesenvolvido, e assim por diante? Esta redundância para fins da reprodução da ordem não se limita, contudo, aos deserdados no interior das fronteiras nacionais. Há em construção uma assimetria na própria ordem internacional, que exclui de pronto a quase totalidade daqueles que, no interior de fronteiras determinadas, não participam do processo de internacionalização econômica, nos moldes em que ele vem se apresentando no período posterior à década de 1970 13: A concentração das atividades econômicas internacionais no fim do século XX aparece, também, quando se considera a distribuição da parte que cabe aos países mais atrasados. Como nota Rogolski, a “globalização” opera uma verdadeira fratura entre uma dezena de países em desenvolvimento, que são 295


admitidos nos mercados internacionais de capitais e todos os demais. Nos anos 90, tem sido muito elevado o grau de concentração dos investimentos diretos realizados nos países em desenvolvimento. Apenas dez países responderam por nada menos que 77,3% do total de investimentos recebidos por 147 países em desenvolvimento em 1995. Os cinco principais países – China, México, Malásia, Cingapura e Brasil, nessa ordem – receberam 60,6% do total. Só a China respondeu por 37,6%. Na outra ponta, os 48 países menos desenvolvidos receberam, em 1995, apenas US$ 1,1 bilhão sob a forma de investimento direto estrangeiro, 1,1% do total recebido pelo conjunto dos países em desenvolvimento. Note-se, finalmente, que excluída a China, a participação dos países em desenvolvimento no total mundial de ingressos de investimento direto cresceu de forma modesta na primeira metade dos anos 90, em comparação com o registrado em 198489 (...). 296


Diante desses dados, há quem prefira referir-se a “globalização excludente” ou “globalização concentradora”, oxímoros verbais que só contribuem para aumentar a confusão reinante na caracterização do quadro internacional. Não é evidente que a expressão “globalização” perde o sentido quando não se refere a um processo includente? Mas se “globalização includente” é um pleonasmo, “globalização excludente” só pode ser uma contradição em termos. (BATISTA JR., 1998, p. 154) Não se pode esquecer, que à semelhança das sociedades escravistas - onde o trabalho escravo determinava a natureza e valoração mesma do trabalho livre -, em uma sociedade de redundantes, o trabalho ocupado encontra-se determinado em sua dinâmica pelo termo que se lhe opõe. Nossa sociedade, portanto, é uma sociedade onde o medo e a insegurança estão permanentemente presentes, não sendo mitigados por aquelas velhas instituições, que o Estado do bem-estar construiu e que a hegemonia neoliberal pôs por terra. 297


Que este fato passe completamente despercebido para os neoliberais ou que eles se mostrem indiferentes a ele, já mostra a natureza mesma das teorias que advogam. O arquétipo do mais forte, daquele que supera a dor e o medo, que se mortifica à meta, a qual se apresenta como absoluta, sem grau ou transigência, não é uma propriedade intelectual do fascismo (o que vale igualmente para o masoquismo que a ele se associa, e que não pode deixar de ser compensado por um sadismo de igual magnitude). Não admira, portanto, que a estatística socioeconômica não cause rubor a quase ninguém, especialmente no interior de governos francamente neoliberais ou naqueles que o são de modo relativamente acanhado, quando não dissimulado.

Figura 97 - Amen (Costa-Gravas, 2002)

http://br.youtube.com/watch?v=qoHMm5vctIM 298


O fato é que, os arautos da ordem, seus beneficiários e seguidores por conveniência ou convicção não podem ver a condição humana como algo que se estenda para além dos limites de seu próprio mundo. A impessoalidade e racionalidade totais do mercado, pregadas pelo neoliberalismo, como sendo a própria lógica econômica, implicam e culminam em concepções cuja natureza o passado já cuidou de revelar. A indignação com as crueldades cometidas torna-se tanto menor quanto menos semelhantes aos leitores normais são as vítimas, quanto mais morenas, “mais sujas”, mais próximas do dago elas são. Isso depõe tanto da atrocidade, quanto do espectador. Talvez o esquematismo social da percepção no caso dos antissemitas seja de tal feitio que eles não vejam de todo os judeus como seres humanos. A asserção tão frequente de que selvagens, negros, japoneses parecem animais, por exemplo macacos, já contém a chave para o pogrom. A possibilidade deste último é decidida no instante em que o olhar de um animal mortalmente ferido encontra 299


o homem. A obstinação com que desvia de si tal olhar – “é apenas um animal” – repete-se sem cessar nas crueldades cometidas contra seres humanos, nas quais os autores precisam confirmar sempre de novo para si mesmos aquele “apenas um animal”, porque mesmo diante de um animal nunca puderam acreditar nisso por completo. Na sociedade repressiva, o próprio conceito de homem é uma paródia de imagem e semelhança. Faz parte do mecanismo de “projeção pática”, que os detentores do poder só percebam como humano o que é sua imagem refletida, ao invés de refletirem o humano como o que é diferente. O assassinato é, assim, a tentativa sempre repetida de, através de uma loucura maior, distorcer a loucura dessa percepção falsa, transformando-a em razão: o que não foi visto como ser humano, e, no entanto, é um ser humano, torna-se uma coisa, para que não possa mais refutar por nenhum impulso o olhar maníaco. (ADORNO, 1993, p. 91grifos meus) 300


Dormindo com o inimigo (Joseph Ruben, 1991)

Pesquisas feitas ano após ano pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), divulgadas por meio de relatórios sobre o Desenvolvimento Humano, fornecem-nos dados assustadores. Chega à casa dos 1,5 bilhão, por exemplo, o número de pessoas que estão economicamente piores do que há dez anos, ao passo que cerca de trezentos multimilionários possuem renda superior à acumulada por 2,3 bilhões de habitantes da Terra. Cerca de 17 milhões de pessoas morrem a cada ano de doenças como malária, diarreia ou tuberculose. Por volta de 800 milhões não comem o suficiente e 301


aproximadamente 500 milhões sofrem de subnutrição crônica. Quase um terço da população mundial (1,3 bilhão de pessoas) vive na pobreza. Dos US$ 23 trilhões que constituem a soma dos Produtos Nacionais Brutos (PNBs) no mundo, cerca de 78% estão com as nações industrializadas, um seleto grupo de quinze ou vinte países. As nações em desenvolvimento, onde vivem 80% da população mundial, ficam com apenas US$ 5 trilhões do bolo. (NOGUEIRA, 2001, p. 71) Como veremos, em um intervalo de cinquenta anos, a ordem que hoje construímos e justificamos racionalmente, economicamente? Qual seria nossa reação se, acordados de uma espécie de sono hipnótico, nos deparássemos face a face com os produtos desta mesma ordem, cujos fundamentos desposamos e sobre os quais edificamos nossa tranquilidade de cidadãos “comuns”? Porque não desconfiamos da normalidade como uma variante do patológico? Afinal de contas, o conceito estatístico de normal é relativo à frequência e à ocorrência de uma determinada variável, não um juízo intrínseco 302


de valor. Porque não nos opomos à realidade, mas ao contrário nos deixamos invadir por ela, como uma potência a que não se pode opor resistência? Hoje em dia o nazismo sobrevive menos por alguns ainda acreditarem em suas doutrinas – e é discutível inclusive a própria amplitude em que tal crença ocorreu no passado – mas principalmente em determinadas conformações formais do pensamento. Entre essas enumeram-se a disposição para adaptar-se à ordem vigente, uma divisão com valorização distinta entre massa e lideranças, deficiência de relações diretas e espontâneas com pessoas, coisas e idéias e convencionalismo impositivo, crença a qualquer preço no que existe. Conforme seu conteúdo, síndromes e estruturas de pensamento como essas são apolíticas, mas sua sobrevivência tem implicações políticas. Este talvez seja o aspecto mais sério do que estou procurando transmitir. (ADORNO, 1995, p. 62-63)

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A guerra justa A queda do muro de Berlin coloca-nos como questão intelectual incontornável a investigação dos limites práticos e teóricos, concernentes à transcendência da ordem, do aqui e do agora. Aquele evento, além da importância histórica e geopolítica evidentes, adquiriu o caráter de marco simbólico, como se estivesse decretado o fim da utopia socialista. Mas não é apenas disso que se trata; a questão não se resume apenas à crise do marxismo e das esquerdas: encontra-se desde então, sob suspeição e análise crítica, a própria noção de movimento, desenvolvimento, mudança. Com o fim do experimento socialista a história parece ter resultado como algo sobre o qual o homem não tem ação, tendo esta mesma história, por fim, evoluído para um ponto de máximo, o que resultaria no seu fim no sentido de que não haveria formas de organização superiores ao capitalismo e à democracia liberal. Os acontecimentos de 1989 assinalam uma mudança decisiva no Zeitgeist: a história faz ziguezague. Não há como extrair daí lições simplistas, mas é evidente que o radicalismo 304


e o ideal utópico que o sustenta deixaram de ser forças políticas ou mesmo intelectuais importantes. E tampouco aplica-se isto exclusivamente aos adeptos da esquerda. A vitalidade do liberalismo encontra-se em seu flanco esquerdo, que funciona como seu crítico e cobrador. Sempre que a esquerda renuncia a um sonho, o liberalismo perde chão, torna-se flácido e instável. (JACOBY, 2001, p.23)

Figura 98 - Adeus, Lênin! (Wolfgang Becker, 2003)

http://br.youtube.com/watch?v=i7EB47ENNV0 305


O recuo da mentalidade utópica e transformadora, ainda que perfeitamente configurado a partir dos eventos de 1989 ocorria, contudo, já em período anterior. A rigor, desde a assinatura do pacto de não agressão entre a Alemanha nazista e a União Soviética observa-se o crescimento de um sentimento de que, à parte das diferenças evidentes, haveria semelhanças não desprezíveis entre os dois regimes, as quais se consubstanciariam, essencialmente, no conceito de totalitarismo. A partir da convergência entre nazismo e socialismo, gerada ou apropriada por tal conceito, erigiu-se um respeitável conjunto de obras e autores, dos quais valeria citar com especial ênfase Hannah Harendt, Hayek e Karl Popper (RUSSELL, 2001, p. 65). Não tardou, no entanto, para que esta equivalência entre comunismo e nazismo, sob o conceito de totalitarismo, se transmutasse em uma negação da transcendência enquanto tal, uma vez que se considerou que esta levaria inexoravelmente a soluções de caráter totalitário. Os textos sobre totalitarismo pressupõem uma equivalência aproximada entre o nazismo e o comunismo, sistemas 306


totalitários empenhados em aprisionar a vida e o pensamento numa camisa-de-força. Entretanto, na medida em que marxismo, e não fascismo, era o objeto de estudo, verificou-se uma mudança de ênfase, e talvez de lógica. O pluralismo era celebrado em polêmica com a esquerda, e a denúncia do sistema totalitário foi transformada imperceptivelmente na denúncia da utopia, como se houvesse uma vinculação óbvia e necessária (...). (JACOBY, 2001, p. 66)

Adeus, Lênin! (Wolfgang Becker, 2003)

Dentro deste contexto, a tese de Fukuyama parece não ser mais do que uma espécie de signo dos limites que encontra nossa intelecção, quando se 307


debruça sobre o passado imediato e as possibilidades de nosso futuro: o fato é que nossas mentes parecem ter atingido certo limite para a reflexão, algo que se cristaliza na sensação difusa de que o mundo deixou de girar, ou, se o faz, produz sempre o mesmo resultado e que tal resultado é o único que deveríamos efetivamente desejar, sob pena de ver se instalar entre nós a barbárie totalitária. Do ponto de vista de um futuro diferente, o discurso dominante atual traduz uma concepção categoricamente fechada da história. De acordo com esse discurso, após a queda do “socialismo realmente existente” e o triunfo do sistema atlântico/ocidental, pode-se afirmar, de uma vez por todas, o fim das utopias, o fim da possibilidade de mudança de paradigma civilizacional. Nossa época foi a primeira, desde muito tempo (o início do século XIX?) que ousou, simplesmente, proclamar o “fim da história”: o célebre ensaio de Fukuyama não fez mais do que travestir em linguagem pseudo-hegeliana a convicção, profundamente enraizada, das elites 308


dominantes na perenidade de seu sistema econômico e social, considerado não só infinitamente superior a qualquer outro, mas o único possível, o horizonte intransponível da história, etapa final e definitiva da longa marcha da humanidade. O que não quer dizer, para o discurso hegemônico atual, que o progresso científico, técnico, econômico, social, cultural - não continue. Ao contrário, ele passará, dizem, por avanços formidáveis, mas no âmbito, fixado de uma vez por todas, da economia capitalista/industrial e do sistema dito “liberal-democrático”. Em poucas palavras, o progresso na ordem, como havia previsto tão bem Auguste Comte. (LÖWY, 2005, p. 154-155) Mas esta maneira de colocar as coisas encerra uma contradição insolúvel, para todos aqueles que não estão subjetivamente aparelhados para suportar e aceitar a ordem. O filosofar que se lhes associa está absolutamente impregnado, portanto, pela ferida desta contradição e são, em suas manifestações individuais, reações distintas ao mesmo problema. A 309


razão uma vez desterrada, recolheu-se sobre si mesma e nega, critica, um mundo do qual não pode fazer parte. Mas esta recusa, longe de fazê-la menor, a torna, como nunca, apta a relançar-se: depurada de sua pretensão cientificista, arrancada do ventre de que nasceu - a filosofia da história - volta a ser aquilo a que sempre esteve predestinada, ou seja, humanismo radical. O choque totalitário de que renasce a razão é o ver-se-no-espelho do projeto da modernidade, e a porta de saída do terror desta visão não está exatamente no cinismo e no deboche - ainda que como estratégias sejam legítimos –, mas seguramente em sacar da razão sua pretensão de divinização. A razão não tem mais legitimidade para flertar com o absoluto, para estatuir o futuro, com fundamento em desenvolvimentos necessários do presente e do passado. Ela pode, contudo potencializar a compreensão do homem para os limites de sua condição, realizando por intermédio desta demarcação, a dignidade que lhe é própria. A libertação do real é, por assim, dizer um ganho na luta contra a própria realidade, em sua forma imediata e em sua imutabilidade aparente. É uma 310


gratuidade que advém da guerra justa, entre um homem que jamais nasce nas condições de existência que lhe são próprias e adequadas, e um mundo que clama por redenção.

Figura 99 - Adeus, Lênin! (Wolfgang Becker, 2003)

http://br.youtube.com/watch?v=AB-ANgOkgwo

(...) O indivíduo resistente se oporá a qualquer tentativa pragmática de conciliar as exigências da verdade e as irracionalidades da existência. Em vez de sacrificar a verdade pela conformidade com os padrões predominantes, ele insistirá em expressar em sua vida tanta verdade quanto possa, tanto na teoria quanto na prática. Terá uma vida conflituosa; deverá estar 311


pronto para correr o risco de uma extrema solidão. A hostilidade irracional que o inclinaria a projetar suas dificuldades interiores sobre o mundo é superada pela paixão de realizar aquilo que o pai representava para ele na sua imaginação infantil, a saber, a verdade. Esse tipo de jovem - se é que se trata de um tipo - leva a sério aquilo que lhe foi ensinado. Não desiste de confrontar persistentemente a realidade com a verdade, de revelar os antagonismos entre os ideais e as realidades. A sua própria crítica, teórica e prática, é uma reafirmação negativa da fé positiva que teve quando criança. (HORKHEIMER, 2002, p 115-6) Globalização e o dom de iludir A palavra “globalização” é altamente ideológica, acho eu, e, como tal, refere-se, na verdade, a algumas coisas bastante diferentes. Em um nível, significa simplesmente que, com o colapso da União Soviética e do sistema de Estados que ela 312


representava, só há atualmente um único sistema, o do capital imperialista, e será melhor que todos aceitem esse fato. Os que louvam a “globalização’” não dizem isso de forma assim tão brutal, mas é o que têm em mente. Em segundo, a palavra diz respeito à mobilidade imensa do capital e dos bens; ao papel cada vez maior do comércio de importação/exportação nas contas nacionais; ao poder das comunicações e das tecnologias de transporte – que hoje possuem um alcance global sem paralelo; ao enorme poder do capital financeiro e especulativo sobre e acima do capital industrial, cruzando fronteiras nacionais; à capacidade dos bens culturais centralmente produzidos de ladear os sistemas nacionais de educação e informação, através de transmissões de longa distância e das rodovias de informação; à ascensão dos sistemas de produção e administração nos quais o processo de produção em si pode ser fragmentado e localizado em países diferentes e/ou rapidamente transferido 313


para um e para outro; assim por diante. Em terceiro, o termo globalização é também um eufemismo para o fato de que um punhado de arranjos institucionais imperialistas – o Banco Mundial, o FMI, o GATT etc. – está agora determinando a formação de políticas nacionais no denominado Terceiro Mundo. Em quarto, a palavra cobre a penetração rápida de todos os tipos de produção do capitalismo – e, portanto, do mercado mundial. O Banco Mundial calculou que, no fim do século XX, apenas 12% da produção econômica do mundo estarão fora do mercado capitalista global como tal. (AHMAD, AIJAZ, 1999, p.110-111)

Figura 100 - A dama de Shanghai (Orson Wells, 1948) 314


O questionamento da noção de transcendência, ainda que de origem pregressa, acaba por se imbricar na atualidade, de maneira inexorável, com a intelecção que se faz acerca do fenômeno da globalização 14 ou, dentro de uma tradição mais à francesa, de mundialização15. Dito de outro modo, a globalização como tema é a vertente sociológica, econômica, “científica” dos mesmos impasses em que se encontra a filosofia. O desafio que a noção de globalização nos impõe, portanto, não está restrito a este ou aquele campo do conhecimento, não é um tema entre outros. A noção de globalização é o lócus em que a modernidade se debate, buscando reconstruir sua autoimagem, fraturada pelos horrores que se revelaram à contemporaneidade. O desenvolvimento do conceito e sua categorização dependem, de maneira insuperável, do modo como se compreende e valora o fenômeno de dissolução das sociedades socialistas, assim como a natureza política intrínseca do socialismo, ou seja, seu caráter totalitário ou não. Dependendo da leitura que se faça desses aspectos, os desenvolvimentos teóricos quanto à globalização e a 315


carga valorativa associada terão caráter distintos, quando não diametralmente opostos.

Figura 101 - A dama de Shanghai (Orson Wells, 1948)

Considerando tais arrazoados, não parece possível, portanto, abordar a globalização como um fato ou um fenômeno, um desenvolvimento natural do capitalismo, um desdobramento que toda história ansiou por produzir. Do mesmo modo que as políticas envolvendo a construção do Estado de bemestar não são naturais ou antagônicas ao capitalismo - constituindo-se no produto direto e necessário de uma determinada hegemonia, de uma vontade política específica (o pacto keynesiano-fordista) -, a globalização não pode ser explicada por uma espécie 316


de ontologia decaída e degenerada 16. O esforço que se faz, contudo, para naturalizar seu desenvolvimento mostra mais uma vez a imensa capacidade do dom de iludir e o fascínio aterrador do verossímil. Neoliberalismo I A globalização envolve e implica uma supremacia do ideário e das práticas liberais - ainda que devidamente degradados para se adaptarem aos tempos 17 -, com a diferença essencial de que, agora, o liberalismo não se desenvolve por oposição a uma sociedade estamental, mas sim ao socialismo e a uma espécie determinada de doutrinas e práticas burguesas, de que o keynesianismo é o representante privilegiado - justamente por ter sempre sido considerado pelos restauradores neoliberais uma subvariedade de comunismo. A propensão conciliatória do keynesianismo, seu compromisso político, que não deixa de ser uma tentativa de colocar-se a meio termo entre o socialismo e o capitalismo sem regras ou peias, será uma vítima de primeira hora do globalismo.

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O keynesianismo forneceu os alicerces ideológicos e políticos para o compromisso da democracia capitalista, e ofereceu a perspectiva de que o Estado seria capaz de conciliar a propriedade privada dos meios de produção com a gestão democrática da economia. Nas palavras do próprio Keynes, “não é a propriedade dos meios de produção que convém ao Estado assumir. Se o Estado for capaz de determinar o montante agregado de recursos destinados a aumentar esses meios e a taxa básica de remuneração aos seus detentores, terá realizado tudo que lhe compete”. O controle democrático sobre o nível de desemprego e a distribuição de renda tornam-se os termos do compromisso que viabilizou o capitalismo democrático. (PRZEWORSKI, p. 244)

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Figura 102 - Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968)

http://br.youtube.com/watch?v=qFdGlS5l_3I

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O liberalismo contemporâneo - que combate ao mesmo tempo o keynesianismo e as reminiscências socialistas -, que é uma das bases teóricas e conceituais do no fenômeno da globalização, não tem qualquer recorte libertário ou transformador. Estamos, a rigor, diante de um movimento claramente regressivo, desde que se tome como ponto de vista algo distinto do olho agudo, e escrutinador de oportunidades de lucro, que têm os capitalistas. A partir da década de 1970 assistimos a uma contra-revolução burguesa, que visa restaurar as velhas condições de exploração em um mundo novo, high tech, de alta conectividade, velocidade, fluência de identidades, all over the world, twenty four hours a day. E ainda que todos os slogans se pronunciem em inglês, a degradação das condições de vida da população trabalhadora se pratica em idioma nativo, os quais, ainda que bárbaros, flexionam e declinam maravilhosamente bem a língua do capital.

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Figura 103 - Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968)

Mas a organização da sociedade humana, sob o ideário liberal, tanto em termos políticos quanto econômicos, consiste em um ápice evolutivo, a partir do qual nenhuma superação é efetivamente possível? Estamos condenados não apenas aos contornos capitalistas de nosso mundo, mas também ao ressurgimento de um ultra-liberalismo econômico, que admitiu como hipótese a naturalização da desigualdade e a inevitabilidade da exclusão social, da pobreza e das relações precárias, que tendem a tornar a vida das grandes massas populares uma agonia silenciosa? Seremos obrigados a suportar a fartura dilapidadora, antiecológica e altissonante de 321


minorias abastadas, massacradas, também elas, ainda que em condição contrária, por uma espécie de consumismo ensandecido 18?

Figura 104 - Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968)

Estamos fadados à sujeição a um estandarte darwinista mal ocultado, que se em encontra no cerne mesmo do impulso incontornável para um individualismo mesquinho e um narcisismo consumista, para o frenesi do desenvolvimento tecnológico e para as contínuas evoluções da gerência moderna e seus métodos de organização do trabalho? E o que dizer do esvaziamento da vida política, que rápida e firmemente abandonou o debate substantivo, para converter-se em uma espécie de espetáculo vazio, que de sua origem e expectativas grandiosas, mantém apenas o jogo 322


envolvendo o escrutínio popular, este último submetido a um claro desencanto? A democracia através do meio de comunicação

Figura 105 - Cidadão Kane (Orson Wells, 1941)

http://br.youtube.com/watch?v=zyv19bg0scg

O esmagamento da individualidade - imolada no mesmo altar em que se sacrificam as possibilidades de autodeterminação - é também a essência de uma outra grande questão contemporânea, a saber, a avaliação do grau de democracia que se pratica nas sociedades democráticas. A mera formalidade normativa, ainda que pregada como suficiente e 323


superior a qualquer tentativa de estabelecimento de uma democracia substantiva - argumento presente especialmente em Hayek e Fukuyama -, não soluciona adequadamente a questão da liberdade, pois é possível atingir regimes altamente autoritários, no qual, a bem da verdade, o escrutínio popular serve justa e unicamente aos propósitos dos depositários do poder. O recurso aos meios de comunicação de massa como instrumento privilegiado do jogo político, não fazem senão acrescer problemas ao cenário. (…) A crise atual das democracias burguesas está ligada a uma crise das condições que determinam a própria apresentação dos governantes. As democracias apresentam os governantes de modo direto, em carne e osso, diante dos deputados. Seu público é o Parlamento. Com o progresso dos aparelhos, que permite a um número indefinido de ouvintes ouvir o discurso do orador no mesmo momento em que ele fala, e que torna possível difundir pouco depois sua imagem diante de um número indefinido de espectadores, o essencial torna-se a 324


apresentação do homem político diante do próprio aparelho. Essa nova técnica esvazia os Parlamentos, assim como esvazia os teatros. O rádio e o cinema não modificam somente a função do ator profissional, mas, do mesmo modo, a função de quem quer que, como no caso do governante, se apresente diante do microfone ou da câmera. Levando-se em conta a diferença entre os objetivos buscados, com relação a isso o intérprete do filme e o homem de estado sofrem transformações paralelas. Elas acabam, em certas condições sociais determinadas, por aproximá-los do público. Donde uma nova seleção, uma seleção diante do aparelho – aqueles que saem vencedores são a estrela e o ditador. (BENJAMIN, 1969, p. 32)

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Figura 106 - Ronald Reagan Commercial break for Boraxo

http://www.youtube.com/watch?v=ghUy5WhjIHk

À luz, portanto, daquilo que parecem ser elementos inerentes às sociedades burguesas é difícil aceitar o entusiasmo e encantamento neoliberal de um Fukuyama, que deriva do capitalismo tornado potência autônoma e inconteste, o império da ordem democrática e anti-totalitária, fazendo da liberdade uma espécie de imposição da época e da própria ordem capitalista. Além das questões propriamente filosóficas e existenciais, é preciso considerar fatores 326


sociopolíticos específicos: quem pode, de fato, desfrutar dos benefícios da evolução material e tecnológica que se vem observando? Quem encontra na democratização ocidental a realização de uma condição humana efetivamente mais elevada, realizando potencialidades latentes?

Figura 107 - The Killers (Don Siegel, 1964)

Não se pode, ainda, apenas tangenciar a questão proposta por Benjamin no fragmento acima. A política, também ela, envolve e implica mediações. Quando ela se torna, portanto, um fenômeno de massa, o que impõe a presença da mass media, a sua natureza é alterada e, em decorrência, ela pode se submeter a práticas e técnicas que foram 327


abusivamente utilizadas pelos ideólogos fascistas e que, naturalmente, bons marqueteiros não desconhecem, mesmo que seja apenas através de seu agudo instinto profissional e desmesurado senso de remuneração. *** Celebridades de rádio e TV viram fenômeno eleitoral Radialistas, apresentadores de televisão e artistas que resolvem entrar na vida pública se tornaram as meninas-dos-olhos das legendas Eugênia Lopes Tratados como celebridades pelos ouvintes e espectadores, os radialistas, apresentadores de televisão e artistas que resolvem entrar na vida pública são as meninas-dos-olhos de partidos políticos. Assim como os evangélicos, eles se transformaram em fenômeno eleitoral e passaram a ser assediados pelas cúpulas partidárias, que estão de olho no caminhão de votos que trazem consigo. 328


Afinal, tanto evangélicos quanto radialistas, apresentadores de TV e artistas têm uma tribuna permanente para fazer suas campanhas. “Fica muito difícil nós concorrermos com esses caras”, diz o deputado Carlito Merss (PT-SC), recémeleito prefeito de Joinville. “É uma concorrência desigual todo o dia.” “Esse fenômeno é uma deformação sintomática do nosso sistema eleitoral. Isso acontece porque o único critério dos partidos é quem tem voto. E isso é um convite a esse tipo de candidato-celebridade”, afirma o deputado Custódio de Mattos (PSDB-MG), que foi eleito em outubro prefeito de Juiz de Fora. Em 2004, o tucano perdeu as eleições para Carlos Alberto Bejani (PTB), que é radialista. No meio deste ano, Bejani renunciou à Prefeitura de Juiz de Fora depois de ser preso. O palanque eletrônico permanente dos radialistas e apresentadores de televisão tem causado mal-estar entre alguns políticos. Um dos mais incomodados é o líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio Neto (AM), 329


que viu seu candidato à Prefeitura de Manaus, o atual prefeito Serafim Correa (PSB), ser derrotado pelo ex-governador Amazonino Mendes (PTB). Para Virgílio, um dos motivos para a derrota de Serafim foi o fato de o vice de Amazonino ser o deputado Carlos Souza (PP), conhecido radialista na Amazônia. “É um absurdo os radialistas ficarem fazendo campanha diariamente, durante os quatro anos que estão no mandato”, diz Virgílio, que também reclama do poderio dos donos de repetidoras de televisão nos Estados. O líder tucano quer aprovar uma legislação que proíba os radialistas e apresentadores de televisão de fazer programas no ano que antecede as eleições. “Eles têm de ficar um ano fora do ar”, defende Virgílio. “Não vejo motivos para criar uma regra específica para os comunicadores. Então, os líderes religiosos, os advogados e médicos que atendem gratuitamente também têm de se afastar de suas profissões um ano antes”, rebate o deputado Flávio Dino (PC do B-MA).

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Titular por mais de 20 anos de um programa diário de rádio na Região Sul, o senador Sérgio Zambiasi (PTB-RS) reconhece que a popularidade como radialista foi essencial para sua carreira política. Ele era tão conhecido que, em 1986, quando se candidatou pela primeira vez a deputado estadual pelo Rio Grande do Sul recebeu tantos votos em Santa Catarina que, na ocasião, seriam o suficiente para eleger três deputados estaduais catarinenses. Na época, a votação era em cédulas de papel, em que os eleitores escreviam o que queriam. ASSISTENCIALISMO Para Antonio Augusto de Queiroz, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), os programas com caráter assistencialista são os principais responsáveis pela eleição de radialistas e apresentadores de TV. Ele cita o caso da recém-eleita prefeita de Natal, Micarla de Sousa (PV), que apresentava programa de televisão. Micarla é a mais velha das três filhas do senador Carlos Alberto de Sousa, morto há dez anos, que comandava programa de rádio no Rio Grande do Norte. “Com certeza essa 331


eleição da Micarla tem um rescaldo do programa de seu pai, que tinha um caráter bem assistencialista”, diz Queiroz. Em sua avaliação, a valorização das celebridades, normalmente, acontece em momentos de crise. Por isso, em 2006, a Câmara elegeu 13 comunicadores novatos, que exerceram mandato eletivo pela primeira vez, como o apresentador e costureiro Clodovil Hernandes (PR-SP) e músico Frank Aguiar (PTB-SP). “Era um momento de crise de popularidade do Congresso. Tinha tido a história do mensalão, dos sanguessugas e aí surge espaço para as celebridades.” A popularidade dos radialistas, apresentadores de televisão e artistas sempre foi um filão para os partidos políticos. Marta Suplicy, candidata derrotada do PT à Prefeitura de São Paulo, tornou-se nacionalmente conhecida e entrou na vida pública depois de estrelar um programa de televisão dando conselhos sobre sexo. O ex-governador Antony Garotinho (PMDB) é outro que mantém até hoje programa de rádio no Rio de Janeiro. 332


Em época de eleição, a procura por campeões de voto fica mais evidente. Este ano, vários candidatos a prefeito buscaram aliar-se a comunicadores. Em alguns casos, a união deu certo. Em São Bernardo do Campo, o ex-ministro Luiz Marinho (PT) pôs o deputado e cantor Frank Aguiar (PTB) como vice e conseguiu se eleger. Em outros, a iniciativa não deu em nada: o deputado ACM Neto (DEM-BA) convenceu o radialista Raimundo Varela (PRB) a desistir de sua candidatura à Prefeitura de Salvador e a apoiá-lo. Em vão: ACM Neto saiu derrotado da disputa. A celebridade e apolítica (desenvolvimentos preliminares) A celebridade deve ser estudada, em uma primeira abordagem, segundo a fórmula do pequeno grande homem que o fascismo nos legou, ainda que não a tenha inventado. O perfeito desenvolvimento desta fórmula, ou seja, seu extravazamento pela vida cotidiana requer, contudo, não apenas o surgimento das grandes estrelas cinematográficas, mas também do sistema de estúdios, além da massificação do 333


filme como manifestação cultural19. Esses desenvolvimentos estéticos, correspondidos à perfeição pela organização industrial, se apresentam à modernidade como uma necessidade e como uma ânsia de fazer corresponder seu estilo total de vida às formas de expressão que a ele se equivalem: à realidade convertida em sonho, corresponde o cinema como falsa mimese.

Figura 108 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950)

“You are passing through a great city that has grown old in civilization – one of those 334


cities which harbor the most important archives of universal life – and your eyes are drawn upward, sursum, ad sidera; for in the public squares, at the corners of crossways, stand motionless figures, larger than those who pass at their feet, repeating to you solemn legends of Glory, War, Science, and Martyrdom, in a mute language. Some are pointing to the sky, whither they ceaselessly aspired; others indicate the earth from which they sprang. They blandish, or contemplate, what was the passion of their life and what becomes its emblem: a tool, a sword, a book, a torch, vitai lampada! Be you the most heedless of men, the most unhappy or the vilest, a beggar or a banker, the stone phantom takes possession of you for a few minutes and commands you, it the name of the past, to think things which are not of the earth. / Such is the divine hole of sculpture�. Ch. B. Oeuvres, ed. Le Dantec, vol. 2, pp. 274-275 (“Salon of 1859). Baudelaire speaks here of sculpture as though it were present only in the big city. It 335


is a sculpture that stands in the way of the passerby. This depiction contains something in the highest degree prophetic, tough sculpture plays only the smallest part in that which would fulfill the prophecy. Sculpture is found <?> only in the big city? (BENJAMIN, 1999, p. 289-290) 20

Figura 109 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “Set de filmagem da Paramout”

A contemporaneidade entre a celebridade e o cinema em sua fase industrial, que antecipou e 336


preparou neste particular aquilo que viria a ser a TV, revela uma relação de necessidade, posto que a indústria cultural como forma desenvolvida traz em si, enquanto determinação, a conversão e redução do artista à condição de estrela, de personagem notório. A celebridade é, portanto, o herói segundo a lógica da linha de montagem, um personagem romântico como negação subliminar da epopeia; afastamento e recusa da necessidade e da fatalidade, como propriedades inerentes à vida; promessa de superação do aqui e do agora, mas apenas enquanto negação do real; um passo rumo à elevação do paraíso, sob a forma da leveza de quem se lança ao precipício. (...) No poema épico, o povo repousa, depois do dia de trabalho: escuta, sonha e colhe. O romancista se separou do povo e do que ele faz. A matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a quem ninguém pode dar conselhos, e que não sabe dar conselhos a ninguém. Escrever um romance significa descrever a existência humana, levando o incomensurável ao 337


paroxismo. A distância que separa o romance da verdadeira epopeia pode ser avaliada se pensarmos na obra de Homero ou Dante. A tradição oral, patrimônio da epopeia, nada tem em comum com a substância do romance. O que distingue o romance de todas as outras formas de prosa – contos de fadas, sagas, provérbios, farsas – é que ele nem vem da tradição oral nem a alimenta. Essa característica o distingue, sobretudo, da narrativa, que representa, na prosa, o espírito épico em toda a sua pureza. Nada contribui mais para a perigosa mudez do homem interior, nada mata mais radicalmente o espírito da narrativa que o espaço cada vez maior e cada vez mais impudente que a leitura de romances ocupa em nossa existência (...). (BENJAMIN, 1985, p. 54-55) 21 A celebridade é uma posição síntese: simultaneamente um produto e um ardil de autoengendramento, uma vez que só é a superação das formas anteriores de popularidade, preservando como exterioridade, propaganda e autorreferência, aquelas mesmas configurações pretéritas que suplantou - o caráter aproximadamente improvisado 338


e espontâneo; a natureza de rastilho de pólvora que convertiam tipos como Byron em ícone de uma geração.

Figura 110 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “O ex-marido mordomo”

Como fenômeno massivo revela, contudo, aquilo que tem de diretamente fabricado, de tal modo que a espontaneidade do vínculo entre a celebridade e o fã é, imediatamente, prestidigitação e manipulação, dom de iludir; perversão das demandas identitárias, em um mundo em que toda a identidade foi reduzida 339


a tautologia – busca de autoexpressão como eliminação da relação com o outro. A celebridade é a fórmula síntese de toda a esperança que o mundo burguês deposita na vida: uma demanda desesperada de eliminar suas contradições por meio de uma superação estritamente estética; de tornar contingentes todos os aspectos trágicos da existência, no que é um clamor pela eternidade do presente e elevação da ordem à condição sacrossanta.

Figura 111 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “A diva: Norma Desmond”

A celebridade é um rito, tanto quanto toda sintomatologia da doença deve se exteriorizar nas formas fixas de uma religiosidade completamente 340


individual e particular; um sagrado que cada qual inventa, com os elementos patológicos de seu ser. Que as celebridades sejam muitas, portanto, quando comparadas à unicidade do Führer, não serve para inutilizar o mecanismo de psicologia de massas que o fascismo inventou: a celebridade é o Führer dos dias de paz; a memória e preservação daquela forma perversa, sob uma configuração aparentemente inerte e não virulenta - uma pedagogia prática para a submissão incondicional.

Figura 112 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950)

Mas quem é aquele pequeno grande homem que o fascismo nos legou, e do qual partimos? Em 341


primeiro lugar, no que é grande, ele é um deus, abstraindo-se porém todos os aspectos éticos e morais que a religião implica e requer; um soberano, desde que se compreenda que não tem para com o povo quaisquer obrigações; um líder, se aceitarmos que não se compromete com qualquer programa, que o venha a constranger a isto ou aquilo. O Führer é neste sentido uma posição vazia, ainda que expressa por um ser de carne e osso: é o pai primordial e primevo; o ser mítico que engendrou a humanidade, titular de todos os direitos e, portanto, indiferente a tudo e a todos - narcisismo total. Este caráter de ser absoluto, castrador, titular de todo o direito de procriação, faz de todos os demais, seus filhos, uma fraternidade; uma irmandade homogênea. Constrange, portanto, a um comportamento masoquista e apassivado, em que pese fundar uma sociabilidade, mesmo que precária. O Führer é, sob tal aspecto, uma demanda absoluta de submissão à autoridade, sua autoridade e, por intermédio de tal sujeição, a criação e a fundação daquela irmandade primeira da hoste, da turba e da horda. O apassivamento para com relação a ele é diretamente a declaração de pertencimento à 342


irmandade; sua recusa uma condenação explícita de morte e degredo. Por seu intermédio, portanto, a segurança de pertencer, de estar fundido à massa dos coirmãos; o acolhimento ao preço da individualidade; o poder e a potência do grande número, a desinibição para ser e requerer os direitos míticos da horda e, portanto, para degradar tudo aquilo que a ela não pertence; uma autorização implícita para reduzir a pó tudo o que a ela se oponha.

Figura 113 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950)

Como pequeno homem, contudo, o Führer é um qualquer; uma expressão terrena da divindade, um mito transformado em homem comezinho, para consumo diretamente popular – Hitler como um 343


barbeiro. Nesta redução, no entanto, realiza o milagre da transmutação da miserabilidade no que é elevado: quando se rebaixa ao comum e ao corriqueiro, às formas picarescas de existência, o líder fascista afirma que é como um qualquer do povo, o que, na forma reversa, significa dizer que um qualquer do povo, exercendo ainda suas atividades mundanas e cotidianas, insípidas e insignificantes, compartilha com o Füher de seu poder mítico. A celebridade, portanto, quando se deixa mostrar nos detalhes corriqueiros de sua vida privada, vem ao mundo dos mortais não para se irmanar com eles em sua insignificância, mas para investir aquela rotina insuportável e esquemática de um halo divino. É por isso que o sobre-humano do líder fascista é indissociável de suas pequenas manias e virtudes; de suas idiossincrasias. Captura-se, por este meio, aquele qualquer do povo, que se reconhece e coparticipa do poder do líder, por meio de suas pequenas e bizarras veleidades. O Führer como fórmula extensa, como desenvolvimento total, implica na conversão de todos em pequenos Fühers, o que só se resolve pela indicação do objeto de escárnio: o pária é elemento intrínseco da psicologia 344


de massa do fascismo, aquilo que sustém sua existência. Nos tempos de paz, de razoável normalidade social, de regularidade da vida institucional, o pária é, também ele, um lugar vazio, mas de forma alguma algo insubsistente: toma a forma múltipla, variável e mutante daquilo com que não se pode identificar; aqueles que o meu estilo de vida, minha condição sociocultural e econômica não permitem reconhecer como igual em estatuto humano. É, portanto, uma solução de compromisso aguardando por um desfecho; sempre prestes a assumir uma forma diretamente hostil. A celebridade, portanto, como categoria; uma vez desvelados os elementos psicossociais que a envolvem, é uma espécie de antecâmara do campo de concentração; a preservação em forma atenuada de toda a virulência da intolerância; uma recusa do real, por meio de sua apropriação em um formato diretamente estético. Na medida, então, em que extravasa pela totalidade do corpo social; em que molda todo o processo identitário, converte a estética em uma potência política, ou, dito de outro modo, submete a política à lógica estética, e à psicologia que institui a celebridade. Quando se 345


atinge este ponto, contudo, a própria política é degradada, de tal modo que se submete à lógica da indústria cultural, convertendo-se em um, de seus muitos artefatos. Exatamente por isso a crítica cultural é diretamente reflexão política, e a resistência ao fascínio do fascismo, politização da estética. Certos candidatos a deputado ornam com um retrato seu prospecto eleitoral. Isto equivale a supor que a fotografia possui um poder de conversão que se deve analisar. Para começar, a efígie do candidato estabelece um elo pessoal entre ele e os seus eleitores; o candidato não propõe apenas um programa, mas também um clima físico, um conjunto de opções cotidianas expressas numa morfologia, um modo de vestir, uma pose. A fotografia tende, assim, a restabelecer o fundo paternalista das eleições, a sua natureza “representativa”, desvirtuada pelo voto proporcional e pelo reino dos partidos (a direita parece utilizá-la mais que a esquerda). Na medida em que a fotografia é 346


elipse da linguagem e condensação de todo um “inefável” social, constitui uma arma antiintelectual, tende a escamotear a “política” (isto é, um conjunto de problemas e soluções) em proveito de uma “maneira de ser”, de um estatuto social e moral. Sabe-se que esta oposição é um dos mitos maiores do poujadismo (Poujade na televisão: “Olhem para mim, sou como vocês”). A fotografia eleitoral é, pois, antes de mais nada, reconhecimento de uma profundidade, de um irracional extensivo à política. O que é exposto, através da fotografia do candidato, não são seus projetos, são suas motivações, todas as circunstâncias familiares, mentais, e até eróticas, todo um estilo de vida de que ele é, simultaneamente, o produto, o exemplo, e a isca. É óbvio que aquilo que a maior parte dos nossos candidatos propõe através de sua efígie é uma posição social, o conforto especular das normas familiares, jurídicas, religiosas, a propriedade infusa de certos bens burgueses, tais como, por exemplo, a 347


missa de domingo, a xenofobia, o bife com batatas fritas, e o cômico das situações de infidelidade conjugal, ou seja, aquilo que se chama de uma ideologia. Naturalmente, o uso da fotografia eleitoral supõe uma cumplicidade: a foto é espelho, ela oferece o familiar, o conhecido, propõe ao eleitor a sua própria efígie, clarificada, magnificada, inponentemente elevada à condição de tipo. É, aliás, esta ampliação valorativa que define exatamente a fotogenia: ela exprime o eleitor e, simultaneamente, transforma-o num herói; ele é convidado a eleger-se a si próprio, incumbindo o mandato que vai dar de uma verdadeira transferência física: delega de algum modo a sua “raça”. (BARTHES, 1989, p. 103)

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Figura 114 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950)

A celebridade: Sunset Boulevard Iluminação, maquiagem22, roteiro: todos os elementos mobilizados pelo filme estão integrados, de modo a criar uma unidade tensa. No exercício metalinguístico que executa se opõem continuamente os elementos do cinema mudo – a representação grandiloqüente, o recurso mímico e o gesto superlativo, a maquiagem – àqueles das fitas sonorizadas, de que o personagem de William Holdem (Joe Gillis) é uma representação evidente ridicularizando pelo contraste, com seu estilo low 349


profile, tudo aquilo que a diva Norma Desmond representa. Dentre todas as qualidades da película, a elaboração do narcisismo da grande diva merece particular atenção, especialmente porque se desenvolve através de um diálogo permanente com a casa, como representação de seu psiquismo, e da pessoa que de fato é. Trata-se, pelo exterior, de uma mansão abandonada e, de certo modo, excêntrica; desviada das rotas principais da cidade - um lugar sem vida, ermo. Este não é apenas, contudo, como poderia parecer à primeira vista, o modo com os outros veem Norma Desmond: é o próprio índice de sua interação com o outro. Naquilo que deveria ser uma relação e um relacionamento; uma determinação recíproca, a instituição da individualidade como acolhimento crítico do mundo, Norma é algo frio e rigorosamente morto, sem substância, devastado - fora dela in fact não há mundo e, de certa maneira, aquilo que conhece como tal subordina-se imediatamente à sua vida onírica.

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Figura 115 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “O exterior da casa”

O exterior, portanto, contrasta com o interior da mansão, não apenas excessivamente ornamentada; repleta de objetos, aquecida e rica até o mau gosto, mas especialmente inundada de símbolos e referências à própria Norma: um monumento a si; a vida como autoelogio e autorreferência. Gillis, a certa altura, se pergunta como alguém pode viver em um ambiente inundado por representações de si: fotos, filmes, pinturas, cartas, etc. A questão é que, a rigor, tudo é Norma e Norma é tudo – sua imagem obliterou o mundo.

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Nineteenth-century domestic interior. The space disguises itself – puts on, like an alluring creature, the costume of moods. The self-satisfied burgher should know something of the feeling that the next room might have witnessed the coronation of Charlemagne as well as the assassination of Henri IV, the signing of the Treaty of Verdun as well as the wedding of Otto and Theophano. In the end, things are merely mannequins, and even the great moments of world history are only costumes beneath which they exchange glances and complicity with nothingness, with the petty and the banal. Such nihilism is the innermost core of bourgeois coziness – a mood that hashish intoxication concentrates to satanic contentment, satanic knowing, satanic calm, indicating precisely to what extent the nineteenth-century interior is itself a stimulus to intoxication and dream. This mood involves, furthermore, an aversion to open air (so to speak) Uranian atmosphere, which throws a new light on the extravagant 352


interior design of the period. To live in these interiors was to have woven a dense fabric about oneself, to have secluded oneself within a spider’s web, in whose toils world events hang loosely suspended like so many insect bodies sucked dry. From this cavern, one does not like to stir. (BENJAMIN, 1999, p. 216)

Figura 116 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “As imagens da diva”

A casa, pelo interior, é igualmente uma teia de aranha, onde se vêem capturados e mantidos sob uma forma morta e mórbida, sem energia, tudo 353


aquilo que deveria ser propriamente humano – integrando-se, portanto, os personagens espectrais, à exuberância extravagante da decoração, como mais um de seus muitos elementos. Tal perda de substância e de vida, como vampirização, é claramente enunciada quando em certa passagem Norma adquire, através de suas mãos, os ares de Nosferatu.

Figura 117 - Colagem: Nosferatu & O Crepúsculo dos deuses

É reforçada, ainda, pelo fato de que Gillis, logo ao adentrar a casa, acaba substituindo (simbolicamente) um chipanzé morto; além de se enunciar que o primeiro marido da diva, que fora diretor de seus filmes e a descobrira para o cinema, se convertera em seu fiel escudeiro: o mordomo e, em certa medida, seu capacho. Neste aspecto Gillis, o 354


amante, e o mordomo, ex-marido, são brinquedos sexuais de Norma. Caminha na mesma linha o fato de que seus amigos de cinema mudo, ao visitarem a mansão, são chamados pelo narrador (Gillis) de bonecos de cera, o que se refere tanto ao pertencimento a uma era superada do cinema, quanto ao fato de terem característica espectral: vida em morte.

Figura 118 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “O chimpanzé morto”

A natureza até certo ponto sinistra de Norma Desmond, seu caráter vampiresco, são amplamente figurados na película, que não por acaso investe no domínio da iluminação, de modo a criar o clima noir que a caracteriza. Há, no entanto, um elemento que 355


merece ser salientado, ou seja, a necessidade de aninhar a protagonista, de zelar não apenas pelo seu conforto e satisfação, mas especialmente de protegêla de si, o que se faz, contudo, como condição de preservar a ordem do mundo em que todos indistintamente vivem23. O narcisismo de Norma e sua loucura são, portanto, um atributo não apenas dela, mas de todos, pois aquilo que nela se ama e idolatra não é sua pessoa em sentido estrito, mas uma imagem em que todos investem e, por meio da qual, encontram um sentido e um lugar no mundo. A submissão do mordomo especialmente, mas também de Gillis e dos bonecos de cera é aquela dos semivivos na tradição do vampirismo, ou seja, dos humanos que zelam pelo sono desprotegido de Conde Drácula.

Figura 119 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “Bonecos de Cera (Montagem)” 356


Se atentarmos para este elemento é possível perceber que, para Norma, a única coisa que de fato está viva, que merece tal atributo, é sua imagem; algo que a representa, mas que não é ela mesma como ser, e à qual, deste modo, serve desesperadamente, na condição de um desdobramento e uma bipartição de si. Tudo que existe como humano é algo, portanto, que deve ser colocado a serviço da idolatria que cultiva não por si mesma, mas por uma representação imagética (um ser como tabu). A idolatria que todos cultivam pela musa é, nesta medida, um sentido de unidade; um mundo tornado íntegro e coerente. Neste contexto não há lugar para a deserção e independência, somente para a adesão e fusão. É por isso que Gillis, ao deixar a diva, é morto por ela. Afirma-se de modo prático, portanto, que fora de seu mundo onírico a vida é impossível. In his study “La mante religeuse: Recherches sur la nature et la sgnification du mythe” <The praying Mantis: Investigations into the Nature and Meaning of Myth>, Calois refers to striking automatism of reflexes in the praying mantis (there is hardly a vital 357


function that it does not also perform decapitated). He links it, on account of its fateful significance, with the baneful automatons known to us from myths. Thus Pandora: “automaton fabricated by blacksmith god for the ruin of humankind, for that “which all shall / take to their hearts with delight, an evil to love and embrace” (Hesiod, Works and Days, line 38). We encounter something similar in the Indian Kyrtya – those dolls, animated by sorcerers, which bring about death of men who embrace them. Our literature as well, in the motif of femmes fatales, possesses the concept of a woman-machine, artificial, mechanical, at variance with all living creatures, and above all murderous. No doubt psycho-analysis would not hesitate to explain this representation in its own terms by envisaging the relations between death and sexuality and, more precisely, by finding each ambiguously intimated in the other”. Roger Caillois, “La amante religeuse: Recherches sur la nature et la sgnification du 358


mythe”, Mesures, 3, nº 2 (April 15, 1937). (BENJAMIN, 1999, p. 696)

Figura 120 - O crepúsculo dos deuses (Billy Wilder, 1950) “Gillis morto na piscina”

Norma Desmond revela, portanto, os elementos demoníacos e infernais daquilo que nos fascina e encanta - ainda que não em decorrência da espontaneidade, mas da mais direta industrialização A devoção de que é objeto é o culto de uma imagem, em que se reconhece o mundo, quando ele ainda não havia se desvencilhado do mito. Esta imagem que Norma figura, como exemplo de uma série quase infinita, atualizada a partir de seus elementos arcaicos, é a celebridade que a modernidade instituiu como produto dileto. 359


A funcionalidade da burguesia

Figura 121 - O fantasma da liberdade (Luis Buñel, 1974)

A problemática envolvendo a democracia, quando enunciada à esquerda, remete diretamente à questão de ser possível superar o presente imediato, edificando-se uma sociedade qualitativa e radicalmente diferente da capitalista, dando assim, fundamento concreto e material, à noção de igualdade, sem o sacrifício da liberdade. Note-se, contudo, que esta questão envolve não apenas o terreno propriamente à esquerda. Está diretamente implicada a razão iluminista, que nascida revolucionária e burguesa, fundada nos princípios de 360


igualdade, liberdade e fraternidade, pretendeu transformar o mundo, fazendo cair a velha ordem, na qual os a hereditariedade determinava, em larga escala, as possibilidades de desenvolvimento e realização do indivíduo24. A razão, no entanto, parece ter perdido seus adeptos, quer no campo liberal, quer à esquerda, havendo um flerte com o irracionalismo e com o niilismo. Esta convergência de perspectivas 25, ainda que perversa para ambos os campos do espectro político, parece ser especialmente nefasta para os advogados da ordem, pois, na ausência de uma oposição qualificada, florescem não as forças compromissadas com as metas heroicas da revolução burguesa – as quais permanecem irrealizáveis nos limites de suas próprias referências societárias –, mas as potências da restauração, de inspiração aristocrática, para quem a dominação capitalista e a presente ordem econômica são tão naturais quanto o dízimo e a corveia.

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Figura 122 - O fantasma da liberdade (Luis Buñel, 1974)

Feitas tais ponderações, emerge como questão de primeira ordem, então, não o caráter revolucionário do proletariado, ou ainda, a adequação teórica de todo o edifício marxista e socialista. O grande problema talvez, neste preciso momento, seja compreender se a burguesia - uma força pretérita renovadora e civilizadora - se tornou uma aristocracia insensível, reacionária e, em última instância, hostil à civilização e à cultura.

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Figura 123 - O anjo exterminador (Luis Buñel, 1962)

Pensado nestes termos, o poderio inconteste do grande capital nos quadros da globalização, sua indiferença e soberba, para com os destinos de todos aqueles que, freneticamente, vão perdendo a funcionalidade para com o sistema e sua expansão, gera legitimamente a questão oposta, ou seja, saber se a burguesia mantém-se, ela mesma, funcional, no que se refere à manutenção de níveis mínimos de civilização. A julgar pelos termos da “nova” filosofia política, o neoliberalismo, a ordem burguesa parece ter assumido uma redução, ainda que não declarada, das fronteiras da democracia e da civilização, as 363


quais, seguramente, excluem a parcela majoritária da população mundial. *** Historicamente, a burguesia desempenhou um papel revolucionário. Onde quer que tenha assumido o poder, a burguesia pôs fim a todas as relações feudais, patriarcais e idílicas. Destruiu impiedosamente os vários laços feudais que ligavam o homem e seus “superiores naturais”, deixando como única forma de relação de homem a homem o laço do frio interesse, o insensível “pagamento à vista”. Afogou os êxtases sagrados do fervor religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas gélidas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca e em nome das numerosas liberdades conquistadas estabeleceu a implacável liberdade de comércio. Em suma, substitui a exploração, encoberta pelas ilusões religiosas e políticas, pela exploração aberta, única, direta e brutal.

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A burguesia despojou de sua auréola toda a ocupação até então considerada honrada e encarada com respeito. Converteu o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem da ciência em trabalhadores assalariados. A burguesia rasgou o véu sentimental da família, reduzindo as relações familiares a meras relações monetárias. A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os meios de produção e, por conseguinte, as relações de produção e, com elas, todas as relações sociais. Ao contrário, a conservação do antigo modo de produção constituía a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. A revolução contínua da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a eterna agitação e certeza distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Suprimem-se todas as relações fixas, cristalizadas, com seu cortejo de preconceitos e idéias antigas e veneradas; todas as novas relações se tornam antiquadas, antes mesmo de se consolidar. Tudo o que era sólido se evapora no ar, tudo o que era sagrado é profanado, e 365


por fim o homem é obrigado a encarar com serenidade suas verdadeiras condições de vida e suas relações com a espécie. A necessidade de um mercado constantemente em expansão impele a burguesia a invadir todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte. Por meio de sua exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo em todos os países. Para desespero dos reacionários, retirou da indústria sua base nacional. As velhas indústrias nacionais foram destruídas ou estão-se destruindo dia a dia. São suplantadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão de vida e morte para todas as nações civilizadas, por indústrias que não empregam matérias-primas autóctones, mas matérias primas vindas das zonas mais remotas; indústrias cujos produtos se consomem não somente no próprio país, mas em todas as partes do globo. Em lugar das antigas necessidades, satisfeitas pela produção nacional, encontramos novas necessidades que requerem para sua satisfação os produtos das 366


regiões mais longínquas e dos climas mais diversos. Em lugar do antigo isolamento local e da autosuficiência das nações, desenvolvem-se, em todas as direções, um intercâmbio e uma interdependência universais. E isso tanto na produção material quanto na intelectual. As criações intelectuais de uma nação tornam-se propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis e das numerosas literaturas nacionais e locais surge a literatura universal. Com o rápido aprimoramento de todos os meios de produção, com as imensas facilidades dos meios de comunicação, a burguesia arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para a civilização. Os baixos preços de suas mercadorias formam a artilharia pesada com que destrói todas as muralhas da China, com que obriga à capitulação os bárbaros mais hostis aos estrangeiros. Força todas as nações, sob pena de extinção, a adotarem o modo burguês de produção; força-as a adotarem o que ela chama de civilização, isto é, a se tornarem burguesas. Em uma palavra, cria um mundo à sua imagem.

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A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou cidades enormes, aumentou tremendamente a população urbana em relação à rural, arrancando assim contingentes consideráveis da população do embrutecimento da vida rural. Assim como subordinou o campo à cidade, os países bárbaros e semibárbaros aos civilizados, subordinou os povos camponeses aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente. A burguesia suprime cada vez mais a dispersão da população, dos meios da produção e da propriedade. Aglomerou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. A consequência necessária disso foi a centralização política. Províncias independentes, ligadas apenas por laços federativos, com interesses, leis, Governos e tarifas diferentes, foram reunidas em uma só nação, com um só Governo, um só código de leis, um só interesse internacional de classe, uma só barreira alfandegária. A burguesia durante seu domínio, apenas secular, criou forças produtivas mais poderosas e colossais do que todas as gerações em conjunto. A subordinação 368


das forças da natureza ao homem, a maquinaria, a aplicação da química na indústria e na agricultura, a navegação a vapor, as vias férreas, os telégrafos elétricos, a exploração de continentes inteiros para fins de cultivo, a canalização de rios, populações inteiras brotadas da terra como por encanto – que século anterior poderia prever que essas forças produtivas estivessem adormecidas no seio do trabalho social? Vemos então que os meios de produção e de troca sobre cuja base se ergue a burguesia eram originários da sociedade feudal. Numa dada etapa do desenvolvimento dos meios de produção e troca, as condições sob as quais a sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da indústria manufatureira, em suma, as relações feudais da propriedade mostraram-se incompatíveis com as forças produtivas em pleno desenvolvimento. Transformaram-se em outros tantos entraves a serem despedaçados; foram despedaçados. Em seu ligar implantou-se a livre concorrência, com uma constituição social e política própria, com a supremacia econômica e política da classe burguesa. 369


(MARX; ENGELS. Manifesto Comunista, p. 26-28. Instituto José Luis E Rosa Sundermann. Versão eletrônica) Cubismo e surrealismo (...) a língua exprime a realidade por meio de um sistema de signos. Já o cineasta exprime a realidade por meio da realidade. Esta talvez seja a razão de gostar do cinema, de preferi-lo, pois, ao exprimir a realidade como realidade, opero e vivo continuamente no nível da realidade. (...) Quando sonhamos e recordamos, rodamos dentro de nós pequenos filmes. Isso quer dizer que o cinema tem seus fundamentos e suas raízes numa linguagem completamente irracional, irracionalista [...] No fundo, quando alguém vê um filme, tem a impressão de ter sonhado. (Pasolini, extraído de Pasolini, Nosso Próximo, de Giuseppe Bertolucci, citado na Folha de São Paulo, 18/03/07, caderno +mais!, p. 5)

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Através da imagem se pode criar a unidade como citação e justaposição, como oferta de fragmentos lançados ao acaso: o sentido sub-reptício que se insinua em todo álbum de fotografias, independentemente de que aquele que o vê conheça, ou não, as pessoas e situações retratadas. A imagem, tão logo tenha sido posta, abre uma porta por meio da qual penetra o imaginário e se faz presente, cobrando, contudo, um complemento, que vai para além de seu aparecimento estático. A fotografia, por suas características inerentes - a permanência do retratado, em sua individualidade, sobre o suporte – demanda, ainda, que se lhe complemente a vida, porque ela mesma é um fragmento de vida, que luta contra o esquecimento e contra o tempo, na figura material e concreta da pessoa ou da coisa retratada. (...) A pintura já conhecia há muito rostos desse tipo. Se os quadros permaneciam no patrimônio da família, havia ainda uma certa curiosidade pelo retratado. Porém depois de duas ou três gerações esse interesse desaparecia: os quadros valiam apenas como testemunho do talento artístico de 371


seu autor. Mas na fotografia surge algo de estranho e de novo: na vendedora de peixes de New Haven, olhando o chão com um recato tão displicente e tão sedutor, preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real, e que não quer extinguir-se na “arte”. (BENJAMIN, 1985, p. 93) Através do álbum fotográfico, portanto, o passado se apresenta com efeito de presente, como realidade efetiva e material, posto que atualizada. Neste sentido o álbum institui não o real, mas seguramente o pensamento com toda a materialidade da realidade, podendo ser, então, igualmente, sua subversão e dissimulação. É nesse plano, o da imagem, que atuam as forças centrípetas da ordem, pois a sua simples colocação obriga a que se preencham as lacunas, com outra linguagem, que tem por fundamento a palavra. O texto que emerge como complemento necessário, contudo, não é livre, mas está condicionado pelas próprias imagens de origem, que ao se enunciarem, criam entre si nexos e 372


associações que são, senão obrigatórias, pertinentes – com o que a estrutura discursiva racional se submete, subliminarmente, a uma linguagem infraconsciente. A imagem fotografia, nesse preciso sentido, já continha como desenvolvimento o filme: (...) Mas a litografia ainda estava em seus primórdios quando foi ultrapassada pela fotografia. Pela primeira vez no processo de reprodução da imagem, a mão foi liberada das responsabilidades artísticas mais importantes, que agora cabiam unicamente ao olho. Como o olho apreende mais depressa que a mão desenha, o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que começou a situar-se no mesmo nível a palavra oral. Se o jornalismo ilustrado estava contido virtualmente na litografia, o cinema falado estava contido virtualmente na fotografia. (BENJAMIN, 1985, p. 167) A oferta contínua e acelerada de imagens, imagens estas que o olho, por sua natureza funcional, não pode recusar, engendra, portanto, 373


continuamente textos, que apenas lampejam na consciência, para desaparecer nas instâncias infraconscientes, onde, seguramente, não permanecem inertes. Não se pode lutar contra elas no plano verbal, porque, nas instâncias não racionais, atuam compondo filmes involuntários, ofertas gratuitas e não demandadas de sentido, que ao se repetirem infinitamente, instituem o verossímil e a símile, como sucedâneo do real. Reside aqui o fundamento da propaganda em seu caráter irresistível: ela é uma sucessão de imagens, para as quais o texto é apenas um sistema de indexação, que cria o roteiro desejável, dentre os infinitos trajetos possíveis. O poder da imagem é de tal ordem que sua própria evolução técnica através da fotografia e, posteriormente do filme, levam a realidade para muito além de si mesma, ainda que com o intuito de reforçar os requerimentos da ordem, assim como o preceito fundamental da sociedade burguesa: vender mais. Deste modo, no confronto entre a coisa e sua representação a primeira se vê recorrentemente desmoralizada, mas, na medida em que a imagem se repete e persiste, procura-se mais intensamente a 374


coisa, na esperança de que algum dia esse hiato se desfaça. (...) Mas acompanhemos um pouco mais de longe a história da fotografia. Que vemos? Ela se torna cada vez mais naturalizada, cada vez mais moderna, e o resultado é que ela não pode mais fotografar cortiços ou montes de lixo sem transfigurá-los. Ela não pode dizer, de uma barragem ou de uma fábrica de cabos, outra coisa senão: o mundo é belo. Este é o título do conhecido livro de imagens de Renger-Patsch, que representa a fotografia da “Nova Objetividade” em seu apogeu. Em outras palavras, ela conseguiu transformar a própria miséria em objeto de fruição, ao captá-la segundo os modismos mais aperfeiçoados. Porque, se uma das funções econômicas da fotografia é alimentar as massas com certos conteúdos que antes estava proibida de consumir – a primavera, personalidades eminentes, países estrangeiros – através de uma elaboração baseada na moda, uma de suas funções 375


políticas é a de renovar, de dentro, o mundo como ele é – em outras palavras, segundo a moda. (BENJAMIN, 1985, p. 129)

Figura 124 - A dama de Shanghai (Orson Wells, 1948)

Quando, portanto, o absurdo se oferece nas televisões, nas CNN, como imagem sensacional, a meta não é de forma alguma levar à mudança das condições em que o mundo se nos oferece, mas, muito ao contrário, fornecer-nos material estético, através dos quais possamos nos conduzir a uma espécie de catarse, que, aos poucos, nos leva a uma dependência quase que química da notícia e do evento, produzidos em escala frenética. Na sequencia infindável e monótona de desgraças, o real 376


é sacrificado para transformar-se em apropriação onírica do existente, que se vê reduzido a sonho – filme -, do qual sempre se pode acordar com a firme sensação de que não seremos verdadeiramente atingidos.

Figura 125 - Saraband (Ingmar Bergman, 2003)

Para eficácia desta abordagem contribuem enormemente o fato de que a qualidade técnica do cine-jornalismo se aproxima cada vez mais daquela que é possível no cinema, assim como o uso da linguagem mimética. A rigor, através da imagem, a operação sobre o humano não encontra o homem, mas as representações sobre as quais se pode investir tudo o que há de mais arcaico, permanecendo-se ainda dentro das regras (jurídicas) 377


da civilização. A imagem, portanto, em sua imediaticidade, não nos é entregue para que nos solidarizemos na desgraça, ou na humilhação; ela nos é dada para satisfação do sadismo, do desejo de destruição e submissão, da satisfação erótica. Esta é, portanto, uma imagem à metade e, nesse sentido, simbólica, ficando enterrados e apodrecendo seus fundamentos, para que o sentido se afirme na suas mais pura luminosidade e beatitude 26. Por força desses desenvolvimentos inerentes à contemporaneidade - o extravasamento do esteticismo sobre a vida social -, a existência passa a ser um limiar; a vida, a fronteira entre o onírico e o real, de tal maneira que toda forma é igualmente a alucinação da realidade, enquanto sua representação imediata. O cubismo e o surrealismo captaram estes desenvolvimentos da imagem e da autoimagem com uma maestria que nem mesmo a filosofia chegou a atingir. São, neste sentido, as formas verdadeiramente reais do mundo em que vivemos e não sua representação pictórica. O cubismo e o surrealismo não são a realidade (psíquica, subjetiva) como representação, mas a forma imediata do real. Seu radicalismo, portanto, não é um programa no 378


plano do texto, mas das imagens, que nos mostram o fantástico das possibilidades – que já haviam sido enunciadas pela própria fotografia -, mas igualmente a subsunção a uma deformação da imagem, na redução ao símbolo. Surrealismo e cubismo abrem nossos olhos não para o exterior, mas para aquele psiquismo onde o automatismo da imagem se processa. Subverte-o em sua unilateralidade, para explodi-lo: (...) em toda a parte que uma ação produz a imagem a partir de si mesma e é essa imagem, extrai para si essa imagem e a devora, em que a própria proximidade deixa de ser vista, aí se abre esse espaço de imagens que procuramos, o mundo em sua atualidade completa e multidimensionalidade, no qual não há lugar para qualquer “sala confortável”, o espaço, em uma palavra, no qual o materialismo político e a criatura física partilham entre si o homem interior,a psique, o indivíduo, ou o que quer que seja que desejamos entregarlhes, segundo uma justiça dialética, de modo que nenhum dos seus membros deixe de ser 379


despedaçado. No entanto, e justamente em conseqüência dessa destruição dialética, esse espaço continuará sendo espaço de imagens, e algo mais concreto ainda: espaço de corpo. Não podemos fugir a essa evidência, a confissão se impõe: o materialismo metafísico de Vogt e Bukharin não pode ser traduzido, sem descontinuidade, no registro do materialismo antropológico, representada pela experiência dos surrealistas e antes por um Hegel; Georg Büchner, Nietzsche e Rimbaud. Fica sempre um resto. Também o coletivo é corpóreo. E a physis, que para ele se organiza na técnica, só pode ser engendrada em toda a sua eficácia política e objetiva naquele espaço de imagens que a iluminação profana nos tornou familiar. Somente quando o corpo e o espaço de imagens se interpenetrarem, dentro dela, tão profundamente que todas as tensões revolucionárias se transforme em inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se transformem em tensões 380


revolucionárias; somente então terá a realidade conseguido superar-se, segundo a exigência do Manifesto Comunista. No momento, os surrealistas são os únicos que conseguiram compreender as palavras de ordem que o Manifesto nos transmite hoje. Cada um deles troca a mera gesticulação pelo quadrante de um despertador, que soa durante sessenta segundos, a cada minuto. (BENJAMIN, 1985, p. 34-35) Como atuar negativamente, revolucionariamente, a partir da imagem? Como desfazer a maquinaria, o automatismo e profundo do sonho a que ela nos arremessa? Este problema deve ser resolvido do ponto de vista formal, mas de modo algum apenas nesse âmbito. Há igualmente uma questão técnica envolvida: é preciso que a escrita evolua para uma representação gráfica do real e, deste modo, mergulhe tão fundo no ser, em suas entranhas e intestinos, que se apresente à imagem beatificada com que o mundo se representa, de posse da sombra que, muito embora nunca tenha sido afastada, não mais se vê refletida27. 381


(...) Modificá-lo [a uma aparelho produtivo – MPP] significa derrubar uma daquelas barreiras, superar uma daquelas contradições que acorrentam o trabalho produtivo da inteligência. Nesse caso, tratase da barreira entre a escrita e a imagem. Temos que exigir dos fotógrafos a capacidade de colocar em suas imagens legendas explicativas que as liberem da moda e lhes confiram um valor de uso revolucionário. Mas só poderemos formular convincentemente essa exigência quando nós, escritores, começarmos a fotografar. Também aqui, para o autor como produtor o progresso técnico é o fundamento do seu progresso político. Em outros termos: somente a superação daquelas esferas compartimentalizadas de competência no processo da produção intelectual, que a concepção burguesa considera fundamentais, transforma essa produção em algo de politicamente válido; além disso, as barreiras de competência entre essas duas forças produtivas – a material e a intelectual 382


– precisam ser derrubadas conjuntamente. (BENJAMIN, 1985, p. 129) Como essa exigência que se apresenta à literatura e aos escritores pode ser positivamente solucionada? No que consiste a técnica que transforma o texto em elemento gráfico e, cada imagem, em uma contra-imagem, em que o sonho de benignidade da ordem é subvertido, para que o pesadelo se demonstre como tal; para que as ruínas se façam evidentes, em toda a potência de sua materialidade? “In the stairways of Eiffel Tower, or better still, in the steel supports of a Pont Transbordeur, one meets with the fundamental esthetic experience of present day architecture: through the thin net of iron that hangs suspended in the air, things stream – ships, ocean, houses, masts, landscape, harbor. They lose their distinctive shape, swirl into on another as we climb downward, merge simultaneously.” Sigfried Giedion, Bauen in Frankreich (Leipzig and Berlin), p. 7. In the same way, the historian 383


today has only to erect a slender but sturdy scaffolding – a philosophic structure – in order do draw vital aspects of the past into his net. But just as the magnificent vistas of the city provided by the new constructions in iron (again, see Giedion, illustrations on pp. 61-63) for a long time were reserved exclusively for the works and the engineers, so too the philosopher who wishes here to garner fresh perspectives must be someone immune to vertigo – an independent and, if need be, solitary worker. (BENJAMIN, 1999, p. 459). Method of this project: literary montage. I needn’t say anything. Merely show. I shall purloin no valuables, appropriate no ingenious formulations. Burt rags, the refuse – these I will not inventory, but allow, in the only way possible: by making use of them. (BENJAMIN, 1999, p. 460) A central problem of historical materialism that ought to be seen in the end: Must the Marxist understanding of history necessarily 384


be acquired at the expense of the perceptibility of history? Or: in what it is possible to conjoin a heightened graphicness <Anschaulichkeit> to realization of Marxist method? The first stage in this undertaking will be to carry out over the principle of montage into history. That is, to assemble large-scale constructions out of the smallest and most precisely cut components. Indeed, to discover in the analysis of the small individual moment the crystal of the total event. And, therefore, to break with vulgar historical naturalism. To grasp the construction of history as such. In the structure of the commentary. Refuse of history. (BENJAMIN, 1999, p. 461)

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A eterna infância

Figura 126 - Diamantes de sangue (Edward Zwick, 2006)

A dissolução do real, do compromisso com sua apropriação, a aceitação infantil de um mundo onde não existiriam responsabilidades efetivas - mas apenas a participação em um jogo, em uma cena; um mundo de videoclip - são elementos fundamentais para a edificação de uma sociabilidade que desconhece e não reconhece o sofrimento do outro, de vez ele mesmo sequer é percebido como real, mas antes, apenas como possibilidade ou ameaça; como funcional ou não, relativamente a um projeto individual ou coletivo. Na ausência de um sistema positivo de responsabilidades, ou na falha de sua introjeção, a realidade assume rigorosamente uma atmosfera de universo paralelo, onde passa reinar o valor como 386


inversão; o não matarás, como a licença antecipada de fazê-lo, a atrocidade como jogo lúdico - e este, para ser perfeito, deve encontrar a vítima como produto de uma extração aleatória. Instaura-se, portanto, como valor não apenas o desprezo pelo outro, mas sua redução à mais insignificante animalidade - sobre cujo corpo se mesclam ao mesmo tempo o impulso sádico e a repulsa; o desejo de sujeitar e o asco pelo contato direto, conflito que se resolve no assassínio puro e simples. A história dos meninos guerreiros africanos, capturados para fins da guerrilha em Serra Leoa, por exemplo, mostra como a humanidade pode ser subvertida e degradada, tornada violência pura, força natural ressentimento que aniquila, reduz e mutila, jogo -, desde que se prepare adequadamente o terreno e que se exclua da vida qualquer senso próprio de responsabilidade. Segundo o Estado de São Paulo, 08/04/2007, Cultura D7, matéria assinada por Caio Blinder, “300 mil crianças são forçadas a combater em 50 conflitos no mundo, em sua maioria na África.” Na resenha sobre o livro A long way gone: Memoirs of a Boy Sodier 387


(Sarah Crichton Book; Farrar, Straus &Giroux) cuja autoria é de Ishmael Beah pode-se entender algumas das dimensões deste problema: a) “(...) capturado por tropas governamentais e recrutado para combater e se vingar dos rebeldes. Treinado e alimentado com drogas como ‘braown brown’, uma mistura de cocaína e pólvora, Ishmael se tornou um assassino contumaz.”; b) “Ele e outros recrutas eram obrigados a assistir infindáveis vezes a filmes violentos como Rambo”; c) “(...) proibidos de ficarem sozinhos. Refletir sobre o que estavam fazendo, nem pensar.”; d) “(...) após ele ter sido baleado no pé em uma batalha, seu comandante reuniu um punhado de inimigos capturados e disse ao garoto soldado que eles eram os responsáveis por seu ferimento. ‘Eu não estou seguro se um dos cativos era o atirador’, escreve Ishmael. ‘Mas qualquer um deles poderia ter atirado. Então, todos eles foram alinhados, seis deles, com suas mãos amarradas. Eu atirei nos seus pés e assisti ao sofrimento deles 388


um dia inteiro antes de finalmente atirar na cabeça para que eles parassem de chorar’”; e) “Ishmael ganhou um concurso sobre quem cortava com mais rapidez a garganta de um prisioneiro”.

Figura 127 - Diamantes de sangue (Edward Zwick, 2006)

Nesta alucinação da realidade é fundamental apartar, desconectar, reduzir e, em certo grau, eliminar a subjetividade. Não é um acidente, portanto, que a população mais jovem tenha maiores vantagens competitivas neste mercado do hediondo, e não foi por acaso que os nazistas cultuaram a juventude como valor – o homem como pura 389


potência natural é tanto mais promissor quanto menos experimentar a vida em sociedade. Se a importância das formações paramilitares para os movimentos totalitários não reside no seu duvidoso valor militar, também, não reside inteiramente na sua falsa imitação do Exército regular. Como formações de elite, são mais nitidamente separadas do mundo externo do que qualquer outro grupo. Os nazistas cedo compreenderam a íntima relação entre a militância total e a separação total da normalidade; as tropas de assalto nunca eram enviadas a serviço para suas comunidades de origem e os oficiais ativos da SA, no estágio anterior ao poder, e os da SS, já sob o regime nazista, eram tão móveis e tão frequentemente substituídos que simplesmente não podiam habituar-se ou deitar raízes em nenhuma parte do mundo comum. Eram organizados segundo o modelo das gangues de criminosos e usados para o assassinato organizado. Esses assassinatos eram perpetrados 390


publicamente e oficialmente confessados pela alta hierarquia nazista, de modo que essa franca cumplicidade quase impossibilitava aos membros deixarem o movimento, mesmo sob o governo nãototalitário e mesmo que não fossem ameaçados, como realmente o eram, por seus antigos camaradas. A esse respeito, a função das formações de elite é exatamente oposta àquela das organizações de vanguarda: enquanto estas últimas emprestam ao movimento um ar de respeitabilidade e inspiram confiança, as primeiras, disseminando a cumplicidade, fazem com que cada membro do partido sinta que abandonou para sempre o mundo normal onde o assassinato é colocado fora da lei, e que será responsabilizado por todos os crimes da elite. Consegue-se isso ainda no estágio anterior do poder, quando a liderança sistematicamente assume responsabilidade por todos os crimes e não deixa dúvida de que foram cometidos para o

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bem final do movimento. (ARENDT, 1990, p. 422)

Figura 128 - Triumph des Willens (Leni Riefenstahl, 1934)

Compreende-se verdadeiramente a natureza do problema; atingimos os limites próprios a esta questão? Vamos nela até seus elementos mais distantes e profundos, efetivamente corriqueiros? Pois bem, o que ocorre quando os pais, na ânsia de evitar a frustração de seus pequenos, no desejo irrefletido e projetado de não vê-los sofrer, tomam em seu lugar as responsabilidades que, ainda que pequenas, somente a eles deveriam caber? O pai que trapaceia em nome do filho; que exige por ele isto ou aquilo; que toma suas responsabilidades, que 392


empresta o carro e aceita para si a multa; que valores ensina? Porque o faz e procede deste modo? A vida em condomínios, fechados, lacrados, apartados deste outro imenso mundo - que em sua distância e total desconhecimento, pode se supor de antemão abjeto -, a que imaginário conduz; que percepções do humano engendra? A verdade, contudo, é que dificilmente se pode dar mais do que se possuiu: o que nos forma a todos como pedagogos de tal horror? A especificidade política do fascismo Soluções regressivas, intolerantes e bárbaras não são de modo algum fenômenos modernos e nem mesmo univocamente associáveis à sociedade capitalista, ainda que nesta formação social as escalas com que se praticou o morticínio, em que se dizimaram populações civis - em guerras que se propuseram e se realizaram como conflitos totais, com metas totais e que acabaram por se apropriar da própria lógica industrial, mobilizando a ciência e a tecnologia para seus fins -, tenham atingido proporções desconhecidas da história humana. As guerras religiosas que envolveram a Europa, desde o advento 393


das Cruzadas, por exemplo, podem ser caracterizadas como fenômenos de intolerância, que produziram suas próprias barbáries, ainda que em escala menor. Estavam presentes lá, como se encontram no fascismo e na intolerância contemporânea, uma certa percepção de um grupo de pertinência (in group) e aquele a que se opõe e, do mesmo modo, negava-se a este (out group) o estatuto de humanidade, o que legitimava de algum modo o assassínio em larga escala. 28 Ainda assim, em que pese a semelhança presente na dinâmica estabelecida entre a comunidade de pertinência com os grupos dela distintos e opostos (o outro, a alteridade), o fascismo deve ser entendido como um fenômeno específico da sociedade industrial porque ele pressupõe, em larga medida, a presença de um elemento radicalmente novo do ponto de vista histórico: o indivíduo, nesta pureza indeterminada, segregada e dissociada, com que ele se apresenta na sociedade moderna. Mais ainda, o fascismo pressupõe que a política envolva as massas e que estas, de algum modo, sejam mobilizadas para a luta política. O fascismo como fenômeno exige, portanto, que a noção de cidadania, 394


de pertencimento à polis, tenha avançado suficientemente para incluir a quase totalidade da população pertinente ao Estado - é logicamente, portanto, um elemento e desenvolvimento da moderna democracia de massas. Daí porque, do ponto de vista da sociopsicologia, o fascismo se apresente, em primeiro lugar, como um fenômeno de massa liderada - a qual se demonstrou estável no tempo e que buscou uma institucionalização correspondente, na forma da constituição de um regime coerente, sendo enquanto tal uma realidade pertinente, do ponto de vista histórico, apenas e tão somente à sociedade contemporânea.

Figura 129 - Hotel Ruanda (Terry George, 2004)

http://br.youtube.com/watch?v=9i6NiAqUrnM

395


O fascismo difere de muitas das formas clássicas de autoritarismo como, por exemplo, a tirania e a dominação oligárquica, exatamente porque requer as massas como ator privilegiado, ou seja, trata-se de um autoritarismo difuso, que conta ativamente com a participação de cada um dos seus membros, na realização de suas tarefas políticas. Ainda que não se possa de modo algum falar de democracia, pois o fascismo consiste e requer justamente a supressão de todas as liberdades democráticas para existir, não se pode deixar de considerar que está efetivamente em questão, quando se trata de fascismo, uma imposição da vontade da maioria ou, ao menos, de sua indiferença para com o “rumo das coisas”.

Figura 130 - Hotel Ruanda (Terry George, 2004)

http://br.youtube.com/watch?v=ROzVct6l1CU 396


A grande diferença entre a direita fascista e não fascista era que o fascismo existia mobilizando massas de baixo para cima. Pertencia essencialmente à era da política democrática e popular que os reacionários tradicionais deploravam, e que os defensores do “Estado Orgânico” tentavam contornar. O fascismo rejubilava-se na mobilização das massas, e mantinha-a simbolicamente na forma de teatro público – os comícios de Nuremberg, as massas na piazza Venezia assistindo os gestos de Mussolini lá em cima na sacada – mesmo quando chegava ao poder; como o faziam também os movimentos comunistas. (...) (HOBSBAWN, 2003, p. 121) Fascismo e capitalismo Dificilmente se pode sobre-estimar a importância do fenômeno nazifascista para se compreender a sociedade contemporânea. Ainda que muitos queiram vê-lo como simples acidente de percurso um desvio acidental ou incidental, no longo caminho de consolidação de uma sociedade que seria, 397


essencialmente, progressista, racional, etc. - e, portanto, pretendam compreendê-lo como uma manifestação aberrante, totalmente desvinculada da natureza mesma desta sociedade, o fato é, contudo, que o fascismo parece revelar mais de nós mesmos do que estamos dispostos a aceitar ou gostaríamos de acreditar. Talvez devêssemos mesmo, em termos primários, caracterizar o fascismo como a exteriorização (síndrome) específica pela qual se manifesta o mal estar civilizatório, nos quadros das modernas sociedades de massa: o fascismo é uma rebelião contra a civilização e contra a cultura, uma tentativa de resolução regressiva dos problemas que a modernidade nos apresenta.

Figura 131 - A noite de São Lourenço, 1982 Paolo Taviani / Vittorio Taviani 398


É possível falar da claustrofobia das pessoas no mundo administrado, um sentimento de encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada, com uma rede densamente interconectada. Quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente sua densidade impede a saída. Isto aumenta a raiva contra a civilização. Esta torna-se alvo de uma rebelião violenta e irracional. (ADORNO, 1995, p. 122) De certo modo, a contínua expansão da civilização e da extensão de seus domínios; a submissão dos mais recônditos territórios à norma civilizatória, trazem consigo, no interior mesmo de seu movimento expansivo, a possibilidade da barbárie. As exigências da vida em sociedade, à medida em que esta mesma vida torna-se progressivamente mais complexa e gera uma interdependência, que divorcia o indivíduo das condições que permitiriam sua reprodução autodeterminada, criam as possibilidades mesmas para uma espécie de ressentimento contra a civilização. 399


Mas quais são os elementos que dão substância e forma a esta revolta, de onde advém a energia vital, sem a qual nenhum movimento - inclusive o político - é possível? Desgraçadamente e, diferentemente daquilo que pretendem muitos, o ressentimento contra a civilização fundamenta-se não sobre um elemento excêntrico, acessório, adjacente de nossas vidas em sociedade, mas está em seu próprio cerne, ou seja, nas próprias definições categoriais do modo de produção capitalista da vida material.

Figura 132 - A noite de São Lourenço (Paolo Taviani / Vittorio Taviani, 1982)

http://br.youtube.com/watch?v=NdyAwWzNVNI

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(...) Penso que, além dos fatores subjetivos, existe uma razão objetiva para a barbárie, que designarei bem simplesmente como a da falência da cultura. A cultura, que conforme sua natureza promete tantas coisas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os homens. A divisão mais importante é aquela entre o trabalho físico e intelectual. Deste modo ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma acontecer nas coisas humanas, a consequência disto foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra o não cumprimento da situação pacífica que se encontra propriamente no conceito de cultura. Em vez disso, a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir. (ADORNO, 1995, p. 164) Quando se reflete sobre este diagnóstico que faz Adorno, é necessário não entender de modo limitado a questão da cisão entre trabalho intelectual e físico. É evidente que estamos diante de uma distinção 401


econômica e, em alguma medida, entre proprietários e não proprietários dos meios de produção, uma vez que está necessariamente envolvida aqui a determinação do que produzir e como produzir e, portanto, no limite, compreendida a submissão do trabalho às determinações do capital. Mas as dimensões desta distinção são muitíssimo mais profundas e extravasam a tópica capital-trabalho, para alojar-se no modo mesmo como se dá o processo de individuação nos quadros do capitalismo tardio. Trata-se aqui, de algum modo, portanto, de prazer e fruição; de satisfação, realização e autorrealização e, em extremo, do processo crítico e problemático em que se transformou a individuação enquanto tal. Em uma situação de autonomia do desenvolvimento técnico-científico, que progressiva e continuamente fragmenta e desqualifica o trabalho - independentemente de qual seja sua natureza, estando na base mesma da criação de sociedade de massas -, a individualidade é erodida em seu fundamento, ou seja, no próprio processo de experimentação do mundo. Quando Adorno questiona a continuidade da contradição produtiva engendrada pelo 402


conflito entre o desenvolvimento das forças produtivas e o desenvolvimento das relações de produção no “capitalismo tardio” – conceito que prefere em substituição a “sociedade industrial” – está questionando a formação a partir de uma determinada forma social assumida pelo trabalho. Forma social que no capitalismo tardio se caracteriza pela conversão progressiva de ciência e tecnologia em forças produtivas. Dirimindo a contradição entre forças produtivas e relações de produção, ao estancar a queda da taxa de lucros e manter a produção e consumo em níveis elevados, a ciência-técnica dissolve a experiência formativa a partir do trabalho social nos termos vigentes. A crise do processo formativo e educacional, portanto, é uma conclusão inevitável da dinâmica atual do processo produtivo. (MAAR: in ADORNO, 1995, p. 19 - Introdução) Como está em questão o processo de formação das subjetividades, do psiquismo individual - o qual resta incompleto, para falar o mínimo -, não é um 403


acidente que a insatisfação com as expectativas não atendidas, mas geradas pela cultura e pelo modo de produção da vida material, se exteriorizem em um ressentimento difuso e uma raiva manifesta contra as próprias “promessas” não atendidas – na justa medida em que estas são infinitamente mais acessíveis e imediatas à percepção, do que as mediações que deveriam conduzir da frustração destas mesmas expectativas, às determinações inerentes à ordem. Há, portanto, na ordem do dia uma reação irracional contra as determinações da ordem, que se demonstra e afirma como a antinomia da plataforma política racional para sua transformação. Neste aspecto o fascismo, em sua perenidade submersa, é igualmente uma fixação do ser à infância, um estado de menoridade permanente; capitulação da individualidade. Compreende-se, então, que o insucesso do capitalismo em promover o bem-estar volte-se não contra o próprio sistema, mas contra a democracia, stage onde se debatem os vetores de ação política que deveriam, de algum modo, conduzir o sistema a promover justamente o bem-estar que se pretende alcançar. Quando os meios de comunicação de massa 404


dão curso ao ressentimento popular contra a política, ressaltando a lentidão do processo parlamentar, a inépcia dos governos, etc., não fazem mais do que se perfilar com uma tendência geral, que desqualificando instâncias de intermediação política na sociedade democrática, colocam permanentemente na agenda do dia a possibilidade mais ou menos remota - de soluções autoritárias. (...) Como o antissemitismo sobrevive às grandes crises de ódio contra os judeus, a sociedade formada pelos antissemitas subsiste em estado latente durante os períodos normais e todo antissemita considera-se incluso em seu quadro. Incapaz de compreender a organização social moderna, sente a nostalgia dos períodos de crise em que a comunidade primitiva reaparece de súbito e atinge a sua temperatura de fusão. Deseja que sua pessoa afunde repentinamente no grupo e seja arrastada pelo caudal coletivo. Tem em mira esta atmosfera de pogrom quanto reclama “a união de todos os franceses”. Neste sentido, o antissemitismo, na 405


democracia, é uma forma sorrateira daquilo que se denomina a luta do cidadão contra os poderes. Interroguemos a um desses jovens turbulentos que infringem placidamente a lei e se juntam em bandos para surrar um judeu numa rua deserta: ele nos dirá que aspira a um poder forte que o exima da acabrunhadora responsabilidade de pensar por si próprio; sendo a República um poder fraco, vê-se levado à indisciplina por amor à obediência. Mas deseja realmente um poder forte? Na realidade, exige para os outros uma ordem rigorosa e, para si, uma desordem sem responsabilidade; pretende colocar-se acima das leis, evadindo-se ao mesmo tempo, da consciência de sua liberdade e de sua solidão. (...) (SARTRE, 1978, p. 18- grifos meus) A contínua presença e marca do fascismo sobre a sociedade contemporânea é, portanto, a contrapartida necessária, a expressão mesma, da permanência e imanência da heteronomia a que se sujeita o indivíduo em seu interior; decorre das condições de uma existência alienada e alienante, na 406


qual se opõe a sua individualidade necessária, enquanto forma da existência, às possibilidades de reprodução auto-determinada. Nestas condições não se pode escapar de uma tendência persistente a soluções de natureza totalitária. Exatamente por isso a solução fascista não pode ser considerada como uma aberração, sendo, quanto antes, elemento pertinente à sociedade contemporânea. A sociabilidade sob assalto Compreende-se a velocidade e abrangência, com que a solução fascista tomou de assalto sociedades altamente desenvolvidas e politizadas, uma vez que se leve em consideração que a sobredeterminação do indivíduo ou, dito de outro modo, sua dissolução frente a entes que o sujeitavam, já ocorria antes da institucionalização do regime e como uma propriedade mesmo da moderna sociedade de massas. Dito de outro modo: as exigências da sociedade sobre o indivíduo, o esforço adaptativo que se lhe impõe já são “totais”, mesmo antes que se erija um regime totalitário. Por esta razão, na ausência de um exercício crítico permanente e de um esforço de resistência organizada e incansável às determinações 407


do regime de produção, as condições que tornam possível a emergência e permanência das propostas fascistas apresentam-se, quase que subliminarmente. A sobrevivência do fascismo e o insucesso da tão falada elaboração do passado, hoje desvirtuada em sua caricatura como esquecimento vazio e frio, devem-se à persistência dos pressupostos sociais objetivos que geram o fascismo. Este não pode ser produzido meramente a partir de disposições subjetivas. A ordem econômica e, seguindo seu modelo, em grande parte também a organização econômica, continuam obrigando a maioria das pessoas a depender de situações dadas em relação às quais são impotentes, bem como a se manter numa situação de não-emancipação. Se as pessoas querem viver, nada lhes resta senão se adaptar à situação existente, se conformar; precisam abrir mão daquela subjetividade autônoma a que remete a ideia de democracia; conseguem sobreviver apenas na medida em que abdicam seu próprio eu. Desvendar as teias do 408


deslumbramento implicaria em um doloroso esforço de conhecimento que é travado pela própria situação da vida, com destaque para a indústria cultural intumescida como totalidade. A necessidade de uma tal adaptação, da identificação com o existente, com o dado, com o poder enquanto tal, gera o potencial totalitário. Este é reforçado pela insatisfação e pelo ódio, produzidos e reproduzidos pela própria imposição à adaptação. Justamente porque a realidade não cumpre a promessa de autonomia, enfim, promessa de felicidade que o conceito de democracia afinal assegurara, as pessoas tornam-se indiferentes à democracia, quando não passam até a odiála. A forma de organização política é experimentada como sendo inadequada à realidade social e econômica; assim como existe uma obrigação individual à adaptação, pretende-se que haja também, obrigatoriamente, uma adaptação das formas da vida coletiva, tanto mais quando se aguarda uma tal adaptação e balizamento 409


do Estado como megaempresa na aguerrida competição de todos. Os que permanecem impotentes não conseguem suportar uma situação melhor sequer como mera ilusão; preferem livrar-se do compromisso com uma autonomia em cujos termos suspeitam não podem viver, atirando-se no cadinho do eu coletivo. (ADORNO, 1995, p.43-4 - grifos meus) O estado totalitário corresponde, portanto, ao patamar atingido pelas subjetividades: uma vez que os indivíduos tenham sidos obrigados a tudo renunciar, a sujeitarem-se à ordem apenas e tão somente para poderem viver, uma vez que sejam obrigados a fazer toda e qualquer coisa para garantir sua mera reprodução material, exigem que este estado de coisas se universalize, de modo a que ele seja compulsório. É assim que esta máquina infernal se põe a caminho; ela não admite dissidências, dúvidas, fraquezas ou sutilezas. A redução ao padrão que a mercadoria exige e realiza, extrapola o mundo das coisas e assalta o mundo humano, e o ariano não é mais do que a 410


busca enlouquecida por este padrão invariável que nenhum ser humano teria o direito de superar. O caráter absolutamente regressivo do fascismo também se encontra aqui: a miséria subjetiva universal, o esfacelamento de um mundo propriamente subjetivo, deve ser total e para sê-lo todos passam a estar condenados ao padrão. Mas, uma vez estatuído o padrão, que não pode ser mais do que a universalização do desespero, do preconceito e da pobreza de espírito, para super compensar a miséria imanente, o herói deve dar o seu salto mortal e converter-se de penúria ambulante, de ressentimento personalizado, em super-homem atávico, em guerreiro celta, normando, etc. E como senhor do mundo, como mito ressurgido, de que cada indivíduo seria apenas um exemplar individual (obtido em série, como na moderna produção capitalista), este guerreiro fantasmagórico passa a ditar a vida e a morte e eliminar tudo a que ele não se assemelha e tudo em que ele não se reconhece. A reificação universal, a inversão a que o mundo produtor de mercadorias dá causa, quando nos fala em sua forma acabada, o faz através de homens de quem toda a substância vital 411


foi extraída: autômatos, esta é a origem e a meta societária do regime totalitário. Educar para competir e sobreviver Compõe o quadro cultural mais amplo, como antecedente histórico do fascismo, a presença de uma educação repressiva, autoritária e disciplinadora, cujo afã último era exatamente preparar o indivíduo para as exigências da sociabilidade moderna, ou seja, formar o homem que corresponda aos requerimentos da sociedade industrial, reforçando, portanto, os elementos alienantes que lhe são imanentes, bem como a cisão fundamental que a constitui. Por este meio são reforçados os valores competitivos e o individualismo, desenvolvendo-se uma capacidade sobrehumana de tolerar o esforço com fim adaptativo, relativamente a situações cambiantes e incertas, práticas que terminaram por levar a tipos humanos profundamente marcados por predisposições masoquistas. 412


Figura 133 - Amarcord (Federico Fellini, 1973)

http://br.youtube.com/watch?v=bBWbRjbhl4c

A irrupção da sociedade industrial de massas, a destruição dos anteparos sociais (no dizer de Karl Polanyi) e a dura luta pela sobrevivência – a elogiada educação para a vida – serviram de base para a recepção positivada de concepções de mundo baseadas na fórmula “só os fortes vencerão”, tão típica de um Estado sadoautoritário, como o fascismo. Pessoas exigentes consigo mesmas, capazes de grandes sacrifícios, de uma frugalidade permanente ou de abstinência em nome de 413


uma doutrina moral; uma virilidade baseada na capacidade de suportar o esforço extenuante e a dor; a lógica da acumulação para o usufruto futuro ou medo de exposição ao desencanto no presente marcariam a sublimação em masoquismo das pulsões originariamente voltadas para o prazer; em seu conjunto tais práticas garantiriam, para si e seus filhos, uma educação autoritária; masoquistas consigo mesmos, apresentariam uma face sádica ante o outro; em suma, ser duro consigo abriria o caminho para ser cruel com o outro. O link fundamental entre o individual e o coletivo residiria no medo (Neumann), na alienação (Marx) ou no mal-estar (Freud) onipresente no homem da sociedade industrial de massas, regida por uma ordem heteronômica, individualista e competitiva. Há, sem dúvida, um medo real, concreto, ligado às garantias do trabalho, de velhice, de aceitação profissional – em suma, do sucesso na moderna sociedade capitalista. 414


De outro lado, um medo neurotizado, “produzido pelo eu com o fim de evitar, por antecipação, a mais remota possibilidade de perigo”. Essa junção permite a intensificação dos medos reais e a busca ansiosa de garantias, normalmente encontradas na figura de um líder carismático. É a libido, reprimida em face dos medos interiores, que surge como argamassa da identificação da massa com seu líder. É desta mesma forma que o indivíduo é alienado com um eu próprio, como uma identidade de si mesmo, em favor da plena identificação com seu líder. (SILVA, 2003, p.154)

Figura 134 - Amarcord (Federico Fellini, 1973)

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Contribui muitíssimo para esta propensão sadomasoquista a exultação de uma determinada espécie de virilidade como valor, algo presente não apenas no fascismo enquanto tal, mas também na cultura alemã que o antecedeu. A valorização desta virilidade orienta a estética, tornando as figuras masculinas nuas e descomunalmente grandes um lugar comum. O esporte, contudo, acaba por se reger pelo mesmo fenômeno, com a vantagem de fundir em um mesmo espetáculo o culto do corpo e o amor da pátria. A ideia de que a virilidade consiste num grau máximo da capacidade de suportar a dor de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que – como mostrou a psicologia – se identifica com muita facilidade com o sadismo. O elogiado objetivo de “ser duro” de uma tal educação significa a indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito a ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações 416


precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente. Dito de outro modo: a educação precisa levar a sério o que já de há muito é conhecido da filosofia: que o medo não deve ser reprimido. Quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto esta realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido. (ADORNO, 1995, p. 129) Mantemo-nos, contudo, firmemente na contramão desta advertência. A educação capitulou diante do pragmatismo; rendeu-se às exigências do preparar para competir e para sobreviver, que contaminam seus valores e inundam todo seu aparato imagético. A meta da educação passa a ser então a prova e o conhecimento um meio para este fim. Deste modo, o estudar passa a ser 417


intrinsecamente competitivo, gerando uma escala diferencial dos indivíduos, que se mede diretamente pela nota, pelo título e pela performance. A capacidade das crianças em lidar com uma avalanche de informações, com as infinitas exigências de um aprendizado desconexo, mas obrigatório, e com o estresse são uma antecipação de suas habilidades futuras, conquistadas ao preço do sacrifício de sua vivência lúdica. A educação é uma fórmula: a criança é um pequeno adulto. Que a psicologia o negue; que a pedagogia abra revolta aberta, nada disso muda uma determinação que é macro social: apenas aqueles que forem devidamente despersonalizados, que perderem decididamente a faculdade de interagir ludicamente com o mundo, que desenvolverem a frieza que a situação requer - o sangue de barata -, que aderirem incondicionalmente ao projeto que os torna autômatos produtivos; apenas estes têm chances infinitas de êxito. Cada fracasso em atingir este padrão, que se pode objetivamente medir por meio da nota e da performance - e que se expande como uma metástase na sua abrangência de novos campos e exigências -, equivale a uma redução na 418


probabilidade futura do êxito. Nestes termos, a educação também ela se converte em uma linguagem, cujos símbolos os leem o capital. Não poderia deixar de ser matemática sua natureza, pois para o capital, toda a qualidade é uma sina de redução ao meramente quantitativo. O telejornalismo barato

Figura 135 - The Fly (Kurt Neumann, 1958)

http://www.youtube.com/watch?v=bJWpBRrdKhA

The use of stereotypes of Jewish greed and sabotage, and the metaphor of the bacteria cannot obscure the fact that something more than wealth and hygiene is involved. Although the speaker uses the terms such as 419


spirit, soul, and love of our people, the essential point he wants to impress upon his listeners is this: under no circumstances must they succumb to human impulses. The dehumanization and killing of the Jew cannot be carried out effectively unless the killer too is dehumanized, unless he extirpates in himself every claim to human existence as an individual. (Lowenthal, 1987, p.99 – grifos meus) A solução fascista nega o propriamente humano de modo radical, não reconhecendo tal estatuto, quer para a vítima quer para o algoz. Justamente porque o carrasco - o cavaleiro nórdico - não é mais humano, a vítima não mais pode sê-lo igualmente. Mas neste edifício de raiva e ódio, a vítima tem um papel econômico fundamental: para impedir que a sua fúria destrutiva volte-se contra si mesmo, nosso herói precisa eleger um objeto exterior para o qual canalizá-la. Somente a imolação constante e reiterada da vítima permite manter íntegro, de pé, aquele guerreiro legendário. É justamente porque não passa de uma fantasmagoria, de uma casa vazia, cujo espírito foi desterrado, que este formidável 420


títere precisa de sua vítima: sem o seu sangue ele dissolveria a si mesmo, como os vampiros no contato com a luz do sol. Por outro lado, o modo como as lideranças fascistas se relacionam com as massas - a habilidade que tinham para manipulá-las e mobilizá-las, a “sensibilidade” que demonstravam para captar o ressentimento e a frustração, que se apresentam como traço específico das sociedades contemporâneas – é algo de novo, relativamente ao velho autoritarismo. Esta característica é essencial, pois o velho padrão era anti-massa - de vez que apoiado em uma espécie de reminiscência da sociedade aristocrática -, ao passo que o novo fundamenta-se necessariamente na dialética líder (liderança) - massa, extraindo daí a energia pulsional que o move. A fascinação que o líder fascista exerce, à sua vez, fundamenta-se precisamente no oferecer ao liderado, como pertinente e legítimo também para ele, aquilo que ele líder quer e deseja – desejos esses que, faz questão de dizê-lo em alto e bom som, tem “coragem” para concretizar. O líder fala, portanto, ao 421


irracional nos homens e, portanto, é tolerante para com seus requerimentos recalcados, que se esforça por fazer vir à tona. Confere, contudo, a esse ódio atávico, uma condição de normalidade e aceitabilidade, uma justificativa e uma racionalidade. Estabelece uma plausibilidade para o absurdo, fundada no lugar comum e nos preconceitos corriqueiros, nos restos e dejetos de ranços raciais e sociais seculares, que por justamente por serem usuais - por fazerem parte das piadas de mal tom, dos sorrisos maliciosos, das conversas de barbeiro têm a autoridade de tudo aquilo que está firmemente estabelecido.

Figura 136 - The Fly (Kurt Neumann, 1958)

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No encantamento que produz o líder é uma espécie de linha de frente da liberação do recalcado; a fala desinibida que conclama à farra do instinto, mas na forma de um Dionísio sedento de sangue. Ele se antecipa à massa, mas na condição de quem sabe que oferece aos seduzidos exatamente aquilo que eles querem - mandar aos ares este mundo “injusto”, onde a corja e a ralé ameaçam os legítimos e diletos descendentes da boa raça. Suas metáforas, portanto, são reducionistas e violentas, mas tanto quanto possível seu texto é formulado na ordem direta: slogans e palavras de ordem, declarações apaixonadas de ódio, ainda que em nome do amor e das grandes causas da pátria. As palavras que compõe o seu discurso são, portanto, os primeiros chutes do pogrom. As habilidades do líder e do manipulador fascista jamais foram perdidas, contudo; suas técnicas se preservaram, por exemplo, ainda que não somente, como elemento inerente ao telejornalismo barato: o apresentador que vocifera contra o universo político e que degrada a democracia como um regime de corruptos; que relata o evento criminoso como quem conclama ao linchamento; que requer o completo 423


reordenamento do mundo, que perdeu todos os limites e se afunda na imoralidade e na indecência; que tem a coragem de denunciar a realidade como a própria realização do obsceno; que demonstra sua indignação, que abre o peito e desvela seus sentimentos de inconformidade - este tipo é o próprio manipulador fascista como reminiscência. Ele, na própria dinâmica de seu desnudamento, já é uma gratificação do ressentimento acumulado no ouvinte - estão ambos sempre a um passo, portanto, de se fundirem na violência aberta. (...) os tipos característicos do mundo de Auschwitz , constituem provavelmente algo de novo. Por um lado, eles representam a identificação cega ao coletivo. Por outro, são talhados para manipular as massas, coletivos, tais como Himmler, Hos, Eichmann (ADORNO, 1995, p. 127) O fascismo é protopolítico A tendência à despersonalização e à dissolução da individualidade,29 a insegurança inseparável da condição moderna - posto que o modo pelo qual a 424


vida se produz e reproduz, para cada indivíduo em particular, é algo de probabilístico e externo à sua vontade - criam as macro condições para o surgimento da intolerância, da violência e, finalmente, das práticas fascistas. A relação, portanto, entre democracia de massa e irrupções fascistas não é simples, não sendo equivocado afirmar que de modo algum, a simples presença de um regime democrático, eliminaria possibilidades e soluções daquela natureza. Ao contrário, o regime democrático nas condições da sociedade contemporânea, marcada que está por uma deficiência imanente no processo formativo dos indivíduos, compreende em si o fascismo como possibilidade. A formalidade normativa (democrática) não afasta a hipótese fascista, simplesmente porque os fundamentos do fascismo são também proto-políticos, encontrando-se na sociedade civil, na intimidade da vida privada, na economia pulsional da sociedade de massas. Ainda que não se deva cair no erro de - abstraindo tudo aquilo que se sabe sobre o fascismo histórico -, enxergar manifestações fascistas em todos os lugares, não se pode desconsiderar que existem 425


atualmente, por exemplo, elementos francamente fascistas no debate político mundial. Talvez, contrariamente ao que pensam muitos, o perigo maior se apresente, justamente, na sobrevivência de tendências fascistas no interior da democracia, tendências estas que, diferentemente do neonazismo, por não serem explícitas, dificilmente se podem identificar e combater 30. Malaise is a consequence of the depersonalization and permanent insecurity of modern life. Yet it has never been felt among people so strongly as in the past few decades. The inchoate protest, the sense of disenchantment, and the vague complaints and forebodings that are already perceptible in late nineteenth-century art and literature have been diffused into general consciousness. There they function as a kind of vulgarized romanticism, a Weltschmerz in perpetuum, a sickly sense of disturbance that is subterranean but explosive. The intermittent and unexpected acts of violence on the part of the individual and the similar acts of violence to which whole 426


nations can be brought are indices of this underground torment. Vaguely sensing that something has gone astray in modern life but also strongly convinced that he lacks the power to right whatever is wrong (even if were possible to discover what is wrong), the individual lives in a sort of eternal adolescent uneasiness. (LOWENTHAL, 1987, p.27 – grifos meus) A razão e a perversão O convívio relativamente pacífico entre o enorme desenvolvimento técnico-científico e a irracionalidade bárbara, que caracterizou tão intensamente o fascismo reclama a devida atenção. Afinal de contas, a lógica parece sugerir que a racionalidade técnico-científica deveria deslocar a irracionalidade e, a rigor, não foi isso que se deu - o fascismo não foi anti-tecnológico, ainda que tivesse desnaturado em larga medida a pesquisa científica. No campo econômico especificamente, o fascismo não eliminou a moderna produção fabril em favor de formas pré-capitalistas de produção; quanto antes se utilizou obstinadamente dela, de modo a potenciar 427


seu poderio para o esforço de guerra. Em meio à sandice fascista sobreviveu, portanto, uma determinada manifestação da razão. Mas que “razão” é esta? Sem dúvidas a razão instrumental, conforme definida por Weber e, portanto, a racionalidade ao menos econômica, como a entendemos correntemente. Custa a crer, mas no fascismo conviveram, e de modo pacífico, orgânico, o fosso irracionalista do mito e a ciência aplicada, ela mesmo produto dileto da razão instrumental. Estas questões não podem ser enfrentadas sem que aceitemos efetuar uma revisão crítica de muitas das crenças que vêm caracterizando a modernidade, se é que não estamos obrigados mesmo a repensar a modernidade enquanto tal. Ora, quem seria a principal vítima do fascismo no terreno do pensamento, senão o conceito de progresso, conforme nós o herdamos do Iluminismo? A inocência Iluminista jamais poderá se recuperar deste imenso golpe, através do qual se demonstrou de maneira inequívoca, insofismável e trágica que a possibilidade de alternativas regressivas existe, não como produto de um obscurantismo inofensivo e limitado, mas como via política de imenso poder e 428


abrangência, a qual se encontra no interior mesmo da civilização e não em territórios dela desconhecidos. Ao colocar o problema desta maneira, não se pretende de modo algum negar os princípios do Iluminismo. Muito ao contrário: ainda que ferida e alijada de sua inocência inicial pelo terror fascista, a razão no sentido crítico, a razão propugnada pelo projeto iluminista permanece como única porta de saída do inferno totalitário. Se aceitarmos partilhar do ideal kantiano do esclarecimento poderemos, talvez, abandonar nossa longa menoridade e compreender, que a civilização não é uma realização, mas um ideal e uma promessa; que o esforço crítico não é uma contingência, mas o único modo pelo qual se pode combater o irracionalismo; que não se pode transigir com a injustiça, posto que na indiferença diante do absurdo, é vitimada a totalidade da humanidade e não uma comunidade em particular; que as feridas marcadas sobre o corpo e o psiquismo do outro, são feridas que a mim se impõem, uma vez que degradam o estatuto mesmo da condição humana. 429


No que diz respeito à consciência coisificada, além disso é preciso examinar também a relação com a técnica, sem restringir-se a pequenos grupos. Esta relação é tão ambígua quanto a do esporte, com que aliás tem afinidade. Por um lado, é certo que todas as épocas produzem as personalidades - tipos de distribuição de energia psíquica - de que necessitam socialmente. Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes consequências no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao “véu tecnológico”. Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. (...) 430


Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o ponto de transição entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta um sistema ferroviário para conduzir as vítimas de Auschwitz com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com estas vítimas em Auschwitz. (ADORNO, 1995, p. 132-3) A Primeira Guerra e o fascismo O advento da Primeira Grande Guerra não pode ser abstraído em hipótese alguma, quando se pensa sobre o surgimento do fascismo. Sua escala e violência, a mobilização total, industriosa e industrial, científica, para seus propósitos a torna, em grande medida, uma novidade que iria marcar por longo tempo os espíritos (ainda que, sob o aspecto da mobilização da população civil, a Revolução Francesa seja um antecedente digno de nota). Se a frieza e a indiferença estão necessariamente presentes no fascismo, como algo distintivo e característico, a Primeira Guerra foi, sem dúvida, um terreno no qual 431


tais atributos puderam ser exercitados à exaustão. Isto ocorreu especialmente porque ela foi proposta como guerra total, que desconhecia limites e, portanto, que não necessariamente acolhia restrições ao exercício da brutalidade. Por que, então, a Primeira Guerra Mundial foi travada pelas principais potências dos dois lados como um tudo ou nada, ou seja, como uma guerra que só podia ser vencida por inteiro ou perdida por inteiro? O motivo era que essa guerra, ao contrário das anteriores, tipicamente travadas em torno de objetivos específicos e limitados, travava-se por metas ilimitadas. Na Era dos Impérios a política e a economia se haviam fundido. A rivalidade política internacional se modelava no crescimento e competição econômicos, mas o traço característico disso era não ter limites. (HOBSBAWN, 2003, p. 37)

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Figura 137 - Kagemusha – A sombra de um samurai (Akira Kurosawa, 1980)

Os fins ilimitados, com que se lançaram os beligerantes à guerra, fizeram dela um desastre humanitário, por todos critérios que se queira utilizar. Vários dos países contendores se viram, por exemplo, com déficits significativos em suas populações masculinas e a parte dela que sobreviveu, por outro lado, teve de enfrentar sequelas, quer físicas ou espirituais. A sua natureza, ou seja, uma guerra de posições (trincheiras) na Frente Ocidental, que opunha enormes contingentes de homens em uma luta quase física, nas oportunidades em que ela ocorria, levou a um morticínio jamais visto anteriormente. Tal brutalidade, obviamente, não poderia ter feito regredir mais os limites da civilização, deixando entreaberta a porta pela qual o futuro poderia, facilmente, mirar a crueldade como fato banal. 433


Não surpreende que na memória dos britânicos e franceses, que travaram a maior parte da Primeira Guerra Mundial na Frente Ocidental, esta tenha permanecido como a “Grande Guerra”, mais terrível e traumática na memória que a Segunda Guerra Mundial. Os franceses perderam mais de 20% de seus homens em idade militar, e se incluirmos os prisioneiros de guerra, os feridos e os permanentemente estropiados e desfigurados - os “gueules cassés” *“caras quebradas”+ que se tornaram parte tão vívida da imagem posterior da guerra -, não muito mais de um terço dos soldados franceses saiu da guerra incólume. As possibilidades do primeiro milhão de soldados britânicos sobreviver à guerra incólumes eram de mais ou menos 50%. Os britânicos perderam uma geração – meio milhão de homens de menos de trinta anos (...) Mesmo as baixas aparentemente modestas dos EUA (116 mil, contra 1,6 milhão de franceses, quase 800 mil britânicos e 1,8 milhão de alemães), na 434


verdade demonstram a natureza assassina da Frente Ocidental, única em que estes lutaram. (HOBSBAWN, 2003, p. 33-34) Deve-se complementar este caráter de guerra total, ilimitada, com a evidência de que ela implica na democratização da guerra, ou seja, uma mobilização de todo o conjunto da população para seus propósitos econômicos e políticos, o que faz das populações civis, a um só tempo, participante e vítima da conflagração. Diga-se de passagem, a natureza da guerra mudou no século XX. Não se tratava mais da guerra do tipo aristocrática com seus códigos de honra e conduta, com o reconhecimento da dignidade implícita do oponente. (...) Os conflitos totais viraram “guerras populares”, tanto porque os civis e a vida civil se tornaram alvos estratégicos certos, e às vezes principais, quanto porque em guerras democráticas, como na política democrática, os adversários são naturalmente demonizados para fazê-los devidamente odiosos ou pelo menos desprezíveis. As guerras conduzidas de 435


ambos os lados por profissionais, ou especialistas, sobretudo os de posição social semelhante, não excluem o respeito mútuo e a aceitação de regras, ou mesmo cavalheirismo. A violência tem suas leis. (...) Mas as guerras totais estavam muito distantes do padrão bismarckiano do século XVIII. Nenhuma guerra em que se mobilizam os sentimentos nacionais de massa pode ser tão limitada quanto as guerras aristocráticas. (...) (HOBSBAWN, 2003, pp. 56-57) Este envolvimento abrangente do conjunto da população tem uma importância não desprezível para a compreensão do nazismo, uma vez que, de certo modo, banaliza a violência, que passa a fazer parte, então, da própria lógica da guerra, senão - o que é muito mais grave - da própria política. Reeditase, com outra dimensão, a assertiva segundo a qual a política seria a continuação da guerra por outros meios 31. Não por acaso, o soldado que lutou na frente de batalha irá se mostrar, no caminho de ascensão do nazismo, como um dos mitos a que recorrentemente se fez remissão, no sentido de 436


idealizar o heroísmo do povo alemão - situação que se reportava diretamente a Hitler, ele mesmo um desses soldados. A economia alemã pós Primeira Guerra Não bastasse seu caráter estupidamente violento, da Primeira Guerra decorreu ainda um sistema de reparações, que só faria recrudescer o ressentimento nacional alemão, dado o evidente absurdo de seus termos. John Maynard Keynes, que participou da comitiva britânica que negociou os termos da paz, e um dos mais brilhantes economistas do século XX, em sua obra Consequências Econômicas da Paz, faria uma crítica mordaz e violenta das obrigações que foram impostas àquele país. A rigor, a derrota de suas teses reafirmou os termos dos interesses da Inglaterra e da França (especialmente a segunda), que não poderiam ser outros que não enfraquecer e manter impotente a Alemanha, que insistia em disputar até a exaustão espaços econômicos que viabilizassem sua expansão (econômica) nacional. A humilhação inerente às condições em que a paz se firmou deu aos nazistas,

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farto provimento em seu caminho rumo à tomada do poder.

Figura 138 - Grande Hotel (Edmund Goulding, 1932) “A estenografa”

As desventuras econômicas da Alemanha não se restringiriam, contudo, às consequências imediatas da Guerra. Em princípios da década de 1920 o país incorre em uma hiperinflação severa, que viria mesmo a ser referência clássica, em grande parte da literatura sobre o assunto. Além do estresse difuso por entre a população, intrinsecamente vinculado a fenômenos desta natureza, a hiperinflação teve como conseqüência necessária a imposição de 438


imensas perdas patrimoniais, especialmente aos contingentes populacionais que auferiam rendimentos oriundos de ativos financeiros ou, ainda, daqueles que recebessem quaisquer valores na forma de contraprestações pecuniárias como, por exemplo, seguros, pensões, aluguéis, etc. Na ausência de sistemas de indexação de valores, tais perdas não foram relativas, mas quase absolutas e na imensa maioria dos casos, irreparáveis. Em suma, poupanças privadas desapareceram, criando um vácuo quase completo de capital ativo para as empresas (...). Quando a grande inflação acabou, em 1922-3, devido à decisão dos governos de parar de imprimir papel-moeda em quantidade ilimitada e mudar a moeda, as pessoas na Alemanha que dependiam de rendas fixas e poupança foram aniquiladas, embora uma minúscula fração do dinheiro tivesse sido salva na Polônia, Hungria e Áustria. Contudo, pode-se imaginar o efeito traumático da experiência nas classes médias e média baixa locais. Isso deixou a 439


Europa Central pronta para o fascismo. (HOBSBAWN, 2003, p. 94-95)

Figura 139 - Grande Hotel (Edmund Goulding, 1932)

A saga econômica alemã não findou, no entanto, com a hiperinflação. A rigor, a destruição de capitais e poupanças em escala maciça, a que ela deu causa, levou o país a contrair vultosos empréstimos internacionais, especialmente dos Estados Unidos os grandes beneficiados pela dinâmica econômica que a Guerra havia criado. Com fundamento em tais financiamentos (20 a 30 trilhões de marcos), a Alemanha logrou atingir um período de certo 440


crescimento, ainda que o desemprego se mantivesse relativamente elevado, se comparado aos padrões anteriores a 1914 (HOBSBAWN, 2003, p. 95). A grande Depressão de 1929 viria, então, insurgir-se como uma derradeira catástrofe, na justa medida em que, tendo levado os Estados Unidos a knock out, fez refluir da Alemanha os capitais anteriormente emprestados a curto prazo. Repentinamente despojado de financiamentos imprescindíveis, o país não pode resistir, e adentrou em um ciclo depressivo de magnitude assustadora, o qual se consubstanciou em níveis de desemprego trágicos 32. Para aqueles que, por definição, não tinham controle ou acesso aos meios de produção (a menos que pudessem voltar para uma família camponesa no interior), ou seja, homens e mulheres contratados por salários, a consequência básica da Depressão foi o desemprego em escala inimaginável e sem precedentes, e por mais tempo que qualquer um já experimentara. No pior período da Depressão (1932-3), 22% a 23% da força de trabalho britânica e belga, 24% da sueca, 27% da americana, 29% da 441


austríaca, 31% da norueguesa, 32% da dinamarquesa, e nada menos do que 44% da alemã não tinham emprego. (HOBSBAWN, 2003, p. 97)

Figura 140 - Grande Hotel (Edmund Goulding, 1932) “O barão, a estenografa e o contador”

Obviamente não se pode subestimar o poder de desorganização que situação de tal ordem apresenta, especialmente se considerarmos que a seguridade social abrangente era algo bastante limitado à época. Tanto assim que, em se acompanhando a performance política do partido Nacional-Socialista, 442


pode-se identificar uma relação bastante significativa com as tendências cíclicas apresentadas pela economia capitalista à época. Após a recuperação econômica de 1924, o Partido dos Trabalhadores NacionalSocialistas foi reduzido à rabeira de 2,5 a 3% do eleitorado, conseguindo pouco mais da metade do que o pequeno e civilizado Partido Democrático alemão, pouco mais que um quinto dos comunistas e muito menos de um décimo dos socialdemocratas nas eleições de 1928. Contudo, dois anos depois havia subido para mais de 18% do eleitorado, tornando-se o segundo partido mais forte na política alemã. Quatro anos depois, no verão de 1932, era de longe o mais forte, com mais de 37% dos votos totais, embora não mantivesse esse apoio enquanto duraram as eleições democráticas. Está claro que foi a grande depressão que transformou Hitler de um fenômeno da periferia política no senhor potencial e, finalmente real, do país. (HOBSBAWN, 2003, p. 133) 443


Não se deve perder de vista que os reveses a que se submeteu a Alemanha, já a partir da negociação dos termos da paz pós Primeira Guerra, trouxe consigo uma profunda crise de valores e uma movimentação frenética na posição socioeconômica de sua população. O desamparo que decorreu da desorganização de sua economia forma, portanto, a antessala que preparou o advento do fascismo, ainda que não o explique. Grande Hotel (Edmund Goulding, 1932) O filme se passa em Berlin, em um hotel de luxo, onde a alta burguesia desfila com seus fraques e cartolas, sua imponência e, de certo modo, se mantém indiferente para o desastre humanitário em que a Alemanha está envolvida – uma sucessão de hiperinflação e depressão econômica. No cenário luxuriante os protagonistas do filme são, contudo, tipos decadentes: um barão arruinado, que se dedica ao jogo e aos pequenos crimes; um contador em vias de morrer, que decide hospedar-se mesmo não tendo como pagar por sua estada; uma estenógrafa que sonha com a carreira de atriz, mas faz bicos 444


como modelo fotográfico e flerta com uma prostituição de ocasião; um empresário falido, que espera redenção vinda do outro lado do canal da Mancha, por meio de uma fusão empresarial; um médico sem atividade e de quem ninguém quer verdadeiramente saber; uma dançarina de sucesso declinante, que se desespera mediante o fracasso de sua temporada. Que estes tipos bizarros sejam os personagens da história é algo de muito curioso. Em primeiro lugar há uma remissão à desorganização econômico-social pela qual passa a Alemanha, após a primeira guerra mundial. Existe igualmente, contudo, uma antecipação: exatamente estes seres desajustados, que não encontram um lugar preciso na ordem social, conforme ela emergiu dos acordos de paz de Paris, formarão grande parte das linhas de frente do nazismo. Esta vanguarda, este exército de Brancaleone é, não entanto, uma presença que se movimenta a partir de um elemento que não se dá a conhecer, ainda que esteja insinuado no ambiente. Não tem nome, não toma jamais a dianteira, mas, em certa medida, tudo se move em função dele. A história do nazismo alemão é, em parte ao menos, o 445


produto deste movimento, em que uma linha de frente pequeno-burguesa e lumpen-proletária toma a dianteira, mas apenas para se movimentar segundo a lógica do grande capital – o personagem pressuposto no filme, o protagonista invisível. É de se notar, por fim, que a inovação formal que o filme traz - consistir a rigor de um conjunto de painéis, pequenos dramas, que se somam incidentalmente para narrar a estória total - retrata, de certo modo, o esfacelamento que vivia a Alemanha às vésperas da chegada de Hitler ao poder. São dramas individuais, aparentemente desconexos, que se resolvem na urdidura final, que leva ao abraço no mito. (...) nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadoras que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em 446


que nada permanecera inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e explosões, o frágil e minúsculo corpo humano. (BENJAMIN, 1985, p. 198) A Revolução Russa e a política continental A sucessão de eventos econômicos, por si só, não explica o advento do fascismo. A rigor, a persistente ameaça e a possibilidade da revolução social, especialmente após sua realização efetiva na Rússia de 1917, criaram uma conjuntura que era radicalmente nova e que, portanto, colocava a lógica política em um terreno em larga medida desconhecido, para todo o espectro de partidos existentes à época (algo particularmente complexo na Europa continental, dado a proximidade geográfica com a União Soviética).

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Figura 141 - Outubro (Sergei Eisenstein, 1927)

Um exemplo das dificuldades e desafios, que o momento apresentava à intelecção, pode ser encontrado nas divisões internas existentes na esquerda, especialmente aquela motivada pelo diagnóstico feito pelos partidos comunistas - na altura já bastante influenciados por Moscou -, que apontavam como grande inimigo, não os nacionalsocialistas, mas os partidos socialistas ou socialdemocratas. Deste modo, às vésperas da tomada do poder por Hitler, os partidos, no interior da esquerda, faziam guerra entre si, deixando correr solto o assalto fascista, quando não se apresentavam ativamente vitimados pelo delírio, de que poderiam

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se beneficiar de tal evento, em suas estratégias políticas. (...) Assim, longe de iniciar outra rodada de revoluções sociais, como esperara a Internacional Comunista, a Depressão reduziu o movimento comunista fora da União Soviética a um estado de fraqueza sem precedentes. Isso se deveu, em certa medida, à política suicida do Comintern, que não apenas subestimou grandemente o perigo do nacional-socialismo na Alemanha, como seguiu uma linha de isolamento sectário que parece incrível em retrospecto, decidindo que seu principal inimigo era o trabalhismo de massa organizado dos partidos social-democratas e trabalhistas (descritos como social-fascistas). (...) (HOBSBAWN, 2003, p. 108) No campo da direita, por outro lado, não surpreende que o medo de uma ascensão das classes trabalhadores funcionasse como elemento de conversão, da direita tradicional para o nacionalsocialismo, especialmente porque este competia com 449


os comunistas pela faculdade de conduzir politicamente as massas. Talvez não seja ilegítimo afirmar que a direita não nazista propenderia a apoiar politicamente as forças que se colocassem em reais condições de suplantar os comunistas e as forças da revolução social. Nacionalismo e fascismo No referente ao lado subjetivo, ao lado psíquico das pessoas, o nazismo insuflou desmesuradamente o narcisismo coletivo, ou, para falar simplesmente: o orgulho nacional. Os impulsos narcisistas dos indivíduos, aos quais o mundo endurecido prometida cada vez menos satisfação e que mesmo assim continuavam existindo ao mesmo tempo em que a civilização lhes oferecia tão pouco, encontraram uma satisfação substitutiva na identificação com o todo. (ADORNO, 1995, pp. 39-40) O nacionalismo delirante, presente em grande parte das nações com pretensões imperiais é um dos antecedentes históricos do fascismo. Houve nesse 450


terreno, diga-se de passagem, um a imbricação dos universos sócio-político e econômico – o chamado capitalismo monopolista – que foi enfaticamente evidenciado pela literatura. Ao se chamar atenção para este ponto, é fundamental não perder de vista, contudo, que nos desenvolvimentos de uma teoria do fascismo, o fenômeno nacionalista deve ser considerado como pertencente a uma área de fronteira, ou seja, derrama-se pelas vertentes objetivas do fenômeno, mas não pode deixar de ser considerada quando se analisa o aspecto subjetivo. Afinal de contas, muitas vezes, com fundamento neste nacionalismo extremo, intolerante, recorre-se ao genocídio, que não se explica sem um recurso direto e explícito ao aporte teórico associado à sociopsicologia. Já na Primeira Guerra Mundial os turcos – o assim chamado movimento turco jovem dirigido por Enver Pascha e Talaat Pascha – mandaram assassinar mais de um milhão de armênios. Importantes quadros militares e governamentais, embora, ao que tudo indica, soubessem do ocorrido, guardaram sigilo estrito. O genocídio tem suas raízes 451


naquela ressurreição do nacionalismo agressor que vicejou em muitos países a partir do fim do século XIX. (ADORNO, 1995, p.120)

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Anexos Psicologia das massas: as teses de Gustave Lebon As teses de Le Bon, concernentes ao surgimento das massas, como ator político privilegiado nas sociedades contemporâneas, podem ser sintetizadas como segue: a) a massa é uma realidade nova, sui generis, implicando a existência de um “eu” coletivo, distinto e motivado de modo diferente dos “eus” singulares que a compõe. É historicamente nova, posto que um produto do moderno industrialismo e da urbanização da vida, que se lhe associou. Tanto assim que Le Bon tem em mente, em grande parte, como preocupação latente, o proletariado; b) a massa constitui-se por contágio e sugestão, ou seja, extrai a coesão que a caracteriza de elementos que não são racionais (ou ao menos, diretamente racionais). O contágio e a sugestão têm natureza afim com a hipnose, tomandolhe, portanto, os atributos. Ocorre ainda que o indivíduo, uma vez subsumido à massa, adquire 453


um sentimento de invulnerabilidade, condição que o faz liberar impulsos que, em condições distintas, encontrar-se-iam inibidos (reprimidos) pelo próprio processo civilizatório; c) as forças inconscientes que tem em mente Le Bon, quando pensa nos fenômenos de sugestão e contágios, tem de algum modo, relação com a noção de raça, hereditariedade, como se fossem estas uma espécie de ethos da massa; d) o pertencimento à massa altera a dinâmica psíquica do indivíduo, que é levado normalmente a uma regressão, passando a guiar-se por móveis inconscientes, ditados pela própria massa, que é um ente distinto da soma de seus componentes particulares. Neste sentido preciso, a adesão à massa implica na dissolução do indivíduo, como unidade autocontrolada e autônoma; e) é da natureza da massa apresentar pensamentos rudimentares, fantasiosos, pouco elaborados, sendo avessa a tudo que se oponha ao modo tosco como se apropria do mundo. 454


Desta maneira, a massa refuta argumentos muito elaborados, a erudição e o pensamento complexo, sendo muito mais sensível a enunciados e sentenças concisas, que se podem cristalizar, por exemplo, em um slogan; f) a massa não se guia por princípios morais e éticos comuns, na justa medida em que sua constituição implica no relaxamento da censura imposta pelos valores civilizatórios. Não há dúvidas de que os desenvolvimentos de Le Bon, ressalvados a perspectiva conservadora e o caráter flagrantemente proto-científico de algumas categorizações, apresentam insights geniais. Ainda assim, permanecem não resolvidas duas questões essenciais: i) qual o substrato que confere efetividade ao contágio?; ii) qual é o mecanismo que permite e possibilita a sugestão hipnótica que ele postula? Obviamente Le Bon não estava aparelhado para responder a estas indagações, pelo simples fato de que não possuía uma teoria geral do psiquismo humano. Caberá, portanto, em grande medida a Freud a tarefa de desenvolver, nos termos próprios à

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psicanálise, as questões essenciais que Le Bon apresentou. Psicologia das massas: as teses de Freud Para desenvolver as questões que emergem a partir da obra de Le Bon, Freud irá trabalhar essencialmente com dois conceitos, a saber, os de identificação e idealização. A dificuldade que se oferece nesta abordagem - especialmente para os não especialistas -, reside no fato de que tais conceitos não são primários, mas derivam (de) e pressupõe uma série de outros. Por este motivo, nossa leitura de Freud procura ater-se estritamente às questões que se referem às massas. Deste modo, no que se refere à identificação, Freud nos observa que: (...) a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio da introjeção do objeto no ego; e, terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum compartilhada com alguma outra 456


pessoa que não é objeto do instinto sexual. Quanto mais importante essa qualidade comum é, mais bem sucedida pode tornar-se essa identificação parcial, podendo representar assim o início de um novo laço. Já começamos a adivinhar que o laço mútuo existente entre membros de um grupo é da natureza de uma identificação desse tipo, baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder. (FREUD, p. 136- grifos meus). Para elucidarmos a explicação de Freud com relação à constituição das massas é preciso derivar ainda um outro elemento, a saber, a noção de ideal do ego:

Em ocasiões anteriores, fomos levados à hipótese de que no ego desenvolve-se uma instância assim, capaz de isolar-se do resto daquele ego e entrar em conflito com ele. A essa instância chamamos de ideal do ego e, a título de funções, atribuímos-lhe a autoobservação, a consciência moral, a censura dos sonhos e principal influência na repressão. Dissemos 457


que ele é o herdeiro do narcisismo original em que o ego infantil desfrutava de autossuficiência; gradualmente reúne, das influências do meio ambiente, as exigências que este impõe ao ego, das quais este não pode estar sempre à altura; de maneira que um homem, quando não pode estar satisfeito com seu próprio ego, tem, no entanto, a possibilidade de encontrar satisfação no ideal do ego que se diferenciou do ego. (...) esquecemos de mencionar que entre as funções do ideal do ego a tarefa de verificar a realidade das coisas (...) (FREUD, p.145) Para que se possa dar consequência às postulações de Freud é preciso ainda desenvolver a noção de idealização: (...) Se os impulsos sexuais estão mais ou menos eficazmente reprimidos ou postos de lado, produz-se a ilusão de que o objeto veio a ser sensualmente amado devido a seus méritos espirituais, ao passo que, pelo contrário, na realidade esses méritos só podem ter sido emprestados a ele pelo seu encanto sensual. 458


A tendência que falsifica o julgamento nesse respeito é a idealização. Agora, porém, é mais fácil encontrarmos nosso rumo. Vemos que o objeto está sendo tratado da mesma maneira que nosso próprio ego, de modo que, quando estamos amando, uma quantidade considerável de libido narcisista transborda para o objeto. Nós amamos por causa das perfeições que nos esforçamos por conseguir para nosso próprio ego e que agora gostaríamos de adquirir, dessa maneira indireta, como meio de satisfazer nosso narcisismo. (...) Isso acontece com especial facilidade com o amor infeliz e que não pode ser satisfeito, porque, a despeito de tudo, cada satisfação sexual envolve sempre uma redução da supervalorização sexual. Ao mesmo tempo desta ‘devoção’ do ego ao objeto, a qual não pode ser mais distinguida de uma devoção sublimada a uma ideia abstrata, as funções atribuídas ao ideal do ego deixam inteiramente de funcionar. A crítica exercida por essa instância silencia; tudo que o objeto faz e pede é correto e inocente. A consciência não se aplica a nada que seja feito por amor do 459


objeto; na cegueira do amor, a falta de piedade é levada até o diapasão do crime. A situação total pode ser inteiramente resumida na seguinte fórmula: o objeto foi colocado no lugar do ideal do ego. É fácil agora definir a diferença entre a identificação e esse desenvolvimento tão extremo do estado de estar amando, que podem ser descritos como ‘fascinação’ ou ‘servidão’. No primeiro caso o ego enriqueceu-se com as propriedades do objeto, ‘introjetou’ o objeto em si próprio, como Firenczi [1909] o expressa. No segundo caso, empobreceu-se, entregou-se ao objeto, substituiu seu constituinte mais importante pelo objeto. (...) (FREUD, pp.143-4) Definidos então os conceitos de identificação, ideal do ego e idealização pode-se, finalmente, chegar ao uma hipótese sobre como se daria e qual seria o elemento de coesão dos grupos (massas), particularmente os liderados: Após as discussões anteriores, estamos, no entanto, em perfeita posição de fornecer a fórmula para a constituição libidinal dos grupos, ou, pelo menos, de grupos como os que até aqui consideramos, ou seja, 460


aqueles grupos que têm um líder e não puderam, mediante ‘organização’ demasiada, adquirir secundariamente as características de um indivíduo. Um grupo primário desse tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do ego e, consequentemente, se identificaram uns com outros em seu ego. (...) (FREUD, p. 147) Não é difícil de modo algum entender a importância desta tese para a compreensão do fenômeno fascista, ao menos no que se refere à sua dinâmica psicológica. Ora, o objeto colocado em lugar do ideal do ego, pelos componentes de uma massa, é justamente o líder idealizado, que serve ainda de elemento de identificação recíproca para cada um deles. A natureza do vínculo psíquico que os une (líder-massa) é, nas palavras de Freud, a servidão ou fascínio. Mas por meio desta servidão, pela rendição incondicional e irrestrita, a massa declara, igualmente, o amor de si mesma, porque vive por meio do líder, o seu próprio sonho de poder irrestrito. Este entrega resoluta ao objeto de amor e veneração é, igualmente, a porta pela qual a libido inibida se extravasa mundo afora: por amor do 461


objeto, por ordem do objeto, tudo é possível e aceitável. Daí uma espécie de dupla catarse: o líder vê na ação da massa a confirmação e consagração de seu poder; a massa, de outra parte, livra-se da censura enquanto dando vazão a todos os seus instintos. Neste sentido preciso, a massa clama pelo líder, pois somente ele pode liberar sua fúria e, ao mesmo tempo, torná-la literalmente irresponsável por seus atos. Little Great Man O extravasamento da libido narcísica em direção ao objeto, no caso a figura do líder, é em grande parte facilitada pelo modo dúbio em que este se apresenta. O pequeno grande homem, nesta absurda extensão de qualidades opostas, permite ao seguidor fascista, atomizado e minimizado, reconhecer-se no líder como se este fora mais um dentre os membros da turba. Por outro lado, realiza seu projeto pulsional na identificação com o poder ilimitado de que desfruta aquele líder, no exercício de sua autoridade absoluta, incontornável e insuperável. Convivem e coabitam, deste modo, forças que poderiam parecer reciprocamente excludentes, mas que se conservam 462


unidas por recurso a uma marcada ambivalência: o masoquismo (passivo) com relação ao líder, conjugado com o sadismo em direção aos out groups; a obediência, resignação e sujeição absoluta, complementadas pelo poder infinito e ilimitado de que está investido o líder e - dado a identificação e a idealização do mesmo - a massa . (...) While appearing as a superman, the leader must at the same time work the miracle of appearing as an average person, just as Hitler posed as a composite of King Kong and suburban barber. (…) (…) Accordingly, one the basic devices of personalized fascist propaganda is the concept of the “great little man”, a person who suggests both omnipotence and the idea that he is just one of the folks, a plain, redblooded American, untainted by material or spiritual wealth. Psychological ambivalence helps to work a social miracle. The leader image gratifies the follower’s twofold wish to submit to authority and to be authority himself. (ADORNO, p. 127)

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É importante perceber que esta aparente contradição é afirmação de uma unidade problemática dos polos pulsionais de um tipo psíquico específico. A coesão da comunidade fascista é garantida, então, pelo investimento libidinal (positivo) na figura do líder, completando-se, por outro lado, através da projeção de toda a agressividade, frustração, etc. no out-group. Se imaginarmos que este se caracteriza de modo cabal na noção de raça temos, então, que: Since they do not recognize any spiritual criterion in regard to who is chosen and who is rejected, they substitute a pseudo-natural such as race, which seems to be inescapable and can therefore be applied even more mercilessly than was the concept of heresy during the Middle Age. Freud has succeeded in identifying the libidinal function of this device. It acts as a negatively integrating force. Since the positive libido is incompletely invested in the image of the primal father, the leader, and since few positive contents are available, a negative one has to be found.(…) (Adorno, p. 130)

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Esta questão foi pontuada de maneira bastante concisa em no fragmento abaixo: A Síndrome Autoritária caracteriza-se por um processo de internalização do controle social de tal envergadura que acaba resultando numa atitude em relação à autoridade, a qual pode mesmo conceber o irracional: “O sujeito consegue sua adaptação social somente à custa do prazer obtido por meio da obediência e subordinação” (Adorno e alli, 1950, p. 759) [The Authoritarian Personality. New York, Harper & Row, Publishers, Inc., 1950]. Esta síndrome se apresenta como o conjunto de traços de personalidade provenientes da resolução sadomasoquista do complexo de Édipo, em que uma parte da agressividade se transforma em masoquismo e a outra em sadismo. Os grupos em relação aos quais o indivíduo não têm identificação alguma, os out-groups, são escolhidos exatamente para satisfazer suas pulsões sádicas. Uma ambivalência é entrevista, de uma lado, na crença cega de tais indivíduos em relação às autoridades e, de outro, em sua prontidão pra atacar os que são identificados como vítimas. 465


Segundo Adorno, esta configuração sadomasoquista torna-se ao mesmo tempo “condição e resultado do processo de adaptação social” dos indivíduos do tipo autoritário. A esteriotipia de seu pensamento adquire uma função precisa no interior da economia psíquica desses indivíduos: ela facilita a canalização de sua energia libidinal em harmonia perfeita com as demandas de um superego severo. A identificação com o in-group, em estreita oposição aos out-groups, absorve grande parte de sua energia libidinal; os indivíduos tendem a se identificar com tudo aquilo que representa força, o poder, ao mesmo tempo que rejeitam tudo o que consideram inferior em relação ao in-group. (...) (AMARAL, 1997, p. 31) Nos termos do próprio Adorno, a questão pode ser colocada como segue: Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar os outros como sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam dessa maneira utilizei o termo “caráter manipulador” em Authoritarian Personality (A personalidade 466


autoritária), e isto quando ainda não conhecia o diário de Höss ou as anotações de Eichmann. Minhas descrições do caráter manipulador datam dos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Às vezes a psicologia social e a sociologia conseguem construir conceitos empiricamente confirmados só muito tempo depois. O caráter manipulador - e qualquer um pode acompanhar isto a partir das fontes disponíveis acerca dos líderes nazistas – se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. A qualquer custo ele procura praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik. Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente do que ele é, possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. Esse tipo encontra-se, entrementes – a crer em minhas observações e generalizando algumas pesquisas sociológicas -, muito mais disseminado do que se poderia imaginar. (ADORNO, 1995, p. 129) 467


Os limites da sócio-psicologia A sociopsicologia apresenta de fato um conjunto de hipóteses que tem efetivamente alto poder explicativo, tanto sobre o fenômeno fascista, quanto sobre as manifestações de intolerância de um modo geral. Deve-se tomar o cuidado, contudo, para não “pscicologizar” o fascismo, e isto não apenas por uma questão teórico-metodológica. Os tipo psicológicos, predispostos a aderirem a regimes autoritários, podem ser imaginados como uma fração da população total, sendo tão presentes na vida social quanto os candidatos a líderes de hordas. Suas reais possibilidades políticas, contudo, dependem não de suas condições mesmas - que podem ser assumidas como relativamente fixas e rígidas, dado seu estado psíquico -, mas do arranjo total de forças políticas presentes em cada momento histórico, e especialmente do estado em que se encontram as forças que se opõe a soluções totalitárias. No que se refere à questão propriamente social, não é de modo algum desprezível, obviamente, a capacidade do sistema econômico em atender às demandas apresentadas pelos vários atores, assim como sua maior ou menor possibilidade de acomodar conflitos. 468


Compreender que existem aspectos objetivos essenciais envolvendo o fascismo é fundamental, portanto, para que se possa orientar a resistência sem tréguas às possibilidades de seu ressurgimento na arena política. Requer-se, portanto, que a gestão das políticas públicas, especialmente as de natureza macroeconômica, privilegiem ações que reforcem a solidariedade, em lugar de simplesmente deixar a cada qual o seu próprio quinhão de fortuna ou infortúnio. Mais ainda, para a “profilaxia” do fascismo é necessário, como indica Adorno, repensar a questão educacional e a produção cultural, subsumidas que se encontram pelos preceitos da sociedade industrial. Obviamente nada disso pode afastar do cenário o fascismo, posto que as condições societárias que o tornam possível continuam presentes. Ainda assim, impõe-se um programa mínimo, e consensual para todos os espectros políticos que se opõe ao barbarismo. Poucos parecem, nesse momento, dispostos a tocar esta questão, mas ela já está presente entre nós, mesmo que a evitemos. O fundamentalismo neoliberal, a violência e obstinação com que os potentados têm se dedicado a destruir o pouco de 469


civilização que o capitalismo de fato construiu, em sua “era de ouro”, estão na base de um novo surto de ressentimento que, cego como eles costumam ser, alvejam a democracia e, deste modo, embalam e acolhem a hipótese da irrupção do velho irracionalismo e das formas políticas que lhe são próprias. Não por acaso, pesquisa realizada sob demanda da ONU – propondo como questão, a 18.643 pessoas: “Você apoiaria um governo autoritário se ele pudesse resolver os problemas econômicos?” - revelou que 54,7% dos latinoamericanos “*a+provariam um governo autoritário se resolvesse problemas econômicos” e “43,9% não crêem que a democracia solucione os problemas do país” (Folha de São Paulo, 21/04/2004, p. A 14). Não é preciso detalhar a tragédia que as prescrições neoliberais têm implicado para o continente. Mais perturbador que a resposta, contudo, talvez tenha sido a pergunta. Será que ela não pressupõe implicitamente que a alternativa à ordem atual é o autoritarismo? Será que ela já não condena de saída a democracia, ao atribuir a ela a ineficácia econômica, em lugar de voltar a atenção à própria lógica que tem orientado o desenvolvimento 470


capitalista recente? A questão real obviamente não deveria referir-se à democracia, mas sim aos contornos da hegemonia política que se vem construindo, com fundamento no ultra-liberalismo econômico, que só tem privilegiado os próprios privilegiados. Que a questão se coloque deste modo, não se deve entender como um “erro de perspectiva”, mas como um sinal da época e, portanto, um “erro” na precisa medida em que revela uma dimensão essencial e “verdadeira” do real: o ressurgimento da frieza, da indiferença e da insensibilidade bárbaras, sem as quais práticas fascistas não são possíveis. Ao se sacrificar a democracia enquanto valor, o que se faz, se não naturalizar a ordem e, portanto, a miséria disseminada, a desesperança generalizada e criar, por fim, as bases a partir das quais o irracionalismo pode, quem sabe uma vez mais, por seus pés no chão, para mover o mundo?

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O vagabundo, o palhaço, o mendigo, entre outros tantos, podem ser entendidos como representação do ser humano de mãos vazias, que a história tem recorrentemente produzido. Em Chaplin este tipo é levado ao paroxismo, razão pela qual ele invariavelmente se vê diante de um horizonte nu, ao qual tende até o ponto de com ele fundir-se. Não se trata aqui de resignação ou capitulação diante do impossível, mas de uma expectativa de recomeço, para sobrepujar as cristalizações que se apresentam como insuperáveis. Na modernidade há um affair entre este tipo e a filosofia: ela é sua companheira de estrada. 2 Haverá porventura – uma questão para médicos de doenças mentais – neuroses devidas à sanidade? (NIETZSCHE, 2005, p.12) 3 (…) porque o problema da ciência não pode ser conhecido no solo da ciência (…) (NIETZSCHE-b, 2005-a, p. 9) 4 Fausto, uma vez tendo pactuado com o Demônio, a fim de superar suas limitadas condições humanas, passa a ser plenipotenciário, não divergindo, nele, a partir de então, o desejo de sua realização. Deste modo, por exemplo, supera a velhice e se encontra redivivo nos braços de sua amada. Tanto mais atendido se vê, contudo, tanto mais enredado e submisso está. O poder do Demônio parece estar fundado, exatamente, no conceder sem limites. Qual é o fundamento desta troca, que entre si estabelecem Fausto e o Demônio? (Fausto, Friedrich W. Murnau, 1926) 5

(...) No momento de reconhecer um hit institucionalizado, uma pseudo-utilidade passa a ficar sob a hegemonia do ouvinte privado. O possuidor da música que sente que “eu gosto desse hit (porque eu o conheço)”, atinge um delírio de grandeza comparável ao devaneio de uma criança quanto a possuir uma estrada de ferro. Como os jogos de adivinhação, nos concursos realizados pelas propagandas, as canções dos hits só colocam perguntas a que qualquer um pode responder. Apesar disso, ouvintes gostam de dar respostas, pois assim se identificam com os poderes constituídos. (ADORNO, 1994, p. 135) 6 (...) Contudo, os movimentos fascistas – o italiano e o alemão – não apelavam aos guardiões históricos da ordem conservadora, a Igreja e o rei, mas ao contrário buscavam complementá-los com um princípio de liderança inteiramente não tradicional, corporificado no homem que se faz a si mesmo, legitimizado pelo apoio das massas, por ideologias seculares às vezes cultas. O passado ao qual eles apelavam era uma invenção. Suas tradições, fabricadas. Mesmo o racismo de Hitler não era feito daquele orgulho de uma linhagem ininterrupta e sem mistura que leva americanos esperançosos de provar sua descendência a algum nobre de Suffolk do século XVI a contratar genealogistas, mas uma mixórdia pós-darwinista do século XIX pretendendo (e, infelizmente na

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Alemanha muitas vezes recebendo) o apoio da nova ciência da genética, mais precisamente do ramo da genética aplicada (“eugenia”) que sonhava criar uma super-raça pela reprodução seletiva e a eliminação de incapazes. A raça destinada a dominar o mundo através de Hitler não tinha sequer um nome até 1898, quando um antropólogo cunhou o termo “nórdico”. (HOBSBAWN, 2003, pp. 121-122) 7

[a] verdade não tem graus como a verossimilhança (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 181). 8 Videoclips de Marcelo D2 no youtube: http://br.youtube.com/watch?v=Oo7i6eDrxBA http://br.youtube.com/watch?v=7MkXlAFQzO4 http://br.youtube.com/watch?v=cjdK3yp6ZqI http://br.youtube.com/watch?v=UB-0rQMuVUo 9 O indivíduo surge, de certo modo, quando estabelece o seu eu e eleva o seu serpara-si, sua unidade, à categoria de verdadeira determinação. Antes, a linguagem filosófica e a linguagem comum indicavam tudo isso mediante a palavra “autoconsciência”. Só é indivíduo aquele se diferencia a si mesmo dos interesses e pontos de vista dos outros, faz-se substância de si mesmo, estabelece como norma a autopreservação e o desenvolvimento próprio. E não é mero acidente fortuito que só por volta do século XVIII a palavra “indivíduo” tenha passado a designar homem singular, e que a coisa não seja muito mais antiga do que a palavra, dado que só começou a existir nos alvores do Renascimento. A extraordinária novidade da poesia de Petrarca foi vista, com razão, no fato de abrir os olhos, pela primeira vez, para a Individualidade. (ADORNO; HORKHEIMER, Cultrix, p. 52) 10

Convém desde já tentar precisar o que se entende aqui por razão. Como primeira qualificação vale a pena observar que estamos atentos ao fato de que Freud, de algum modo, ao trazer ao centro do debate a questão do inconsciente e, portanto, dos determinantes não conscientes da ação, acabou por delimitar e qualificar o que se pode entender através desta noção. Ainda assim, mesmo que reduzida em suas pretensões, a razão não pode deixar de ser o orientador por excelência de que dispõe o homem, na sua tarefa de compreensão do mundo em que se encontra e, com base nela, de erigir os meios de sua emancipação (com relação à ordem). Uma psicanálise não pode ser freudiana e irracionalista ao mesmo tempo. Freud é o último e mais radical dos racionalistas e situa-se na linhagem direta do racionalismo iluminista. Sua divisa poderia ser a do Iluminismo: sapere aude! Ousa servir-te de tua razão! Mas seu racionalismo vai mais longe que o do Iluminismo. Pois este se limitava a dizer que o homem já era, de saída, racional e, por desconhecer os limites da razão, deixava o homem indefeso diante da desrazão. Freud descobriu esses limites e com isso armou o homem para a conquista da razão: ela não é um ponto de partida, mas um ponto de chegada. “A voz da inteligência é pouco audível”, diz ele, “mas não repousa enquanto não for escutada”. O primado da inteligência está, é certo, em um futuro distante, mas provavelmente não num futuro infinitamente distante”. O racionalismo de Freud

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atinge os limites da brutalidade: só existe uma divindade, por precária que seja, que é a razão: logos. “Nosso deus, logos, não é dos mais poderosos [...] Mas acreditamos que a ciência pode lograr algum conhecimento sobre o mundo real, graças ao qual será possível aumentar nosso poder sobre a natureza e organizar melhor nossa vida”. No meio tempo, o homem pode impacientar-se e procurar por atalhos para a verdade, que dispensem a razão – seitas orientais, experiências místicas, “singularidades inefáveis”. Em vão. Pois, como Freud nos alertou, “quando o viajante canta no escuro, pode espantar seu medo, mas nem por isso vê mais claro”. (ROUANET, 1992, p. 143) Dificilmente se poderia achar em um outro autor tamanha profissão de fé na razão. E isso ocorre, sem constituir-se em contradição ou paradoxo, justamente naquele que trouxe para a luz do dia a importância capital do inconsciente na determinação de nossas motivações, sejam elas quais forem. A razão, devidamente qualificada e delimitada por Freud, foi dotada assim dos meios que lhe permitem reconhecer sua antinomia, mesmo que ela venha ao mundo enfeitado com todos os elementos exteriores da racionalidade. Foi, portanto, reduzida à fragilidade de sua condição efetiva, que a razão encontrou a serenidade para o verdadeiro exercício do discernimento. 11

Especialmente se a leitura da obra e das propostas de Marx forem feitas a partir do recorte hegeliano, desprezando-se, portanto, os elementos que indicam possibilidades distintas daquela, que representa a história como desenvolvimento progressivo e, de certo modo, fatalista. 12 (...) todas essas figuras míticas correm, como rios de fogo, para uma imagem que contém todas e que é, aos olhos de Breton, “a expressão suprema do pensamento romântico” e o “símbolo mais vivo que ela nos legou”: a estrela da manhã, “caída da fronte do anjo Lúcifer”. Este astro representa assim a mais alta imagem alegórica da insubmissão: uma imagem que nos ensina que “é a revolta, e somente a revolta que é criadora de luz. E esta luz n luz não pode ser conhecida senão por três vias: a poesia, a liberdade e o amor”. (Breton 1944, 1965) (LÖWY, 2002, p. 27) 13 Apresentada nos termos de Chesnais, a questão tem os seguintes contornos: (...) A polarização é, em primeiro lugar, interna a cada país. Os efeitos do desemprego são indissociáveis daqueles resultantes do distanciamento entre os mais altos e mais baixos rendimentos, em função da ascensão do capital monetário e da destruição das relações salariais estabelecidas (sobretudo nos países capitalistas avançados) entre 1950 e 1970. Em segundo lugar, há uma polarização internacional, aprofundando brutalmente a distância entre os países situados no âmago do oligopólio mundial e os países da periferia. Estes não são mais apenas países subordinados, reservas de matériasprimas, sofrendo os efeitos conjuntos da dominação e do intercâmbio desigual, como na época “clássica” do imperialismo. São países que praticamente não mais

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apresentam interesse, nem econômico, nem estratégico (fim da “guerra fria”), para os países que estão no centro do oligopólio. São pesos mortos, pura e simplesmente. Não são mais países destinados ao “desenvolvimento”, e sim áreas de “pobreza” (palavra que invadiu o linguajar do Banco Mundial), cujos emigrantes ameaçam os países democráticos. (CHESNAIS, 1996, p. 38-39) 14

Uma tentativa de definição mais propriamente econômica pode ser encontrada abaixo: A globalização nasceu e se caracteriza como um movimento de valorização do capital financeiro em escala planetária. Ganhou grande impulso com a telemática nos anos 80, mas os movimentos essenciais do movimento são anteriores. Surgem na seqüência da ruptura dos acordos de Bretton Woods [conferência ocorrida em 1944, nos EUA, que lançou as bases para a criação de um sistema financeiro internacional, incluindo o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional] e das decisões de flutuação do câmbio nos países industrializados avançados. A tremenda instabilidade monetária e financeira que se seguiu criou, por um lado, um ambiente favorável à especulação financeira desenfreada e, por outro, o clima psicológico e político propício a políticas de estabilização de cunho ortodoxo ou neoliberal. (LESSA, 2004, p.6)

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A distinção entre os termos mundialização e globalização não são muito precisas. Parte da literatura parece admitir que a globalização reporta-se mais enfaticamente a elementos econômicos do fenômeno, ao passo que a mundialização estaria referida aos recortes culturais do mesmo – tratamento dado por Renato Ortiz, por exemplo.

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Outros, como o economista Álvaro Antonio Zini Jr., são mais enfáticos e tendem a ver na globalização um projeto hegemônico dos Estados Unidos. Tese também defendida por John K. Galbraith. Em uma entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo em 7 de novembro de 1997, quando estourava uma crise do capitalismo globalizado – a asiática -, afirmou: “Globalização não é um conceito sério, nós, os americanos, inventamos esse conceito para dissimular nossa política de entrada econômica nos outros países. E para tornar respeitáveis os movimentos especulativos de capital, que sempre são causa de graves problemas. (apud Fiori et alli, 1998, p. 7). (SENE, 2003, p. 28)

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Houve uma época em que a luta pela ampliação dos direitos do homem se confundia como o programa dos liberais. Eram eles, afinal, revolucionários e propugnavam por um radical alargamento das margens de liberdade e igualdade, apresentando-se como portadores de uma nova visão de indivíduo, centrada na autodeterminação, na sua independência, na sua autonomia. Fundaram, com isso, o estatuto mesmo da cidadania moderna. Agiram assim, porém no quadro de seus próprios interesses históricos de classe e de acordo com o projeto de modernidade que esposaram, colados ao iluminismo: universalismo jurídico, isto é, igualdade

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formal de todos perante a lei, e mercantilização das relações sociais, com a generalização do intercâmbio monetário. Associaram cidadania, portanto, ao mundo do dinheiro e do formalismo jurídico. (NOGUEIRA, 2001, p. 88) 18

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Com a globalização também tem havido um aprofundamento das desigualdades sociais, mesmo dentro dos países que a comandam, como evidenciam os relatórios do PNUD: “Estudos recentes mostram o crescimento da desigualdade na maior parte dos países da OCDE, durante os anos 80 e começo dos 90. Em 19 países, apenas um mostrou uma melhoria ligeira. A deterioração foi pior na Suécia, Reino Unido e Estados Unidos. No Reino Unido, o número de famílias abaixo da linha da pobreza cresceu cerca de 60% nos anos 80 e, na Holanda, cerca de 40%. E na Austrália, Canadá, Reino Unido e Estados Unidos, pelo menos metade das famílias monoparentais (...) têm rendimentos abaixo da linha de pobreza. O que contrasta com a concentração impressionante da riqueza entre os ultra-ricos. A riqueza líquida das 200 pessoas mais ricas do mundo aumentou de 440 bilhões de dólares para mais de 1 trilhão de dólares em apenas quatro anos, de 1994 a 1998. Os ativos das três pessoas mais ricas eram superiores ao PNB combinado dos 48 países menos desenvolvidos” (Relatório de Desenvolvimento Humano, 1999, p. 37) Antes que as formas modernas de expressão estivessem plenamente amadurecidas  o filme sendo o culminar de tal processo  houve, contudo, um desenvolvimento e uma instituição do aparelho receptivo que poderia e deveria apropriar-se daquelas novidades: o olho que vê o cinema e o psiquismo que assiste ao filme foram longamente confeccionados, de tal modo que suas estruturas narrativas e os elementos de sua estética pudessem ser devidamente compreendidos. Como sempre, portanto, aquilo que nos parece natural é uma construção e o cinema, enquanto história é, também, o processo que engendra o olho que o vê, tanto quanto suas estruturas técnicas e tecnológicas. Quanto a estas questões, consultar:

CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R.. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo, SP: Cosac & Naif Ecições Ltda., 2001. Tradução: Regina Thompson. 20 O out-door, o cartaz publicitário, os enormes painéis assemelhados a totens nos arremessam constantemente ao sonho, valendo-se de sinapses que a propaganda massiva cria. Toda imagem, todo texto, os signos e ícones – as logomarcas - são índices que nos remetem, portanto, recorrentemente ao sono, como oposto do acordar. O filme, a sua vez, nos apresenta a realidade como mímese, mas ela é falsa: o cinema institui a própria realidade, através de uma operação direta sobre as estruturas simbólicas que a instituem como tal. A linguagem do cinema não requer mediação para atingir o imaginário. No extremo de sua veracidade, permanece como irreal – sonho que, segundo os princípios da estética burguesa, nos impede de acordar. Exatamente, contudo, porque trabalho no plano mesmo do imaginário (se não do inconsciente) o cinema tem um imenso potencial negativo: pode destruir o sonho de dentro, mostrando-o como pesadelo que de fato é.

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Sobre a natureza fantasmática – seu caráter de ídolo - das estátuas atentar especialmente para Eisenstein em Outubro (1928) e Que viva o México! (1932). 21 Quanto a esse aspecto especificamente o filme é um parente direto do romance, tomando-lhe a estrutura para levar a obra até terrenos muito mais longínquos. 22 Que em si mesma é uma remissão ao cinema mudo, mas igualmente a insinuação dos elementos do teatro kabuki, onde o rosto, através da maquiagem, converte-se em máscara:

http://www.sp.br.emb-japan.go.jp/pt/info_cultura.htm “No teatro Kabuki, os complementos como as perucas e a maquiagem são uma parte fundamental do papel. Em peças históricas como Shibaruku, a maquiagem é espessa, elaborada, fantástica como uma máscara, enquanto que em dramas do cotidiano é ligeira e realista”. Fonte: http://www.geocities.com/sobreojapao/kabuki.htm Para referência rápida, ver ainda: http://www.br.emb-japan.go.jp/cultura/downloads/kabuki.htm 23

Em Grande Hotel (Edmund Goulding, 1932) a personagem de Greta Garbo pode ser considerada a forma benigna de Norma Desmond, ou seja, um ser angelical e doce. Ainda assim toda sua claque age de modo exatamente igual àquele dos fiéis seguidores da primeira, preocupados em poupá-la do mundo. Na verdade não precisam e não querem que ela tenha uma relação verdadeira com a vida; exigem que ela represente um papel e que ocupe um lugar. Isto lhe basta. Não por acaso, portanto, seu amor encontra igualmente a morte: ele ameaçava a diva com a mulher de carne e osso.

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O desastre atinge o próprio mito de uma esperança coletiva. Até mesmo as socialdemocracias mais poderosas estão hoje desprovidas de qualquer substrato teórico, já que sua visão última, passada pela peneira da democracia e das liberdades, referenciava-se ainda numa utopia. Nem esperança, nem utopia, nem progresso: a tábua está definitivamente rasa. (MINC, 1994, p. 164)

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O clichê segundo o qual a esquerda e a direita estão convergindo parece justificado. Todos os partidos têm a mesma aversão ao pensamento utópico e aos conceitos universais, embora cada qual seja movido por uma lógica diferente. Certa escola de conservadorismo sempre contestou as abstrações geradas pelo Iluminismo e a Revolução Francesa – a conversa sobre direitos e igualdade –, pondo em seu lugar a lealdade a tradições e práticas específicas. Mais recentemente, intelectuais de esquerda chegaram à mesma posição, valorizando o que é distinto e único e rechaçando a metafísica, teorias que vão além do discurso ou das circunstâncias imediatas. Tanto a direita quanto a esquerda recuperam noções dúbias de localismo e nativismo. (JACOBY, 2001, p. 155) 26 Deve-se incluir como possibilidade, no entanto, neste mesmo desenvolvimento, que aquela sombra denegada, em toda sua potência, nos leve de arrastão, de modo que sejamos tragados para o interior de um mundo paralelo, cujos códigos são a mais rigorosa lógica, ainda que como sacrifício de tudo que é humano. 27 28

Nisso a imagem comunga com o mito, que é “[m]ythic because it does no refletct. (Benjamin, 1999, p. 119)

As sociedades que contemporaneamente se organizaram sob a forma de estados teocráticos e mesmo os movimentos que pretendem implementar regimes de tal natureza precisariam ser estudados, para uma correta compreensão de sua natureza. A princípio parece que eles envolvem uma revolta contra a modernidade  ou, alternativamente, contra aquilo que entendem ser os valores ocidentais , mas existe uma clara identificação de out groups, o que dá margem, em alguns casos, a práticas de limpeza étnica. As hipóteses da psicologia social parecem permanecer válidas, quando se trata de compreender a dinâmica básica do movimento de massas envolvido neste caso.

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A dissolução da individualidade na massa traz como conseqüência necessária o tratar os outros de modo igualmente massificado, ainda que com o sinal contrário daquele que se dirige ao membro do in group: Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isso combina com a disposição de tratar os outros como sendo uma massa amorfa. (ADORNO, 1995, p. 129)

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Não quero entrar na discussão a respeito das organizações neonazistas. Considero a sobrevivência do nacional-socialismo na democracia mais ameaçadora que a sobrevivência de tendências fascistas contra a democracia. A corrosão por dentro representa algo objetivo; e as figuras ambíguas que efetivam o seu retorno só o fazem porque as condições lhes são favoráveis. (ADORNO, 1995, p.30) Não se pode perder de vista a idéia de Benjamin segundo a qual a guerra representa em si mesma a resolução do conflito, que opõe entre si a potência do

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desenvolvimento técnico e os limite possíveis de sua apropriação social. Deste modo, somente por meio da guerra, os meios materiais de produção encontrariam a possibilidade de se tornarem totalmente produtivos; somente a guerra, portanto, pode dar funcionalidade à tecnologia em sua totalidade. Ela é, portanto, seu lugar de destino, mesmo que seja concebida para a paz. 32

Na situação concreta do desemprego ou através de sua (mera possibilidade) se pode ver claramente a questão da indeterminação objetiva do indivíduo e, portanto, sua submissão a forças heterônomas. Não por acaso, um dos antecedentes econômicos mais importantes do nazismo foi o desemprego cavalar: Em meio à prosperidade, até mesmo em período de pleno emprego e crise de oferta de força de trabalho, no fundo provavelmente a maioria das pessoas se sente como um desempregado potencial, um destinatário futuro da caridade, e desta forma como sendo um objeto, e não um sujeito da sociedade: este é o motivo legítimo e racional de seu mal-estar. É evidente que, no momento oportuno, isto pode ser represado regressivamente e deturpado para renovar a desgraça. (ADORNO, 1995, p. 41)

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