Cinema da Cidade 3

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Cinema da Cidade (Ato III) Parte I ExercĂ­cios Benjaminianos Flash


SUMÁRIO Walter Benjamin: a escuta como exercício da palavra ................................................................... 5 Nervosidade ....................................................... 111 A massa .............................................................. 128 A invenção da tradição ....................................... 130 A experimentação estética ................................. 141 O cinema ............................................................ 153 O fascismo como programa estético .................. 166 A tradição sem insígnias ..................................... 183 A narrativa como forma ..................................... 206 A narrativa e a memória ..................................... 214 O novo animismo ............................................... 232 O colecionador ................................................... 240 Uma Gravura Fantástica ..................................... 255 Domingo no parque ........................................... 259 Bárbaro da cultura ............................................. 266 Misticismo .......................................................... 275 Progresso e ruína ............................................... 278 O procedimento abstrato ................................... 286

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ICONOGRAFIA Figura 1 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) ................................................ 115 Figura 2 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) ................................................ 117 Figura 3 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) ................................................ 118 Figura 4 - Blade Runner (Ridley Scott, 1982) ...... 119 Figura 5 - Metr贸polis (Fritz Lang, 1929).............. 124 Figura 6 - Um homem com uma c芒mera (Dziga Vertov, 1929) .................................................... 129 Figura 7 - Outubro (Sergei Eisenstein, 1927) ...... 137 Figura 8 - Outubro (Sergei Eisenstein, 1927) ...... 139 Figura 9 - Les Dames D麓Avignon, Pablo Picasso .. 147 Figura 10 - Fausto (Friedrich Wilhelm Murnau, 1926) .................................................................. 156 Figura 11 - Giulietta degli Spiriti (Federico Fellini, 1965) .................................................................. 166 Figura 12 - Charge of the Lancers (Umberto Boccioni, 1915) ................................................... 181 Figura 13 - A Fonte Marcel Duchamp, 1917 ....... 191 Figura 14 - Metropolis (Fritz Lang, 1929)............ 207 Figura 15 - Metr贸polis (Fritz Lang, 1929)............ 211 3


Figura 16 - Figura 16 - Metropolis (Fritz Lang, 1929) .................................................................. 213 Figura 17 - O anjo exterminado (Luis Bu単el, 1962) ........................................................................... 217 Figura 18 - Melancholia (Albrecht D端rer, 1514) . 247 Figura 19 - A Loucura (Angelo Bronzino) ............ 258 Figura 20 - Christ's Entry into Brussels in 1889 (James Ensor) ..................................................... 260 Figura 21 - Morangos Silvestres (Ingmar Bergman, 1957) .................................................................. 263 Figura 22 - Un Chien Andalou (Luis Bu単uel, Salvador Dali) Montagem ................................... 265 Figura 23 - Salvador Dali ..................................... 266 Figura 24 - Guernica bombardeada .................... 285

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Walter Benjamin: a escuta como exercício da palavra A tarefa de interpretação de um texto determinado deve estar fundada no exercício da palavra, para o qual, as atividades filológica1, hermenêutica e exegética, absolutamente essenciais, na exata medida em que se realizam conforme a sua mais perfeita pureza técnica, saltam sobre si mesmas, retornando do mergulho na língua, com muito mais elementos que poderiam, à fria luz dos fatos, supor. Aquilo que resulta como interpretação é sempre, a rigor, um outro texto, que não o de partida, mesmo que o intérprete se dedique àquele documento, na mais honesta distância e isenção, procurando aniquilarse como criador – o que, no entanto, permanece sendo, às expensas de sua vontade. Não se deve inferir daqui o desprezo da filologia, da hermenêutica e da exegese, mas tão somente a declaração segundo a qual, para a interpretação, elas são sempre meios para novos sentidos e nexos, rotas abertas através de territórios desconhecidos, mesmo quando acreditam ter 5


retornado do texto com a sua mais completa verdade ou tradução. Nisso a língua expressa sua natureza viva, pois mesmo o permanente - ou seja, o texto em sua aparente eternidade - é uma recriação contínua2, de tal modo que a produção da cultura e sua transmissão restam inseparáveis, na tarefa contínua de instituir aquele mesmo existente, que se supôs dado 3. Tertium datur, não existe, portanto, apenas a metafísica da presença e, digamos, a teoria da diferença. Há um terceiro, e este terceiro é a tradição da presença ausente, segundo a qual a leitura de um texto poderia ser definida como uma reescritura na própria atualidade. Nesse processo o texto é de fato desenvolvido numa estrutura policêntrica, uma estrutura que tem tantos centros quantos leitores-escritores, e todos eles estão ausentes nela, porque estão mortos ou ainda não nasceram. O leitor atual, porém, que escreve o texto de novo, está em condições de reconstruir 6


algumas destas leituras, de forma historicamente correta ou não, o que não deverá ser discutido. Na medida em que ele o faz, ele assenta os outros no texto, os que foram os escritores e leitores anteriores. Na medida em que ele, ao escrever, ab-roga as leituras anteriores, adquire as condições para construir a sua própria. Dessa maneira, o leitor, enquanto escrevente, estabelece uma série de diferentes significados no texto, dos quais nenhum tem primazia sobre os outros, nem mesmo aqueles desenvolvidos por ele próprio. Nenhum possui a verdade, mas todos eles juntos aproximam-se daquele infinito que, com Benjamin, poderia ser chamado de prosa absoluta. (Witte, Bernd. O que é mais importante: a escrita ou o escrito? Tradução de Georg Bernard Sperper – grifos meus). 4 O elemento força5 que envolve essa questão reside na natureza essencial da palavra, conforme 7


ela se realiza na história, ou, ainda mais precisamente, na história conforme nós a podemos6 conhecer. Cada palavra, em sua mais ínfima pequenez, em sua insignificância material, no diminuto de espaço que ocupa, no precário instante em que reverbera como som - e igualmente como eco - registra as marcas que lhe produz o tempo, arquivando suas feridas e chagas e, a cada uma delas, impressa sobre seu corpo (physis), corresponde o imenso desejo de superação de uma condição abjeta e, a rigor, de toda e qualquer condição abjeta. A mesma história que divide o homem espécie, expondo-o a condições de existência que o aviltam em sua humanidade, abre uma fenda no interior da palavra, na qual ela se vê supliciada, como se participasse de um cortejo destinado a fazê-la enxergar as próprias entranhas7. A alegoria nasce, em certa medida, com esse suplício e o presentifica no interior mesmo da palavra8. Esses arrazoados, mais do que inervar, talvez façam sorrir9 a muitos. Trata-se, contudo, de um riso nervoso, pois a dinâmica mesma de 8


construção e transmissão de um texto parece colocar em questão aquilo que nos acostumamos chamar de objetividade. E, de fato, em certa medida o faz. Em qual medida? Para o intérprete existe sempre algo dado, que o antecede em sua tarefa e que, portanto, não pode criar10. Esse algo, contudo, tanto quanto chega a ele como anterioridade, só o atinge através da linguagem, que codificou toda extensão daquela mesma anterioridade, como um registro concentrado da experiência pregressa. Há que se considerar, contudo, que essa via, que liga a anterioridade à sua posterioridade não tem uma única mão; ela é biunívoca (com o que se declara que a experiência enquanto tal jamais é definitiva). Significa dizer, portanto, que o exercício interpretativo sobre o passado que se recebeu como legado pode alterar materialmente aquele mesmo passado, de tal modo que este presente, em que vive o intérprete, seja um outro tempo, diferente daquele a que se via, a princípio, condenado. Obviamente o intérprete não criou propriedades materiais no passado; ele apenas desvelou propriedades já existentes, por meio de “presenças” daquele 9


passado, materialmente existentes no presente – as imagens, os textos em suas muitas conformações - e, em o fazendo, revelou-as como acontecimento, como agora11, para a cultura - esse mundo artificial em que a natureza progressivamente se humaniza, tanto para o bem, quanto para o mal12. A chama viva da verdade casada com a bela aparência, que nada mais representa do que a chama da vida, continua a arder, como já dissera a introdução ao ensaio sobre as Afinidades Eletivas "para além do grave fracasso do que foi e da leve cinza do vivenciado". Elas devem conter, portanto, alguma coisa que as eleva por sobre e as distingue do documento histórico. Elas devem abrigar em "seu interior", como diz Benjamin no prefácio, algo que se torna legível e decifrável apenas mais tarde, algo que pode ajudar apenas as gerações futuras em sua orientação histórica, em sua formação de experiência, em resumo, alguma coisa que 10


depende do tempo para crescer, amadurecer, se desenvolver. Tais imagens, ao que tudo indica, são de vital importância para os homens. Se elas faltarem, acabarem, transportarem ideologia, há motivo para preocupação quanto à orientação individual e coletiva. Benjamin sentia-se inquietado por esta preocupação, como Jürgen Habermas salientou no seu trabalho de 1972. (Klaus Garber. Por que os herdeiros de Walter Benjamin ficaram ricos com espólio? Filosofia da história de Walter Benjamin. Tradução de George Bernard Sperber – grifos meus. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) A história, portanto, nunca é um terreno neutro e tudo quanto se passou, em largo grau, também está por vir13. O presente, portanto, é o senhor da história e não o passado, que, segundo a forma corrente de pensar, se entregaria apassivado ao homem, ainda que na materialidade mineral de monumentos lindamente esculpidos14. 11


A aproximação da filosofia de Walter Benjamin deve ter essas assertivas por fundamento, pois, caso contrário, o trabalho analítico desencaminharia os exercícios filológicos, hermenêuticos e exegéticos, contrapondo-se à sua concepção filosófica mais geral, por mais brilhantes e precisos que possam ser. Essa exigência se explica, em primeiríssimo lugar, porque Benjamin milita por uma teoria da história que é, ao mesmo tempo, um aniquilamento do conceito de progresso: It may be considered one of the methodological objectives of this work [Das Passagen-Wek] to demonstrate a historical materialism which annihilated within itself the idea of progress. Just here, historical materialism has every reason to distinguish itself sharply from bourgeois habits of though. Its founding concept is not progress but actualization. (BENJAMIN, 1999, p. 460) Não se trata apenas disso, contudo. Está em jogo o próprio conceito de tempo que, para 12


Benjamin, não poderia ser representado segundo sua concepção mecânica, ou seja, uma grandeza que flui linearmente sobre o vazio. Esse tempo vazio, por força mesmo de sua linearidade de partida, exige ser preenchido por eventos, segundo a métrica da causalidade. Nessa operação a história se naturaliza e o passado se predispõe ao presente, em sua precisa conformação, como ordem mineralizada: A teoria e, mais ainda, a prática da socialdemocracia foram determinadas por um conceito dogmático de progresso sem qualquer vínculo com a realidade. Segundo os socialdemocratas, o progresso era, em primeiro lugar, um progresso da humanidade em si, e não das suas capacidades e conhecimentos. Em segundo lugar, era um processo sem limites, ideia correspondente à da perfectibilidade infinita do gênero humano. Em terceiro lugar, era um processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória 13


em flecha ou em espiral. Cada um desses atributos é controvertido e poderia ser criticado. Mas, para ser rigorosa, a crítica precisa ir além deles e concentrar-se no que lhes é comum. A ideia de um progresso da humanidade na história é inseparável da ideia de sua marcha no interior de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da ideia do progresso tem como pressuposto a crítica da ideia dessa marcha. (BENJAMIN, 1985, p. 229) O tempo, como o concebe Benjamin, consiste de uma sucessão de agoras, onde a totalidade da história se apresenta atualizada e tensa, fraturada, prenhe, portanto, dos próprios cismas a que se vê exposta a comunidade dos homens. Não se trata, contudo, apenas destes homens, neste preciso momento, mas de um tempo extenso o suficiente, para abrigar em um único agora todos os filhos do tempo. O ato, portanto, que liberta o presente de sua cristalização, permitindo que o tempo flua, redime a totalidade daqueles que se viram condenados ao jugo15. A palavra, como alegoria 14


que deve ser para nós, contém essa imensidão e, no seu interior, a natureza degradada e o homem aviltado clamam por redenção. Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do 15


historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer. (Benjamin, 1985, pp. 224-225) Os desenvolvimentos formulados até aqui estão no âmbito de Sobre o conceito da história. O fato, contudo, que Benjamin compreenda que articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”, ou seja, o segundo modo como ele se oferece imediatamente, obriga a que se retome uma vez mais o ponto de que se partiu, para lhe acrescentar algo. Porque, afinal de contas, o passado poderia divergir de si mesmo, em sua faticidade? Essa questão coloca de imediato outra: qual é a forma de existência do passado, para nós, que o miramos deste preciso momento? Esse é o problema: o que chamamos de passado não existe de modo imediato, em sua originalidade empírica. O passado existe através das infinitas mediações que se nos apresentam como documentos, esses sim, o material que efetivamente se apresenta ao 16


historiador, em sua tarefa de interpretar a história. Legítimo admitir, portanto, que a filologia, a hermenêutica e a exegese referem-se, essencialmente, à própria compreensão da história, apropriada à sua vez como textos. Se o historicismo é uma ideologia, ele o é, contudo, não por ser falsa consciência, erro ou indução a erro, mas por dar por acontecido e realizado o que é, ainda uma promessa: a civilização. Uma visão objetiva da história só é possível, portanto, em uma sociedade redimida, como expressão imediata e material de um homem indiviso enquanto gênero, ou seja, em sua mais completa dignidade humana (o que obviamente pressupõe e realiza sua diversidade fenomênica, nos mais distintos âmbitos da existência). O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade 17


redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos. Cada momento vivido transforma-se numa citation à l’ordre du jour — e esse dia é justamente o do juízo final. (Benjamin, 1985, p. 223) Isso não esgota, contudo, o problema. Colocao, no entanto, em uma outra tópica possível. A interpretação da história como documento, seu único modo de existência sensível, traz para este campo - não apenas para o seu interior, mas para o seu centro - a questão da teoria da linguagem, e em especial os problemas que envolvem a natureza da palavra. Como a palavra emerge da e na obra de Benjamin? Antes de mais nada é preciso qualificar o próprio Benjamin, como autor, em sua relação com a palavra. Grande parte do poder que se encontra em sua obra filosófica não se resolve no campo estrito da filosofia, fato que se passa, de resto, com muitos outros autores, como é o caso, por exemplo, de Nietzsche. Benjamin é 18


também um literato no mais alto sentido do termo, o que deve, portanto, incluir a liberdade de escrever, às expensas e contra as determinações de sua época. Benjamin encarou, portanto, a palavra, como a vislumbra o artista, o escritor. Olhou-a nos olhos, com agonia e desejo, desespero. Devassou-a como os devassos, flertou, chafurdou, bebeu-lhe os líquidos e vapores, entregou-se a ela como o barco que se larga ao oceano; tomou os riscos do ínfimo na presença do infinito. Não se compreende a essência da filosofia e das escolhas de Benjamin, se não se aceitar que no cerne mesmo do filósofo vai o escritor, e seu projeto de desenvolver a prosa até o limite em que ela tendesse à poesia, para se converter em uma prosa poética (prosa absoluta). Não se pode entender suas escolhas existenciais se não se atentar para o fato de que, para o poeta, a cada momento que se termina uma frase a vida está em perigo, pois nesse ínfimo intervalo o existente olha de frente para o precipício do indeterminado. Para a travessia do oceano da linguagem Benjamin partiu, no entanto, muito bem guarnecido. Tinha, verdadeiramente, não apenas um, mas vários 19


planos de viagem, sendo, talvez, o fragmento abaixo uma de suas formulações mais conhecidas: O historicismo culmina legitimamente na história universal. Em seu método, a historiografia materialista se distancia dela talvez mais radicalmente que de qualquer outra. A história universal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio. Ao contrário, a historiografia marxista tem em sua base um princípio construtivo. Pensar não inclui apenas o movimento das idéias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento para, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma 20


imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade para extrair uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas. (Benjamin, 1985, p. 231 – grifos meus) Há que se considerar, ainda, que em Benjamin o filosofar não existe como algo que se realize fora da escrita filosófica: não há uma realidade que se confirma através de documentos, a realidade já é o 21


documento - ponto de partida e resultado da análise. Não há, portanto, uma exterioridade entre o pensado e o texto, pois o próprio pensado só existe como texto, de tal modo que o desenvolvimento de um, implica o desenvolvimento do outro. Não se pode, portanto, ver a história fora da história, existir aquém ou além da política; instituir uma objetividade que resida em uma posição superior à da linguagem. Esse é o modo como, lindamente, o teólogo em Benjamin traduziu Nietzsche: “Deus está morto!”, porque está historicamente vivo: foi preservado na linguagem, que excede humanamente o homem. Podemos agora tentar entender melhor essa expressão Darstellung der Wahrheit ou "exposição da verdade". Parto da hipótese de que ela somente se tornará inteligível se percebermos o duplo valor do genetivo "da verdade". "Exposição da verdade" significa, de um lado, que a filosofia tem por tarefa expor, mostrar, apresentar a verdade, mas significa 22


também, do outro lado, que a verdade só pode existir enquanto se expõe, se apresenta, se mostra a si mesma. No primeiro momento, a filosofia é a força expositiva e apresentadora; no segundo, é a própria verdade que tem um movimento essencial de exposição de si mesma. Esses dois momentos são complementares e indissociáveis. Como a filosofia, se quiser mostrar, expor, apresentar a verdade, só o pode quando respeitar a incomensurabilidade desta última à linguagem — e, nesse sentido, somente consegue expor a verdade ao mostrar a insuficiência da linguagem que tenta dizêla, como Platão já afirmava na famosa "digressão filosófica" de sua Sétima Carta —, assim também a verdade deve, essencialmente, expor-se a si mesma; ou, dito de maneira mais polêmica, não pode exisitir em si mesma em uma autoridade soberana inefável, mas só pode se realizar em sua autoexposição, em particular em sua autoexposição nas artes e na 23


linguagem (mas não na história universal, como em Hegel). (GAGNEBIN, JeanneMarie. Do conceito de Darstellung em Walter Benjamin ou verdade e beleza) Mas como Benjamin concebeu a palavra? Na mais estrita conformidade com sua teoria da história, de que a teoria da linguagem é absolutamente inseparável16. Se, na obra de Benjamin, houver uma disciplina que assuma virtualmente a função de cobrir um espectro integral, esta é, aos meus olhos, a filosofia da história. Mesmo a filosofia da linguagem, concebida de forma igualmente universal, converge, se eu estiver certo, para a filosofia da história, pelo menos no que se refere à categoria da Revelação, a qual, como Scholem já verificara, em contraposição à categoria da Salvação, desaparece da obra tardia, mas nem por isso precisa ser apagada do pensamento. (Klaus Garber. Por que os herdeiros de Walter Benjamin ficaram ricos com 24


espólio? Filosofia da história de Walter Benjamin. Tradução de George Bernard Sperber. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) Trata-se, portanto, de um libelo contra o historicismo, que em suas pretensões à interpretação canônica, inocula no texto a história como o definitivamente realizado 17. Na interpretação canônica o historicista encontra, contudo, seu próprio ponto de partida, ou seja, resgata na história o seu próprio projeto histórico. A palavra que emerge daí só poderia ser, portanto, a palavra muda e inerte, fixada e morta, com o que restitui a violência de que é vítima. O nome dessa violência que se faz à palavra é causalidade18, que se quer impor à história como se, de fato fossem, coisas de mesma natureza. Causa e efeito - “Explicação”, dizemos; mas é “descrição” o que nos distingue dos estágios anteriores do conhecimento e da ciência. Nós descrevemos melhor e explicamos tão pouco quanto aqueles que nos precederam. Descobrimos múltiplas 25


sucessões, ali onde o homem e o pesquisador ingênuo de culturas anteriores via apenas duas coisas, “causa” e “efeito”, como se diz; aperfeiçoamos a imagem do devir, mas não fomos além dessa imagem, não vimos o que está por trás dela. Em cada caso, a série de “causas” se apresenta muito mais completa diante de nós, e podemos inferir: tal e tal coisa têm de suceder antes para que venha essa outra - mas nada compreendemos com isso. Em todo devir químico, por exemplo, a qualidade aparece como um “milagre”, agora como antes, e assim também todo deslocamento; ninguém “explicou” o empurrão. E como poderíamos explicar? Operamos somente com coisas que não existem, com linhas, superfícies, corpos, átomos, tempos divisíveis, espaços divisíveis - como pode ser possível explicação, se primeiro tornamos tudo imagem, nossa imagem! Basta considerar a ciência a humanização mais fiel possível 26


das coisas, aprendemos a nos descrever de modo cada mais preciso, ao descrever as coisas e sua sucessão. Causa e efeito: essa dualidade não existe provavelmente jamais - na verdade, temos diante de nós um continuum, do qual isolamos algumas partes; assim como percebemos um movimento apenas como pontos isolados, isto é, não o vemos propriamente, mas o inferimos. A forma súbita com que muitos efeitos se destacam nos confunde; mas é uma subtaneidade que existe apenas para nós. Neste segundo de subtaneidade há um número infindável de processos que nos escapam. Um intelecto que visse causa e efeito como um continuum, e não, à nossa maneira, como arbitrário esfacelamento e divisão, que enxergasse o fluxo do acontecer, rejeitaria a noção de causa e efeito e negaria qualquer condicionalidade. (NIETZSCHE, 2005, p. 140)

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Mas como aquele que pensa pode extrair da história algo diferente de seu próprio ponto de partida? Como a linguagem pode acrescentar, ao discurso daquele que fala, algo que excede a intencionalidade de partida, criando efetivamente o novo. Essa é uma das perguntas essenciais da teoria da linguagem de Benjamin, como, de certo modo, já se havia colocado também Nietzsche. A resposta está exatamente em evitar violentar a palavra, opondo-lhe de partida a causalidade e o sentido. Se a palavra é deixada livre para significar, para espelhar, ela se revela em sua natureza mais íntima, ou seja, segundo o múltiplo que a institui, e as infinitas conexões que estabelece. Essa noção está perfeitamente enunciada no Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão: A infinitude da reflexão é para Schlegel e Novalis, antes de tudo não uma infinitude da continuidade, mas uma infinitude de conexões. Isto é decisivo, justamente com o seu caráter temporal inacabável e antes mesmo dele, que deve ser compreendido de outra maneira que não uma progressão 28


vazia. Hölderlin, apesar de não ter tido contato com algumas idéias dos primeiros românticos (...), proclamou a última e incomparavelmente profunda palavra, escrevendo em um lugar onde ele quis expressar uma conexão, a mais acertada e interna: “Conectar infinitamente (exatamente)”. Schlegel e Novalis tinham em mente o mesmo quando compreenderam a infinitude da reflexão como infinitude realizada do conectar: nela tudo devia se conectar de uma infinita multiplicidade de maneiras, sistematicamente como nós diríamos hoje em dia, “exatamente”, como diz Hölderlin com mais simplicidade. Essa conexão pode ser compreendida mediatamente a partir de níveis infinitamente numerosos de reflexão, na medida em que gradualmente o conjunto das demais reflexões seja percorrida por todos os lados. Na mediação por reflexões não existe, no entanto, em princípio, nenhuma oposição com relação à imediatez do compreender 29


via pensamento, pois toda reflexão é em si imediata. (BENJAMIN, 2002, p. 34-35) A palavra viva não admite tutores e, em larga medida, é avessa ao cânone. Não que a palavra não signifique e não tenha as devidas propriedades comunicativas. O fato, contudo, é que ela excede aquele que fala, sendo infinitamente maior do que ele, razão pela qual, mesmo no texto mais elaborado, em que se busca a precisão como obsessão, ainda assim, a palavra escapa ao controle, para ir além dos limites que se pretendeu impor a ela. A palavra é devota do espaço aberto de que se originou, ama as ruas, o praguejar, o que se disse sem querer; adere a tudo e, em certo grau, de tudo se diferencia. Não há silêncio de que não participe a palavra, de tal modo que ela existe, mesmo – e talvez especialmente – quando não pronunciada. A palavra, portanto, é tanto aquilo que se disse quanto, particularmente, o que se deixou de dizer, que ficou interrompido, mas, que ainda assim, se propaga como prenúncio e realização inaudível da palavra. A palavra é um abismo, cavidade vaginal, onde todo o mundo, na 30


exata medida em que se afirma, anuncia outros infinitos mundos e possibilidades. A palavra é a vertigem do abraço entre a culminação e o abissal; a reunião tensa de todo o tempo, nesse preciso agora, em que a palavra se coloca, apresentandose em sua imensidão - que se oferece, segundo o duplo19 de sua face, eternamente plena e vazia. Quem olha para a palavra no rosto vê o infinito, as evoluções e as revoluções perpétuas da existência, mas, exatamente por isso, não pode deixar de encontrar, naquele fundo mais distante do olho que tem em mira, na sua profundidade insondável, a figura da morte, em seu mais tranquilo fulgor. Essas são as primeiras flexões da palavra, a eternidade e o finito, que se multiplicam pelo tempo a se diferenciar na forma, apenas para encontrar recorrentemente aqueles mesmos elementos de partida. A mesma palavra, contudo, em sua conformação infinita, exige o pequenino homem para ser pronunciada, e este, ao fazê-lo, se vê atado ao oceano da língua, em que tudo aquilo que se comunicou, também é um eco e uma premonição; uma reminiscência e uma presciência: 31


não há existência humana fora da palavra; viver é estar compreendido na linguagem, tomando-lhe os movimentos, como ondas, que ao se realizarem, se dissipam. Como ressaltaram inúmeros pensadores, a teologia não é, em primeiro lugar, uma construção especulativa dogmática, mas, antes e acima de tudo, um discurso profundamente paradoxal: discurso ou saber (logos) "sobre" Deus (theos), consciente, já no início, de que o "objeto" visado lhe escapa, por ele se situar muito além (ou aquém) de qualquer objetividade. Assim, a teologia seria o exemplo privilegiado da dinâmica profunda que habita a linguagem humana quando essa se empenha em dizer, de verdade, seu fundamento, em descrever seu objeto e, não o conseguindo, não se cansa de inventar novas figuras e novos sentidos. Por certo, nem todos os discursos humanos seguem a regra de uma impossibilidade transcendental e 32


constitutiva de apreender o próprio objeto. Mas tal paradigma de um discurso que se definiria por sua insuficiência essencial, constituindo-se positivamente em redor dessa ausência — um paradigma oriundo da teologia —, habita no cerne da tradição filosófica e poética, especialmente contemporânea. Convém observar, aliás, que, se Deus é o primeiro e, talvez o mais radical, desses significados insondáveis e indizíveis, ele não é o único. Nem a beleza do mundo nem o sofrimento humano podem verdadeiramente ser ditos. (...) (...) A uma filosofia concebida como doutrina do conhecimento ou como o próprio conhecimento de um objeto preciso por um sujeito determinado, Benjamin opõe, na esteira da metafísica platônica e da teologia, a outra vertente da busca filosófica: uma errância (errance) fértil, um exercício paciente que não visa 33


possessão alguma mas procura desenhar, expor, de modo lúdico ou grave, e sempre incompleto, aquilo que simultaneamente, fundamenta o logos e a ele escapa. A tradição filosófica lhe dá também outro nome: verdade. (Gagnebin, Jeanne-Marie. Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE). Como o homem existe na linguagem, todo arranjo, todo sentido, todos e quaisquer documentos estão fadados, portanto, a observar os mesmos desenvolvimentos que acometem a língua, mesmo que se mantenham imutáveis, em sua mais esplendorosa existência mineral. A língua está viva e, exatamente por isso, os documentos se estraçalham continuamente, para somente voltarem à luz do dia segundo um arranjo completamente novo, que conserva o passado não porque o reproduz, mas porque o vivifica nas possibilidades que, a rigor, sempre teve, mas que permanecem em latência, à espreita do tempo. Não o tempo que moveu os relógios, mas o tempo 34


em que os homens amadurecem para ter a idade aproximada, ainda que inatingível da palavra. O homem busca desesperadamente, mas claramente destinado ao fracasso, ser coeterno com a palavra. Não pode, porque a palavra que nega, que resiste e que não se entrega, que carrega aninhado no ventre o registro da falta20 e do irrealizado, as promessas, aquele preciso aquilo que a morte recusa, esta palavra, exatamente ela, está tecendo a humanidade do homem, lapidando-o como ser para o outro e, portanto, como ente social. A negativa recorrente da palavra afirma o homem como possibilidade, como reunião fraterna, como realização da comunidade, não a original - que é um sonho feérico da palavra, quando ainda estava no útero do indiferenciado -, mas aquela outra, artificial e não orgânica, que vai se materializando, como o outro lado do tecido, sobre o qual o homem trança a urdidura e a trama, de que resulta o texto. No exercício da palavra, em que se institui a humanidade do homem, mais importante do que a elevação é, contudo, preservar-se humano, 35


inclusive e especialmente diante do ínfimo e do degradado. Pois a coisa decaída retribui exata e precisamente o olhar daquele que a olha. O caminho do céu compreende, em si, portando, o abissal e reconciliação de todos e cada um de seus elementos: Mas se a moda é funcionária da morte, ela constitui, por outro lado, a realização irônica do programa do jovem Marx: naturalização do homem, humanização da natureza. Ela oferece a imagem de uma natureza humanizada, como a lune peinte par elle-même, de Grandville, que em vez de se inclinar sobre nuvens, recosta-se em moderníssimos coxins de pelúcia (p.267). E é o modelo de uma humanidade naturalizada, como os vestuários fantásticos descritos por Appolinaire, em que entravam todas as substâncias do reino animal, vegetal e mineral, desde a cortiça e a porcelana até as arestas de peixe. "A moda não despreza nada, ela enobrece tudo, e faz pelas matérias o que 36


os românticos fizeram pelas palavras" (p. 119). Da mesma forma que a moda é veículo do inorgânico, mas também da reconciliação com a natureza, ela é a encarnação do tempo mítico, o do sempre igual, mas também a promessa do tempo messiânico, o da história dialética. Enquanto sacerdotisa da mercadoria, a única função da moda é apresentar o indiferenciado na forma do diferenciado, o idêntico na forma do único. "A história do vestuário está sujeita a variações surpreendentemente insignificantes, e não é outra coisa que um rodízio de nuances o comprimento da barra, a altura do penteado, a extensão das mangas, o décolleté do busto, a largura da cintura. Mesmo as revoluções mais radicais da moda constituem sempre o eterno retorno do mesmo" (p. 120). Nisso, ela se mostra como a antítese da política, como o símbolo da atualidade perversa, die schlechte Heutigkeit. "A mudança introduzida pela moda, o hoje eterno, 37


escapa à ótica histórica, e só pode ser verdadeiramente superada pela política ou pela teologia. A política reconhece em cada configuração atual o verdadeiramente único, o irrepetível" (pp. 674-5). Ao mesmo tempo, a moda "contém também temas da redenção" (7), constituindo mesmo o modelo da história dialética: ela é um "salto de tigre em direção ao passado" (8). A história materialista faz explodir a dinamite que jaz no passado, e cuja figura mais autêntica é a moda" (p. 495). Ela cancela a amnésia coletiva. "As modas são medicamentos destinados a compensar, em escala coletiva, os efeitos fatídicos do esquecimento" (p. 131). Imita, em sua estrutura, a estrutura da história descontínua, baseada na ruptura. A moda consiste em extremos. Como por natureza ela busca extremos, não lhe resta outra alternativa, ao abandonar uma forma, senão procurar o seu contrário" (p. 119). O espetáculo da moda, que consiste em 38


apresentar o mais novo na forma do mais antigo, do mais habitual, "é o espetáculo genuinamente dialético" (p. 122). A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja, escondido no passado (9). Sim, os costureiros "obtêm sua inspiração da atualidade mais viva. Mas como nenhum presente se emancipa totalmente do passado, este também lhe oferece estímulos O chapéu inclinado na testa, que devemos à exposição de Manet, prova que surgiu entre nós uma nova disponibilidade de confrontar-nos com o século XIX" (p. 122). Nessa imitação do passado, ela tem o poder de mostrar-nos o novo, antes que ele se concretize. "Ela mantém um contato constante e preciso com as coisas vindouras, graças ao fato incomparável que as mulheres têm pelo que se está preparando no futuro. Cada estação traz em suas últimas criações sinais secretos das coisas que virão. Quem souber lê-las, conhecerá de antemão as novas leis, as novas guerras e as novas 39


revoluções" (p. 112). (ROUANET, Sergio Paulo. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin "Trabalho das Passagens". SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) Na imagem que a palavra viva institui, o mundo se olha na face e se reflete, reencontrando, portanto, sua natureza; as configurações e cristalizações que o constituem. Somente nesta reflexão o mundo tem objetivamente uma chance, não de negar o que de fato é, mas de se rearticular em um arranjo novo, onde toda a dor e desespero sejam preservados e superados, através de um salto sobre o ciclo infinito de suas repetições catastróficas. Essa esperança que a palavra contém, como propriedade sua, chama-se história. Ela não se realiza como continuidade, fundada na expectativa de diferenciação do mesmo no diferente, mas como salto do existente para uma outra órbita temporal, que a teologia, e a filosofia em muitas ocasiões, só puderam enunciar como um fim, posto que também uma realização e uma 40


resolução. Contra isso se insurge, contudo, novamente a palavra, que mesmo tendo superado o aqui e o agora, encontra-se indissoluvelmente ligada à origem, onde infinito e o incompleto se reúnem. A palavra lembra ao homem que início e fim estão para além dele, e que ele permanece um viajante de estradas, cujos pontos terminais esgotam sua própria capacidade de enxergar21. Se o sentido nos escapa, exatamente como decorrência da imensidão da palavra, o mundo, então, vive o caos? Dito de outro modo, não podemos representar o mundo? Segura e legitimamente sim, mas segundo as contínuas transmutações da palavra; através das apropriações efêmeras que cada uma de suas infinitas revoluções nos permite, e precisamente através delas. Significa dizer que emergimos do mergulho na palavra não com a verdade e a certeza sensível, mas com imagens, como representações fisionômicas e fragmentárias do mundo – plenas em sua incompletude e limitações, cheias -, as quais, somadas ao infinito, produzem um rosto, uma face, que excedendo cada partícula, 41


ainda assim, as contém. O universal não extingue, portanto, o particular, mas o conserva individuado, como elemento de um mosaico, ao passo que o fragmento, contém em si (o índice para) o universal, na medida em que somente através de sua limitação e pequenez, o universal pode ganhar expressão. O que se realiza através dessa abordagem – e esta é uma questão que envolve o método - não é, portanto, o sentido, mas o panorama fisionômico de uma época, o qual, a rigor, se obtém através da saturação de imagens ínfimas, que se alinham e articulam não segundo a intenção prévia de um sujeito cognoscente, mas como um evento único e total, para o qual contribuem decisivamente cada minúsculo elemento resgatado, que se articulou no todo, sem nele se dissolver22. (...) Se a filosofia quiser conservar a lei da sua forma, não como propedêutica mediadora do conhecimento, mas como representação da verdade, então aquilo que importa deve ser a prática de sua forma, e não sua antecipação num 42


sistema. Tal prática impôs-se em todas as épocas para as quais foi evidente a essência não delimitável do verdadeiro, sob uma forma propedêutica que pode ser designada pelo termo escolástico do “tratado”, porque ele reenvia, ainda que apenas de forma latente, para os objetos da teologia, sem os quais não é possível pensar a verdade. Os tratados serão doutrinários no tom que assumem, mas sua índole profunda exclui aquele rigor didático que permite à doutrina afirmar-se por autoridade própria. E também eles renunciam aos meios coercitivos da demonstração matemática. Na sua forma canônica, eles aceitam um único elemento doutrinal - de intenção, aliás, mais educativa que doutrinária -, a citação da auctoritas. A representação é a quintaessência de seu método. Método é caminho não direto. A representação como caminho não direto: esse é o caráter metodológico do tratado. A sua primeira característica é a renúncia ao percurso 43


ininterrupto da intenção. O pensamento volta continuamente ao princípio, regressa com minúcia à própria coisa. Este infatigável movimento de respiração é modo de ser específico da contemplação. De fato, seguindo, na observação de um único objeto, os seus vários níveis de sentido, ele recebe daí, quer o impulso para um arranque constantemente renovado, quer a justificação para intermitência do seu ritmo. E não receia perder o ímpeto, tal como um mosaico não perde sua majestade pelo fato de ser caprichosamente fragmentado. Ambos se compõem de elementos singulares e diferentes; nada poderia transmitir com mais veemência o impacto transcendente, quer da imagem sagrada, quer da verdade. O valor dos fragmentos de pensamento é tanto mais decisivo quanto menos imediata é sua relação com a concepção de fundo, e desse valor depende o fulgor da representação, na mesma medida em que o do mosaico 44


depende da qualidade da pasta de vidro. A relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um ponto de vista plástico e mental, demonstra que o conteúdo de verdade (Wahrheitsgehalt) se deixa apreender apenas através da mais exata descida ao nível dos pormenores de um conteúdo material (Sachgehalt). Tanto o mosaico como o tratado, na fase áurea de seu florescimento no Ocidente pertencem à Idade Média; aquilo que permite sua comparação é, assim, da ordem do genuíno parentesco. (BENJAMIN, 2004, p. 14) Às formas humildes do material sobre o qual atua corresponde a própria figura do escritor, do artífice do texto. Não busca, portanto, o nobre como nobre, em seus esplendor e elevação, mas a nobreza eterna daquilo que quer se preservar, no interior de uma totalidade em que pode repousar, despreocupado de si e distraído de todo propósito. No trabalho minucioso e minudente sobre a coisa 45


decaída realiza-se uma reconciliação recíproca, através da qual, homem e coisa, curam-se da violência que reciprocamente se impuseram. O trapeiro, por estar à margem, resgata as coisas marginalizadas, que, em sua coisidade, são o suporte e o meio material da violência, que o homem projeta sobre o natural, para preservar íntegra sua ferocidade. O trapeiro que recolhe os dejetos exatamente por serem desejos, que apanha do chão a natureza em sua mais deplorável existência, que não falta à coisa em sua deformidade, que é solidário e invisível, que perambula solitário e imerso na noite, enquanto os perpetradores da violência se recolhem ao país dos adormecidos, ouve a natureza (humanizada e violentada), como quem escuta o primeiro pássaro do tempo. No século XIX havia uma verdadeira indústria artesanal do lixo. Milhares de homens ganhavam a vida recolhendo lixo nas ruas. É a esses trapeiros que é dedicado um 46


poema de Baudelaire, "Le Vin des Chiffoniers". Num trabalho em prosa, Baudelaire descreve a atividade do trapeiro. "Eis um homem encarregado de apanhar os detritos de um dia da capital. Tudo o que a grande cidade rejeitou, tudo o que ela perdeu, tudo o que ela desdenhou, tudo o que ela quebrou ele cataloga e coleciona. Ele compulsa os arquivos do passado, os cafarnauns dos dejetos. Faz uma triagem, uma escolha inteligente; recolhe, como um ávaro recolhe um tesouro, as imundícies que, reelaboradas pela divindidade industrial, se tornarão de novo objetos de utilidade ou prazer" (p. 441). Um discípulo de Fourier, Toussenel, exalta a importância social do trapeiro. "Há na humanidade uma quantidade de cacos de garrafas, de pregos desaparelhados e resíduos de velas, que estariam completamente perdidos para a sociedade se mãos cuidadosas e inteligentes não se encarregassem de juntar todos esses 47


fragmentos sem valor. Esse ofício importante entra nas atribuições do avarento. Aqui o caráter e a missão do avarento se elevam visivelmente o unhade-fome se transforma em trapeiro" (p. 778). Essa descrição do trapeiro o aproxima de outra figura que fascina o flâneur o colecionador. Não é por acaso que Baudelaire condensou numa só essas duas figuras, quando escreveu que o trapeiro "cataloga e coleciona". Também o colecionador se interessa por objetos descontextualizados, juntando-os segundo uma ordem que só para ele vale. Também ele reúne objetos que perderam todo valor de troca e todo valor de uso. A tarefa do colecionador é a transfiguração das coisas. Seu trabalho é um trabalho de Sísifo, retirar das coisas, pela posse, seu caráter de mercadoria. Mas em vez de devolver-lhes o valor do uso, o colecionador lhes atribui um valor idiossincrásico, determinado por seu interesse de "conhecedor". Ele é o 48


trapeiro dos objetos mortos, retira-os do seu hábitat, e os faz renascer num novo universo relacional. Com isso, ele estabelece uma nova relação com a história. "O colecionador sonha não somente um mundo distante ou passado como um mundo melhor em que as coisas estão libertas da obrigação de serem úteis" (p. 53). Cada peça de sua coleção se transforma numa enciclopédia, mônada em que se resume toda uma história a história do objeto e das circunstâncias em que ele foi encontrado, e nesse sentido é "uma forma de rememoração prática, a mais convincente das manifestações do próximo" (p. 271). (ROUANET, Sergio Paulo. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin "Trabalho das Passagens". SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) Qual é, contudo, o elemento que articula o imenso da palavra, delicada e infinitamente 49


reunida, em uma constelação, e não sob a forma de uma explosão que, a rigor, desintegraria a palavra, na mais extensiva rarefação? A resposta a esta questão envolve os desenvolvimentos feitos por Benjamin, na Doutrina das semelhanças23, ponto nevrálgico de sua filosofia: Já há muito tem se admitido uma certa influência da faculdade mimética sobre a linguagem. Mas essa opinião carece de fundamentos sólidos, e não se cogitou nuca seriamente de investigar a significação, e muito menos a história, da faculdade mimética. Sobretudo, tais reflexões ficaram estreitamente vinculadas à esfera mais superficial da semelhança, a sensível. De qualquer modo, os investigadores reconhecem, na onomatopeia, o papel do comportamento imitativo na gênese da linguagem. Mas, se a linguagem, como é óbvio para as pessoas mais perspicazes, não é um sistema convencional de signos, é imperioso recorrer, no esforço de 50


aproximar-se da sua essência, a certas ideias contidas nas teorias onomatopeicas, em sua forma mais crua e mais primitiva. A questão é: podem essas instituições ser adaptadas a uma concepção mais estruturada e mais lúcida? Em outras palavras: podemos dar um sentido à frase de Leonhard, contida no seu ensaio revelador, A palavra: “cada palavra e a língua inteira são onomatopeicas”? A chave, que pela primeira vez, torna essa tese transparente, está oculta no conceito da semelhança extrassensível. Se ordenarmos várias palavras das diferentes línguas, com a mesma significação, em torno desse significado, como seu centro, pode-se verificar como todas essas palavras, que não têm entre si a menor semelhança, são semelhantes ao significado situado no centro. Tal concepção é naturalmente próxima das 51


teorias místicas, ou teológicas, sem com isso abandonar o âmbito da filologia empírica. Mas, como se sabe, as teorias místicas da linguagem não se contentam em submeter a palavra oral a seu campo reflexivo e preocupam-se igualmente com a palavra escrita. É digno de nota que esta pode esclarecer a essência das semelhanças extrassensíveis, talvez melhor ainda que certas configurações sonoras da linguagem, através da relação entre a imagem escrita de palavras ou letras com o significado, ou com a pessoa nomeadora. Assim, a palavra beth tem o nome de uma casa. É, portanto, a semelhança extrassensível que estabelece a ligação não somente entre o falado e o intencionado, mas também entre o escrito e o intencionado, e entre o falado e o escrito. E o faz de modo sempre novo, originário, irredutível. A mais importante dessas ligações é talvez a última, entre a palavra escrita e falada. 52


Pois a semelhança que nela prevalece é comparativamente a menos sensível de todas. E também a que foi alcançada mais tarde. A tentativa de captar sua verdadeira essência, não pode ser realizada sem reconstituir a história de sua gênese, por mais impenetrável que seja a obscuridade que cerca esse tema. A moderna grafologia ensinou-nos a identificar na escrita manual imagens, ou antes, quebra-cabeças, que o inconsciente do seu autor nela deposita. É de supor que a faculdade mimética, assim manifestada na faculdade de quem escreve, foi extremamente importante para o ato de escrever nos tempos recuados em que a escrita se originou. A escrita transformou-se assim, ao lado da linguagem oral, num arquivo de semelhanças, de correspondências extrassensíveis. Essa dimensão - mágica, se se quiser – da linguagem e da escrita não se desenvolve 53


isoladamente da outra dimensão, a semiótica. Todos os elementos miméticos da linguagem constituem uma intenção fundada, isto é, eles só podem vir à luz sobre um fundamento que lhes é estranho, e esse fundamento não é outro que a dimensão semiótica e comunicativa da linguagem. O texto literal da escrita é o único e exclusivo fundamento sobre o qual pode formar-se o quebra-cabeça. O contexto significativo contido nos sons da frase é o fundo do qual emerge o semelhante, num instante, com a velocidade do relâmpago. Mas, como essa semelhança extrassensível está presente em todo ato da leitura, abre-se nessa camada profunda o acesso ao extraordinário duplo sentido da palavra leitura, em sua significação profana e mágica. O colegial lê o abecedário, e o astrólogo, o futuro contido nas estrelas. No primeiro exemplo, o ato de ler não se desdobra em seus dois componentes. O mesmo não ocorre no segundo caso, que 54


torna manifestos os dois extratos da leitura: o astrólogo lê no céu a posição dos astros e lê ao mesmo tempo, nessa posição, o futuro ou o destino. Se essa leitura a partir dos astros, das vísceras e dos acasos era para o primitivo sinônimo de leitura em geral, e se além disso existirem elos mediadores para uma nova leitura, como foi o caso das runas, pode-se supor que o dom mimético, outrora o fundamento da clarividência, migrou gradativamente, no decorrer dos milênios, para a linguagem e para a escrita, nelas reproduzindo um arquivo completo de semelhanças extrassensíveis. Nessa perspectiva, a linguagem seria a mais alta aplicação da faculdade mimética: um médium em que as faculdades primitivas de percepção do semelhante penetraram tão completamente, que ela se converteu no médium em que as coisas se encontram e se relacionam, não diretamente, como 55


antes, no espírito do vidente ou do sacerdote, mas em suas essências, nas substâncias mais fugazes e delicadas, nos próprios aromas. Em outras palavras: a clarividência confiou à escrita e à linguagem as suas antigas forças no correr da história. Porém o ritmo, a velocidade na leitura e na escrita, inseparáveis desse processo, seriam como o esforço, ou o dom, de fazer o espírito participar daquele segmento temporal no qual as semelhanças irrompem do fluxo das coisas, transitoriamente, para desaparecerem em seguida. Assim, mesmo a leitura profana, para ser compreensível, partilha com a leitura mágica a característica de ter que submeter-se a um tempo necessário, ou antes, a um momento crítico que o leitor por nenhum preço pode esquecer se não quiser sair de mãos vazias. (BENJAMIN, 1985, pp. 110-113)

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Mas esta entrega perpétua à palavra, com que se busca, ao final e ao cabo, a transfiguração da palavra em imagem – rigorosamente falando, em uma imagem dialética -, não é um trabalho de Sísifo, infernal, prefigurando o desespero da loucura? Com toda a certeza. A palavra não é apenas um precipício, mas uma condenação ao recomeço, pois, tanto quanto traz consigo uma significação, exige que não esqueçamos a falta. Esta condenação ao trabalho insano, que contém o arcaico, é igualmente, contudo, o moderno conforme ele se apresenta a todos aqueles que estão condenados à atividade, como apêndice da máquina. Sísifo, nesse sentido, é uma posição societária, que no infernal de sua realização, não apenas se materializa no presente, mas também atualiza as infinitas gerações, que estiveram submetidas ao trabalho, como retorno perpétuo ao ponto de origem. Esses homens que emergem continuamente de mãos parcialmente vazias e que, portanto, trazem sempre um pequeno bocado, escrevem através da história, documentos subliminares aos documentos, que souberam se preservar como história soterrada – mas material 57


no interior da palavra. É com eles que se faz necessário se solidarizar, não para proclamar seu desespero através dos préstimos da estética, mas para alterar as próprias condições da produção cultural, a fim de que esses desesperados falem em nome próprio, no interior de um aparelho modificado tecnicamente para atingir este fim. (...) O caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve orientar outros produtores em sua produção e, em segundo, precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. Esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou espectadores (...). (BENJAMIN, 1985, p. 132) Note-se que o desenvolvimento estético deve ser correspondido necessariamente por um reordenamento técnico do próprio aparelho através do qual se produz a cultura - que no interior do capitalismo tardio já é, rigorosamente 58


falando, um ramo da indústria. A solidariedade para com o proletariado não corresponde, portanto, à estetização de suas condições correntes de vida – seu sofrimento, seu desespero, sua desesperança – ou seja, a declaração de afinidades tão lacrimosas como impotentes. Esse desespero, para fins puramente mercantis, o sistema que produz os artefatos culturais já industrializa, como decorrência natural do seu operar e da excelência de suas condições técnicas24. No que se refere à produção cultural, a tarefa de reformulá-la cabe ao artista e ao intelectual, apenas na medida em que ele for capaz de atuar também como engenheiro e técnico: (...) Vemos aqui onde conduz a concepção do “intelectual” como um tipo definido por suas opiniões, convicções e disposições, e não por suas posição no processo produtivo. Como diz Döblin, ele deve encontrar seu lugar ao lado do proletariado. Que lugar é esse? O lugar de um protetor, de um mecenas ideológico. Um lugar impossível. E assim voltamos à 59


tese inicial: o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser determinado ou escolhido, em função de sua própria posição no processo produtivo. Brecht criou o conceito de “refuncionalização” para caracterizar a transformação de formas e instrumentos de produção por uma inteligência progressista e, portanto, interessada na liberação dos meios de produção, a serviço da luta de classes. Brecht foi o primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: não abastecer o aparelho produtor, sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista. (...) O que se propõe são inovações técnicas, e não uma renovação espiritual como proclamam os fascistas. (BENJAMIN, 1985, p. 127 – grifos meus) Qual é, contudo, a natureza desse reordenamento, ou, ao menos, suas linhas gerais? Benjamin a encontrou, mais uma vez, no Autor como produtor, ou seja, no caminho que conduz 60


dos elementos de base do aparelho produtor da cultura, para o artefato cultural. (...) Com a assimilação indiscriminada dos fatos também cresce a assimilação indiscriminada dos leitores, que se veem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas há um elemento didático nesse fenômeno: o declínio da dimensão literária na imprensa burguesa revela-se a fórmula de sua renovação na imprensa soviética. Na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção convencional entre autor e público, que a imprensa burguesa preserva artificialmente, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre pronto, igualmente, a escrever, prescrever e descrever. Como especialista – se não numa área do saber, pelo menos no cargo em que exerce suas funções -, ele tem acesso à condição de autor. O próprio mundo do trabalho toma a 61


palavra. A capacidade de descrever esse mundo passa a fazer parte das qualificações exigidas para a execução do trabalho. O direito de exercer a profissão literária não mais se funda numa formação especializada, e sim numa formação politécnica, e com isso transforma-se em direito de todos. Em suma, é a literalização das condições de vida que resolve as antinomias, de outra forma insuperáveis, e é no cenário em que se dá a humilhação mais extrema da palavra – o jornal – que se prepara sua redenção. (BENJAMIN, 1985, pp. 124-125 – grifos meus. Esse exceto corresponde à citação de um “autor de esquerda”, ao qual Benjamin recorre para ilustrar seu argumento) Como esse desenvolvimento propriamente técnico do sistema produtor de bens culturais é correspondido no terreno estrito da estética? Em outras palavras, em que sentido essa produção fragmentária pode constituir uma obra 62


literariamente significativa? Na resposta a esta indagação estão compreendidos conjuntamente a crítica à produção romanesca, toda o entendimento de Benjamin sobre o cinema e sua natureza revolucionária, e igualmente todo seu projeto filosófico, além de sua compreensão sobre a natureza da crítica literária. Todos esses elementos se reúnem em uma única palavra: montagem25. A técnica da montagem, no entanto, implica em uma revolução estética, pois ela tem dois aspectos essenciais. Se de um lado faculta a todo produtor efetivamente transformar-se em autor, por outro lado este só o faz na medida em que participa de uma obra que é, rigorosamente falando, coletiva. Sua natureza coletiva não se refere, contudo, apenas à autoria. Como veremos mais adiante, é apenas como esforço coletivo obstinado que a obra-prima propiciada por este método – cuja qualidade estética essencial é ser imediatamente política26 - pode emergir em todas as suas possibilidades e, através de seu caráter massivo, corresponder às exigências de uma teoria 63


da linguagem que não se fundamenta no sentido como propriedade de um sujeito cognoscente27. Nesse sentido preciso, a teoria da montagem é com relação, tanto à produção estética, quanto com relação à pesquisa filosófica, o desenvolvimento de uma tecnologia que coloca os imensos poderes quantitativos da massa engendrada pelo capitalismo, a favor de sua emancipação. 28 Tomemos a questão do método da montagem segundo um outro ponto de vista, necessário ao seu desenvolvimento consequente. A palavra grávida da palavra, que resulta como marca indelével da cultura que exclui seus artífices imediatos, é a alegoria, resistência e insubmissão ao sentido luminoso que quer apagar a sombra, sobre a qual, e a partir da qual, os documentos da cultura – e igualmente seus monumentos – se construíram29. A posição daqueles que se comprometem com a superação da ordem deve ser, portanto, neste preciso momento, ainda que não necessariamente em todos, aquela ocupada por Sísifo e pelos homens que lhe correspondem 64


artífices, trabalhadores condenados ao trabalho. Abandonam-se, portanto, ao trabalho da busca ininterrupta de imagens, que figuram palavras partidas. Esse trabalho, que se assemelha à catatonia, não é, contudo, aleatório30. É não linear, não causal, mas nem por isso desprovido de necessidade. No que se refere à história essa estratégia é especialmente oportuna, porque no modo de produção capitalista a existência é, ela mesma, fruto da probabilidade, que tem, contudo, suas próprias leis. Deste modo, todos os lances, exatamente no arbitrário de seus resultados particulares, trazem a marca da lei, à qual só poderiam se furtar na condição de que o jogo parasse. O jogo contínuo, ou seja, o relançar-se perpetuamente, sempre a partir do mesmo início, é, contudo, inerente ao sistema. Deste modo, quanto mais se realiza seguindo o princípio da extração aleatória, tanto mais obstinadamente confirma o resultado ao qual tende, e do qual não pode escapar31.

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O jogo transforma o tempo num narcótico. Mas como as fantasmagorias do espaço, as do tempo também têm o seu momento verdadeiro. Por um lado, o jogador está sujeito ao tempo do eterno retorno. Como o operário na linha de montagem, ele está condenado, depois de cada lance, a começar de novo, sem qualquer perspectiva de construir uma sequencia ordenada, visando um objetivo final. Agregação descontínua de gestos sempre iguais, o tempo do jogador é o do eternamente idêntico. Não se pode dizer, sequer, que o jogador seja movido pelo desejo do ganho. Na verdade, ele não deseja nada. Pois o jogador, protótipo do homem privado de experiência, e portanto cortado da tradição, não tem passado, e o desejo nasce na infância mais remota, só podendo realizar-se por completo na perspectiva de um futuro infinitamente disponível. É desse passado e desse futuro que está privado o jogador, cuja temporalidade é a do inferno: o ritmo 66


do sempre igual (10). Mas por outro lado o jogador tem outro tipo de relação com o tempo. Ele é obrigado a reagir instantaneamente, num momento específico, sob um efeito de choque, que impede o trabalho de reflexão. "A embriaguez do jogo está em que ele impõe ao jogador uma presença de espírito tal que ele seja forçado a reagir a constelações sempre independentes umas das outras, de forma nova e original O jogador reage ao acaso como o joelho ao martelo do médico" (p. 634). Ele se liberta, assim, do sempre igual: cada instante é único, e pode trazer-lhe a fortuna esperada. Seu comportamento é o do homem-massa e o do espectador de cinema, comportamento reflexo mas rico de virtualidades políticas: "o jogo oferece a vantagem de libertar os homens da espera" (p. 178). Enfim, a práxis do jogador é eminentemente dialética: ela retira as coisas do seu contexto, pelo choque. "A aposta é um meio de dar às 67


coisas um caráter de choque, extraindo-as do contexto da experiência" (p. 640). Mas a aposta é mais o jogo dos dominadores que dos dominados. "Para a burguesia em especial, os acontecimentos políticos assumem a forma de acontecimentos na mesa de jogo. Para o proletário, não é tanto assim. Ele está mais disposto a reconhecer as constantes da história" (p. 640). (Sergio Paulo Rouanet. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin "Trabalho das Passagens")

A tarefa de todos aqueles que assumem a posição dos despojados32 consiste, portanto, exatamente em registrar os resultados de todos e infinitos lances, fazendo emergir deles, não a causalidade ou o sentido, mas a imagem que o movimento aparentemente aleatório recusa, e da qual quer evadir-se, para poder retornar novamente ao princípio e reiniciar todo o processo (o jogo). Essa atividade ininterrupta, que recusa a 68


reflexão é, exatamente ela, o mergulho no mito que só pode ser realizado através da imagem negada. A imagem que todo recomeço evita, para poder permanecer o mesmo, não pode ser construída individualmente, pois está para muito além das possibilidades de qualquer indivíduo. Ela é uma potência social, uma completa configuração, um mapa da existência, onde se ajuntam traços e fragmentos, que se produziram alhures, em outras épocas, por infinitas mãos. Ela sequer se resolve em um uma obra, ou uma vida, mas as reúne todas, para um mesmo fim. De cada um de seus operários, independentemente da posição que ocupa no processo de configuração, requer-se, contudo, vislumbrar o mundo segundo um determinado conjunto de possíveis pontos de vista: o da morte33, do estrangeiro, do exilado, do que está semidesperto, do palhaço – figura heroica que Chaplin representou, para uma época que não mais conhece a epopeia. Em Benjamin podemos ler que "a modernidade tem que estar sob o signo 69


do suicídio". (...) A produção da mente ou do espírito, a produção cultural, poder-se ia dizer, tem como meta a efetividade e, com isso, a durabilidade. Mas efetividade e durabilidade são impossibilitadas pelo princípio da modernidade. Pois o que acaba de ser criado é imediatamente algo envelhecido e é vítima do desprezo e do esquecimento. Por outro lado, porém, na Idade Moderna o sujeito se define justamente a partir de sua força produtiva. O que é um ser humano? Um ser humano é, segundo a resposta da antropologia moderna, influenciada pela estética do gênio, um ser que, a partir de si próprio, pode produzir algo. Esta condição fundamental da autoconsciência humana na Idade Moderna é revogada pelas características da modernidade. Por isso, a sua autoextinção deve ser entendida enquanto signo, como alegoria da compreensão da própria impossibilidade. 70


Todos sabemos que Benjamin acompanhou esta noção, na prática, até seu último extremo. Benjamin elabora ainda mais o modelo do poeta visto como herói. Ele apresenta o poeta como apache, quer dizer, como rufião. "Apache" é uma palavra que estava na moda nos anos 20 e que denominava o rufião. Um outro papel em que se vê o poeta, nos poemas de Baudelaire, é o de catador de trapos. Contudo, o poeta é sempre descrito como marginal, como alguém que se ocupa das coisas somente e apenas quando elas caíram fora do seu contexto funcional. Isto se toma especialmente claro no símile do poeta e do catador de trapos. Como tal, ele é alguém que está à margem da sociedade burguesa, alguém que se ocupa com as coisas que estão à margem das concatenações funcionais da sociedade burguesa.

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A ligação mais profunda entre o herói da Antiguidade e o poeta consiste em que a luta de ambos está fadada, desde seu início, ao fracasso. Ambos estão predestinados à perdição. Na modernidade, porém, esta perdição carece da dignidade metafísica que distinguia o herói da Antiguidade. A sua perdição é tão certa quanto absurda. Nisso o poeta, como herói da modernidade, é o modelo e a encarnação daquilo que será também o destino das massas humanas nas grandes cidades, ou seja, uma morte sem sentido. (Bernd Witte. Por que o moderno envelhece tão rápido? Concepção da modernidade em Walter Benjamin. Tradução de George Bernard Sperber. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) É preciso parar o mundo, para vê-lo em sua efetiva imagem. O mundo, contudo, não quer ser parado. Esse requerimento se resolve, portanto, na alteridade, no estranhamento, na separação, no 72


exílio, no desterro. Exatamente nesses territórios a distância não cai na cilada do positivismo, permanecendo, portanto, como ânsia do mundo, em sua ausência. Nesses turning points, nessas encruzilhadas, a palavra realiza-se como silêncio, a fala como interrupção e contenção, a mensagem como uma entrega confiante ao tempo. Nesse não dito, que se somou a tudo quanto se falou, na palavra que calou na boca do moribundo, o tempo congela-se por um ínfimo instante, com o qual a face do atual se apresenta em todo seu desespero. O correspondente do atual, na obra, é o legado: o vislumbre do mundo a partir da janela do trem que parte, do avião que decola, do navio que se afasta do cais34. Toda obra, portanto, que aspira somar-se à empreitada do novo, deve posicionar o olho como se ele fosse capturar e conferir ao mundo um conjunto de imagens, que se reúnem em um concerto, cuja única meta é transcender o autor, para se arranjarem em outras configurações possíveis. Aquilo que na tradição ontológica tem o nome de sujeito transcendental e garante 73


a capacidade comunicativa da linguagem é, para Benjamin, a própria linguagem, mas não em abstrato ou em geral, mas na medida em que está ausente-presente a experiência de todos os homens e de todas as comunidades linguísticas. (...). Pois a ilimitada comunidade de comunicação dos seres finitos é, segundo a concepção de Benjamin, a comunidade dos mortos, a comunidade de todos aqueles que falaram e escreveram antes, aos quais finalmente o próprio Autor se junta, na medida em que ele está ausentepresente como cadáver em seu próprio texto. Nesse sentido, Benjamin chama a leitura de ad plures ire, a expressão latina para "morrer", a saber, a viagem para a comunidade maior, que é a dos mortos. (Witte, Bernd. O que é mais importante: a escrita ou o escrito? Tradução de Georg Bernard Sperper) No que se refere ao legado, quando a palavra ainda era fiel à mão, a experiência se transmitia 74


por meio da linguagem oral, como imagem que se imprimia sobre o imaginário, através do abandono de cada qual à estória, que se narrava no compasso do fuso e da roca, das estações e do ritmo cósmico. A mão, em seu movimento incansável, carregava consigo a palavra, para frente e para trás; daqui até acolá, entre o por do sol e a mais profunda noite; pelo insondável, que remanescia profundo. A palavra, cuja regra era a repetição, remontava sobre si mesma, em finíssimas camadas que, se sobrepondo, compunham as cores da pátina, em que todo acréscimo ainda deixa entrever o fundo. Na palavra falada todos se pertenciam, como se pertencem e, portanto, no fundo desta estrutura narrativa está a comunidade, que sobrevive, ainda que como forma subordinada e residual da sociabilidade humana. Na narrativa, portanto, a palavra é uma carícia, cujo útero reside na mão. (...) O tédio é o pássaro do sonho que choca os ovos da experiência. O menor sussurro nas folhagens o assusta. Seus ninhos – as atividades intimamente 75


associadas ao tédio – já se extinguiram na cidade e estão em vias de se extinguir no campo. Com isso, desaparece o dom de ouvir, e desaparece a comunidade de ouvintes. Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo de trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo. E assim essa rede se desfaz hoje por todos os lados, depois de ter sido tecida, há milênios, em torno das mais antigas formas de trabalho manual. (BENJAMIN, 1985, pp. 204-205) (...) 76


O próprio Leskov considera essa arte artesanal – a narrativa – como um ofício manual. “A literatura”, diz ele em uma carta, “não é para mim uma arte, mas um trabalho manual.” Não admira que ele tenha sido ligado ao trabalho manual e estranho à técnica industrial. (...) (BENJAMIN, 1985, pp. 205-206) O desenvolvimento consequente do processo que conduz da oralidade, como forma típica de comunicação, à quase universalização da escrita exigira um tamanho número de mediações, que elas comprometeriam por completo o compasso do presente texto para serem formuladas. Para os propósitos do que se segue as questões são, contudo, um pouco mais simples e diretas. Em primeiro lugar convém observar o óbvio, especialmente porque ele não costuma criar quaisquer facilidades. Escrita e oralidade coexistem em toda amplitude da vida social35. O grau de importância de cada qual, contudo, nas distintas esferas é absolutamente distinto. No ambiente privado, organizado a partir de vínculos 77


afetivos e de relacionamento face a face, a oralidade tende a ser predominante, sendo circunstancial a situação em que os indivíduos, naqueles ambientes, se comuniquem através da escrita. No mundo do trabalho, de outro lado, muito embora haja um fluxo absolutamente contínuo de interações orais, há uma enorme participação da escrita, na forma das mais diferentes e variadas espécies de documentos. No interior desse mesmo mundo, no entanto, especialmente quando a atividade de trabalho está subsumida às determinações da máquina, a comunicação pode efetiva e eficazmente se estabelecer através da escrita e, na duração da jornada, de modo quase que exclusivo. Por quê? Em primeiro lugar porque as interações humanas são mediadas pela própria máquina, o que significa dizer que o contato com o outro não se produz diretamente, mas segundo uma sintaxe que é dada pela máquina. O processo pode, e normalmente o faz, se organizar segundo um conjunto de instruções, protocolos, que não requerem de cada qual uma iniciativa específica e 78


individuada, mas a ação nos exatos termos das previsões protocolares estabelecidas36. A hierarquia e a dinâmica do trabalho se estabelecem, portanto, em silêncio, mas de maneira completamente coberta de êxito. Nesse ambiente a palavra escrita circula, mas ao fazê-lo não coloca os indivíduos em interações pessoais. Liga-os a um elemento central, sem que ocorra necessariamente qualquer vínculo lateral. Este elemento central, à sua vez, estabelece um protocolo de comunicação que tem, no fundamental, uma única direção – aquela que emana de si. A palavra adquire, portanto, por meios desses desenvolvimentos uma natureza maquinal, um automatismo que corresponde, em tudo, à própria sociabilidade concebida e realizada de maneira estritamente mecânica, no interior de uma engrenagem: (...) Cada um, em seu lugar, está bem trancado em sua cela onde é visto de frente pelo vigia; mas os muros laterais impedem que entre em contata com seus companheiros. É visto, mas não vê; objeto 79


de uma informação, nunca sujeito numa comunicação A disposição de seu quarto, em frente da torre central, lhe impõe uma visibilidade axial; mas as divisões do anel, essas celas bem separadas, implicam uma invisibilidade lateral. Esta é a garantia da ordem. (...) A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de individualidades separadas. Do ponto de vista do guardião, é substituída por uma multiplicidade enumerável e controlável; do ponto de vista dos detentos, por uma solidão seqüestrada e olhada. (FOUCAULT, 2002, p. 166) A ideia de que, sob o capitalismo, a vida tenha adquirido um caráter diretamente mecânico, havendo uma correspondência entre conjunto da vida social e a máquina está suficiente bem estabelecida, para que se faça necessária uma longa digressão a este respeito. Se admitirmos tal fato como dado, é preciso, contudo, levar esse 80


raciocínio de base mais longe. A atividade produtiva sofreu na contemporaneidade uma enorme aceleração, a qual, para todos os efeitos, arrastou consigo todo os elementos que compõe o conjunto da vida social. Ora, a palavra não poderia restar inerte a esse movimento. A informação requer da palavra uma velocidade expressiva crescente, para garantir que cada ação ocorra no ritmo que convém ao mecanismo reprodutor da vida social. A palavra, ao corresponder a esses requerimentos, sofre uma compressão, uma contração, de modo a expressar de maneira completamente concisa, o conjunto de enunciados e ordens esteriotipados, que se vinculam a uma sociabilidade que, efetivamente, perdeu toda sua espontaneidade, para aderir quase que irrestritamente ao comportamento automático. Funda-se assim, uma linguagem de uso corrente que, marginal no princípio, vai ganhando uma importância crescente no conjunto da vida social. Ela é em grande medida ideogramática37, icônica, expandindo-se pelos espaços sociais segundo os termos de uma variável 81


matematicamente calculável: o fluxo38. Tanto mais intenso ele é, tanto mais imagética se torna o suporte da comunicação, ou, mais precisamente, da informação. É assim, por exemplo, nos grandes aeroportos, nas cidades grandes e pequenas, nos bancos, mas igualmente nos fast-foods39 – onde à linguagem visualmente esteriotipada corresponde a comida de mesma natureza -, nos out-doors, displays, folders, posters, logomarcas, emblemas, e assim por diante. A escrita sai do livro, emigra do livro e imigra para as formas da moda, para as formas da arquitetura e, sobretudo, naturalmente, para as formas da propaganda. E por isso, estes fenômenos, moda, arquitetura e propaganda, são tão infinitamente importantes para Benjamin, justamente por poderem ser decifrados como escrita. E também por isso a moderna metrópole se apresenta a Walter Benjamin como um fluxo cristalizado de dados. Max Bense cunhou certa vez uma expressão muito marcante para este novo 82


mundo, chamando-o de "mundo dos cartazes". As letras da propaganda diferenciam-se das letras do livro simplesmente pelo fato de não mais poderem ser distanciadas de forma contemplativa, mas de serem penetrantes, no sentido literal da palavra. Penetram no leitor quase que fisicamente. Poder-se-ia dizer até que elas incomodam o leitor. E no fundo, a propaganda, exatamente como a moda e a arquitetura, é uma escrita que nem mesmo precisa ser lida, porque ataca fisicamente o ser humano. E o ataca naquilo que o homem faz no seu dia-a-dia, nos seus hábitos mais corriqueiros, como morar, trabalhar enfim, em todas as atividades mais evidentes. Este é um dos pontos que poderíamos resumir com a frase da emancipação da escrita do livro. Norbert W. Bolz Onde encontrar a diferença entre uma obra de arte e uma mercadoria? Teoria da mídia em Walter Benjamin. 83


Tradução de George Bernard Sperber. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) *** Nosso tempo, assim como está em contraposto com o Renascimento pura e simplesmente, está particularmente em oposição à situação em que foi inventada a arte da imprensa. Com efeito, quer seja um acaso ou não, seu aparecimento na Alemanha cai no tempo em que o livro, no sentido eminente da palavra, o Livro dos Livros, tornou-se através da tradução da Bíblia por Lutero, um bem popular. Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional, vai ao encontro do seu fim. Mallarmé, como viu em meio à cristalina construção de sua escritura, certamente tradicionalista, a imagem verdadeira do que vinha, empregou pela primeira vez no coup de dês as tensões gráficas do reclame na configuração da escrita. O que depois disso foi empreendido por dadaístas em termos de experimentos de 84


escrita não provinha do plano construtivo, mas dos nervos dos literatos reagindo com exatidão e por isso era muito menos que o experimento de Mallarmé, que crescia do interior de seu estilo. Mas justamente através disso é possível reconhecer a atualidade daquilo que, monadicamente, em seu gabinete mais recluso, Mallarmé descobriu, em harmonia preestabelecida com todo o acontecer desses dias, na economia, na técnica, na vida pública. A escrita, que no livro impresso havia encontrado um asilo onde levava sua existência autônoma, é inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais heteronomias do caos econômico. Se há séculos ela havia gradualmente começado a deitar-se, da inscrição ereta tornou-se manuscrito repousando oblíquo sobre escrivaninhas, para afinal acalmar-se na impressão, ela começa, com a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão. Já o jornal é lido mais a prumo que na 85


horizontal, filmes e reclames forçam a escrita a submeter-se de todo à ditatorial verticalidade. E, antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, caiu sobre seus olhos um tão denso turbilhão de letras cambiantes, coloridas, conflitantes, que as chances de sua penetração na arcaica quietude do livro se tornaram mínimas. Nuvens de gafanhotos de escrituras, que hoje já obscurecem o céu do pretenso espírito para as grandes cidades, se tornarão mais densas a cada ano seguinte. Outrora as exigências da vida dos negócios levavam mais além. A cartoteca traz consigo a conquista da escrita tridimensional, portanto um surpreendente contraponto à tridimensionalidade da escrita em suas origens como runa ou escritura de nós. (E hoje já é o livro, como ensina o atual modo de produção científico, uma antiquada mediação entre dois diferentes sistemas de cartoteca. Pois todo o essencial encontra-se na caixa de fichas do 86


pesquisador que escreveu e o cientista que nele estuda assimila-o à sua própria cartoteca.) Mas está inteiramente fora de dúvida que o desenvolvimento da escrita não permanece atado, a perder de vista, aos decretos de um caótico labor em ciência e economia, antes está chegando o momento em que quantidade vira qualidade e a escritura, que avança sempre mais profundamente dentro do domínio gráfico de sua nova, excêntrica figuralidade, tomará posse, de uma só vez, de seu teor adequado. Nesta escritaimagem os poetas, que então, como nos tempos primitivos, serão primeiro e antes de tudo calígrafos, só poderão colaborar se explorarem os domínios nos quais (sem fazer muito alarde de si) sua construção se efetua: o dos diagramas estatísticos e técnicos. Com a fundação de uma escrita conversível internacional eles renovarão sua autoridade na vida dos povos e encontrarão um papel em comparação ao qual todas as aspirações de renovação da 87


retórica se demonstrarão devaneios góticos”. (BENJAMIN, 1987, p. 27-28-29) Se admitirmos a cidade, a grande metrópole, também como um texto – e é assim, no essencial que Benjamin a compreende – estaremos aptos a perceber que este emaranhado de imagens convencionais tem na infinidade de monumentos urbanos uma proto-forma. “You are passing through a great city that has grown old in civilization – one of those cities which harbor the most important archives of universal life – and your eyes are drawn upward, sursum, ad sidera; for in the public squares, at the corners of crossways, stand motionless figures, larger than those who pass at their feet, repeating to you solemn legends of Glory, War, Science, and Martyrdom, in a mute language. Some are pointing to the sky, whither they ceaselessly aspired; others indicate the earth from which they sprang. They blandish, or contemplate, what was the passion of their life and what becomes 88


its emblem: a tool, a sword, a book, a torch, vitai lampada! Be you the most heedless of men, the most unhappy or the vilest, a beggar or a banker, the stone phantom takes possession of you for a few minutes and commands you, it the name of the past, to think things which are not of the earth. / Such is the divine hole of sculpture”. Ch. B. Oeuvres, ed. Le Dantec, vol. 2, pp. 274-275 (“Salon of 1859). Baudelaire speaks here of sculpture as though it were present only in the big city. It is a sculpture that stands in the way of the passerby. This depiction contains something in the highest degree prophetic, tough sculpture plays only the smallest part in that which would fulfill the prophecy. Sculpture is found <?> only in the big city? (BENJAMIN, 1999, p. 289290) A natureza fantasmagórica do texto, que se escreve a partir das estátuas, já está indicada claramente. A cidade moderna, contudo, 89


aprofunda continuamente esse elemento fantasmático, na medida em que dá causa à mais extensa profusão de imagens e objetos, que se mesclam e misturam para criar textos sem qualquer referência espaço-temporal estável. Uma simples ronda pela cidade nos expõe a estátuas colossais de seus fundadores e personagens ilustres, outdoors, dísticos, flâmulas, cartazes, sinais de trânsito, indicações luminosos, avisos de ir, parar, etc. Ainda, portanto, que todos os grafismo fossem concebidos e materializados sob os princípios da precisão e a univocidade, aquilo que resulta para o olho, como vislumbre da cidade, é uma selva de referências, que o próprio olho cuida de subverter, valendo-se da lógica de sua constituição fisiológica: à aceleração do observador corresponde aquela da imagem, de tal modo que a vida citadina, nas condições modernas, já continha o filme como possibilidade. Compare-se a tela em que se projeta o filme com a tela em que se encontra o quadro. Na primeira a imagem se move, mas na segunda não. Esta convida o 90


espectador à contemplação; diante dela, ele pode abandonar-se às suas associações. Diante do filme, isso não é mais possível. Mas o espectador percebe uma imagem, ela não é mais a mesma. Ela não pode ser fixada, nem como quadro nem como algo real. A associação de ideias do espectador é interrompida imediatamente, com a mudança da imagem. Nisso se baseia o efeito de choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser interceptado por uma atenção aguda. O cinema é a forma de arte correspondente aos perigos existenciais mais intensos com que se defronta o homem contemporâneo. Ele corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfico, e como as experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vigente. (BENJAMIN, 1985, p. 192) 91


O cinema não pode ser pensado do ponto de vista teórico sem que se desenvolva minimamente uma teoria da recepção do filme. Grande parte do fundamento dessa teoria está contida no conceito de choque, que Benjamin elaborou amplamente, em diferentes lugares de sua obra. Uma noção razoavelmente completa do conceito pode ser apresentada do seguinte modo: (...) segundo Freud, o consciente como tal não registraria absolutamente nenhum traço mnemônico. Teria, isto sim, outra função importante, a de agir como proteção contra estímulos. “Para o organismo vivo, proteger-se contra os estímulos é uma função quase mais importante que recebê-los; o organismo está dotado de reserva de energias próprias e, acima de tudo, deve estar empenhado em preservar as formas específicas de conversão de energia nele operantes contra a influência uniformizante e, por conseguinte, destrutiva das imensas energias ativas no 92


exterior”. A ameaça destas energias se faz sentir através de choques. Quanto mais corrente se tornar o registros desses choques no consciente, tanto menos se deverá esperar deles um efeito traumático. A teoria psicanalítica procura “entender...” a natureza do choque traumático “a partir do rompimento da proteção contra o estímulo”. Segundo essa teoria, o sobressalto tem “seu significado” na “falta de predisposição para a angústia”. (BENJAMIN, 1985, p. 109) O filme produz continuamente o choque, na medida em que alterna planos e tomadas, imagens, cores e assim por diante. Esta alternância contínua carrega consigo o olho e, portanto, a atenção do espectador. Produz-se nele, portanto, não um conjunto de associações livres, mas uma cadeia de vínculos que decorre especialmente da fixação da atenção na imagem, através da produção do choque. É absolutamente essencial registrar, igualmente, que ao manter o olho 93


continuamente estimulado e, portanto, a atenção sob foco, o filme produz um relaxamento e um descanso dos demais elementos do sistema orgânico, donde advém, no essencial, as imensas possibilidades do filme no terreno do entretenimento. A recepção do filme não se esgota, contudo, no choque, uma vez que ele mobiliza, também, aquilo que Benjamin chamou de inconsciente visual: (...) Nossos cafés e nossas ruas, nossos escritórios e nossos quartos alugados, nossas estações e nossas fábricas pareciam aprisionar-nos inapelavelmente. Veio então o cinema, que fez explodir esse universo carcerário com a dinamite de seus décimos de segundo, permitindo-nos empreender viagens venturosas entre ruínas arremessadas à distância. O espaço se amplia com o grande plano, o movimento se torna mais vagaroso com a câmara lenta. É evidente, pois, que a natureza que se dirige à câmara não é a mesma que se dirige ao olhar. A diferença 94


está principalmente no fato de que o espaço em que o homem age conscientemente é substituído por outro em que sua ação é inconsciente. Se podemos perceber o caminhar de uma pessoa, por exemplo, ainda que em grandes traços, nada sabemos, em compensação, sobre a atitude precisa na fração de segundo em que ela dá um passo. O gesto de pegar um isqueiro ou uma colher nos é aproximadamente familiar, mas nada sabemos sobre o que se passa verdadeiramente entre a mão e o metal, e muito menos sobre as alterações provocadas nesse gesto pelos vários estados de espírito. Aqui intervém a câmera com seus inúmeros recursos auxiliares, suas imersões e emersões, suas interrupções e seus isolamentos, suas extensões e suas acelerações, suas ampliações e miniaturizações. Ela nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do 95


inconsciente pulsional. De resto existe entre os dois inconscientes as relações mais estreitas. (...) O cinema introduziu uma brecha na verdade de Heráclito segundo o qual o mundo dos homens acordados é comum, dos que dorme é privado. E o fez menos pela descrição do mundo onírico que pela criação de personagens do sonho coletivo, como o camundongo Mickey Mouse, que hoje percorre o mundo inteiro. (...) (BENJAMIN, 1985, pp. 189-190) Ainda no que se refere à teoria da recepção da obra fílmica, há que se observar um elemento que envolve a sua proto-história, conforme ela aparece na fotografia, e mais evidentemente no fotojornalismo. Desde o princípio se percebeu que a foto no jornal tinha um poder de atração diferente da ilustração que, fundamentada na litografia, a antecedeu. Na foto, a rigor, a coisa retratada preservava a moldura da vida, através da imagem de um ser realmente existente, o qual, como que requeria a partir daquela mesma imagem, ser 96


reconhecido em sua particularidade histórica, concreta. A vida que fora abandonada no registro fotográfico assombrava, portanto, a foto, como um morto-vivo que clamasse ser reconhecido em seu último jazigo. Dessa capacidade desconcertante de atrair a atenção, a propaganda logo tomou partido, até mesmo porque, já com a ilustração, havia se apercebido que a imagem, em grande medida, falava uma linguagem infinitamente mais próxima da mercadoria do que aquela que viajava no texto e, portanto, na palavra escrita. Deu-se, então, a princípio no jornal, e posteriormente em veículos que lhe tomam a forma, um desenvolvimento que fez com que a palavra escrita evoluísse para a condição de legenda das imagens, que aqueles meios de comunicação punham a circular. Novamente a propaganda teve nesse desenvolvimento uma participação fundamental, pois elevou aquela legenda à perfeição quase acabada, dando à palavra escrita uma forma tão concisa que se aproxima de não mais poder se reduzir. A palavra que vai na legenda, como uma espécie de dístico, cumpre, contudo, uma função cuja natureza a aproxima, da imagem: ela é um 97


índice, um leque de vetores, que estabelecem os sentidos desejados, e de certa forma programados e ordenados, para as associações que decorrem da imagem. Desse modo, ainda que ela seja escrita com as convenções que a instituem em signo, que ela se pronuncie, sua função final no texto consiste em potencializar o poder da imagem a que se associa, sendo sua natureza mais íntima a do diagrama. A propaganda vive, no essencial, dessa estrutura comunicativa. Vejamos o caso da cerveja, por exemplo. No primeiro plano da imagem o sol escaldante, a bermuda, praia, a claridade insinuando todos os elementos do verão. A contrapartida do personagem transpirando em bicas é o copo exalando frescor – uma umidade negativa, para com relação ao sujeito aquecido. Um polo do jogo cênico demanda frescor, no outro se encontra o elemento que o resolve - o frescor configurado em cerveja, no copo. A tensão se resolve no enorme gole que, de uma só vez, estabelece a homeostase de todo o sistema, na qualidade mesmo de troca de cargas elétricas. 98


Então o slogan: “desce redonda”. A legenda amplifica a sensação do prazer de refrescar ancorando-a no físico, no corpo. Estabelece uma espécie de sinapse em que se sente materialmente a realização do desejo, como gozo efetivo, para o qual se mobilizam a boca, a garganta, o esôfago, as entranhas. A infraestrutura dessa cena, não é preciso grande esforço por demonstrá-lo, é o desejo sexual, representado através de seus mais evidentes estereótipos, ou seja, para ser de fato reconhecido. Pode vir quente, que eu estou fervendo... Esta é, contudo, a fala do copo, como representação da mulher. Talvez seja este o lado mais perverso da propaganda: o personagem é incitado recorrentemente a ouvir a si próprio, e somente a si. O outro só aparece como recurso funcional para esse fim. Mas o que nem Wirtz nem Baudelaire compreendera, no seu tempo, são as injunções implícitas na autenticidade da fotografia. Nem sempre será possível contorná-las com uma reportagem, cujos clichês somente produzem o efeito de 99


provocar no expectador associações linguísticas. A câmara se torna cada vez menor, cada vez mais apta a fixar imagens efêmeras e secretas , cujo efeito de choque paralisa o mecanismo associativo do espectador. Aqui deve intervir a legenda, introduzida pela fotografia para favorecer a literalização de todas as relações da vida sem a qual qualquer construção fotográfica corre o risco de permanecer vaga e aproximativa. Não é por acaso que as fotos de Atget foram comparadas ao local de um crime? Não deve o fotógrafo, sucessor de augures e arúspices, descobrir a culpa em suas imagens e denunciar o culpado? Já se disse que “o analfabeto do futuro não será quem não sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar”. Mas um fotógrafo que não sabe ler suas próprias imagens não é pior que um analfabeto? Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia? Tais são as questões pelas quais a distância de noventa anos, que 100


separa os homens de hoje do daguerreótipo, se descarrega de suas tensões históricas. É à luz dessas centelhas que as primeiras fotografias, tão belas e inabordáveis, se destacam da escuridão que envolve os dias em que viveram nossos avós. (BENJAMIN, 1985, p. 107 – grifos meus) On the top, no imenso aparelho da comunicação, vai agora, portanto, a imagem, que carrega a reboque a legenda, como 40 desenvolvimento da palavra escrita, em sua antiga conformação. Capitaneia o cortejo, o olho. Os saudosistas da palavra em sua antiga configuração se ressentem dessa evolução: querem a palavra em sua pureza, em toda a dignidade do texto. Os materialistas históricos, à sua vez, se apropriam da imagem produzida em escala frenética para subverter aquela palavra pura, e demonstrá-la com sua face partida e mundana – o que se faz possível porque o olho dorme na sucessão de imagens (icônicas), da mesma forma que, antes, a mão, inebriada da 101


circularidade da roca, cedia à imagem, no repetirse regular do movimento. Reinventam, portanto, o espírito da narrativa, ou seja, a impressão da imagem a ferro no imaginário, não para comunicar uma experiência exemplar, ou para transmitir uma tradição milenar, mas para, bem ao contrário, saturar a palavra tornada ícone de significações desprovidas de experiências concretas, até que ela se eleve à autoconsciência, por ver refletida toda sua história, com aquela mesma precipitação que, dizem, ocorre na morte. It’s not that what is past casts its light on what is present, or what is present its lights on what is past; rather, image is that wherein what has been comes together in a flash with the now to form a constellation. In other words, image is dialectics at a standstill. For while the relation of the present to the past is purely temporal, continuous one, the relation of what-has-been to the now is dialectical: it is not progression but image, suddenly emergent. – Only dialectical 102


images are genuine images (that is, not archaic); and the place where one encounters then is language. (BENJAMIN, 1999, p. 462 – grifos meus) Nesse momento total, e apenas nele; nesse instante de lucidez singular, e em nenhum outro, no agora em que a palavra-imagem reflete, surge o nome, como o duplo material daquela palavra. Revela-se, então, o atual em sua extensão, ainda que não como identidade41. No nome, a totalidade e o infinito miram o particular, como seu pequeno sol42, e a criatura reflete a plenitude do seu ser para o outro. A palavra que nomeia, na medida em que estanca o tempo, ainda que por um infinitésimo de segundo - precisamente aquele momento em que se troca o olhar entre o universal e o particular - é a revolução. A revolução, contudo, não cria: dissolve43 por meio da reflexão, correspondendo, assim, à natureza do novo, que é o fluente, e não aquilo que está mineralizado na imagem (a revolução vivifica apenas porque permite à história não se repetir).44

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A história não se repete porque o nome45, que levou a imagem do atual a refletir, tendo extraído o acontecimento de seu giro catatônico em direção ao princípio, permite que se o esqueça, e que ele retorne à origem, ainda que levando consigo, tanto quanto deixando para trás, os índices de seu reconhecimento. O nome, portanto, se realiza na história como perdão, através do qual, a energia investida no subliminar recorrente, no inominado que assombra o presente e o atual (o recalcado), pode voltar ao indiferenciado, para ser matériaprima do novo como novo46. Esse processo de liberação só existe, contudo, quando o nome se apropria da totalidade do nominado, cobrindo a extensão que vai de sua proto-história até sua realização no futuro, como repetir eterno de um presente que desconhece a si mesmo47. O nome como perdão abrange a totalidade desse tempo e, exatamente por isso, é uma exigência radical. Se ela não se cumpre nesse radicalismo, os resíduos deixados para trás continuam a assombrar a existência, só deixando de atormentá-la se e quando, finalmente, se 104


reunirem em sua integridade constitutiva, como imagem. (...) a metáfora absoluta de Benjamin para o seu conceito de história é a da relação entre o sonho e o despertar. Benjamin concebe a si próprio como intérprete político dos sonhos da história. Eu até diria que o que ele tenta é repetir a tarefa da psicanálise como lógica do conhecimento histórico. Benjamin tenta, portanto, repetir no registro do conhecimento histórico aquilo que Freud fez com a psicanálise, dentro dos limites da psicologia individual. A partir disto, seria possível deduzir uma definição daquilo que Benjamin entende por modernidade. Benjamin tem a ideia de que o que passou tem menos concretude no passado do que na concretude de que é objeto através de nossa atualização. Quando presentificamos algo passado numa rápida imagem, como Benjamin também gosta 105


de dizer, esta rápida imagem ganha uma concretude mais intensa do passado do que o passado teve na facticidade da história. Estou tentando explicar esta questão porque ela é, por um lado, difícil de entender e, pelo outro, extremamente importante para a teoria de Benjamin. Ele elabora o conceito de que o passado adquire um grau de concretude maior do que o que originalmente apresentava mediante a atualização, mediante uma atualização bem-sucedida. Eu diria que só há um caminho possível para entender este conceito, a saber, o da comparação com a psicanálise. (Norbert W. Bolz. É preciso teologia para pensar o fim da história?Filosofia da história em Walter Benjamin.Tradução de George Bernard Sperper – grifos meus. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) É o nome48 - através do qual se revelam (develop) os traços fisionômicos da modernidade que ocupa o centro da teoria da linguagem de 106


Walter Benjamin. Como representação do centro que é, como vetor apontando a origem, ele permanece, contudo, como uma aproximação – pronúncia efêmera, dita para se perder : tendo se reconhecido como um preciso aquilo, o nominado já é outro49. Desvela, assim, a mais profunda natureza da palavra, como ela se ofereceu a Benjamin: nele a palavra escrita – o documento tomou a forma da escuta, da audição atenta, através da qual a natureza e a humanidade degradadas se regeneram por meio de seus discursos torturados. A forma magistral destes discursos é o filme mudo, no qual, a obra cinematográfica revela materialmente, ou seja, através do aparelho e da técnica, a profundidade e agonia insondáveis da palavra-imagem, através das quais o homem e a natureza mutilados tentam acordar homens que dormem, através de um tempo inerte. O nome, que representa exatamente o momento em que o processo de reflexão se interrompe para dar lugar a uma imagem suspensa e imóvel; nome que Benjamin antecipou como o 107


calafrio em um pesadelo, prenunciando-o em muito de sua materialidade, sem, no entanto, poder dizê-lo, nós o conhecemos, sem poder ainda nominá-lo – segundo os termos da exigência radical que o nome apresenta. Falta completar a obra que o configure na completa extensão de sua presença. Se compreendermos a exata natureza da linguagem, e apenas nesta precisa condição, é legítimo dizer que há em Das Passagen-Werk um requerimento teológico: faltam os artífices para a obra. De todo modo, eles sempre faltam. Também assim a linguagem expressa sua permanente recusa à oclusão. O despertar nessa civitas dei terá a estrutura da apocatástase, aquela restauração final de todos os seres, inclusive o demônio e os condenados, sonhada por Orígenes. "Apocatástase, decisão: justamente os elementos do cedo demais e do demasiado tarde, do primeiro começo e do derradeiro declínio, reunir tudo de novo na ação revolucionária e no pensamento revolucionário" (p. 852). 108


O primeiro amor das grisettes, o passeio em St. Cloud numa tarde de domingo, o assombro com o primeiro vidro, sim, mesmo o kitsch, mesmo o ornamento de ferro fundido, mesmo o impulso destrutivo de Haussman, a fantasia de uma cidade toda de passagens, em que o homem esteja ao abrigo das vicissitudes da história, o terror infantil com os subterrâneos, o fascínio sentido por Alice nos País dos Espelhos, a embriaguez dos museus de cera, sim, mesmo o fetichismo, com sua promessa de transcendência do imediato, os vencidos de todas as revoluções, mortos que agora podem ser resgatados pelos vivos, os êxtases da moda, do jogo, da coleção, todos os elementos da cidade, tudo o que nela um dia existiu e tudo o que nunca foi tudo isso será salvo nessa explosão messiânica com que o Angelus Novus dinamita o continuum da história.

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Cada momento vivido transforma-se numa citação na ordem do dia e esse dia é justamente o do Juízo Final" (19). Nesse momento, os homens habitarão a cidade dos homens, verdadeiramente uma cidade de sonho, mas em que o sonho deixaria de ser mito e "a ação seria irmã do sonho" (p. 456). (Sergio Paulo Rouanet. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin "Trabalho das Passagens". SIMPÓSIO DO INSTITUO GOETHE)

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Nervosidade É verdade! Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente nervoso! Mas, por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu. Era penetrante, acima de tudo, o sentido da audição. Eu ouvia todas as coisas, no céu e na terra. Muitas coisas do inferno ouvia. Como, então, sou louco? Prestai atenção! E observai quão lucidamente, quão calmamente vos posso contar toda a estória. É impossível dizer como a ideia me penetrou primeiro no cérebro. Uma vez concebida, porém, ela me perseguiu dia e noite. Não havia motivo. Não havia cólera. Eu gostava do velho. Ele nunca me fizera mal. Nunca me insultara. Eu não desejava seu ouro. Penso que era o olhar dele! Sim, era isso! Um de seus olhos se parecia com o de um abutre. . . um olho de cor azul-pálido, que sofria de catarata. Meu sangue se enregelava sempre que ele caía sobre assim, e assim, pouco a pouco, bem 111


lentamente, fui-me decidindo a tirar a vida do velho e assim libertar-me daquele olho para sempre. Ora, aí é que está o problema. Imaginais que sou louco. Os loucos nada sabem. Deveríeis, porém, terme visto. Deveria ter visto como procedi cautamente! Com que prudência...com que previsão. . . com que dissimulação lancei mãos à obra! (POE, O Coração Denunciador) *** Recolhimento Sê sábia, ó minha Dor, e queda-te mais quieta. Reclamavas a Tarde; eis que ela vem descendo: Sobre a cidade um véu de sombras se projeta, A alguns trazendo a angústia, a paz a outros trazendo. 112


Enquanto dos mortais a multidão abjeta, Sob o flagelo do Prazer, algoz horrendo, Remorsos colhe à festa e sôfrega se inquieta, Dá-me, ó Dor, tua mão; vem por aqui, correndo. Deles. Vem ver curvarem-se os Anos passados Nas varandas do céu, em trajes antiquados; Surgir das águas a Saudade sorridente; O Sol que numa arcada agoniza e se aninha, E, qual longo sudário a arrastar-se no Oriente, 113


Ouve, querida, a doce Noite que caminha. (BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal) *** Nossa era assistiu a um desenvolvimento vertiginoso da técnica e da tecnologia50; a ciência empreendeu façanhas que, em curtíssimo espaço de tempo, suplantaram tudo o que o homem havia feito ao longo de sua história, especialmente no que se refere à sujeição das forças da natureza, para os propósitos da expansão de sua capacidade produtiva - e, consequentemente, para fins de engendrar aquilo que os crentes e crédulos designam como comodidades da vida moderna. A produção e a riqueza acumulada, os fluxos comerciais, o tráfego e o trânsito de pessoas e de coisas, foram acelerados a tal ponto que o espaço diante de nossos olhos apequenou-se e tornou-se denso. A movimentação frenética e involuntária compulsória uma vez que se imerge no fluxo51 -, 114


tomou a forma da catatonia, para qual o espaço urbano é um pátio gigantesco, pelo qual circulamos de maneira orientada, ainda que desprovida de qualquer sentido.

Figura 1 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927)

A cinestesia transformou-se em invasão, de tal modo que aquilo que nos era próprio resta praticamente inseparável da multidão articulada, de que somos elemento orgânico: uma vez em seu seio não sentimos propriamente, reverberamos estímulos e movimentos de algo que nos excede e 115


que, de certo modo, nos comunica sua eterna dinâmica, sua ânsia pendular de movimento. O movimento alucina o olho, que não pode ativamente acompanhá-lo, a não ser ao preço do esgotamento e da exaustão. Todo olhar, portanto, permanece difuso e vítreo, tenso, mas apenas nos instantes que antecedem o mergulho, no qual voltam a se perder no convite à sua estimulação oligofrênica e insana, através da qual o corpo repousa, ainda que em inércia de movimento.

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Figura 2 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927)

Ao corpo é roubada toda e qualquer naturalidade e calcula-se o movimento como meio para a fixação e para a rigidez; para condenação ao lugar e para o esforço contínuo da repetição vazia. O mundo gira, não mais segundo a cosmologia, mas em conformidade com a circularidade da máquina, que está obrigada - e nos obriga - a retornar continuamente ao ponto de partida, que não apenas está vazio, mas igualmente estéril e árido. A máquina é um útero que esterilizou a 117


natureza em lugar de potenciá-la, uma vez que produz filhos idênticos e a identidade como uma agressão52.

Figura 3 - Berlim: sinfonia de uma cidade (Walther Ruttmann, 1927) http://br.youtube.com/watch?v=YQbQg3zjy2M http://br.youtube.com/watch?v=YzZI9bQ0cxA

Houve, igualmente, uma imensa saturação de signos em todos os campos da existência, de tal modo que nos é praticamente impossível resistir ao arrasto da atenção para os sinais que se sobrepõem ao ambiente, reclamando o primeiro 118


plano. O chamado e o ruído, os infinitos alertas e comandos: a vida submete-se ao automatismo, não por força de intervenções imediatamente políticas, mas, em grande medida, como elemento inerente ao quotidiano e à rotina.

Figura 4 - Blade Runner (Ridley Scott, 1982)

O celular que nos acorda, o micro-ondas que apita, a torradeira que lança o pão, as torneiras fotossensíveis, os controles remotos, tudo aquilo que chamamos de facilidades são, no entanto, ainda, formas pretéritas de um futuro anunciado, 119


pois os utensílios evoluirão para configurações “inteligentes”, apropriando-se dos desenvolvimentos da robótica. O corriqueiro destaca-se de nossa vida, para ressurgir diante de nós como algo animado e exterior: tarefas que se automatizam, com a promessa de nos libertar, mas que, a rigor, assumem o controle e nos educam para uma existência espectral, que nos condena a oscilar entre a passividade sonolenta e uma revolta mal disfarçada, que se dirige contra as coisas, mas apenas como índice de uma ordem que se tornou não comensurável conosco. No trânsito os veículos parecem engatar-se a uma imensa serpente, que vai deslizando pela cidade, pela qual circulamos segundo trajetos programados - cortejo moribundo, féretro -, através dos quais anúncios de dimensões ciclópicas entoam hinos de louvor ao humano, como aquilo que é mineral e fóssil. O trânsito, em sua cadência lânguida e amargurada, é a imagem como desvelamento do conteúdo. Sob a ótica dos olhos, no veículo, a cidade é o drive-in: filme que se

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assiste involuntariamente, como usurpação da visão. A voz do rádio e a imagem jornalística, que circulam por suportes das mais diversas naturezas, nos atualizam sobre os significados do mundo, da guerra, suas razões e astúcias; porque se mata, a quem se mata, como se sobrevive. A informação opõe-se à comunicação e nos dita sentidos cujas origens não identificamos, não porque sejam misteriosas, mas porque sua propagação se faz em uma frequência tão intensa que nos hipnotiza, em lugar de nos tornar atentos. A atenção, ela mesma, converte-se em um ponto de fuga, o lugar para onde se mira, já como índice do esmaecimento da vontade - mesmo que nesta coordenada virtual o desejo se reconheça naquilo que lhe parece idêntico. “You are passing through a great city that has grown old in civilization - one of those cities which harbor the most important archives of universal life - and your eyes are drawn upward, sursum, ad sidera; for in the public squares, at the corners of the 121


crossways, stand motionless figures, larger than those who pass at their feet, repeating you the solemn legends of Glory, War, Science, and Martyrdom, in a mute language. Some are pointing to the sky, whither they ceaselessly aspired; other indicate the earth from which they sprang. They blandish, or they contemplate, what was the passion of their life and what bas become its emblem: a tool, a sword, a book, a torch, vitai lapada! Be you the most heedless of men, the most unhappy or the vilest, a beggar or a banker, the stone phantom takes possession of you for a few minutes and commands you, in name of the past, to think of things which are not of the earth./Such is the divine role of sculpture.� Ch. B., Ouvres, (‌) Baudelaire speaks here of sculpture as though it were present only in the big city. It is a sculpture that stands in the way of the passerby. This depiction contains something in the highest degree 122


prophetic, though sculpture plays only the smallest part in which would be the prophecy. Sculpture is found <?> only in the city. (BENJAMIN, 1999, p. 289-290) O trabalho se desenvolve segundo a lógica da mecanicidade, e não de acordo com o ritmo ancestral da respiração; seu retorno contínuo ao ponto de partida é vazio e metálico, extra-humano, pois é a maquina quem utiliza o homem: ela é o centro ativo, ainda que careça de alma. A máquina frui o homem, bebe sua energia viva e não por acaso ela retorna recorrentemente a este mesmo homem como uma potência ameaçadora; forma mítica, atualização dos rituais de sacrifício à divindade. Em seu Metropolis, por exemplo, Fritz Lang narra os termos desta inversão entre o humano e o mecânico, representando-o na forma aterradora da máquina como requerimento sacrificial, o ídolo53 54.

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Figura 5 - Metrópolis (Fritz Lang, 1929) http://www.youtube.com/watch?v=yATrCTOgTLM

O moderno e, rigorosamente, o mais moderno é, ao mesmo tempo, o mais arcaico; o retorno daquilo que se denega e que pertence à ordem, mas agora na qualidade de potência hostil. A sombra que se apagou tornou-se um espectro e, na negação de seu vínculo com o homem, passa a atormentá-lo como aquilo que não encontra um caminho no interior da linguagem: nervosidade. *** 124


Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando, e sua antiga inquietude e vacilação voltaram a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco freqüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas um itinerário que nos levou aos limites da cidade, para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessado. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. A débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruinados, dispostos em tantas e tão caprichosas direções, que mal se percebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas, arrancadas de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se 125


desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim deparamos com grandes bandos de classes mais desprezadas da população londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como uma lâmpada bruxuleante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente ao dobrarmos uma esquina, um clarão de luz feriunos os olhos e detivemo-nos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança: um dos palácios do demônio Álcool. O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o velho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas maneiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a turba. Não fazia, porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna resolvera fechá-la por aquela noite. Era 126


algo mais intenso que desespero o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de volta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não abandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses. Enquanto caminhávamos, o sol nasceu, e quando alcançamos novamente a mais populosa feira da cidade, a rua do Hotel D..., esta apresentava uma aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E ali, entre a confusão que crescia a cada momento, persisti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborrecime mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto 127


eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se. "Este velho", disse comigo, por fim, "é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo: nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus animae, e talvez seja uma das mercês de Deus que 'es lässt sich nich lesn' ". (POE, Edgar A. O homem da multidão) A massa A modernidade colocou diante de nós como realidade sensível e incontornável a massa, e todos os atributos que lhe correspondem. A experiência da modernidade é o choque, o atrito, a saturação, a produção massiva, o standard e o padrão, a improbabilidade de todo original, a atomização e o estilhaçamento. Nada ou quase nada nos restou de orgânico e nossa experiência é aquela do artificial. O sentido de unidade foi rompido porque, rigorosamente, apenas a probabilidade nos liga: os vínculos são aleatórios, os sentidos de pertinência 128


são arrasados pela compressão espaço-temporal. A vida foi despida de seu caráter sacro-santo e não temos mais um deus em quem nos apoiar. Toda a hierarquia, a rigor, enamorou-se do arbitrário, porque é meramente probabilística; não há um princípio transcendente que a justifique, a não ser o ordenamento da vida em seu caráter diretamente material.

Figura 6 - Um homem com uma câmera (Dziga Vertov, 1929) http://www.youtube.com/watch?v=brVO2l4bONc

Na presença da massa e da reprodução contínua e industrial de todo o existente evanesce a noção de original e, portanto, os bens culturais perdem seu halo, sua natureza aurática, para adquirir dimensões estritamente terrenas – 129


restando nesta condição mundana imprestáveis à contemplação e ao ritualismo, conforme nossos antepassados os conheceram. Nosso vínculo ao passado não podem se dar mais segundo a fixidez da tradição, inclusive porque nos fizemos incapazes dela; não estamos ao alcance de suas garras, já que a única força constante em nossa concepção de mundo é a mudança e o desenvolvimento: a grandeza mítica do progresso. A invenção da tradição Os românticos queriam tornar absoluta a regularidade da obra de arte. Mas é apenas com a dissolução da obra que o momento do causal pode ser dissolvido, ou antes, transformado numa regularidade. Daí os românticos consequentemente terem tido de levar a cabo uma polêmica radical contra a doutrina goethiana acerca do valor canônico das obras gregas. Eles não podiam reconhecer modelos, obras autônomas fechadas em si, configurações cunhadas de modo definitivo e subtraídas 130


à progressão eterna. Novalis foi quem se revoltou contra Goethe do modo mais atrevido e espirituoso: “Natureza e intelecção da natureza surgem ao mesmo tempo, assim como a Antiguidade e o conhecimento da Antiguidade; pois errase muito quando se acredita que existe a Antiguidade. Apenas agora a Antiguidade começa a surgir [...]. Com a literatura clássica se passa como com a Antiguidade; ela não é propriamente dada a nós - ela não é existente -, mas, antes, ela deve ser produzida apenas agora por nós. Através do estudo assíduo e espirituoso dos antigos surge apenas agora uma literatura clássica para nós - a qual os antigos mesmos não possuíam. (BENJAMIN, 2002, P. 117-118) Percebe-se ainda muito mal, e normalmente a contragosto, que as potências produtivas e reprodutivas da humanidade, uma vez libertadas, não permitem – como inclinação natural e inerente –, tomar nenhum valor ou estado por elevado o 131


suficiente, para não ser submetido à crítica e ao reordenamento - ainda que este se faça segundo as regras de um jogo viciado. Nada, portanto, pode assumir um lugar fixo e um valor constante, e a própria crítica consiste em largo grau, de um ininterrupto processo de construção da tradição, que se vê continuamente redescoberta. Nestes termos, a tradição converte-se em uma reinvenção, cujo único valor é seu efeito de agora, o qual encontra na moda sua feição alienada, ainda que historicamente necessária. O passado não tem mais autoridade verdadeira porque, pragmaticamente, ainda que não intelectualmente, demandamos do existente a produção imediata do sempre novo - como eterno agora - de modo que, o que foi, não nos serve; a experiência pretérita não mais nos fala. Justamente porque fomos desterrados da tradição e de seu instinto para unidade, esta própria tradição só nos aparece como surpresa e novidade. Ao concebermos o mundo como aquilo que evolui e se desenvolve, linear e ascensionalmente, em um tempo vazio, desmaterializamos implicitamente o 132


que se foi, cuja autoridade advinha exatamente do repetir-se e de uma concepção de tempo que era orgânica, natural e fechada sobre si mesma; recorrente. O passado, para nós, não mais se apresenta com a potência daquilo que é ancestral, mas como imagem expatriada, suportando os requerimentos do agora, em sua própria ânsia de expressar-se. Deste modo não o conhecemos através da experiência, não lhe atribuímos poder e desconhecemos por completo a natureza do eterno, conforme ele se oferecia às formas societárias que antecederam a modernidade. Justamente por isso, contudo, passamos a experimentar o tempo como o eterno agora (eterno retorno), o que faz do passado, efetivamente, nosso contemporâneo e, de certo modo, nos aproxima da estrutura primal da mente, que não se organiza segundo verticalidades, mas em função de redes de conexões, associações, justaposições, atualizando em flashes todo o repertório do possível. Este agora eterno é, contudo, a contraface necessária do progresso mitos irmãos -, pois o mesmo processo que nos 133


liberta da tradição, nos aliena da experiência, lançando-nos em um mundo materialmente rico, mas que tornou todo humano espectral. A errância que nos vemos condenados, contudo, no desespero de sua condição, é igualmente uma promessa de liberdade por resgatar. The belief in progress – in a perfectibility understood as an infinite ethical task – and the representation of eternal return are complementary. They are the indissoluble antinomies in the face of which dialectical conception of historical time must be developed. In this conception, the idea of eternal return appears precisely as that “shallow rationalism” which the belief in progress is accused of being, while faith in progress seems no less to belong to the mythic mode of thought than does the idea of eternal return. (BENJAMIN, 1999, P. 119) Nosso mundo difere de tudo que nos antecedeu porque não mais reconhecemos qualquer antecedente super-humano do humano, 134


de tal maneira que não há efetivamente, para nós, um tempo anterior a nossa própria existência, ou seja, o mundo conspira para ser comensurável com o homem - nossa filogênese não nos leva aos céus, mas às savanas africanas. Não há, portanto, uma origem que anteceda à cultura, um éden; nascemos na história e, por meio desta descoberta, destinados à história. O problema e a solução estão, contudo, unidos. Ainda que não reconheçamos uma história supra-humana, mesmo que estejamos preparados para entender que existimos imersos na linguagem e que ela mesma é o fundamento de nossa relação com o existente; ainda assim, esta história tornada mundana não deixou de ser mítica, uma vez que tem seu centro silencioso usurpado por sucedâneos terrenos de Deus. Não é um acidente, portanto, que a filosofia volte seus olhos para a teologia: o centro imaterial que origina a linguagem está ocupado; é tarefa precípua da filosofia deixá-lo vazio. Este mundo de liberdade possível é, contudo, igualmente, um mundo ameaçador, porque arrasa 135


os fundamentos de nossas certezas, as bases de nossa organização societária, a racionalidade que nos organiza hierarquicamente, a legitimidade das formas estáveis de representação do tempo. O desenvolvimento das forças produtivas criou as condições para que nos percebamos como seres da cultura, instituídos no interior da linguagem, mas, ao mesmo tempo, e por isso mesmo, engendrou novos mitos, de que o exemplo mais significativo é a crença no progresso como linearidade ascendente. As novas faces do mito nos mantêm nos limiares entre a história e a pré-história, sujeitos à heteronomia, desesperando por querer atribuir ao desenvolvimento material um sinal imanente e redentor, fora de nossa práxis; um Messias da nova era.

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Figura 7 - Outubro (Sergei Eisenstein, 1927) http://www.youtube.com/watch?v=x0QAjpeosgU

A natureza paradoxal do desenvolvimento da ciência Os desenvolvimentos estritos da ciência – no que se pode abstratamente considerá-los como independentes da tecnologia – não nos trouxeram efeitos menos paradoxais, mas, muito ao contrário, já explodiram o mundo de que a nossa experiência sensível se apropria. Aquilo sobre o que nos apoiamos é a luz de uma estrela que já morreu, e que nos orienta apenas por meio de seu estertor. 137


O que é a causalidade, se todo resultado é, a rigor, probabilístico; o que é o tempo linearmente concebido, se o presente pode depender do futuro para se consubstanciar; se o passado é o exatamente agora? O que é o princípio de identidade se, por exemplo, um elétron é ao mesmo tempo onda e partícula, não como aquilo que se desenvolve, mas em relação ao meio em que se desloca? O que é a singularidade, se admitirmos a hipótese de um universo sem costura, que liga imediatamente tudo a tudo, onde tudo interage de maneira direta - o que ocorre aqui com a noção de causalidade? Qual é nossa efetiva posição no espaço, se no mundo subatômico não se pode conhecer a trajetória de um elétron, e se seu lócus é apenas uma probabilidade? E o que nos insinua o teorema de Bell, ao demonstrar uma unidade absoluta do existente; ao questionar a velocidade da luz como limite cósmico? E suposição de que a realidade possa admitir infinitos mundos, de maneira que eventos simultaneamente excludentes se realizem? Como representaremos os objetos, se de 138


fato a matéria for o vazio e sua textura – sua materialidade - probabilidades de conexões?

Figura 8 - Outubro (Sergei Eisenstein, 1927) http://www.youtube.com/watch?v=wX41KCoGDMU

Este é o efeito mais bizarro de nossa época: à medida em que evoluíram de maneira descomunal nossas possibilidades de intervenção sobre a natureza e sobre nós mesmos, desorganizou-se por completo o modo como costumávamos representar aquela mesma natureza, assim como as leis que acreditávamos regê-la. Crescem, portanto, os meios materiais de nossa ação e seu 139


potencial de transformação e destruição, mas diminuem os motivos pelos quais deveríamos acreditar que os efeitos de nossa atuação possam ser conhecidos ex ante. Nosso poder cresce em razão inversamente proporcional, portanto, ao grau de certeza que temos sobre os resultados de nossas ações. O desenvolvimento científico, complementarmente, nos colocou perto demais das coisas, e em lugar de as vermos com mais detalhes e com mais realidade, vemos que a realidade de que partimos não é mais do que uma aproximação, que temos que reconsiderar criticamente. A ciência demonstra recorrentemente que nosso conhecimento do espaço e do tempo, fundamentados na mecânica newtoniana - lógicos do ponto de vista especulativo e eficazes no que se refere à prática -, nos conduzem a representações da realidade que são exceções e que a natureza resta, essencialmente, por conhecer; que as formas a partir das quais nos apropriamos do mundo não

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são nada além de uma miopia, uma representação metafórica do existente. A experimentação estética No terreno da estética a antiga concepção de espaço e tempo tem sido sistematicamente problematizada, e a representação mimética da realidade foi amplamente superada. Os vários movimentos que se pode associar à modernidade incorporam, em larga medida, estes questionamentos, ultrapassando todas as formas pretéritas de representação e buscando, cada qual, à sua maneira, soluções formais novas. Impressionismo, expressionismo, dadaísmo, futurismo, surrealismo, cubismo, música dedecafônica; Marcel Proust, James Joyce, Kafka, Poe. Poder-se-ia estender longamente a série de exemplos, acompanhando-os para muito além desta modernidade já clássica, até atingir as soluções contemporâneas. Encontraríamos, contudo, como fundamentos deste movimento tectônico uma experimentação historicamente singular de um mundo que, de fato, propiciou-nos oportunidades únicas de retomar o real, para 141


encontrá-lo não como aquilo que já estava amplamente determinado, mas como uma surpresa e um completo universo de possibilidades. Mas qual é a qualidade deste real que encontramos; o que será uma representação realista do real? O cubismo, com seus estilhaços e com a retomada das máscaras africanas e de seu arcaismo; o surrealismo com seu culto ao sonho e ao inconsciente; Poe e Kafka, com suas representações fantasmagóricas - não seriam estas representações fantásticas e hiperbólicas precisamente o real, no que tem de mais íntimo? O que é a natureza da representação, em um mundo que não tem a experiência por fundamento? Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. A angustiante riqueza de ideias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarismo e da gnose, 142


da escolástica e do espiritualismo, é o reverso dessa miséria. Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização. Pensemos nos esplêndidos quadros de Ensor, nos quais uma grande fantasmagoria enche as ruas das metrópoles: pequeno-burgueses com fantasias carnavalescas, máscaras disformes brancas de farinha, coroas de folha de estanho, rodopiam imprevisivelmente ao longo das ruas. Esses quadros são talvez a cópia da Renascença terrível e caótica na qual tantos depositam suas esperanças. Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde 143


esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. Sim, é preferível confessar que essa pobreza de experiência não é mais privada, mas de toda a humanidade. Surge assim uma nova barbárie. Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo de barbárie. Pois o que resulta para o bárbaro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para a frente, a começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Entre os grandes criadores sempre existiram homens implacáveis que operaram a partir de uma tábula rasa. Queriam uma prancheta: foram construtores. A essa estirpe de construtores pertenceu Descartes, que 144


baseou sua filosofia numa única certeza — penso, logo existo — e dela partiu. Também Einstein foi um construtor assim, que subitamente perdeu o interesse por todo o universo da física, exceto por um único problema — uma pequena discrepância entre as equações de Newton e as observações astronômicas. Os artistas tinham em mente essa mesma preocupação de começar do principio quando se inspiravam na matemática e reconstruíam o mundo, como os cubistas, a partir de formas estereométricas, ou quando, como Klee, se inspiravam nos engenheiros. Pois as figuras de Klee são por assim dizer desenhadas na prancheta, e, assim como num bom automóvel a própria carroceria obedece à necessidade interna do motor, a expressão fisionômica dessas figuras obedece ao que está dentro. Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são bárbaras. (BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza – Obras escolhidas. Vol. 1. 145


Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119. – versão eletrônica) “Confessar pobreza”, é preciso dizê-lo, não é um postulado ético, mas um preceito estético e arquitetural: se toda organicidade e toda síntese são falsas, porque a época nos nega historicamente sua experimentação, a obra se faz a partir daquilo que efetivamente temos em mão - fragmentos e ruínas. A ruína é co-eterna com o inorgânico, resultado necessário da dissolução de tudo que está organizado. É, contudo, do ponto de vista de sua positividade, o permanente enunciado do existente como possibilidade.

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Figura 9 - Les Dames D´Avignon, Pablo Picasso

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 1845-1851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas 147


circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito Brumário! Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do 148


que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela. O exame dessas conjurações de mortos da história do mundo revela de pronto uma diferença marcante. Camile Desmoulins, Danton, Robespierre, SaintJust, Napoleão, os heróis, os partidos e as massas da velha Revolução Francesa, desempenharam a tarefa de sua época, a tarefa de libertar e instaurar a moderna sociedade burguesa, em trajes romanos e com frases romanas. Os primeiros reduziram a pedaços a base feudal e deceparam as cabeças feudais que sobre ela haviam crescido. Napoleão, por seu 149


lado, criou na França as condições sem as quais não seria possível desenvolver a livre concorrência, explorar a propriedade territorial dividida e utilizar as forcas produtivas industriais da nação que tinham sido libertadas; além das fronteiras da França ele varreu por toda parte as instituições feudais, na medida em que isto era necessário para dar à sociedade burguesa da França um ambiente adequado e atual no continente europeu. Uma vez estabelecida a nova formação social, os colossos antediluvianos desapareceram, e com eles a Roma ressurrecta - os Brutus, os Gracos, os Publícolas, os tribunos. Os senadores e o próprio César. A sociedade burguesa, com seu sóbrio realismo, havia gerado seus verdadeiros intérpretes e porta-vozes nos Says, Cousins, Royer-Coilards, Benjamm Constants e Guizots; seus verdadeiros chefes militares sentavam-se atrás das mesas de trabalho e o cérebro de toucinho de Luís XVIII era a sua cabeça 150


política. Inteiramente absorta na produção de riqueza e na concorrência pacífica, a sociedade burguesa não mais se apercebia de que fantasmas dos tempos de Roma haviam velado seu berço. Mas, por menos heroica que se mostre hoje esta sociedade, foi não obstante necessário heroísmo, sacrifício, terror, guerra civil e batalhas de povos para torná-la uma realidade. E nas tradições classicamente austeras da república romana, seus gladiadores encontraram os ideais e as formas de arte, as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios as limitações burguesas do conteúdo de suas lutas e manterem seu entusiasmo no alto nível da grande tragédia histórica. Do mesmo modo, em outro estágio de desenvolvimento, um século antes, Cromwell e o povo inglês haviam tomado emprestado a linguagem, as paixões e as ilusões do Velho Testamento para sua revolução burguesa. Uma vez alcançado o objetivo real, uma 151


vez realizada a transformação burguesa da sociedade inglesa, Locke suplantou Habacuc. A ressurreição dos mortos nessas revoluções tinha, portanto, a finalidade de glorificar as novas lutas e não a de parodiar as passadas; de engrandecer na imaginação a tarefa a cumprir, e não de fugir de sua solução na realidade; de encontrar novamente o espírito da revolução e não de fazer o seu espectro caminhar outra vez”. (Marx, O 18 Brumário de Luis Bonaparte) A tarefa, portanto, é recorrente: trata-se de salvar a tradição de sua mineralização; impõe-se adensar o tempo, conclamando o passado a conspirar pelo futuro. O tempo da revolução é a irrupção de todo o irrealizado no precisamente agora; sua potência é esta concentração.

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O cinema Dentre as várias e distintas experimentações estéticas o cinema, contudo, abriu um território radicalmente novo, tanto pelo fato de ser um produto estrito da modernidade, quanto devido ao modo como intervém na realidade para engendrar sua obra, o produto fílmico. Para que se possa compreender a radicalidade de suas possibilidades é preciso, em primeiro lugar, superar a noção de que a câmera seja pura e simplesmente uma ampliação dos poderes do olho orgânico, natural. O que a câmera vê não é uma realidade com mais detalhes, mais fiel ao objeto - mimese aperfeiçoada. Quando posta a trabalhar, o que a câmera nos traz são representações e apropriações completamente novas do real; ângulos e elementos que não conhecíamos em absoluto e que iluminam o objeto de partida com qualidades completamente novas, tão radicais que, em muitas ocasiões, alteram não apenas nossa percepção, mas demonstram a coisa corriqueira em configurações completamente inauditas e inimagináveis. 153


Fica bem claro, em consequência, que a natureza que fala à câmara é completamente diversa da que fala aos olhos, mormente porque ela substitui o espaço onde o homem age conscientemente por um outro onde sua ação é inconsciente. Se é banal analisar, pelo menos globalmente, a maneira de andar dos homens, nada se sabe com certeza de seu estar durante a fração de segundo em que estica o passo. Conhecemos em bruto o gesto que fazemos para apanhar um fuzil ou uma colher, mas ignoramos quase todo o jogo que se desenrola realmente entre a mão e o metal, e com mais forte razão ainda devido às alterações introduzidas nesses gestos pelas flutuações de nossos diversos estados de espírito. É nesse terreno que penetra a câmara, com todos os seus recursos auxiliares de imergir e de emergir, seus cortes e seus isolamentos, suas extensões do campo e suas acelerações, seus engrandecimentos e 154


suas reduções. Ela nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente visual, assim como a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente instintivo”. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, grifos meus) O close up, por exemplo, demonstra configurações do rosto humano que seriam imperceptíveis em outra condição. Aproximando-o do espectador, até praticamente suprimir toda a distância, leva a uma quase fusão com aquele que é representado, algo que potencializa não apenas a identificação, mas igualmente os elementos ameaçadores inerentes a esta desproporção. 155


Figura 10 - Fausto (Friedrich Wilhelm Murnau, 1926) http://br.youtube.com/watch?v=WbLz22dS1A0

A desaceleração de uma tomada, à sua vez, não produz um movimento lento, mas uma alteração na percepção da textura do espaço, que parece privado de gravidade. Procedendo ao levantamento das realidades através de seus primeiros planos que também sublinham os detalhes ocultos nos acessórios familiares, perscrutando as ambiências banais sob a 156


direção engenhosa da objetiva, se o cinema, de um lado, nos faz enxergar melhor as necessidades dominantes sobre nossa vida, consegue, de outro, abrir imenso campo de ação do qual não suspeitávamos. Os bares e as ruas de nossas grandes cidades, nossos gabinetes e aposentos mobiliados, as estações e usinas pareciam aprisionar-nos sem esperança de libertação. Então veio o cinema e, graças à dinâmica de seus décimos de segundo, destruiu esse universo concentracionário, se bem que agora abandonados no meio dos seus restos projetados ao longe, passemos a empreender viagens aventurosas. Graças ao primeiro plano, é o espaço que se alarga; graças ao ralenti, é o movimento que assume novas dimensões. Tal como o engrandecimento das coisas — cujo objetivo não é apenas tomar mais claro aquilo que sem ele seria confuso, mas de desvendar novas estruturas da matéria — o raíenti não confere simplesmente relevo 157


às formas do movimento já conhecidas por nós, mas, sim, descobre nelas outras formas, totalmente desconhecidas, "que não representam de modo algum o retardamento de movimentos rápidos e geram, mais do que isso, o efeito de movimentos escorregadios, aéreos e supraterrestres".(BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, grifos meus) Vertov foi especialmente bem sucedido em demonstrar as possibilidades da câmera. Em seu Câmera Olho de 1924, por exemplo, ao filmar um bosque a partir de um trem em movimento, faz materializar-se na tela um quadro impressionista. 158


Há nisso, implicitamente, uma dissertação não apenas sobre o fundamento da representação impressionista, mas uma genealogia da própria imagem que o cinema captura, desenvolvida a partir e pelo artefato técnico. Além disso, naquele mesmo filme Vertov faz o tempo retroagir, na medida em que recria um boi que havia sido abatido e seccionado. Esse trânsito temporal, embora seja possível em outras manifestações estéticas, encontra no cinema uma representação naturalizada, ou seja, que parece reproduzir a própria estrutura mental daquele que pensa, em uma relação íntima para consigo mesmo. O cinema, portanto, não representa o real mais perfeitamente, como se estivesse destinado a participar do mesmo debate que envolveu a pintura e a fotografia. O cinema nos apresenta o real segundo uma ordem nova, em que a relação para com o tempo e o espaço são completamente alteradas, de tal modo que, ao fim, é nossa própria compreensão de ambos que deve mudar de natureza. Do mergulho que deu no real, o cinema nos trouxe elementos de um outro mundo, cujas 159


leis de organização são completamente distintas do que costumava ser nossa percepção corrente e nosso instinto para o razoável. Perante o cinema a realidade tornou-se inverossímil e o real fantástico. A câmera, contudo, justamente porque intervém profundamente no denso do real, cria um mundo que não reconheceríamos como coerente, se esta qualidade não fosse emprestada a ele. No cinema, passado, presente e futuro são contemporâneos; o espaço desconhece distâncias, pois é possível tornar contíguo o que existe de mais longínquo; tudo que se expressa como da natureza do continuum pode tornar-se discreto e aquilo que é descontínuo, à sua vez, só existe para tomar uma forma dinâmica, representando o movimento. Para dar conta deste universo bizarro desenvolve-se, portanto, paralelamente e, em determinadas condições, em oposição ao cinema, uma linguagem narrativa que traduz a realidade capturada pela câmera, para os fins da apropriação humana corrente. Esta linguagem, contudo, ao tentar neutralizar os efeitos da atuação da câmera, não nos reconduz ao real, em sua mesmice original 160


– mesmo quando programaticamente tenta fazê-lo –, mas nos leva a uma submersão no mais profundo do onírico e no que existe de mais artificial. O filme só atua em segundo grau, uma vez que se procede à montagem das sequencias. Em outras palavras: o aparelho, no estúdio, penetrou tão profundamente na própria realidade que, a fim de conferir-lhe a sua pureza, a fim de despojá-la deste corpo estranho no qual se constitui — dentro dela — o mesmo aparelho, deve-se recorrer a um conjunto de processos peculiares: variação de ângulos de tomadas, montagem, agrupando várias sequencias de imagens do mesmo tipo. A realidade despojada do que lhe acrescenta o aparelho tomou-se aqui a mais artificial de todas e, no país da técnica, a apreensão imediata da realidade como tal é, em decorrência, uma flor azul. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas 161


técnicas de reprodução, Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, grifos meus) O cinema opera segundo uma noção de tempo que é infraconsciente, surpreende o real forçandoo não apenas a representar-se, mas a revelar-se; institui o detalhe de uma maneira em que ele jamais havia sido possível para nós; faculta-nos retroagir, voltar e recompor o movimento, todo movimento, extirpando dele tudo que havia de natural. Trabalhando diretamente sobre o real o cinema subverte o senso corrente de escalas e demonstra imageticamente as proporções míticas do corriqueiro; as potências introvertidas do real. O que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o homem se apresenta 162


ao aparelho, é também a maneira pela qual, graças a esse aparelho, ele representa para si o mundo que o rodeia. Um exame da psicologia da performance mostrou-nos que o aparelho pode desempenhar um papel de teste. Um olhar sobre a psicanálise nos fornecerá um outro exemplo. De fato, o cinema enriqueceu a nossa atenção através de métodos que vêm esclarecer a análise freudiana. Há cinqüenta anos, não se prestava quase atenção a um lapso ocorrido no desenrolar de uma conversa. A capacidade desse lapso de, num só lance, abrir perspectivas profundas sobre uma conversa que parecia decorrer do modo mais normal, era encarada, talvez, como uma simples anomalia. Porém, depois de Psychopathologie des Allagslebens (Psicopatologia da Vida Cotidiana), as coisas mudaram muito. Ao mesmo tempo que as isolava, o método de Freud facultava a análise de realidades, até então, inadvertidamente perdidas no 163


vasto fluxo das coisas percebidas. Alargando o mundo dos objetos dos quais tomamos conhecimento, tanto no sentido visual como no auditivo, o cinema acarretou, em consequência, um aprofundamento da percepção. E é em decorrência disso que as suas realizações podem ser analisadas de forma bem mais exata e com número bem maior de perspectivas do que aquelas oferecidas pelo teatro ou a pintura. Com relação à pintura, a superioridade do cinema se justifica naquilo que lhe permite melhor analisar o conteúdo dos filmes e pelo fato de fornecer ele, assim, um levantamento da realidade incomparavelmente mais preciso. Com relação ao teatro, porque é capaz de isolar número bem maior de elementos constituintes. Esse fato e é daí que provém a sua importância capital — tende a favorecer a mútua compenetração da arte e da ciência. Na realidade, quando se considera uma estrutura perfeitamente ajustada ao 164


âmago de determinada situação (como o músculo no corpo), não se pode estipular se a coesão refere-se principalmente ao seu valor artístico, ou à exploração científica passível de ser concretizada. Graças ao cinema — e aí está uma das suas funções revolucionárias pode-se reconhecer, doravante, a identidade entre o aspecto artístico da fotografia e o seu uso científico, até então amiúde divergentes. ".(BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira)

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Figura 11 - Giulietta degli Spiriti (Federico Fellini, 1965) http://www.youtube.com/watch?v=IXlsRBdhLJ0

O fascismo como programa estético Os efeitos paradoxais que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia apresentam para o conhecimento e para nossas representações do tempo e do espaço, - algo em larga medida apropriado e elaborado pela experimentação estética -, a ruptura da tradição como programa e automatismo, nos colocam problemas absolutamente novos. Como elaborar essas novidades tão divergentes do senso comum; como encarar a eternidade do novo? Como lidar com a 166


realidade introduzida pela massa? Perguntas dessa dimensão não poderiam ficar sem respostas e, de fato, elas já encontraram uma solução, ainda que na forma de um ordenamento regressivo. O fascismo é este ordenamento não como elemento pretérito, mas como realidade recorrente e traço categorial. Adota o poder da técnica e da tecnologia, a pujança da ciência, mas expatria toda a dúvida que elas suscitam convocando o mito, inventando uma tradição, de tal modo que o homem possa se apropriar do desenvolvimento propiciado pelos meios técnicos de produção, sem alterar em absoluto as formas de sua organização social. Através desses recursos se fixam e enrijecem, portanto, os termos do desenvolvimento material, que cobra, à sua vez, em vidas e vitalidade, a perversão associada à violência da falsa síntese e de sua contínua reprodução. O barbarismo fascista é a contraface necessária dessa solução de compromisso perversa, que eleva à condição de uma plataforma estética:

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Fiat ars, pereat mundus, esta é a palavra de ordem do fascismo, que, como reconhecia Marinetti, espera da guerra a satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela técnica. Aí está, evidentemente, a realização perfeita da arte pela arte. Na época de Homero, a humanidade oferecia-se, em espetáculo, aos deuses do Olimpo: agora, ela fez de si mesma o seu próprio espetáculo. Tornouse suficientemente estranha a si mesma, a fim de conseguir viver a sua própria destruição, como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a estetização da política, tal como a pratica o fascismo. A resposta do comunismo é politizar a arte. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução 168


foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, pp. 55-95.) A supressão da humanidade no fascista exterioriza-se nos artefatos disseminadores da morte; em sua produção científica, na escala e nos métodos, em uma palavra: genocídio. Tendo redimido a impotência do homem médio contemporâneo na potência atávica do cavaleiro nórdico, o fascista passa a ser um guerreiro santo, que vive na guerra e para a guerra; que não segue as conveniências e racionalidade práticas de um programa político; que não obedece o cálculo e a estratégia militar, mas os termos estritos de uma apropriação estética da realidade que é, para todos os efeitos, convertida em dimensão paralela e inacessível. Decorridos vinte e sete anos, nós, futuristas, erguemo-nos contra a ideia de que a guerra seria antiestética. . . Daí porque... afirmamos isto: a guerra é bela porque, graças às máscaras contra gás, ao microfone terrifico, aos lança-chamas e 169


aos pequenos carros de assalto, ela funda a soberania do homem sobre a máquina subjugada. A guerra é bela porque ela concretiza, pela primeira vez, o sonho de um homem de corpo metálico. A guerra é bela porque ela enriquece um prado com flores de orquídeas flamejantes, que são as metralhadoras. A guerra é bela porque ela congrega, a fim de fazer disso uma sinfonia, as fuzilarias, os canhoneiros, o cessar de fogo, os perfumes e os odores de decomposição. A guerra é bela porque ela cria novas arquiteturas, como aquelas dos grandes carros, das esquadrilhas aéreas de forma geométrica, das espirais de fumo subindo das cidades incendiadas e ainda muitas outras... Escritores e artistas futuristas... lembrai-vos desses princípios fundamentais de uma estética de guerra, a fim de que seja esclarecido... o vosso combate por uma nova poesia e uma nova escultura!"

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Esse manifesto tem a vantagem de dizer claro o que quer. O próprio modo pelo qual o problema é colocado dá ao dialético o direito de acolhê-lo. Eis como se pode representar a estética da guerra, hoje em dia: já que a utilização normal das forças produtivas está paralisada pelo regime da propriedade, o desenvolvimento dos meios técnicos, do ritmo das fontes de energia, voltam-se para um uso contra a natureza. Verifica-se através da guerra que, devido às destruições por ela empreendidas, a sociedade não estava suficientemente madura para fazer, da técnica, o seu órgão; que a técnica, por seu turno, não estava suficientemente evoluída a fim de dominar as forças sociais elementares. A guerra imperialista, com as suas características de atrocidade, tem, como fator determinante, a decalagem entre a existência de meios poderosos de produção e a insuficiência do seu uso para fins produtivos (em outras palavras, a 171


miséria e a falta de mercadorias). A guerra imperialista é uma revolta da técnica que reclama, sob a forma de "material humano", aquilo que a sociedade lhe tirou como matéria natural. Em vez de canalizar os rios, ela conduz a onda humana ao leito de suas fossas; em vez de usar seus aviões para semear a terra, ela espalha suas bombas incendiárias sobre as cidades e, mediante a guerra dos gases, encontrou um novo meio de acabar com a aura. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, pp. 55-95.) *** 172


Fragmento "Fundação e manifesto do futurismo", 1908, publicado em 1909. "Então, com o vulto coberto pela boa lama das fábricas - empaste de escórias metálicas, de suores inúteis, de fuligens celestes -, contundidos e enfaixados os braços, mas impávidos, ditamos nossas primeiras vontades a todos os homens vivos da terra: 1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito da energia e da temeridade. 2. A coragem, a audácia e a rebelião serão elementos essenciais da nossa poesia. 3. Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro. 4. Afirmamos que a magnificência do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da 173


velocidade. Um carro de corrida adornado de grossos tubos semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais belo que a Vitória de Samotrácia. 5. Queremos celebrar o homem que segura o volante, cuja haste ideal atravessa a Terra, lançada a toda velocidade no circuito de sua própria órbita. 6. O poeta deve prodigalizar-se com ardor, fausto e munificência, a fim de aumentar o entusiástico fervor dos elementos primordiais. 7. Já não há beleza senão na luta. Nenhuma obra que não tenha um caráter agressivo pode ser uma obra-prima. A poesia deve ser concebida como um violento assalto contra as forças ignotas para obrigá-las a prostrar-se ante o homem. 8. Estamos no promontório extremo dos séculos!... Por que haveremos de olhar para trás, se queremos arrombar as misteriosas portas do Impossível? O Tempo e o Espaço morreram ontem.

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Vivemos já o absoluto, pois criamos a eterna velocidade onipresente. 9. Queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo -, o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas idéias pelas quais se morre e o desprezo da mulher. 10. Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias de todo tipo, e combater o moralismo, o feminismo e toda vileza oportunista e utilitária. 11. Cantaremos as grandes multidões agitadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela sublevação; cantaremos a maré multicor e polifônica das revoluções nas capitais modernas; cantaremos o vibrante fervor noturno dos arsenais e dos estaleiros incendiados por violentas luas elétricas: as estações insaciáveis, devoradoras de serpentes fumegantes: as fábricas suspensas das nuvens pelos contorcidos fios de suas fumaças; as pontes semelhantes a ginastas gigantes que transpõem as fumaças, cintilantes ao sol com um fulgor de facas; os navios a vapor aventurosos que farejam o 175


horizonte, as locomotivas de amplo peito que se empertigam sobre os trilhos como enormes cavalos de aço refreados por tubos e o voo deslizante dos aeroplanos, cujas hélices se agitam ao vento como bandeiras e parecem aplaudir como uma multidão entusiasta. É da Itália que lançamos ao mundo este manifesto de violência arrebatadora e incendiária com o qual fundamos o nosso Futurismo, porque queremos libertar este país de sua fétida gangrena de professores, arqueólogos, cicerones e antiquários. Há muito tempo a Itália vem sendo um mercado de belchiores. Queremos libertá-la dos incontáveis museus que a cobrem de cemitérios inumeráveis. Museus: cemitérios!... Idênticos, realmente, pela sinistra promiscuidade de tantos corpos que não se conhecem. Museus: dormitórios públicos onde se repousa sempre ao lado de seres odiados ou desconhecidos! Museus: absurdos dos matadouros dos pintores e escultores que se trucidam ferozmente a golpes de cores e linhas ao longo de suas paredes! 176


Que os visitemos em peregrinação uma vez por ano, como se visita o cemitério no dos dos mortos, tudo bem. Que uma vez por ano se desponta uma coroa de flores diante da Gioconda, vá lá. Mas não admitimos passear diariamente pelos museus nossas tristezas, nossa frágil coragem, nossa mórbida inquietude. Por que devemos nos envenenar? Por que devemos apodrecer? E que se pode ver num velho quadro senão a fatigante contorção do artista que se empenhou em infringir as insuperáveis barreiras erguidas contra o desejo de exprimir inteiramente o seu sonho?... Admirar um quadro antigo equivalente a verter a nossa sensibilidade numa urna funerária, em vez de projetá-la para longe, em violentos arremessos de criação e de ação. Quereis, pois, desperdiçar todas as vossas melhores forças nessa eterna e inútil admiração do passado, da qual saís fatalmente exaustos, diminuídos e espezinhados? Em verdade eu vos digo que a frequentação cotidiana dos museus, das bibliotecas e das 177


academias (cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos crucificados, registros de lances truncados!...) é, para os artistas, tão ruinosa quanto a tutela prolongada dos pais para certos jovens embriagados por seu os prisioneiros, vá lá: o admirável passado é talvez um bálsamo para tantos os seus males, já que para eles o futuro está barrado... Mas nós não queremos saber dele, do passado, nós, jovens e fortes futuristas! Bem-vindos, pois, os alegres incendiários com seus dedos carbonizados! Ei-los!... Aqui!... Ponham fogo nas estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais para inundar os museus!... Oh, a alegria de ver flutuar à deriva, rasgadas e descoradas sobre as águas, as velhas telas gloriosas!... Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam sem piedade as cidades veneradas! Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: resta-nos assim, pelo menos um decênio mais jovens e válidos que nós jogarão no cesto de papéis, como manuscritos inúteis. - Pois é isso que queremos!

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Nossos sucessores virão de longe contra nós, de toda parte, dançando à cadência alada dos seus primeiros cantos, estendendo os dedos aduncos de predadores e farejando caninamente, às portas das academias, o bom cheiro das nossas mentes em putrefação, já prometidas às catacumbas das bibliotecas. Mas nós não estaremos lá... Por fim eles nos encontrarão - uma noite de inverno - em campo aberto, sob um triste galpão tamborilado por monótona chuva, e nos verão agachados junto aos nossos aeroplanos trepidantes, aquecendo as mãos ao fogo mesquinho proporcionado pelos nossos livros de hoje flamejando sob o voo das nossas imagens. Eles se amotinarão à nossa volta, ofegantes de angústia e despeito, e todos, exasperados pela nossa soberba, inestancável audácia, se precipitarão para matar-nos, impelidos por um ódio tanto mais implacável quanto seus corações estiverem ébrios de amor e admiração por nós.

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A forte e sã Injustiça explodirá radiosa em seus olhos - A arte, de fato, não pode ser senão violência, crueldade e injustiça. Os mais velhos dentre nós têm 30 anos: no entanto, temos já esbanjado tesouros, mil tesouros de força, de amor, de audácia, de astúcia e de vontade rude, precipitadamente, delirantemente, sem calcular, sem jamais hesitar, sem jamais repousar, até perder o fôlego... Olhai para nós! Ainda não estamos exaustos! Nossos corações não sentem nenhuma fadiga, porque estão nutridos de fogo, de ódio e de velocidade!... Estais admirados? É lógico, pois não vos recordais sequer de ter vivido! Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas! Vós nos opondes objeções?... Basta! Basta! Já as conhecemos... Já entendemos!... Nossa bela e mendaz inteligência nos afirma que somos o resultado e o prolongamento dos nossos ancestrais. - Talvez!... Seja!... Mas que importa? Não queremos entender!... Ai de quem nos repetir essas palavras infames!... 180


Cabeça erguida!... Eretos sobre o pináculo do mundo, mais uma vez lançamos o nosso desafio às estrelas." (Teorias da Arte Moderna, H.B.Chipp, Martins Fontes, 1993) Fonte: http://www.historiadaarte.com.br/futurismo.html ***

Figura 12 - Charge of the Lancers (Umberto Boccioni, 1915)

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O fascismo supera o caráter indeterminado, probabilístico e aberto que emerge do desenvolvimento do conhecimento, e que se associa à sociedade moderna, através de uma solução regressiva. Com seu culto ao irracional e sua submissão ao mito não renega a técnica, mas, muito ao contrário, a idolatra como potência estética, como arquiteta de outro mundo, para cuja empreitada e edificação usa como instrumentos justamente o artefato técnico, na qualidade daquilo que é força concentrada de destruição - ainda que a seus olhos esta potência destrutiva seja, verdadeiramente, uma grandeza regeneradora. A idolatria da técnica e a convicção inabalável em suas virtudes condicionam recorrentemente o desfecho do drama histórico contemporâneo, como preço cobrado à crença de que as coisas estejam dotadas de propósito e sentido, independentemente de sua relação para com o homem e a forma social que o produz. Não por acaso, o mesmo Marinetti que estetizou a guerra, que lhe emprestou uma conformação lírica, era uma apaixonado do artefato técnico, que tem para ele um caráter ontogênico. 182


A tradição sem insígnias Mas este não é o único ordenamento possível; não é preciso que fiquemos restritos à apropriação reacionária dos desenvolvimentos da modernidade. Para isso, contudo, é preciso superar uma apreensão aristocrática do existente; é preciso compreender as possibilidades libertárias da presença da massa e do desenvolvimento colossal das forças produtivas. É preciso, especialmente, compreender as possibilidades ainda não desvelada deste mesmo desenvolvimento técnico e extrair dele as consequências filosóficas que podem instituir valores radicalmente novos. A massa é matriz de onde emana, no momento atual, todo um conjunto de atitudes novas com relação à arte. A quantidade tornou-se qualidade. O crescimento maciço do número de participantes transformou o seu modo de participação. O observador não deve se iludir com o fato de tal participação surgir, a princípio, sob forma depreciada. Muitos, 183


no entanto, são aqueles que, não havendo ainda ultrapassado esse aspecto superficial das coisas, denunciaram-na vigorosamente. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira) Para tanto é preciso ajustar de vez conta com o saudosismo recorrente e aristocrático, que pretende atribuir à modernidade uma culpa adâmica pela degeneração e depravação de todo o patrimônio cultural da humanidade. Ora, essa postura frente à contemporaneidade não é uma avaliação do desenvolvimento cultural estrito senso, mas a declaração de um ponto de vista determinado e histórico, relativamente à massa e à 184


sua intromissão - de todo irreversível - no terreno da cultura. Trata-se, a rigor, de uma tentativa de subordinar as imensas possibilidades do presente, no campo mesmo da cultura, à canonização do passado, como demanda de exclusão destes deserdados, “incapazes” da elevação e da erudição. Nossas possibilidades estéticas e culturais, filosóficas e científicas não são, contudo, menores do que qualquer época anterior. Nossas belas-artes foram instituídas, assim como os seus tipos e práticas foram fixados, num tempo bem diferente do nosso, por homens cujo poder de ação sobre as coisas era insignificante face àquele que possuímos. Mas o admirável incremento de nossos meios, a flexibilidade e precisão que alcançam, as ideias e os hábitos que introduzem, asseguram-nos modificações próximas e muito profundas na velha indústria do belo. Existe, em todas as artes, uma parte física que não pode mais ser elidida das iniciativas do conhecimento e das 185


potencialidades modernas. Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo, ainda são, decorridos vinte anos, o que eles sempre foram. É preciso estar ciente de que, se essas tão imensas inovações transformam toda a técnica das artes e, nesse sentido, atuam sobre a própria invenção, devem, possivelmente, ir até ao ponto de modificar a própria noção de arte, de modo admirável. (VALÉRY, Paul. Pièces sur l'Art, Paris, 1934. "Conquête de l'Ubiquité", pp. 103,104., apud BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução) Se existem elementos de degradação, isso só ocorre porque, invariavelmente, pretendemos representar os desafios do presente recorrendo a estruturas formais e arquitetônicas do passado, o que nos leva a destruir tanto o passado quanto o presente, em suas possibilidades de representação. Não podemos mais adotar as soluções estéticas pré-modernas, não temos legitimidade para compreender suas exigências, 186


falta-nos para tal essencialmente tudo: tempo, erudição, concentração, atenção; convicção no caráter sagrado da obra de arte e em sua condição de engendrar vínculos entre o terreno e o celeste. O céu ficou perto demais de nós, para que pudesse manter suas qualidades etéreas e esotéricas. Quando tentamos, portanto, retroagir para compreender e fruir o passado da cultura em seus próprios termos agimos em oposição à natureza e determinações de nossa época, e retornamos desta imersão no passado de mãos vazias. Nosso caminho, e ele não é uma trajetória genérica, mas aquela dos que ainda clamam por autonomia, reside em uma abordagem rigorosamente oposta a esta que praticam os eruditos. Em lugar de submeter nossas possibilidades aos requerimentos do passado, precisamos interpretar o passado exatamente segundo as possibilidades e necessidades do presente, considerando-o para tanto em sua pobreza cultural relativa, em suas limitações, mas igualmente na imensa escala de suas potencialidades técnicas e materiais. 187


Se compreendermos, de maneira prática, que toda obra de civilização é igualmente uma realização da barbárie poderemos perceber que o edifício da cultura, que preservou nomes e autores, referências e reverências canônicas obliterou, igualmente, todos aqueles que tornaram possível a existência da obra de arte e do bem cultural, como propriedade (semântica) exclusiva e excludente das classes que, historicamente, dominaram os meios materiais de produção. São exatamente esses alijados da cultura que clamam para que nós, da modernidade, recuperemos a tradição não para fins da deificação do existente – todo o seu passado aqui compreendido-, mas como elemento de libertação daquela mesma tradição, para os fins de revolucionar aquilo que se nos oferece como o para sempre dado. “Pensa na escuridão e no grande frio que reinam nesse vale, onde soam lamentos.” Brecht, Ópera dos três vinténs. Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar 188


uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: “Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage”. A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até 189


hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corveia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (BENJAMIN, Walter. Teses sobre o Conceito da História. Obras escolhidas. 190


Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232)

Figura 13 - A Fonte Marcel Duchamp, 1917

Fonte: http://fr.wikipedia.org/wiki/Image:Fontaine_Duchamp.jpg 191


Fontaine, de Marcel Duchamp. Musée national d'Art moderne. 3ème réplique. Réalisée sous la direction de l'artiste en 1964 par la Galerie Schwarz. Faïence blanche recouverte de glaçure céramique et de peinture. 63 x 48 x 35 cm. http://www.zumbazone.com/duchamp/

Ora, se a modernidade destrói a aura da obra de arte, e da cultura por extensão, não ocorre aqui necessariamente uma degradação, como normalmente se pretende ver, mas a libertação a obra de arte de sua função ritualística, religiosa e canônica. A que se destina a arte, contudo, se ela não é mais uma mediação entre o humano e os planos extra-humanos, sejam eles celestiais ou abissais? Ora, cabe à obra de arte liberta de sua condição ritualística demonstrar, representar o inverídico da realidade, dissolvendo as cristalizações que nos aferram às fantasmagorias que povoam a modernidade. Em resposta, portanto, à estetização da política que o fascismo ostensivo e latente promovem, como recurso imanente às suas lógicas de poder, é preciso 192


politizar a arte. A obra de arte libertada convertese, portanto, em potência política, ou seja, reordenamento crítico do real, pesquisa da forma para que o existente supere suas cristalizações semânticas. A fim de se estudar a obra de arte na época das técnicas de reprodução. É preciso levar na maior conta esse conjunto de relações. Elas colocam em evidência um fato verdadeiramente decisivo e o qual vemos aqui aparecer pela primeira vez na história do mundo: a emancipação da obra de arte com relação à existência parasitária que lhe era imposta pelo seu papel ritualístico. Reproduzem-se cada vez mais obras de arte, que foram feitas justamente para serem reproduzidas. Da chapa fotográfica pode-se tirar um grande número de provas; seria absurdo indagar qual delas é a autêntica. Mas, desde que o critério de autenticidade não é mais aplicável à produção artística, toda a função da arte 193


fica subvertida. Em lugar de se basear sobre o ritual, ela se funda, doravante, sobre uma outra forma de práxis: a política. (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira) Note-se, sob este aspecto, que a tarefa de extrair do existente suas possibilidades libertárias e progressistas é, nas condições atuais, uma tarefa da estética, pois se trata essencialmente de reorganizar toda a forma para que a tradição, libertada do abraço cadavérico que lhe dá a ordem, possa se alinhar com a revolução, permitindo vislumbrar os contornos de um outro

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firmamento, cujo sol e cujo centro, instituem o mundo como reconciliação. (...) O discurso estético aparece como um esforço para transcender a realidade social, por isso ele é imanentemente revolucionário, e se contrapõe, independente de seu conteúdo, às relações concretas de dominação. Marcuse (...) dirá que "a verdade da arte reside no seu poder de quebrar o monopólio da realidade estabelecida que define o que é real... como ideologia ela se opõe à sociedade dada". A separação da arte do processo material lhe confere um papel privilegiado de significar a possibilidade da transformação social. Para os frankfurtianos tem pouco sentido falar em arte popular, uma vez que o povo é parte integrante do sistema de dominação. A arte é uma alienação positiva que permite se escapar do processo de ideologização total da sociedade, e reedita na sua prática, a 195


contradição entre realidade e ilusão. Evidentemente a estética não abole a divisão social do trabalho, ou cria uma sociedade mais justa, ela age como a teoria crítica, negativamente. Ao negar a sociedade real ela abre espaço para a utopia; neste sentido toda arte seria revolucionária. Ao contrário, uma sociedade "sem ideologia" significa que a "aparência" se tornou real, que as diferenças só se manifestam no nível da superfície e encobrem um processo de uniformização que é global. Mas, se no mundo moderno não mais existe contradição entre realidade e ilusão, a tradicional referência a alienação como fuga do real tem que ser invertida. Na verdade é esta "fuga" que permite a existência do discurso estético, a arte deve negar a sociedade para preservar a potencialidade das diferenças. Num mundo "sem ideologia" o indivíduo "foge para a realidade" e se distancia do universo ilusório, o único capaz de lhe 196


mostrar o estado de sua sujeição total. (Ortiz, Renato. A Escola de Frankfurt e a questão da cultura) *** Uma pequena cidade recebeu a visita de um maltrapilho. A população local era muito piedosa e tinha fama de acolher bem os desafortunados. Deste modo, tão logo ele tivesse recostado seu corpo sob a sombra de uma árvore, acorreram a ele muitas pessoas, para oferecer de tudo quanto um infeliz pudesse necessitar. A todos, no entanto, o maltrapilho agradeceu, sem deles tomar o que quer que fosse. E assim passaram-se os dias, sem que ninguém compreendesse a razão de ser daquela visita. Um dia veio a ter com o maltrapilho certo homem da cidade, cuja fama era a de jamais ter conseguido acrescentar à sua história qualquer obra, no que se distinguia de todos os demais cidadãos, que com o seu correto labor espalhavam pelos quatro cantos do mundo a tradição de

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excelência, hospitalidade e industriosidade do local. Disse então o homem: — Não me enganas! Teus trajes não condizem com o teu ser; teu andar, não é o de um alquebrado e teu falar não é o de um errante desafortunado. — Tu me enganas menos ainda. Eu conheço a ferida de que morres; ela é minha como tua. —

Do que falas, que sandices são estas, partidas de alguém que nunca me viu?

— Acaso tu não és o neto do carpinteiro, que vagava por entre formões, martelos, serras e serrotes, como um beija-for abestalhado? Não eras tu que acordavas pela manhã inebriado com o aroma do cedro e que dormias embalado pela conversa sem sentido e nem propósito, de homens velhos, que enrolavam em seus cigarros de palha o fumo junto com o tempo? Não eras tu que ansiavas da madeira, o milagre da forma?

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— E se fosse, de que isso teria me valido? O que foram para mim essas experiências, senão o mergulho em um lago negro, do qual jamais pude voltar à superfície? O que trouxe daquela infância senão a condenação ao desterro, o caminhar como um trôpego e um olhar perdido, que a um tempo anseia e se esconde, de tão transparente se faz? O que faço de virtudes sem serventia e de memórias que não interessam a ninguém? — Reconstruas o tempo. — Ou és louco, ou um pervertido. Meu tempo já foi; minha indústria está ultrapassada; meu modo de ser é incompatível com os requerimentos da cidade; estou sempre atrasado, pois o material que deveria ter sob meu domínio me encanta e o resultado que busquei de início toma em minhas mãos formas que eu não pretendia. — És estúpido por acaso? Não percebes que aquilo que não cabe no presente pode ter o tamanho exato do futuro? Que os ângulos que 199


não se pode ver, são os mais desesperadamente necessários, e tanto mais quanto mais eles se demonstram inatingíveis pela visão? Que tudo que é verdadeiramente útil não se presta ao uso? Não percebes que tua opressão vem do presente, que imaginas invencível, e não do passado que te castiga a memória? Não reconheces nesse passado a linguagem que te permite falar ao indiferenciado e dele extrair as forças que tornam o lançar-se irresistível? — Vim para te dizer o que já sabias e para te declarar responsável por aqueles mesmos velhos de tua infância. Acha-se entre eles as chaves de tua cadeia; quando abrires a porta sairão todos e então serás mais um a enrolar no cigarro de palha o tempo, a mascar os dias, e estarás inconsciente de teus netos, a teus pés, sonhando contigo. Nesta época, quando não fores mais, serás ainda o espocar do martelo sobre o formão, o perfume do cedro, a imagem impossível no nó da madeira, uma noite que não termina, um momento talhado 200


pelo silêncio. Por meio de teu ato, presente, passado e futuro se rearticularam segundo um ordenamento novo e improvável, de tal forma que tudo que era certo se mostrará duvidoso e todo impossível estará a um passo de ocorrer, pois o tempo se instituirá segundo qualidades novas; terá uma outra densidade relativa, e tudo aquilo que tem existido será matéria nova. Este exato fragmento do tempo contém tudo que procuras e ainda assim estás condenado a perdê-lo, pois poderás banhar-te no insondável, mas não poderás retê-lo. E de tudo que disseres, e de todas as tuas obras que estão por vir, nada terá a dignidade do silêncio que restará por entre as linhas, como o enigma com que busca os outros, daquele mesmo círculo de velhos. E tendo dito isto, o maltrapilho deixou a cidade. ** * 1.

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Fala o cético Metade de sua vida se passou, O ponteiro do relógio avança, sua alma treme! Há muito ele vagueia, Procura e não encontra – e hesita agora? Metade de sua vida se passou: E não foi mais que erro e dor até o momento! O que busca você ainda? Por quê? Justamente a isso eu busco – a razão por quê! (NIETZSCHE, 2001, p. 47) 2. Um poeta contemporâneo disse que para cada homem existe uma imagem que faz o mundo inteiro desaparecer; para quantas pessoas essa imagem não surge de uma velha caixa de brinquedos. (BENJAMIN, 1996, p. 253)

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3. História escondida [História Oculta]. – Todo grande homem exerce uma força retroativa: toda a história é posta novamente na balança por causa dele, e milhares de segredos do passado abandonam seus esconderijos – rumo ao sol dele. Não há como antever o que ainda se tornará história. Talvez o passado esteja ainda essencialmente por descobrir! Tantas forças retroativas são ainda necessárias. (NIETZSCHE, 2001, p. 81) 4. História Vertida Um vento varreu minha alma: tão fria a escuridão da perda, tão firmes suas garras, que todo o Tempo se contém naquele instante. Um vento verteu meu coração, 203


e sonhos, tantos sonhos, pesadelos, muitos outros, viajam à deriva no espaço: pequenos asteroides, reluzentes, renitentes, a perderem-se… Uma parábola (Experiência e pobreza) Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no 204


ouro, mas no trabalho. Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: "Ele é muito jovem, em breve poderá compreender". Ou: "Um dia ainda compreenderá". Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119 – grifos meus. 205


(Sítio: http://antivalor.vilabol.uol.com.br/textos/frankfurt /benjamin/benjamin_02.htm) A narrativa como forma Na modernidade e nas condições sociais que lhe correspondem ocorre uma transformação da qualidade da experiência, que não pode mais se referir a qualquer totalidade ou a sistemas completos de significados, simplesmente porque toda a vivência é fraturada e estilhaçada. Não se trata apenas do trabalho parcelar na fábrica, mas também e igualmente da eliminação da vida comunitária; do fim do isolamento no campo; do desfazimento do bairro como ente autônomo; da extinção das relações de compadrio; da alteração do ritmo da existência. A vida não mais se desenrola como aquilo que é orgânico e integrado - o ritmo da natureza, representado pelo seu eterno respirar, nas alternâncias sucessivas e contínuas de dia e noite, das estações; as rotações de culturas no campo -, mas de acordo com os choques sucessivos, discretos e aleatórios da urbe, seguindo o ritmo que lhe é próprio: a velocidade 206


do carro, os conflitos pela ocupação das ruas, a multidão e o contato frenético e impessoal; os elementos arquitetônicos que excedem o indivíduo não apenas em proporção, mas igualmente em funcionalidade, integração e sentido. As coisas põem a vida e se articulam através de relações determinísticas, a que os indivíduos não podem escapar: a malha de trajetos da cidade; os fluxos dos meios de transporte55; as filas e as obrigações simples e ordinárias; a literatura de adesão dos cartazes publicitários e seus grafismos compulsórios.

Figura 14 - Metropolis (Fritz Lang, 1929)

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http://www.youtube.com/watch?v=Y5keBI_wk4g

A cidade achata o tempo, torna-o linear, constrange-o à condição de representação no plano, sem volume; um sistema de coordenadas, que arrasta a existência através de deslocamentos contínuos e inevitáveis. Um tempo decrépito e vazio, vivido pelo indivíduo como incitação contínua e obrigatória à exteriorização; demolição do santuário em que se abrigava o homem que trabalhava e vivia segundo os padrões do imutável. A modernidade e a cidade são uma inervação contínua: fricção, ruídos, estimulação frenética dos olhos; exigência de atenção contínua e ininterrupta para as demandas e requerimentos das coisas, que orientam a vida com todos os atributos de potências colossais, ciclopes da nova era: o sinal de trânsito, os avisos sonoros do metrô; imperativos maquinais, por meio de máquinas: walk, stop. Os signos assombram e automatizam a vida com uma autoridade peculiar, de tal modo que ao fim, a cidade – lócus de homens – ganha ela mesma a qualidade daquilo que é vivo e auto-encantado.

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Benjamin se apercebe desta diferença de qualidade da experiência na modernidade e a persegue em inúmeros índices do existente. A impossibilidade da narrativa como experiência autêntica se lhe apresenta, portanto, como elemento privilegiado desta fratura inaugurada pela modernidade. Narrar, contar estórias, compartilhar contos de fada requerem vivências e posturas que são próprias de um mundo em que o conhecimento se transmitia sob forma oral, no que se opõem ao romance, que pressupõe a invenção da imprensa e o livro. Ora a primeira forma remete à comunidade, uma vez que ela não pode ser experimentada solitariamente, ao passo que a segunda requer o indivíduo, no isolamento em que a modernidade o criou56. Mas a comunidade no sentido arcaico, pretérito e primordial é uma relação completa e total com a natureza, um modo particular de experimentá-la e no qual ela não é percebida como pura negatividade, em sua relação para com o homem. Neste universo, toda existência individual é, em certa medida, a expressão e extensão de 209


potências que são universais, de modo que cada qual vive através de uma fusão, ainda que parcial, com o cosmos A experiência do tempo anterior à modernidade estava mediada pela coisa, ou mais propriamente, pelo retorno contínuo a ela, de tal modo que aquela experiência se via instituída pelo pulsar dos requerimentos desta relação, isto é, como resultado da alternância entre atividade e espera; trabalho e repouso; inspiração e expiração. O sentido de perfeição deste retorno contínuo se cristalizava na coisa, como propriedade sua, mas era, igualmente, uma lapidação do homem e de seu próprio ritmo. A repetição, portanto, jamais foi mesmice, mas, muito ao contrário, era a porta através da qual o insondável inundava a mundano, desvelando suas qualidades fantásticas e quintessênciais: o verdume do verde; a luminosidade do silêncio; os ângulos improváveis e as inclinações impossíveis do natural; a insinuação contínua de uma existência que excede o existente.

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. Figura 15 - Metrópolis (Fritz Lang, 1929)

É aos objetos históricos que aplicaríamos mais amplamente essa noção de aura, porém, para melhor elucidação, seria necessário considerar a aura de um objeto natural. Poder-se-ia defini-la como a única aparição de uma realidade longínqua, por mais próxima que esteja. Num fim de tarde de verão, caso se siga com os olhos uma linha de montanhas ao longo do horizonte ou a de um galho, cuja sombra pousa sobre o nosso estado contemplativo, sente-se a aura dessas 211


montanhas, desse galho (...). (BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira) É necessário considerar, portanto, que a narrativa é não somente a tradição presente e atualizada, como seu constante lapidar. Ela constitui uma unidade orgânica com o trabalho do artífice, que não submete a obra às exigências do tempo, mas o tempo aos requerimentos da obra. Na forma narrativa o meio de comunicação da experiência é a mão, fundamentada sobre o trabalho recorrente sobre a coisa, com o que ela é levada a revelar sua perfeição imanente: obraprima.

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A narrativa não existe fora desta experiência do tempo, porque ela exige como condição não apenas a escuta e a audição, mas igualmente que estas se realizem no momento mesmo de fusão daquele que escuta, com sua atividade de trabalho. Mergulhado e encantado por um ritmo que o transcende, que o absorve na totalidade que respira - como aquilo que está efetivamente vivo grava-se no ouvinte, no mais profundo do seu ser, a história que, tendo a palavra por veículo, escreve segundo a musicalidade da língua: reminiscência e experiência do insondável da origem, do que está para além do tempo57. A narrativa, como o trabalho do artífice, existe através da repetição e de seu ritmo musical.

Figura 16 - Figura 16 - Metropolis (Fritz Lang, 1929)

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A narrativa e a memória A emergência do capitalismo como modo hegemônico de produção, as experiências devastadoras das guerras modernas e do barbarismo que é próprio a elas, o desencantamento do mundo a que a modernidade dá causa eliminaram todos os elementos da ambiência que tornava a narrativa possível. Este conjunto correlato de processos de destruição e desfazimento altera, igualmente, o modo como se experimenta o tempo, que passa a ser apropriado como algo mecânico e linear, vazio, desprovido de qualquer vínculo com a ancestralidade e com o repositório infinito de experiências que a acompanhava. O esvaziamento do tempo, sua apropriação sob forma estritamente profana - algo de todo associado à mecanização e à recusa em banhar-se no que é ancestral - é materializado no corpo. A experiência do tempo vazio e mecânico pertence ao corpo, como afirmação de sua própria mecanização e mecanicidade. Nesse sentido, e de forma conseqüente, a habilidade para o trabalho é pensada, nas condições modernas, sob a égide da 214


disciplina e do adestramento, não restando qualquer elemento propriamente orgânico ou espontâneo.58 O indivíduo que vive agora como ente destacado e antitético ao cosmos submete-se a um outro tempo, e, ao desfazer os vínculos mágicos e anímicos anteriormente existentes59, reencontra aquele cosmos como o que lhe é hostil. A fusão parcial em que existia com o natural foi rompida, e sua realização e materialização original, havida na e através da vida comunal, evanesce. A imersão aparentemente natural e não mediada no social se lhe apresenta agora transmutada e realizada sob a forma de um coletivo inóspito – presença que registra aquela fratura, e que afirma como autônomas as mediações entre o individual e o coletivo. Nos termos da modernidade capitalista, portanto, tudo que excede o indivíduo se oferece a ele, primeiramente, como uma potência ameaçadora. A segregação entre o público e o privado, entre o mundo do trabalho e da casa, ainda que decorra de determinações que se podem chamar de objetivas, materiais, tem na 215


representação da relação entre o homem e a 60

natureza seu fundamento mais arcaico . O homem, que ao olhar para o social, vê uma fratura, atualiza sua própria segregação da vida natural e do cosmos - com os quais um dia acreditou estar fundido. É evidente, no entanto, que a relação para com a natureza era e permanece ambivalente. Há uma diferença, contudo. Nas sociedades em que o homem se imaginava organicamente relacionado à natureza havia a possibilidade concreta e material de influenciá-la magicamente, barganhar com ela, através de ritos e sacrifícios, ou seja, atuar de modo dialógico. Na modernidade, contudo, rompida a noção da unidade homem-natureza, impõe-se a dominação dessa como programa, a sujeição do que é natural, por meio da força concentrada, do conhecimento que é e deve ser poder - ciência.

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Figura 17 - O anjo exterminado (Luis Buñel, 1962)

O conteúdo latente da ciência deve ser associado, portanto, àquelas formas imagéticas da natureza em que ela aparece ao homem como o que é oposto e irreconciliável, hostil e ameaçador. A ciência, em decorrência, apresenta-se como contra-força igualmente aterradora, poder total; demanda de sujeição absoluta, uma vez que se refere àquilo que é considerado qualitativamente distinto e divergente do homem – a natureza como potência primal e arcaica; força que nos cobra recorrentemente a vida como preço; signo da morte que rejeitamos.

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O conformismo, que sempre esteve em seu elemento na social-democracia, não condiciona apenas suas táticas políticas, mas também suas idéias econômicas. E uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política. A antiga moral protestante do trabalho, secularizada, festejava uma ressurreição na classe trabalhadora alemã. O Programa de Gotha já continha elementos dessa confusão. Nele, o trabalho é definido como “a fonte de toda riqueza e de toda civilização”. Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que não possui outra propriedade que a sua força de trabalho está 218


condenado a ser “o escravo de outros homens, que se tornaram... proprietários”. Apesar disso, a confusão continuou a propagar-se, e pouco depois Josef Dietzgen anunciava: “O trabalho é o Redentor dos tempos modernos... No aperfeiçoamento... do trabalho reside a riqueza, que agora pode realizar o que não foi realizado por nenhum salvador”. Esse conceito de trabalho, típico do marxismo vulgar, não examina a questão de como seus produtos podem beneficiar trabalhadores que deles não dispõem. Seu interesse se dirige apenas aos progressos na dominação da natureza, e não aos retrocessos na organização da sociedade. Já estão visíveis, nessa concepção, os traços tecnocráticos que mais tarde vão aflorar no fascismo. Entre eles, figura uma concepção da natureza que contrasta sinistramente com as utopias socialistas anteriores a março de 1848. O trabalho, como agora compreendido, visa uma exploração da natureza, comparada, com 219


ingênua complacência, à exploração do proletariado. Ao lado dessa concepção positivista, as fantasias de um Fourier, tão ridicularizadas, revelam-se surpreendentemente razoáveis. Segundo Fourier, o trabalho social bem organizado teria entre seus efeitos que quatro luas iluminariam a noite, que o gelo se retiraria dos pólos, que a água marinha deixaria de ser salgada e que os animais predatórios entrariam a serviço do homem. Essas fantasias ilustram um tipo de trabalho que, longe de explorar a natureza, libera as criações que dormem, como virtualidades, em seu ventre. Ao conceito corrompido de trabalho corresponde o conceito complementar de uma natureza, que segundo Dietzgen, “está ali, grátis”. (BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Ensaio obtido em Walter Benjamin -– Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. 220


Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. Sítio: Anti Valor – grifos meus) Essa busca obstinada de sujeição da natureza é, no entanto, um movimento reflexo, um rito de dormir, com o qual se expia e afasta o terror do que se desconhece, como aquilo que é igual e necessariamente hostil. Há, portanto, no imaginário que nos conduz à ciência, um automatismo que é semelhante àquele que se encontra em formas patológicas de comportamento. Ainda que esta analogia não possa nos levar muito longe, é necessário ressaltar que existe um vínculo entre ciência e o sono, que a modernidade, em algum grau, também é. Mas o que se perde na passagem que suplanta a narrativa, ou seja, que supera as formas societárias em que a oralidade era a forma corrente de comunicação e de registro da experiência coletiva? O sentido de perfeição, de retorno contínuo e lúdico à coisa, foi perdido na modernidade, que ao acelerar o tempo, não permite perfeição que não seja a redução a um 221


padrão, sendo que a própria perfeição nele se reconhece. Deste modo, a forma por excelência da modernidade parece ser a mímese, segundo o padrão da máquina (Benjamin, 1996, p. 206; 215, 238); a redução ao standard, a produção industrial do próprio homem - o que requer a eliminação de toda e qualquer espontaneidade. Pode-se afirmar que existe um conceito de iluminismo particular aos frankfurtianos, e que ele não coincide com a análise da história da época. Nele podemos distinguir alguns níveis de significação: a) trata-se de um saber cuja essência é a técnica; b) promove a dimensão de calculabilidade e da utilidade; c) erradica do mundo a dimensão do gratuito (arte); d) é uma nova forma de dominação. Quando Adorno e Horkheimer (1975a, p. 101) afirmam que o Iluminismo "se relaciona com as coisas assim como o ditador se relaciona com os homens", que ele "os conhece na medida em que os 222


pode manipular", de uma certa forma eles condensam seu pensamento a respeito da sociedade moderna. O conhecimento manipulatório pressupõe uma técnica e uma previsibilidade que possa controlar de antemão o comportamento social. Para ele o mundo pode ser pensado como uma série de variáveis que integram um sistema único. A possibilidade de controle se vincula à capacidade que o sistema possui de eliminar as diferenças, reduzindo-as ao mesmo denominador comum, o que garantiria a previsibilidade das manifestações sociais. A crítica da racionalidade desvenda desta forma uma crítica do processo de uniformização. Por isso a lógica formal de Leibniz é considerada a "grande escola da uniformização", ela ofereceria aos iluministas o esquema da calculabilidade do mundo. O tema da padronização, que é fundamental na definição da indústria cultural, se encontra ancorado na própria visão que os frankfurtianos têm da 223


história. A racionalidade do pensamento burguês impõe uma forma de apreensão do social que o orienta para um novo tipo de dominação. Mas o Iluminismo não se identifica unicamente a uma forma de pensar, ele corresponde ao movimento real da sociedade, que ao longo de sua história elimina as diferenças, anulando as possibilidades de realização do indivíduo. Pode-se perceber como a problemática da uniformização se constitui ao se considerar, por exemplo, o papel da magia. Se nos lembrarmos da definição dada por Mauss (Mauss & Hubert, 1968), temos que a magia se associa a uma atividade ligada fundamentalmente à diferença. Ela se distingue da religião porque representa a parte e não o todo; neste sentido o pensamento mágico é individualizado, e enquanto diferença, pode ser contraposto ao Iluminismo que se quer universal. Levando-se em 224


consideração que é durante os séculos XVII e XVIII que ocorre o recuo do pensamento mágico em relação à racionalidade científica, pode-se compreender a posição dos autores. O que é visto pelos historiadores como derrota do pensamento obscurantista, é interpretado por Adorno e Horkheimer como o fim das diferenças, o advento de uma sociedade uniformizada na qual a individualidade, a parte, torna-se impossível de se expressar. Desencantamento e desenfeitiçamento do mundo representam a mesma face do movimento de secularização (4). A sociedade moderna se apresenta pois como total e totalitária, ela "amarra todas as relações e todos os instintos". Não é por acaso que as referências a Durkheim aparecem em vários momentos, e que o capítulo o "Iluminismo como mistificação das massas" abre com uma refutação de suas teses sociológicas. Com efeito, Durkheim pensava que o crescimento da 225


divisão do trabalho levaria a um processo de diferenciação social que só poderia ser integrado ao todo social no seio de um novo tipo de solidariedade. A passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica corresponderia ao desenvolvimento da sociedade que se tornaria mais complexa e diferenciada. Para a escola de sociologia francesa, a noção de indivíduo dificilmente poderia existir nas sociedades primitivas onde o processo de diferenciação social era incipiente e cada ator social se adequaria à coerção da consciência coletiva da tribo. A emergência do indivíduo seria, portanto, o fruto da história e somente se expressaria nas sociedades complexas. Adorno e Horkheimer (1975a, p. 110) contra-argumentam dizendo que as diferenças nas sociedades modernas são mera aparência e o que Durkheim considerava como solidariedade social testemunharia na verdade "a unidade impenetrável entre sociedade e 226


dominação". Marcuse chega a inverter a tese durkheimiana, fala em solidariedade mecânica da sociedade industrial, para acrescentar que ela é fruto de uma manipulação organizada. A sociedade industrial avançada, herdeira do Iluminismo, aparece portanto como um sistema integrado no qual o indivíduo se encontra inexoravelmente aprisionado nas malhas da dominação. (ORTIZ, Renato. A Escola de Frankfurt e a questão da cultura) Atualizar a potência sísmica da narrativa exige, contudo, que ela seja recuperada não como experiência original - pretensão que seria absurda mas como encontro e reunião com a modernidade, de tal modo que desta relação se altere tanto a qualidade daquilo que é passado, quanto os termos do futuro. A memória, quando se insinua no presente, engendra a estranheza e a alteridade, sem as quais não é possível apropriar-se do caráter cultural e histórico da modernidade; desvendar seus contornos artificiais e a estrutura mítica que 227


lhe é própria. Não se trata, portanto, do ponto de vista do método, de afastar-se do objeto, mas de torná-lo não natural, atirá-lo de volta à história, para que ele se revele como o que é humano. No resgate da memória, na reminiscência do mundo próprio à narrativa o presente relata seus absurdos e a arbitrariedade de suas formas necessárias, percebe-se, também ele, como mítico; pré-história. Vistas sob a perspectiva do passado as expressões maquinais e colossais da modernidade ganham, portanto, suas qualidades míticas aterradoras: máquinas imensas como Titans; prédios de elevação olímpica, onde toda a vida é, de algum modo, pesada e decidida; o metrô e todas as portas infernais do Hades; as formas labirínticas da cidade. (…) O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que 228


cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está a nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse passado não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso. (BENJAMIN, 1996, p.223) A fisiognomia da modernidade não pode ser apresentada senão no contraste com o passado e, ao mesmo tempo, esse passado não pode ser redimido senão pelas potências do presente. Pois se a modernidade estraçalha todos os vínculos, destrói toda autoridade, demonstra à exaustão a artificialidade do homem – em oposição à concepção pretérita, que o via como coisa natural, fundida ao cosmos – ela é elemento necessário e imprescindível à tarefa da emancipação do homem-espécie, condição necessária à superação da pré-história. Isso não significa, obviamente que, 229


de si, o presente possa encontrar a porta de saída de seu inferno. Tanto presente quanto passado precisam ser reelaborados para os propósitos da redenção, mas só podem ser produtivos e reciprocamente regeneradores se toda a linearidade do tempo for rompida, se a causalidade e a mecanicidade forem superadas, de tal modo que se institua uma efetiva contemporaneidade do existente com sua origem - cuja posição não é o início, mas o centro, como elemento fundador da constelação que, a rigor, está perpetuamente vazio61. Busca-se, portanto, o tempo que antecede à organização do sistema de referências do existente, com o qual se possa reordenar não apenas a história, mas todas as categorias temporais, que se constituíram a partir de uma visão mecanicista e imanentista do mundo. Requer-se o desenvolvimento das estruturas formais e discursivas, que atualizam o passado e que o tornam ativo - posto que o conhecimento se realiza na linguagem.

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A ironia de Charles Baudelaire, que se abre ao trabalho da memória, revela-se a partir da destruição de seu próprio objeto de trabalho e da reestruturação de seu aspecto formal. A ironia perpassa todo o trabalho do crítico-poeta, ela representa a consciência do inacabamento, a aspiração à totalidade e o fracasso dessa busca. Nesse universo, o esboço é a figura da passagem, consciência da impossibilidade de apreender qualquer figuração, pois sempre há um atraso em relação à representação da experiência: para o autor de Salon de 1859, a forma é o que está vindo a ser. Nesse contexto, "a memória, em Baudelaire, não opera de forma linear, justaposta e cumulativa. Ela possui uma força crítica que rompe toda continuidade mecânica. [...] Não é uma transcrição do passado no presente, mas uma descontextualização do passado no seio do presente". (NASCIMENTO, Roberta Andrade do. Charles Baudelaire e a arte da memória) 231


No que se refere à crítica da modernidade, a questão que envolve a qualidade do passado para o presente separa as abordagens libertárias das conservadoras e reacionárias. A rigor não faz nenhum sentido afirmar-se, tout-court, que o presente é uma degradação do passado, pois a crítica da modernidade, feita a partir do ponto de vista da memória, visa mais diretamente evidenciar sua natureza mítica, ainda pré-histórica, e não divinizar o passado, com o que apenas se reforça e potencializa o mito. A perda da qualidade aurática do existente não é, em si mesma, um índice de degradação ou de barbárie, como muitos querem ver. É preciso, contudo, dar qualidade nova e humana ao que ainda se apresenta como fato de natureza, como naturalização – a massa. O novo animismo Na contemporaneidade nossa atenção é atraída por uma multiplicidade de signos numinosos, dotados de luz própria - figurações que a propaganda, ou a arte de conveniência geram: o carro, o shopping center, o filme e seu herói, a coquete devidamente esculpida, o sex simbol, o 232


super-atleta, a viagem pelo glamour de Paris, as cataratas do Niágara, New York, com Frank Sinatra em fundo musical, etc. Promessas de felicidade... De outra parte, vivemos sob a égide do risco, mas na qualidade de sua antecipação ansiosa e na angústia do imprevisível: o trânsito, o avião transformado em projétil, o criminoso, a bala perdida, o car crash, o desemprego em função da transferência de uma planta industrial alemã para a Lituânia - tudo tão incerto e sem origem previsível, a ponto de justificar uma sociologia do risco, conforme ela aparece em Anthony Guiddens. Essas representações engendram um mundo que parece estar animado: o prazer e o infortúnio vêm de fora, como potências extra-humanas. Mas isto é, de certo modo, uma apropriação animista do mundo, a presença ou permanência de uma apropriação mágica da realidade; a firme expectativa de que sejamos, de algum modo, redimidos pelo fantástico, que nos acomete, de fora e por meio do consumo62 - que se realiza na esfera privada, e eventualmente na intimidade.

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(...) No entanto, a esse nível bastante superficial, é permitido arriscar a seguinte comparação: é o pensamento mágico que governa o consumo, é uma mentalidade sensível ao miraculoso que rege a vida quotidiana, é a mentalidade primitiva, no sentido de que foi definida como baseada na crença na onipotência dos pensamentos: no caso presente, trata-se na crença da onipotência dos sinais de felicidade. (BAUDRILLARD, 1975, p. 26) Contudo, o animismo, para ser efetivo, deve ser de uma natureza tal que requer o homem como algo anterior ao indivíduo, como nós o conhecemos na sociedade burguesa, pois ele implica um certo nível de indiferenciação para com a natureza. Questões: que tipo psicológico poderia apropriar-se do mundo animicamente? É possível referir-se a ele como individuado, do ponto de vista psicológico? E se ele for, de fato, esta fusão parcial com o mundo que o animismo implica, quais são as consequências? Mas, uma vez 234


ocorrido o primeiro ciclo reprodutivo deste tipo, não nos colocamos já na situação segundo a qual o real funda o homem como um proto-indivíduo, ao passo que este proto-indivíduo apercebe-se do mundo apenas como uma extensão anímica do seu corpo? O que é o animismo em uma sociedade tecnologicamente desenvolvida? O que tudo isso tem a ver com a forma na literatura, na pintura, com o cinema enquanto expressão artística, com o fotograma? Há uma relação necessária com o estilhaçamento cubista; com as formas fantásticas de Kafka; com a estrutura do tempo em Proust? Se a ordem do real fosse uma irrupção do inconsciente, se a maturidade fosse a infantilização enquanto processo, como deveríamos representar as imagens, o tempo e a linguagem? Pegue um jornal. Pegue a tesoura. Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar a seu poema. Recorte o artigo. Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco. 235


Agite suavemente. Tire em seguida cada pedaço um após o outro. Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco. O poema se parecerá com você. E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público. (Tristan Tzara) Em nossa época o simbolismo mais radical não seria exatamente uma exposição realista do mundo? A verdade do mundo não é sempre, em algum grau, a narrativa de seu absurdo? A arte em sua acepção moderna - não é exatamente aquilo que resiste ao inverídico da realidade e, portanto, em nossa época, não deve demonstrar que a totalidade é diretamente um processo de retalhamento e de junção arbitrária de elementos; um presente eterno, porque nenhuma memória está verdadeiramente carregada de afeto? O arbitrário dessa junção não demonstra que se encontra, recorrentemente, como resultado da extração aleatória de elementos, a relação das 236


coisas indiferentes entre si, mas materialmente ligadas por esta mesma indiferença? Não ocorre, ao fim, a prevalência absoluta e totalitária de um ordenamento, ainda que não se possa atribuir a ele qualidades humanas? Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a 237


experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano. Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem. A angustiante riqueza de ideias que se difundiu entre, ou melhor, sobre as pessoas, com a renovação da astrologia e da ioga, da Christian Science e da quiromancia, do vegetarismo e da gnose, da escolástica e do espiritualismo, é o reverso dessa miséria. Porque não é uma renovação autêntica que está em jogo, e sim uma galvanização. Pensemos nos esplêndidos quadros de Ensor, nos quais uma grande fantasmagoria enche as ruas 238


das metrópoles: pequeno-burgueses com fantasias canavalescas, máscaras disformes brancas de farinha, coroas de folha de estanho, rodopiam imprevisivelmente ao longo das ruas. Esses quadros são talvez a cópia da Renascença terrível e caótica na qual tantos depositam suas esperanças. Aqui se revela, com toda clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós? A horrível mixórdia de estilos e concepções do mundo do século passado mostrou-nos com tanta clareza aonde esses valores culturais podem nos conduzir, quando a experiência nos é subtraída, hipócrita ou sorrateiramente, que é hoje em dia uma prova de honradez confessar nossa pobreza. (BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia 239


e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 114-119. Sítio: Anti Valor – grifos meus) O colecionador All the physical and intellectual senses have been replaced by the simple alienation of all these senses, the sense of having (…) (MARX apud Benjamin, 1999, 209) I can, in practice, relate myself humanly to an object only if the object relates itself humanly to man. (MARX apud Benjamin, 1999, 209) The positive countertype of the collector which also, insofar as it entails the liberation of things from drudgery of being useful, represents the consummation of the collector - can be deduced from these words of Marx: “Private property has 240


made us so stupid and inert that an object is ours only when we have it, when it exists as capital for us, or when … we use it”. (MARX apud Benjamin, 1999, 209) O colecionador é um, de uma completa galeria de tipos, a saber, o trapeiro, o flâneur e o alegorista - e, em um sentido muito especial, o próprio revolucionário. Todos se vinculam por manterem em seu íntimo, como elemento constitutivo, o mesmo espírito que anima o colecionador, ou seja, a reunião das coisas na coleção - sejam elas materiais no sentido estrito, ou refiram-se a imagens, na qualidade de representação e figuração da coisa, mas também de sua presença. Agem estes tipos, em grande medida, como quem combate o tempo, retendo-o e condensando-o, por intermédio da cristalização, que a coleção implica. Este monumento que erigem contra o tempo - em sua formulação corrente e mecânica - traz para a existência um elemento de estranheza, que tem por fundamento exata e precisamente a representação da realidade como constelação de fragmentos, os quais, em sua 241


materialidade e realidade extremas, são uma denúncia da inverossimilhança daquela mesma realidade, mas já como prenúncio de um outro mundo possível. O colecionador pretende salvar as coisas da morte (do descaso e do abandono), reunindo-as e acolhendo-as, como quem aguarda que elas ressuscitem. Quer emprestar às coisas uma nova possibilidade de existência; um novo estar na história - para o que se cerca da história de cada elemento que reúne. Parece razoável supor que não o faz - no que é seguido pelos tipos que lhe correspondem - com um propósito racional, mas antes, e pelo contrário, é possuído por uma saudade melancólica, uma reminiscência lúdica63 da coisa64. Não se relaciona com ela, portanto, segundo sua funcionalidade, mas através de seu poder figurativo, no interior de um mundo lúdico e onírico. Em sua ânsia de reunir e de colecionar este tipo confere ao existente uma possibilidade de representar a si mesmo, não como aquilo que é idêntico, mas como tensão: nas figurações arcaicas e excêntricas que se associam à coleção (e àquilo 242


que é rememorado) o que se predicava como novo é atraído para sua própria face, que se lhe apresenta agora, igualmente, como decadência necessária e decrepitude65. Ocorre aqui, portanto, uma sucessão de choques, que opõem o existente a si mesmo, através de imagens alegóricas e dissonantes com a “época”, as quais conservam, à força, como determinação imanente à coleção, um espaço vazio entre aquele mesmo existente e o tempo em que “de fato” existe. A coleção é extemporânea e, exatamente devido ao fato de ter sido instituída como resistência à morte necessária dos objetos que a compõem, permanece no tempo como índice de estranhamento; um questionamento do presente e do fático, no exato momento em que estes se colocam. What is decisive in collection is that the object is detached from its all original functions in order to enter into the closest conceivable relation to things of the same kind. This relation is the diametric opposite of any utility, and falls into the 243


peculiar category of completeness. What is completeness? It is a grand attempt to overcome the wholly irrational character of the object’s mere presence at hand through its integration into a new, expressly devised historical system: the collection. And for the true collector, every single thing in this system becomes an encyclopedia of all knowledge of the epoch, the landscape, the industry, and the owner from which it comes. It is the deepest enchantment of the collector to enclose the particular item within a magic circle, where, as a last shudder runs through it (the shudder of being acquired), it turns to stone. Every thing, remembered, everything though, everything conscious becomes socle, frame, pedestal, seal of this possession. It must not be assumed that the collector, in particular, would find anything strange in the topos hyperouranios - that place beyond the heaven which for Plato, shelters the unchangeable archetypes of 244


things. He loses himself, assuredly. But he has the strength to pull himself up again by nothing more than straw; and from out the sea of fog that envelops his senses rises the newly acquired piece, like an island. - Collecting is a form of practical memory, and all of the profane manifestations of “nearness” is the most binding. Thus, in a certain sense, the smallest act of political reflection makes for an epoch in the antiques business. We construct here an alarm clock that rouses the kitsch of the previous century to “assembly”. (BENJAMIN, 1999, p. 204-205) O colecionador subtrai, portanto, a coisa sem uso da ordem do existente, onde remanesce de maneira inarticulada e aleatória, quando não diretamente relegada ao descaso e ao abandono, para integrá-la a um sistema ao qual ela se reúne como pertinência legítima. Esta operação, contudo, tem um preço, qual seja, a coisa salva da morte necessária é conservada eternamente jovem por meio de sua fixação, não como aquilo que para 245


no tempo, mas na condição do que é dele extraído. Sob este aspecto a coisa é elevada até àquela altura em que tudo se transforma, de algum modo, em objeto de culto. The collector actualizes latent archaic representations of property. These representations may in fact be connected with taboo, as the following remark indicates: “It … is … certain that taboo is the primitive form of property. At first emotively and “sincerely”, then as a routine of legal process, declaring something taboo would have constituted a title. To appropriate to oneself an object is to render it sacred and redoubtable to others; it is to make it ‘participate’ in oneself”. N. Guterman and H. Lefebvre, La Conscience mystifiée. (Paris, 1936), p. 228. (BENJAMIN, 1999, p. 209-210)

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Figura 18 - Melancholia (Albrecht Dürer, 1514) http://de.wikipedia.org/wiki/Bild:Melencolia_I.jpg 66

Na coleção existe, portanto, um vislumbre da eternidade, desde que se compreenda que ele é contíguo à própria noção do efêmero e do transitório, do prosaico e do profano. Na coleção o colecionador tanto se aproxima da morte - a ponto de vê-la imediatamente representada, e com sua exata face -, quanto dela se afasta, na medida em 247


que se mantém continuamente integrando novos itens àqueles anteriormente colecionados67. Seu amor do sistema é a superação da dispersão em que encontra o mundo, mas tanto quanto almeja uma organização, olha para ela como a propriedade que prenuncia a morte iminente, através da fossilização tendencial do que é colecionado. Esta tensão o obriga a manter o sistema aberto, incluindo recorrentemente novos itens, que afastam para um futuro próximo a morte que o espreita, com o próprio olho da coleção (que estando reunida se encontra, de princípio, sob o signo da desintegração, da volta ao indiferenciado). Este impulso recorrente de volta à coisa aproxima o colecionador do alegorista - tanto quanto do flâneur, que coleciona imagens da cidade. Perhaps the most deeply hidden motive of the person who collects can be described this way: he takes up a struggle against dispersion. Right from the start, the great collector is struck by the confusion, by the scatter, in which things of the world are 248


found. It is the same spectacle that so preoccupied the men of Baroque; in particular, the world image of allegorist cannot be explained apart from the passionate, distraught concern with this spectacle. The allegorist is, as it were, the polar opposite of the collector. He has given up the attempt to elucidate things through research into their property and relations. He dislodges things from their context and, from the outset, relies on his profundity to illuminate their meaning. The collector, by contrast, brings together what belongs together; by keeping in mind their affinities and their succession in time, he can eventually furnish information about his objects. Nevertheless - and this more important than all differences that may exist between them - in every collector hides an allegorist, and in every allegorist a collector. As far as the collector is concerned, his collection is never complete; for let him discover just a single 249


piece missing, and everything he’s collected remains a patchwork, which is what things are for allegory from the beginning. O the other hand, the allegorist - for whom objects represent only key words in a secret dictionary, which will make known their meanings to the initiated - precisely the allegorist can never have enough of things. With him, one thing is so little capable of taking the place of another that no possible reflections suffices to foresee what meaning his profundity might lay claim for each one of them. (BENJAMIN, 1999, p. 211) A razão pela qual a coleção se impõe como algo distinto do existente, em que pese sua materialidade e sua presença, consiste do fato de que não ela não se compõe como um salto do colecionador em direção a seus objetos, mas por meio da irrupção contínua destes na vida daquele que coleciona. O colecionador não vai ao passado, mas, em sentido completamente oposto, injeta 250


sangue no passado, para que ele tenha uma vida efetiva no presente. Na coleção, esse mesmo passado redivivo, assume não apenas seu caráter mágico e lúdico, mas igualmente seus poderes aterradores e sombrios; sua energia de combate para opor-se ao existente como mineralização. The true method of making things present is to represent them in our space (not represent ourselves in their space). (The collector does just this, and so does the anecdote). Thus represented, the things allow no mediating construction from out “large context”. The same method applies, in essence, to the consideration of great things from the past - the cathedral of Chartes, the temple of Pestum - when, that is, a favorable prospect presents itself: the method of receiving the things into our space. We don’t displace our being into theirs; they step into our life. (BENJAMIN, 1999, p. 206) É exatamente neste ponto que o revolucionário, como tipo, se aproxima do 251


colecionador. A revolução ocorre como uma ruptura com o contínuo da história, ou ainda, através da superação do tempo mecânico pela irrupção do tempo messiânico, que corresponde, à sua vez, a uma saturação do próprio tempo, que passa a se ver inundado com tudo aquilo que a história - como as classes dominantes a tem concebido -, se recusou a carregar: seus dejetos e rejeitos, imagens arcaicas; ruínas. A obra do historicismo, que procura relegar ao irresgatável e ao completamente sombrio, toda a barbárie de que a história sempre esteve grávida, é, por este recurso, suplantada, tornando irresistível a inflexão do tempo sobre si mesmo, como um espasmo, de que deve advir não o futuro como o completamente novo, mas o total reordenamento do tempo, segundo os requerimentos e necessidades dos deserdados de todas as épocas. Esta saturação da história com as representações que ela mesma havia denegado ocorre pela ação do sujeito revolucionário68, que mobiliza o passado - e todo ele - para os propósitos do presente, qual seja, o de explodir a recorrência do igual sobre si 252


mesmo, processo com base no qual a ordem se eterniza. “Precisamos da história, mas não como precisam dela os ociosos que passeiam no jardim da ciência.” Nietzsche, Vantagens e desvantagens da história para a vida O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe combatente e oprimida. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como a classe vingadora que consuma a tarefa de libertação em nome das gerações de derrotados. Essa consciência, reativada durante algum tempo no movimento espartaquista, foi sempre inaceitável para a socialdemocrata. Em três decênios, ela quase conseguiu extinguir o nome de Blanqui, cujo eco abalara o século passado. Preferiu atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. Com 253


isso, ela a privou das suas melhores forças. A classe operária desaprendeu nessa escola tanto o ódio como o espírito de sacrifício. Porque um e outro se alimentam da imagem dos antepassados escravizados, e não dos descendentes liberados., (BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232. - nota 13) A explosão do contínuo da história decorre, igual e complementarmente, do fato segundo o qual uma época levada a refletir-se, ou seja, colocada frente a frente com sua “face”, causa horror a si mesma, ao perceber-se também como sombra. Este terror, contudo, é duplo, pois a coisa que causa horror a si mesma é, ao mesmo tempo, o homem que se olha com terror: artífice da barbárie que, agora, reconhece em toda sua extensão, na história como tempo saturado. O 254


homem desperto de seu sono dogmático não pode deixar de se ver com desespero, pois se reconhece não como a figura que eternamente se redime no novo Adão, mas como perpetrador inconsciente, e por isso mesmo eternamente reincidente, de toda a sorte de crimes que imaginava haver expiado e resgatado. Uma Gravura Fantástica Este espectro invulgar tem apenas por traje, A ornar-lhe a fronte nua qual grotesco ultraje, Um medonho diadema herdado ao carnaval. Sem espora ou chicote, ele instiga o animal, Como ele a um tempo apocalíptico e esquelético, A espumar pelas ventas como um epiléptico. 255


Cavalgam ambos rumo às cúpulas do espaço, Calcando o azul do céu com temerário passo. O cavaleiro brande um sabre que resplende Sobre as turbas sem nome que o corcel ofende, E a sós percorre, como um rei que o lar visite, O imenso e frio cemitério sem limite, Onde repousa, à luz de um sol pálido e terno, Quanto povo existiu, desde o antigo ao moderno.(As Flores do Mal. Charles Boudelaire) A revolução, portanto, é um flash, uma intromissão do absoluto no efêmero, o momento 256


do reconhecimento da unidade entre o elevado e o abissal; o numinoso e o sombrio: a história não como culminação no presente, mas como necessidade de superação do presente. Compreensão total e irrecusável, portanto, da necessidade da transformação. O revolucionário não perde esta oportunidade, seja porque ela é a realização de seu trabalho, seja porque se aproveita do momento para seus fins, fixando-o: 16. O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz “era uma vez”. Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história. 257


(BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987)

Figura 19 - A Loucura (Angelo Bronzino) http://br.wikipedia.org/wiki/Angelo_Bronzino

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Domingo no parque Um show como mera diversão; a música como adereço do passeio, domingo promessa de redenção: o enfadonho pinta a paisagem, com cores cintilantes roubadas a um painel néon de antigamente - todo verde do parque não é mais do que a queda abissal em um propósito. O existente, enquanto ainda respira, já é uma mutilação; forma degradada e amorfa do desejo, daquele que ainda não descobriu que a vida o excede. Neste espelho, em que o mundo se omite, revelam-se (develop) as faces cujos traços passeiam nos fotogramas de um filme - seu destino final é a sessão da tarde, de que o domingo não é mais que uma extensão inconsciente. Toda surpresa é a realização de uma expectativa de cartão de felicitações; e o espontâneo, a natureza oculta do desde sempre programado, o estritamente esquemático: uma sonolência que exauriu a memória. O firmamento é mais exuberante quando visto da prisão. Nisto se baseia a propaganda, com mãos tão firmes quanto a morte que um dia há de nos 259


alcançar (e a morte, diferentemente da vida, não é pródiga). Somente na liberdade do tempo livre e sem propósito se vê, nem tão ao longe, o mundo em todas as suas cores e detalhes, mas já como a execução de uma pena de degredo: as possibilidades como uma constrição e contração; o infinito como círculos recorrentes sobre si mesmos; tanto mais delgados quanto mais se impõem representar no estritamente limitado, toda a vastidão do amplo.

Figura 20 - Christ's Entry into Brussels in 1889 (James Ensor) http://www.all-art.org/art_20th_century/ensor1.html

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No parque, dificilmente o parque se distingue de uma pantomima macabra, ainda que seja apenas a exteriorização despreocupada, de toda a seriedade da semana: segunda-feira repleta de dobras suínas e horas adicionais, passeando em seu moletom; terça se exasperando de bicicleta, a ponto de atropelar em sua fúria de diversão aqueles pequenos cogumelos cebeçudos, de que as crianças não são mais do que representação intolerável; quarta levando os cachorros a se exercitar, por entre excrementos de muitas eras; quinta descansando o esqueleto sobre um banco entardecido; sexta depurando seus vômitos e excessos, como que se estivesse cumprindo um ritual, em benefício de um ídolo decrépito; sábado escancarando a janela da sala, para qual o sol é uma lâmpada imensa, que se compra em anúncios imobiliários. Esses dias cálidos, ninados pelo ranger pálido dos patinetes - que a moda vez por outra reinventa - e pelos brinquedos esquizóides que nos subtraem as crianças, são a forma iconográfica e o portal, por meio dos quais, se acessa o mundo como realidade espectral, e a vida como um baile de fantasmas; um festim dedicado a esgotar aquilo 261


que respira na rigidez mineralizada não das pedras, mas dos rostos autoesculpidos em esfinges. A vida, na pedra, é a dureza como realização; nas faces, sua evasão, até que reste apenas uma imagem vazia, como aquela casa de que partimos quando ainda crianças de colo, e cuja memória não é mais do que a fé no que nos dizem. O parque, portanto, em toda sua exuberância é muito mais autêntico segundo uma lógica de cemitério: é um índice do que já houve; memória do que poderíamos ter sido; cava dos sonhos, que só nos aparecem como tormento diante do desvio, que se converteu em estrada principal - túmulo em que o humano já completamente desterrado assume os contornos holográficos, que o marketing projeta nos jornais e nas TVs. Nisso tudo, o sorriso não é mais do que uma contração facial dolorosa, uma deformação que universalizou a alegria como valor, mas apenas para afirmar a concepção segundo a qual o bom e o ruim; o elevado e o diretamente rebaixado são, nesta pantomima enlouquecida, reciprocamente indiferentes, uma

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vez que aquilo que os distingue existiria apenas no que já encontramos morto.

Figura 21 - Morangos Silvestres (Ingmar Bergman, 1957) http://br.youtube.com/watch?v=3O01zxTTrQY

No primeiro romance burguês, o amor era a tensão problemática entre a auto-expressão e a auto-conservação e, portanto, uma fórmula demandando resolução e movimento. Quando, contudo, a auto-expressão é imediatamente um engodo e uma operação externa, ventriloquia, a auto-conservação passa a ser a fórmula vazia do amor, de maneira que todo herói romântico é uma farsa e, todo relacionamento, um beijo amargo, em uma orgia de bordel. Talvez por isso, nas calçadas por que passo, vejo flores vermelhas como vômitos; anéis de dedos amputados; fantasias defecadas, como ornamento aéreo dos 263


passeios, e as prostitutas sorrindo como em um afresco angelical do Vaticano: há de fato uma santidade nesta forma evidentemente perversa e desesperada; resta nela um pequeno aposento, uma fração do ser, por minúsculo que seja, em que o sexo é uma gratuidade e uma alcova, em lugar de ser um reclamo histérico de auto-elogio69. As bocas que se beijam têm o gosto metálico da morte: elas são uma porta como uma lança, que perpassa o outro, que reunido a cada um de nós, não existe senão para afirmar a foto emoldurada que se vê suspensa, como em um cadafalso. Segundo esta fórmula, a um tempo completamente arcaica e sinistramente contemporânea, todo amor, na justa medida de sua completa carnalidade, é um platonismo: amor da imagem, como devastação do olho.

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Figura 22 - Un Chien Andalou (Luis Buñuel, Salvador Dali) Montagem http://br.youtube.com/watch?v=eU3QwnfSn2s

Na modernidade todo o combate é injusto, porque a vitória é apenas a superimposição de meios descomunais relativamente à fragilidade do corpo, do psiquismo e da capacidade simbólica do homem. Os parques que vejo e que represento não têm lugar para o trágico ou para o amor e suas potências flamejantes. Neles cabem apenas o imenso poder destrutivo da impessoalidade, como vínculo ameno e conveniente. Nisto, todo o parque é uma recusa de seu espírito e todo amor a forma fria de um encontro cadavérico.

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Figura 23 - Salvador Dali

Bárbaro da cultura Não sou e jamais serei um erudito; falta-me para isso o devido capital cultural. A erudição requer um contato contínuo, osmótico, presencial, quotidiano, regular, com a cultura; o tê-la sempre 266


presente na sala de jantar, dormir com ela. O erudito recebe a cultura ainda na infância, juntamente com todos os símbolos distintivos de sua estirpe. Tem para com ela intimidade; eventualmente vai ao banheiro com ela; estabelece-se, portanto, um vínculo natural e fluente; uma prosa mansa, como quem discorre sobre os gregos, na firme convicção de um relacionamento arcaico. Há, na erudição, muito pouca surpresa: é o sexo intenso, mas regular; paixão comedida; elevação de avião; a primeira classe. A cultura é igualmente um código, regras de boas maneiras, noções de pertinência; uma etiqueta, por meio do qual se estabelecem os domínios do legítimo e do possível. O erudito domina este código; tem as mãos macias, a fala doce, a benignidade dos gestos entardecidos, em que se reúnem aqueles cuja condição social coloca, em um mesmo lugar e tempo, palavras com tamanha animosidade recíproca: ócio e respeitabilidade. A erudição autêntica é uma condição efetivamente aristocrática; não se oferece, não se compra ou adquire; ela é a síntese individual da totalidade de um meio, de relações 267


de pertinência; é um bom tom que advém do hábito, do convívio; que se inscreve no corpo, de tal modo que é uma espontaneidade, uma gratuidade, que é em sua essência pré-discursiva. Quem faz da erudição um programa torna-se, portanto, com muita facilidade, um afetado, um diletante, um doente dos nervos; cheio de esquisitices e manias, pois se vê na obrigação de realizar com esforço descomunal e individual, aquilo que é uma potência social. A erudição como meta é uma vontade de aceitação, de ascensão social; um querer ser reconhecido como par; como um igual – um burguês enobrecido, uma nobreza de toga -, mas sendo ainda pródigo em excessos parnasianos, em firulas e devaneios; a tergiversação como uma tática e a elipse como linguagem. Por muito tempo, contudo, eu mesmo quis ser um erudito, mas minha inclinação neste sentido era fruto de um erro e de um desconhecimento, pois como alternativa aos eruditos, só conseguia conceber os desiludidos da cultura, seus órfãos. Não conseguia imaginar, ainda, a necessidade dos 268


bárbaros da cultura; essa gente de mão grossa, sem receios ou cerimônias; sem meias palavras e, portanto, amigos das palavras, quando elas ainda estavam vivas. Pessoas capazes de grossuras e grosserias, perpetradores de impropriedades, de perguntas absurdas; amantes da aventura e do ar livre, saltimbancos e salteadores. Percebi, só muito recentemente, que o erudito e o bárbaro têm, com relação à cultura, legitimidades de natureza completamente distintas, mas complementares: um zela por sua integridade; o outro lhe propõe licenciosidades; um a quer em toda a grandiosidade de sua beleza; o outro a quer desarvorada, como que acabou de fazer sexo; um demanda sua sobriedade, outro seu riso; um a convida à contenção, o outro lhe deseja a gravidez. O erudito é o testamenteiro da cultura; o bárbaro morreria dela, como em uma overdose de vida. Nesta necessidade recíproca; nestas distintas legitimidades, a cultura afirma toda sua potência, requerendo mais do ser humano que sua existência concreta e determinada pode oferecer. Sou com todo o prazer um bárbaro da cultura, mas sei que não lhe basto. Meu amor da cultura é a 269


liberdade do erro por exuberância da vida; a forma em toda sua impropriedade e inconveniência, como quem anuncia uma necessidade elementar que ainda não se descobriu; o muito rir na intimidade nua, que verte o tempo no prazer. Na cultura, sou uma jura; um braço estendido sobre o precipício; um destemido e um indômito, porque estou em conformidade comigo. Atravessa-se em sobressalto, o que os ocultistas chamam de paisagens perigosas. Meus passos suscitam monstros que espreitam; eles não estão ainda muito mal-intencionados a meu respeito, e não estou perdido, pois os temo. Eis “os elefantes com cabeça de mulher e os leões voadores” que Soupault e eu ainda há pouco tremíamos de medo de encontrar, eis o “peixe solúvel” que ainda me assusta um pouco. PEIXE SOLÚVEL, não serei eu o peixe solúvel, nasci sob o signo de Peixes e o homem é solúvel em seu pensamento! A fauna e a flora do surrealismo são inconfessáveis. 270


(BRETON André, Surrealismo, 1924)

Manifesto

do

A complementaridade entre o erudito e o bárbaro da cultura é, contudo, o enunciado de uma tensão, pois, para o primeiro, a história existe como aquilo que antecede ao presente, ao passo que para o segundo a ela resta eternamente por descobrir. Sob o ponto de vista do bárbaro, portanto, o amor da cultura do erudito é igualmente necrofilia. Reside exatamente aqui, contudo, o terrível perigo para a vida do bárbaro e a possibilidade recorrente de uma barbárie negativa e unilateralmente destrutiva: como o pequeno homem moderno só chega à alta cultura quando ela já está morta, tende a desforrar-se dela com fúria de piro maníaco, de tal modo que incendeia continuamente o mundo, na esperança de redimi-lo e purificá-lo de sua pestilência. Esses são os exatos termos do problema, ou seja, a cultura que se imagina dada e inatingível - e que supostamente se revelaria apenas aos eruditos, em seus procedimentos de dissecação - é continuamente recriada como potência viva. A 271


tradição, contudo, que a sandice fascista incendiou em praça pública - ato que a contemporaneidade incorporou como elemento dinâmico da própria cultura, atualizando-o continuamente -, precisa ser salva para os fins da cultura e civilização, não pelos tradicionalistas, mas pelos justamente pelos revolucionários e para os propósitos da revolução. O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas para no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz “era uma vez”. Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história. O historicismo culmina legitimamente na história universal. Em seu método, a 272


historiografia materialista se distancia dela talvez mais radicalmente que de qualquer outra. A história universal não tem qualquer armação teórica. Seu procedimento é aditivo. Ela utiliza a massa dos fatos, para com eles preencher o tempo homogêneo e vazio. Ao contrário, a historiografia marxista tem em sua base um princípio construtivo. Pensar não inclui apenas o movimento das ideias, mas também sua imobilização. Quando o pensamento para, bruscamente, numa configuração saturada de tensões, ele lhes comunica um choque, através do qual essa configuração se cristaliza enquanto mônada. O materialista histórico só se aproxima de um objeto histórico quando o confronta enquanto mônada. Nessa estrutura, ele reconhece o sinal de uma imobilização messiânica dos acontecimentos, ou, dito de outro modo, de uma oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido. Ele aproveita essa oportunidade para extrair 273


uma época determinada do curso homogêneo da história; do mesmo modo, ele extrai da época uma vida determinada e, da obra composta durante essa vida, uma obra determinada. Seu método resulta em que na obra o conjunto da obra, no conjunto da obra a época e na época a totalidade do processo histórico são preservados e transcendidos. O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas. (Sobre o conceito da história. Ensaio obtido em Walter Benjamin -– Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232.)

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Misticismo O sol rasga o céu: adagas incandescentes, delgadas como um calafrio, arremetem contra a noite70. A manhã, trajada em vivacidade de passaredo, rouba o véu prata, com que o mundo se vestia. Acordo de um sonho vazio; diante de mim o verdume: tinha que ser assim em um mundo programado. O cataclismo não poderia se resolver nas formas irregulares e agudas da destruição e do caos, que são igualmente uma promessa de liberdade e renascimento. O desastre tomou, então, a forma do gramado infinito: uma ordem oca, como o ainda subliminarmente natural. Mas o reverso da beleza esquemática e sôfrega da superfície é um cemitério sem fronteiras. Porque absurdos da ordem de Hiroshima não haveriam de libertar energia suficiente para, ao final, produzir um mundo irremediavelmente plano? Neste mundo informe restam silêncio e sementes, e o altamente improvável da semeadura é um beijo na liberdade: é necessário que tudo se veja dependente de uma ínfima probabilidade, pois a vida deve desejar a vida, sendo ela, nisso, 275


apenas o infinito espocar do efêmero no eterno71. Neste não terminar do tempo, deveríamos ser não mais do que um abraço, um sopro e um halo, com os quais se trama a tessitura daquela imensa obra, que alucinamos em uma palavra: DEUS.72 Raramente nos ocorre pensar que o denso e o rígido nascem do imaterial e que a impenetrabilidade não é uma propriedade do que é duro, mas decorre do entrelaçamento de infinitas redes de conexões, que ligam uma miríade de pontos, os quais, em si mesmos, não ocupam qualquer dimensão espacial73. O existente é uma textura, de que o texto quer ser uma representação: Tecendo a manhã Um galo sozinho não tece a manhã; ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele 276


e o lance a outro: de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros se cruzem os fios do sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde um teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos. João Cabral de Melo Neto E mesmo que a semeadura seja negada, ainda que não a compreendam, é preferível dissipar-se na forma de um afago impossível a aprisionar a existência no sarcófago pestilento e rico a que nos 277


convidam. A compreensão é um apascentamento que não se deve a prevalecermos, mas ao valor segundo o qual a vida é a medida – a filosofia deve conduzir-nos a sermos simpáticos à vida. Naquilo que faço, portanto, não procuro ser mais nem maior que o mundo. Desejo apenas os abraços que nos negam e a hospitalidade que nos recusam. Anseio pela substância daquele sonho que dizem que compartilhamos, quando o mundo não era mais do que uma barriga. Quero o poder imenso desta imagem, exatamente porque a reconheço como aquilo que ainda é uma mentira: para que vida ame a vida, é preciso que o mundo seja fraterno74. Almejo, portanto, ser programaticamente artificial e meramente provável como a cultura, pois neste mundo humano e precário está contida toda possibilidade de redenção: a salvação é uma potência estritamente laica. Progresso e ruína A ciência burguesa tem por meta a verdade, ou seja, o enunciado canônico, que se obtém ao preço do sacrifício da vida do objeto, reduzido que foi a 278


suas sombras abstratas. Sua base está no mito, na medida em que acredita, ainda que negue em seus devaneios epistemológicos, poder atingir a verdade da coisa, como realidade sensível, e não como elemento da cultura - produto precário, probabilístico, cuja existência, para o homem, ocorre no interior da história, com fundamento no desenvolvimento da linguagem. Quando, no drama trágico, a história migra para o cenário da ação, ela fá-lo sob a forma de escrita. A palavra “história” está gravada no rosto da natureza com os caracteres da transitoriedade. A fisionomia alegórica da história natural, que o drama trágico coloca em cena, está realmente presente na forma da ruína. Com ela, a história transferiu-se de forma sensível para o palco. Assim configurada, a história não se revela como processo de uma vida eterna, mas antes como o progredir de um inevitável declínio. Com isso, a alegoria coloca-se declaradamente para além da beleza. As alegorias são, no 279


reino dos pensamentos, o que as ruínas são no reino das coisas. (BENJAMIN, 2004, p. 192-193) A história, contudo, diverge do historicismo, ou seja, de uma concepção linear do tempo que, a rigor, é autoelogio, ou seja, valoração positiva do presente, como razão ascendente de todo o passado. Sob a perspectiva dos derrotados o presente é um amontoado de ruínas75, em que se sobressaem as formas assombradas de tudo aquilo que é material, e por meio justamente de sua perfectibilidade e realidade. Não se trata, portanto, de desvelar o que está oculto ou escondido, mas de plasmar a imagem objetiva, material, que cada monumento da cultura tem para os derrotados e preteridos. A alegoria e a imagem alegórica não são apenas figura de linguagem e figuração, um recurso estilístico, mas abordagem que desvela o real naquilo que tem de tenso e inverossímil. A perspectiva que surpreende a realidade em sua falsidade constitutiva tem uma origem ótica: o olhar da revolução. 280


“A Origem é o Alvo.” Karl Kraus, Palavras em verso A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras”. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de “agoras”, que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx. A consciência de fazer explodir o continuum da história é própria às classes 281


revolucionárias no momento da ação. A Grande Revolução introduziu um novo calendário. O dia com o qual começa um novo calendário funciona como um acelerador histórico. No fundo, é o mesmo dia que retorna sempre sob a forma dos dias feriados, que são os dias da reminiscência. Assim, os calendários não marcam o tempo do mesmo modo que os relógios. Eles são monumentos de uma consciência histórica da qual não parece mais haver na Europa, há cem anos, o mínimo vestígio. A Revolução de julho registrou ainda um incidente em que essa consciência se manifestou. Terminado o primeiro dia de combate, verificou-se que em vários bairros de Paris, independentes uns dos outros e na mesma hora, foram disparados tiros contra os relógios localizados nas torres. Uma testemunha ocular, que talvez deva à rima a sua intuição profética, escreveu:

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“Qui le croirait! on dit qu’irrités contre l’heure De nouveaux Josués, au pied de chaque tour, Tiraient sur les cadrans pour arrêter le jour.” As ruínas não são, contudo, o que já foi, mas o precisamente agora. A desolação da paisagem, a devastação e o deserto, o árido e o estéril; o inóspito estão aqui como realidade palpável, material, tangível. Que não as vejamos demonstra não a inexistência dos escombros, mas o fato de que nossos olhos foram vazados pela adaga do tempo. Somos incapazes de história, justamente porque organizados segundo a forma discursiva do romance, para o qual tudo o que foi posto na história se redime no desenvolvimento. Aquilo que denominamos realidade, contudo, é um sonho. O revolucionário, tanto quanto o alegorista e o colecionador, ao olhar para o passado o vê não em sua identidade e unidade absolutos, na realização 283


em que se apresenta já morto, mas através de sua tensão constitutiva, ou seja, como realidade viva e contraditória, que respira, mesmo que esteja desfalecida sob os escombros do tempo. Confere, portanto, em sua ação e intelecção, um sopro vital que coloca em pé, novamente, todas as forças que se supunham mortas, fazendo-as trabalhar por novas possibilidades de presença e representação, que venham a redimir não apenas o agora - e, portanto, os homens desta época determinada mas, igualmente, tudo aquilo que já era dado como perdido e enterrado. O revolucionário, portanto, cruza o tempo, para demonstrar o irreal da naturalidade que a ordem se atribui, mostrando não apenas sua origem na história, mas seu progresso como sendo, igualmente, degradação e decadência.

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Figura 24 - Guernica bombardeada http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Gernika2.jpg http://www.eyewitnesstohistory.com/guernica.htm http://www.timesonline.co.uk/tol/news/world/europe/article709301.ece

Sob este aspecto, o revolucionário não age com quem pretende estabelecer uma negociação entre o futuro e o presente, de tal modo que advenha deste tempo ainda imaterial uma promessa de redenção. Mantém, ao contrário, os olhos fixos sobre o passado, porque só pode salvar a si mesmo se libertar todo o cortejo de 285


desgraçados da história. A revolução, portanto, não é apenas uma sociedade nova, mas uma nova qualidade de tempo. O procedimento abstrato On “the exploitation of nature” (...): such exploitation was not always regarded as the basis of human labor. To Nietzsche, it quite rightly seemed worthy of remark that Descartes was the first philosophical physicist who “compared the discoveries of scientists to a military campaign waged against nature”. (…) (BENJAMIN, 1999, 369) A abordagem meramente intelectual do objeto não acrescenta verdade à sua existência, ainda que o torne produtivo e funcional. A rigor, as operações e procedimentos abstratos, tanto quanto nos aproximam de um certo conhecimento da coisa, dela nos afastam, posto que são, ao mesmo tempo, violência contra ela: o saber como mortificação e fossilização; a apropriação como extração do objeto de sua unidade com o mundo, 286


o abandono da estrutura viva e concreta, em que se desenrolava sua existência. O pensamento abstrato - não dialético - está obrigado a seguir este percurso e não pode iniciar a apropriação da coisa de outro modo: a abordagem abstrata e racionalista, o método científico naquilo que tem de rigor e determinações canônicas, não é apenas uma opção entre outras, mas a forma através da qual o progresso se enuncia e autoanalisa. O método científico não se destina à apropriação da realidade, mas a sua instituição como sonho76 (razão pela qual, em grande medida, “The reform of consciousness consists solely in... the awakening of the world from its dream about itself. (letter from Marx to Huge; Kreuzenach, September 1843) apud (BENJAMIN, 1999, p. 456) O conhecimento como nós o concebemos, como saber científico, é também uma estratégia 77, ou seja, a aproximação da coisa segundo uma formação militar; redução pela força, mesmo quando não se usa da violência. Na ciência a história é igualmente e necessariamente paleontologia, pois atinge a coisa como aquilo que 287


já está morto. A predição, então, é correlatamente uma mecânica; extrapolação da interpolação; o futuro segundo a cláusula ceteris paribus. No mundo em que a certeza é divinizada, ainda que com os afagos e louvores que se dedica à puta que se nega e se idolatra; a que se entrega na convicção do domínio - a probabilidade é apenas um ardil por meio do qual se introduz aquilo que é determinado e ocluso. A incerteza resta, portanto, como os véus sobre o sexo da odalisca, de tal modo que tanto mais ela é enunciada, tanto mais o olho se orienta para além dela. Na condição de forma histórica, de elemento no desenvolvimento cultural, a ciência é, contudo, mais do que um puro isto: é uma relação tensa e necessária com o mito. A ciência, nesse sentido, é um programa e uma utopia, cujo fundamento é a edificação de uma apropriação não mítica do mundo. Na consubstanciação desta meta o método adquiriu uma importância absolutamente singular, pois se esperou que dele e de seu formalismo emergisse o conhecimento em sua absoluta pureza, descontaminado da imersão nas 288


fontes do irracional e de todo sensualismo. Não é em absoluto acidental, portanto, que nessa ânsia de especificar e de organizar, de enunciar, o método se desenvolvesse, a rigor, como uma estrutura linguística específica, um idioma universal, cuja sintaxe é o aspecto formal de uma aridez constitutiva; manifestação cultural de uma utopia inumana. Esperava-se que desta prática metodológica78 surgisse a verdade do objeto, sua apropriação e reconstrução, por meio de operações formais e racionais, através das quais ele fosse efetivamente explicado e descrito, ou seja, revelado e desnudado em sua existência e desenvolvimento, completamente apartado das expectativas e intenções do sujeito que conhece. Esta disjunção entre sujeito e objeto, no que se oferecem reciprocamente como entes autônomos, ainda que animada pelo mais evidente do senso comum, mesmo ela, não é de todo evidente, contudo, quer à especulação filosófica, quer ao desenvolvimento científico contemporâneo, especialmente no campo da física. No entanto, para todos os efeitos 289


práticos, para os requerimentos da pesquisa acadêmica, conforme ela se orienta a partir das salas dos professores e das regras de submissão dos projetos de financiamento, bolsas de estudo, etc. o mundo é rigorosamente newtoniano. É curioso, no entanto, que o método científico, ainda que tendo definido com todo acuidade seu operar interno, de modo a evitar inconsistências e extravagâncias que superem a ordem precisa do racional e do empírico – definindo, portanto, o território daquilo que é comparável e replicável – parta de supostos que, rigorosamente, não se pode confirmar. Há, portanto, antecedentes do método que nos conduzem ao mundo, segundo representações que não lhe são necessariamente inerentes, ainda que sejam efetivamente realidades culturais e históricas. Supomos como pertinentes ao objeto e ao mundo exatamente aqueles elementos formais, que são imanentes ao estágio de desenvolvimento de nossa organização intelectual, que, à sua vez, é uma grandeza histórica, e não um ordenamento abstrato e natural do psiquismo humano como tal. 290


(...) Não existe, a rigor, uma ciência “sem pressupostos”, o pensamento de uma tal ciência é impensável, paralógico: deve haver antes uma filosofia, uma “fé”, para que a ciência dela extraia uma direção, um sentido, um limite, um método, um direito à existência. (Quem entende o contrário, quem, por exemplo, se dispõe a colocar a filosofia “sobre base estritamente científica”, precisa antes colocar não só a filosofia, mas também a verdade de cabeça para baixo: a pior ofensa ao decoro que se poderia cometer com duas damas tão respeitáveis!) (NIETZSCHE, 1988, p. 172) (ver § 344, Gaia Ciência) Deste modo, damos como autoevidentes as relações de causalidade, a linearidade do tempo, o desenvolvimento como evolução; a história como progresso. Supomos, acima de tudo, um sentido intrínseco ao movimento, tanto o natural quanto o cultural, que caberia à ciência, e exclusivamente a ela, capturar e revelar. Postula-se, portanto, que a coisa e o mundo possuem um ordenamento, uma 291


organização teleológica; racionalidade e regularidade; sentido. Aquilo se supõe ser a realidade do objeto talvez seja, contudo, não mais do que sua antropomorfização: Causa e efeito - “Explicação”, dizemos; mas é “descrição” o que nos distingue dos estágios anteriores do conhecimento e da ciência. Nós descrevemos melhor - e explicamos tão pouco quanto aqueles que nos precederam. Descobrimos múltiplas sucessões, ali onde o homem e o pesquisador ingênuo de culturas anteriores via apenas duas coisas, “causa” e “efeito”, como se diz; aperfeiçoamos a imagem do devir, mas não fomos além dessa imagem, não vimos o que está por trás dela. Em cada caso, a série de “causas” se apresenta muito mais completa diante de nós, e podemos inferir: tal e tal coisa têm de suceder antes para que venha essa outra - mas nada compreendemos com isso. Em todo devir químico, por exemplo, a qualidade 292


aparece como um “milagre”, agora como antes, e assim também todo deslocamento; ninguém “explicou” o empurrão. E como poderíamos explicar? Operamos somente com coisas que não existem, com linhas, superfícies, corpos, átomos, tempos divisíveis, espaços divisíveis - como pode ser possível explicação, se primeiro tornamos tudo imagem, nossa imagem! Basta considerar a ciência a humanização mais fiel possível das coisas, aprendemos a nos descrever de modo cada mais preciso, ao descrever as coisas e sua sucessão. Causa e efeito: essa dualidade não existe provavelmente jamais - na verdade, temos diante de nós um continuum, do qual isolamos algumas partes; assim como percebemos um movimento apenas como pontos isolados, isto é, não o vemos propriamente, mas o inferimos. A forma súbita com que muitos efeitos se destacam nos confunde; mas é uma subtaneidade que existe apenas para nós. Neste segundo de subtaneidade há 293


um número infindável de processos que nos escapam. Um intelecto que visse causa e efeito como um continuum, e não, à nossa maneira, como arbitrário esfacelamento e divisão, que enxergasse o fluxo do acontecer - rejeitaria a noção de causa e efeito e negaria qualquer condicionalidade. (NIETZSCHE, 2005, p. 140) Ao assumimos os pressupostos historicamente necessários de nosso pensamento – o sentido e a regularidade, a causalidade, a mecanicidade newtoniana –, como propriedade das coisas, edificamos, por consequência, uma apropriação mágica, irrealista do real, ainda que ela se ofereça a nós apenas na qualidade da mais elevada objetividade. Dá-se assim o grande salto: existiria uma verdade que emana do objeto ele mesmo, a qual é revelada pela ciência, não como elemento da cultura, mas como decifração imediata daquilo que se conhece. Nessa operação, contudo, a ciência, que se erigiu em oposição ao mito, mitifica-se: deixa de ser irremediavelmente 294


humana, para ser revelação, linguagem do objeto segundo o próprio objeto, reduzindo-se o homem a recipiente vazio e passivo. A ciência, portanto, que pretendeu libertar o homem de Deus, de sua condição de menoridade perpétua, submete-o a uma outra natureza de sujeição: a objetividade científica, como forma suprema de conhecimento e verdade canônica. A ciência como mito é o progresso, a convicção firme não apenas de uma evolução, mas de uma ascensão contínua, que nos leva do proto-humano ao super-humano – não, contudo, como o processo que nos humaniza, mas que nos converte em realidade maquinal, sujeitando-nos àquilo que há de eterno na máquina, o repetir-se indefinidamente. Procurando as raízes, os fundamentos metodológicos de tal incompreensão catastrófica, que contribuiu para a derrota do movimento operário alemão em 1913, Benjamin ataca a ideologia do progresso em todos os seus componentes: o evolucionismo darwinista, o determinismo de tipo científico-natural, o otimismo cego 295


— dogma da vitória "inevitável" do partido — e a convicção de "nadar no sentido da corrente" (o desenvolvimento técnico). Em uma palavra, a crença confortável em um progresso automático, contínuo, infinito, fundado na acumulação quantitativa, no desenvolvimento das forças produtivas e no crescimento da dominação sobre a natureza. Ele crê descobrir por detrás de tais manifestações múltiplas um fio condutor que submete a uma crítica radical: a concepção homogênea, vazia e mecânica (como um movimento de relojoaria) do tempo histórico. (LÖWY, Michael. A filosofia da história de Walter Benjamin) 1

Bear in mind that commentary on a reality (for it is a question here of commentary, of interpretation in detail) calls for a method completely different from that required by commentary on a text . In the one case, the scientific mainstay is theology; in the other case, philology. (BENJAMIN, 1999, p. 460)

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O idealismo, que muitos gostam de supor comicamente ingênuo, revela nisso muito mais fidedignidade para com a realidade, do que as expectativas empiristas. O fato parece ser que, no mundo da cultura, da linguagem, no qual vivemos imersos, o próprio passado é resgatado em sua anterioridade de modo absolutamente contínuo, não existindo fora desse resgate. João Cabral de Mello Neto, em um belíssimo poema – Tecendo a Manhã -, por exemplo, faz derivar a materialidade da manhã, dos delgados fios que os galos tecem com seu

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cocorocar. E esses virtuosos da matéria, confeccionam então, diuturnamente, a manhã com seu canto imaterial. 3

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E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. (BENJAMIN, 1985, p. 225) Transcrição de participação em simpósio organizado pelo Instituto Goethe São Paulo em conjunto com o Setor de Pós-Graduação em Filosofia da PUC-SP, o Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP, com apoio do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD) e da Sociedade Alemã para a Pesquisa (DFG), realizado de 25 a 28 de setembro de 1990 no Instituto Goethe em São Paulo. Nas demais citações oriundas do mesmo evento serão identificadas apenas por SIMPÓSIO INSTITUTO GOETHE.

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O emprego desta palavra em um sentido um tanto quanto impreciso procura evitar fazer menção direta a noções como as de centro, núcleo, etc. Faz-se jus, portanto, à noção de uma certa centralidade, preservando igualmente a idéia de dispersão. Tenho em mente, portanto, do ponto de vista figurativo e não técnico, a idéia de campo.

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A flexão do verbo nessa passagem é absolutamente crítica. Optei por fixá-lo como podemos em lugar de pudemos, fato que tem grande repercussão sobre o modo como se compreende a apocatástase. Diria que uma interpretação lingüística desse conceito, ainda que fundamentada na imagem teológica, nos obriga a supor que a apocatástase realiza-se tantas quantas forem as vezes em que o existente se fixa e cristaliza em uma configuração mítica. De todo modo essa tensão entre as possibilidades dos tempos verbais pode ser conciliada, em uma apreensão completa do fenômeno que se procura expressar, se supusermos que vivemos ainda a pré-história da humanidade, de modo que o dia do juízo final institui a história e não o seu término.

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[Demiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [onde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí seria erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos no fogo, reduzido a cinzas e suas cinzas lançadas ao vento. Finalmente foi esquartejado [relata a Gazette d´Amsterdam]. Essa última operação foi muito longa, porque os cavalos utilizados não estavam afeitos à

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tração; de modo que, em vez de quatro, foi preciso colocar seis; e como isso não bastasse, foi necessário, para desmembrar as coxas do infeliz, cortar-lhe os nervos e retalhar-lhe as juntas... (...) O Senhor Lê Breton, escrivão, aproximou-se diversas vezes do paciente para lhe perguntar se tinha algo a dizer. Disse que não; nem é preciso dizer que ele gritava, com cada tortura, da forma como costumamos ver representados os condenados: “Perdão, meu Deus! Pedrão, Senhor”. Apesar de todos esses sofrimentos referidos acima, ele levantava a de vez em quando a cabeça e se olhava com destemor. As cordas tão apertadas pelos homens que puxavam as extremidades faziam-no sofrer dores inexprimíveis. O senhor Lê Breton aproximou-se outra vez dele e perguntou-lhe se não queria dizer nada; disse que não. Achegaram-se vários confessores e lhe falaram demoradamente; beijava conformado o crucifixo que lhe apresentavam; estendia os lábios e dizia sempre: “Perdão, Senhor.” (FOUCAULT, 1987, p. 9 – Grifos meus) 8 O elemento alegórico remete, de certo modo, ao outro, à alteridade que a unicidade pretende evitar. Nega, portanto, o princípio a identidade, resgatando o denegado; o abjeto no interior do sublime; o corpo e a corporalidade, nos mais elevados e etéreos devaneios da espiritualidade: Somente a massificação urbana permite à prostituição difundir-se por várias partes da cidade. É por isso que ela fascina, e sobretudo por ser objeto vendável. Quanto mais ela reveste a forma-mercadoria, mais excitante se torna (p. 427). Filha da metrópole capitalista, encarnação da mercadoria, ela aparece como artigo de massa. Daí a padronização da roupa e da maquilagem, tão bem simbolizada na padronização da roupa e da maquilagem das coristas, no teatro de revista (p. 437). Mercadoria e massa, a prostituta é a síntese do capitalismo e da cidade. Seu feitiço é o do fetichismo. Ao mesmo tempo, ela não é só o fetichismo, história petrificada em natureza; ela é também a promessa de uma relação mais harmônica com a natureza. De algum modo, ela representa a natureza como figura materna, ainda que degradada. Nas condições atuais, a mãe tem os traços da cortesã. Mas a mãe pode ser reencontrada sob os traços da cortesã. A prostituta é natureza corrompida vida que significa morte (p. 424). Mas é também a perspectiva de uma nova natureza, matriarcal, "a imagem distorcida, mas em tamanho natural de uma disponibilidade acessível a todos e que ninguém desencoraja" (p. 457). O segundo momento, o da Verklaerung (dissimulação da realidade e dissimulação das representações que incorporam o desejo), está a cargo do mito. O mito inibe o que a utopia tenta liberar. A utopia e o mito são partes indissociáveis do sonho do coletivo. Ele contém uma dimensão utópica, que aponta para a salvação, libertando o homem do ciclo do sempre igual, e uma dimensão mítica, que impede o advento do genuinamente novo e impõe a temporalidade do inferno, a do eternamente idêntico. Por isso, o

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sonho em que o capitalismo mergulhou o século XIX ao mesmo tempo impulsionava para o despertar, realizando a utopia "cada época não somente sonha a seguinte, como ao sonhá-la a impele a despertar" (p. 59) como levou à ressurgência do destino e do eterno retorno "a reativação das forças míticas" (p. 494). São esses os dois aspectos da dialética das Passagens: o vaivém entre dois níveis de realidade, a "objetiva" e a "onírica"; e dentro desta, a tensão entre utopia e mito. Todos os objetos e personagens do livro oscilam entre uma realidade da qual o indivíduo não tem consciência clara e um sonho sujeito à ambivalência resultante do entrelaçamento da utopia e do mito. A arquitetura, a moda, o jogo, o panorama, são sonhos coletivos que exprimem o "corpo" (a realidade objetiva, em seus diferentes níveis de mediação) e estruturam-se pela interpenetração de elementos utópicos, que contêm o desejo e impelem em direção ao despertar, e elementos míticos, que tentam perpetuar as fantasmagorias e eternizar o sono. O museu de cera é um prédio real, com uma localização certa nos grands boulevards. O sonho se apodera dessa realidade e faz dela uma realidade delirante. Delírio utópico, porque o mundo de cera é o mundo encantado da infância, mundo incorruptível isento das vicissitudes da morte. Mas também delírio mítico, aterrorizador, porque no museu Grévin a eternidade é a eternidade da cera, e as figuras, de tão reais, duplicam, desmascaram e perpetuam a ilusão de realidade em que está imerso o homem moderno. detritos serão salvos, recolhidos por um grande colecionador, e símbolo mítico do trabalho degradado. (Sergio Paulo Rouanet. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin "Trabalho das Passagens". SIMPÓSIO INSTITUTO GOETHE) 9 Laughter is shattered articulation. (BENJAMIN, 1985, p. 325) 10

Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Caussidière por Danton, Luís Blanc por Robespierre, a Montanha de 18451851 pela Montanha de 1793-1795, o sobrinho pelo tio. E a mesma caricatura ocorre nas circunstâncias que acompanham a segunda edição do Dezoito Brumário! Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens conjuram ansiosamente em seu auxilio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar e nessa linguagem emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 vestiu-se

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alternadamente como a república romana e como o império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793-1795. De maneira idêntica, o principiante que aprende um novo idioma, traduz sempre as palavras deste idioma para sua língua natal; mas só quando puder manejá-lo sem apelar para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá assimilado o espírito desta última e poderá produzir livremente nela. (MARX, O 18 Brumário de Luis Bonaparte, Capítulo I – Arquivo Eletrônico, formato pdf., p. 1) 11

O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração, em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico. (Benjamin, 1985, p. 232) 12 (...) Por isso, profundamente impregnada de sua própria perversidade, a técnica modelou o rosto apocalíptico da natureza e reduziu-a ao silêncio, embora pudesse ter sido a força capaz de dar-lhe uma voz. (BENJAMIN, 1985, p. 70) 13

Disto finalmente resulta que existem diferentes formas de verificação da verdade, se me for permitido dizer assim. O sistema da linguagem oral, a metafísica da presença, vê o lugar da verdade no sistema, ou seja, nos grandes sistemas metafísicos que se seguiram uns aos outros no Ocidente, enquanto a linguagem escrita vê o lugar da verdade no comentário. A verdade é desenvolvida a partir de um texto, dentro do qual ela já está previamente dada, e todo novo texto é, neste sentido, um novo desenvolvimento desta verdade. (Witte, Bernd. O que é mais importante: a escrita ou o escrito? Tradução de Georg Bernard Sperper. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE)

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Dessa esperança partilha igualmente a teoria psicanalítica, assim como a metodologia que desenvolveu para lidar com a patologia. 15 Nessa esperança, ou seja, a de que a libertação no presente redima a totalidade do tempo, se reconhece em Benjamin a filiação à idéia da apocatástase. 16

Jeanne-Marie Gagnebin, ainda que no contexto de uma interpretação crítica de alguns comentadores de Benjamin, aponta para esta questão: Essa teoria herética e iconoclasta do conhecimento é amparada, sempre de acordo com tais intérpretes, em uma concepção lingüística de origem teológica que opõe à arbitrariedade do signo a existência de uma língua originária, na qual,

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respondendo ao verbo criador de Deus, o homem nomeia o mundo com justeza. Essa língua adâmica, tal como a descreve o ensaio de 1916, Über Sprache überhaupt und über die Sprache des Menschen, já não existe hoje; não está, porém, totalmente perdida. Sua presença subterrânea continua habitando, idealmente, a multiplicidade de nossas diversas línguas, manifestando-se em particular na dupla operação, ao mesmo tempo de distanciamento e aproximação, em que se constituem a tradução e a crítica, assim como, aliás, nos esforços, vãos e sempre renovados, dos filósofos e dos poetas para dizer verdadeiramente o mundo. Portanto, teríamos em Benjamin, sempre na opinião desses intérpretes, um esquema teórico que reformularia, de modo extremamente original, é verdade, um paradigma de origem religiosa: a história humana seria a perda de um paraíso originário determinada pela queda na temporalidade e na incomunicabilidade (Babel, como consagração lingüística do pecado original); a transformação dessa história decaída e o restabelecimento da harmonia primitiva seriam assim a única tarefa autêntica na qual os homens se devem empenhar, por uma prática (revolucionária) ou/e por uma teoria reparadora da injustiça. (Gagnebin, Jeanne-Marie. Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) 17

O materialista histórico não pode renunciar ao conceito de um presente que não é transição, mas pára no tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em que ele mesmo escreve a história. O historicista apresenta a imagem “eterna” do passado, o materialista histórico faz desse passado uma experiência única. Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo, com a meretriz “era uma vez”. Ele fica senhor das suas forças, suficientemente viril para fazer saltar pelos ares o continuum da história. (Benjamin, 1985, p. 230-231)

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O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração, em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico. (BENJAMIN, 1985, 232 – Apêndice 1)

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A modernidade é o inferno esta frase de Benjamin já foi citada aqui repetidas vezes mas enquanto tal é simultaneamente apocalíptica. Quer dizer que, por ser tão abjeta, por ser vista de forma tão negativa, ela é vista por Benjamin como tendo a maior proximidade possível com a salvação. Ela é indício de salvação futura.

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O momento da morte, inserido no processo de produção da modernidade, torna-a uma época de antinatureza, o que se exprime na arte moderna pelo fato de nela as coisas se tornarem alegorias. Benjamin mostra isso, por exemplo, nos quadros de Meyron, que representou Paris como uma cidade dos mortos, o que é visto por Benjamin como um exemplo típico da superposição de antigüidade e modernidade na alegoria. Aqui é necessário se perguntar: o que é que as coisas representam alegoricamente na modernidade? E a única resposta possível é: elas se tornam signos alegóricos da caducidade e mortalidade do homem e do mundo e, através disso, da sua necessidade de salvação. (Bernd Witte. Por que o moderno envelhece tão rápido? Concepção da modernidade em Walter Benjamin. Tradução de George Bernard Sperber. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) 20

Na estrutura da linguagem, a finitude se espelha nas interrupções, nas descontinuidades da escrita em prosa. Cada fim de frase é algo assim como uma lembrança da morte. Através de sua técnica literária da citação e da fragmentação, a escritura alegórica expõe esta estrutura fundamental de toda linguagem escrita. Poder-se-ia dizer que se trata de uma alegoria da escrita. Quero dizer que a escrita alegórica, tal qual Benjamin a pratica, é uma alegoria da escritura em geral. (Witte, Bernd. O que é mais importante: a escrita ou o escrito? Tradução de Georg Bernard Sperper)

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(...) Não existe, a rigor, uma ciência “sem pressupostos”, o pensamento de uma tal ciência é impensável, paralógico: deve haver antes uma filosofia, uma “fé”, para que a ciência dela extraia uma direção, um sentido, um limite, um método, um direito à existência. (Quem entende o contrário, quem, por exemplo, se dispõe a colocar a filosofia “sobre base estritamente científica”, precisa antes colocar não só a filosofia, mas também a verdade de cabeça para baixo: a pior ofensa ao decoro que se poderia cometer com duas damas tão respeitáveis!) (NIETZSCHE, 1988, p. 172) 22 A lei de construção desse todo, como a da linguagem, não é linear, mas, muito ao contrário, segue uma lógica não linear, agregando conexões infinitas em rede. 23

Espero que o leitor me perdoe essa enorme citação, mas para tudo quanto segue, ela é absolutamente fundamental. 24 (...) Mas acompanhemos um pouco mais longe a trajetória da fotografia. Que vemos? Ela se torna cada vez mais matizada, cada vez mais moderna, e o resultado é que ela não pode mais fotografar cortiços ou montes de lixo sem transfigurá-los. Ela não pode dizer de uma barragem ou de uma fábrica de cabos, outra coisa senão: o mundo é belo. Esse é o título do conhecido livro de imagens de Renger –Patsch, que representa a fotografia da “Nova Objetividade” em seu apogeu. Em outras palavras, ela conseguiu transformar a própria miséria em objeto de fruição, ao captá-la segundo os modismos mais aperfeiçoados. Porque, se uma das funções econômicas da fotografia é alimentar as massas com certos

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conteúdos que antes ela estava proibida de consumir – a primavera, personalidades eminentes, países estrangeiros – através de uma elaboração baseada na moda, uma de suas funções políticas é a de renovar, de dentro, o mundo como ele é – em outras palavras, segundo o critério da moda. (BENJAMIN, 1985, p. 128-129) Também aqui pode-se observar que o esteticismo é o fundamento a partir do qual se trava a luta pela conservação do existente. Se o abjeto pode ser transfigurado no belo ele já não é percebido em sua natureza ignominiosa. O cinema especialmente conhece esta técnica, como talvez nenhuma outra manifestação estética. 25 A ênfase de Benjamin no potencial cognitivo do cinema enquanto modo de investigação epistemológica encontra sua exemplificação no filme experimental de Dziga Vertov, O homem com uma câmera de cinema (1929). O ensaio de enjamin sobre a Obra de Arte assume uma posição positiva face ao que, em meados dos anos 20, a avant-garde russa chamava “arte de produção”, ou seja, a arte que ingressava, via produção industrial, na vida cotidiana enquanto seu texto sobre “O autor como produtor” empresta a idéia do “artista-engenheiro”, um termo cunhado pelos construtivistas russos, a fim de descrever seu próprio apelo por uma “refuncionalização” dos aparelhos da produção cultural. Quando, nesses ensaios, Benjamin rejeita o culto do gênio individual e proclama o declínio da divisão de trabalho entre produtores culturais e o público de consumidores, ele faz eco à posição da Proletkult, as organizações culturais proletárias dos anos 20 que, ao advogar o “amadorismo criativo”, alinharam-se contra o elitismo cultural do Partido. (Buck-Morss. Susan Walter Benjamin: entre moda acadêmica e Avant-garde) 26

Fiat ars, pereat mundus, esta é a palavra de ordem do fascismo, que, como reconhecia Marinetti, espera da guerra a satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela técnica. Aí está, evidentemente, a realização perfeita da arte pela arte. Na época de Homero, a humanidade oferecia-se, em espetáculo, aos deuses do Olimpo: agora, ela fez de si mesma o seu próprio espetáculo. Tornou-se suficientemente estranha a si mesma, a fim de conseguir viver a sua própria destruição, como um gozo estético de primeira ordem. Essa é a estetização da política, tal como a pratica o fascismo. A resposta do comunismo é politizar a arte. (A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. A presente tradução foi publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, pp. 55-95.)

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Sujeito cognoscente esse que, conforme indicamos em um excerto de Nietasche mais acima, reencontra recorrentemente na história o ponto de que partiu.

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Os termos dessa assertiva ficam imediatamente claros e cristalinos se pensarmos em um caso rigorosamente análogo, ou seja, o do processamento de dados em redes distribuídas de computadores. Do que se trata? Existem cálculos de tal complexidade que não poderiam ser realizados por um único computador, independentemente de sua capacidade e velocidade de processamento. O que fizeram os técnicos em redes de processamento de dados? Distribuíram a tarefa de cálculo por computadores espalhados no mundo todo, que são utilizados para tal fim em seus momentos de ociosidade. Esse simples arranjo permite, portanto, obter retornos infinitamente mais rápidos e maciços, ampliando imensamente a capacidade de predição de uma enorme infinidade de eventos, entre eles os de escala astronômica.

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“Pensa na escuridão e no grande frio Que reinam nesse vale, onde soam lamentos.”

Brecht, Ópera dos três vinténs Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em ressuscitar uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia. Sua origem é a inércia do coração, a acedia, que desespera de apropriar-se da verdadeira imagem histórica, em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tristeza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: “Peu de gens devineront combien il a fallu être triste pour ressusciter Carthage”. A natureza dessa tristeza se tomará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista histórico. Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos bens culturais. O materialista histórico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vê têm uma origem sobre a qual ele não pode refletir sem horror. Devem sua existência não somente ao esforço dos grandes gênios que os criaram, como à corvéia anônima dos seus contemporâneos. Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (BENJAMIN, 1985, p. 225)

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O aleatório, pensado do ponto de vista da totalidade, não existe, e o que parece como tal, apenas segue um padrão que, a cada momento do tempo, pode restar desconhecido, mas apenas para ser descoberto - do ponto de vista da ciência natural, a geometria dos fractais se encarrega de demonstrar como pertinente esse ponto de vista. 31

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O preço, por exemplo, sendo a esperança matemática do valor.

[Baudelaire estava] fascinado por um processo, em que o mecanismo reflexo e acionado no operário pela máquina pode ser examinado mais de perto no indivíduo ocioso, como em um espelho. Esse processo é representado pelos jogos de azar. A asserção deve soar paradoxal. Onde haveria um antagonismo mais fidedignamente estabelecido, senão entre o trabalho e os jogos de azar? Alain esclarece: “o conceito ... do jogo ... encerra em si o traço de que uma partida não depende de qualquer outra precedente ... O jogo ignora totalmente qualquer posição conquistada. Méritos adquiridos anteriormente não são levados em consideração, e é nisto que o jogo se distingue do trabalho. O jogo ... liquida rapidamente a importância do passado, sobre o qual se apóia o trabalho.” Ao dizer estas palavras, Alain tem em mente o trabalho altamente diferenciado (que pode preservar certos traços do artesanal, da mesma forma que o trabalho intelectual); não é o mesmo dos operários de fábrica, e menos ainda o dos não-qualificados. É verdade que falta a este último o traço da aventura; a fada Morgana que seduz o jogador. Mas o que de modo algum lhe falta é a inutilidade, o vazio, o não poder concluir, inerentes à atividade do trabalhador assalariado na fábrica. Seu gesto, acionado pelo processo de trabalho automatizado, aparece também no jogo, que não dispensa o movimento rápido da mão fazendo a aposta ou recebendo a carta. O arranque está para a máquina, como o lance para o jogador de azar. Cada operação com a máquina não tem qualquer relação com a precedente, exatamente porque constitui a sua repetição rigorosa. Estando cada operação com a máquina isolada de sua precendete, da mesma forma que um lance na partida do jogo de seu precedente imediato, a jornada do operário assalariado representa, a seu modo, um correspondente à féria do jogador. Ambas as ocupações estão igualmente isentas de conteúdo. (BENJAMIN, 1985, p. 127) 33 A escrita é linguagem da morte e dos mortos. (...) Benjamin torna a relação entre morte e linguagem o objeto central do livro sobre o drama barroco alemão. Cito uma única frase deste livro, na qual, a bem da verdade, está resumido o todo. É a seguinte: "Tanto significado, tal fadário mortal, porque é a morte quem enterra mais fundo a dentada linha de demarcação entre physis e significado". Quando Benjamin verifica que é apenas a morte quem faz surgir o significado de um texto, isso deve ser entendido no sentido de que a morte representa o ponto de indiferença tanto para o discurso como para a história natural, assim como para a vida individual. Justamente pelo fato de a morte ser em si isenta de significado e dar um fim a toda

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significação, ela representa a condição para a possibilidade de se outorgar significado aos signos. (...) Enquanto Heidegger propaga um avanço para a morte, para conferir ao tempo um novo significado qualitativo, Benjamin vê a finitude de toda vida natural como estando profundamente inserida na estrutura da própria linguagem. Não são apenas todos os objetos a ingressarem na escritura como mortos; até mesmo o sujeito, o próprio Autor, não está presente no texto escrito como voz viva, mas apenas como outro, como morto. Na Via de Mão Única, Benjamin deixou claro, através de uma série de imagens alegóricas e de relatos de sonhos, o fato de o autor estar presente no texto como um morto. (Witte, Bernd. O que é mais importante: a escrita ou o escrito? (Tradução de Georg Bernard Sperper) 34

Baudelaire criou para essa visão um artefato estético, com a pretensão de ser um instrumento: uma luneta que permitiria grande aproximação à distância – uma objetiva avant la lettre. 35 Há, segundo afirma Benjamin, “uma espécie de concorrência histórica entre as várias formas de comunicação” (1983:31). Nesta concorrência, a narrativa leva a pior, perdendo para o romance e a informação. E se a existência da narrativa está relacionada com o aconselhamento, dependendo de sua conservação na memória do ouvinte, sua substituição pelo romance e pela informação coincide com o desaparecimento dessas faculdades. O berço do romance seria a solidão do indivíduo carente de ajuda, mas que não é capaz de narrar os seus assuntos para que possa ser aconselhado; não tem conselhos para receber, nem para oferecer. O leitor de romance, que é solitário “mais do que qualquer outro leitor” (1983:68), devora o assunto do que é lido numa busca de um calor que não sabe obter em sua própria existência. Ele busca na morte do personagem - mesmo que figurada, no final do romance - o sentido de uma vida, sentido este que não encontra no seu próprio existir. Nas palavras de Benjamin (1983:69), ... o romance não tem significado porque representa, talvez de maneira instrutiva, um destino estranho, mas porque esse destino estranho, graças à chama pela qual é devorado, nos transmite um calor que nunca podemos obter do nosso. O que arrasta o leitor para o romance é a esperança de aquecer sua vida enregelada numa morte que ele vivencia através da leitura. (ABREU, Eide Sandra Azevedo. Walter Benjamin o Tempo da Grande Indústria. Ensaio obtido no sítio Antivalor) 36

Se o fático hipertrofia-se nas redes (ou seja, em todo nossos sistema de comunicação midiático e informático), é porque a teledistância faz com que mais nenhuma fala tenha literalmente sentido. Portanto, diz-se que se fala, e falando

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apenas se verifica a rede e sua comunicação. Nem sequer existe outro na linha, pois na pura alternância do sinal de reconhecimento, já não há emissor nem receptor. Simplesmente dois terminais, e o sinal de um terminal apenas verifica que “isso” passa, portanto, que não se passa nada. Dissuasão perfeita. (BAUDRILLARD, 1991 p. 188) 37

Para desenvolver de maneira tecnicamente adequada este tema seria necessário dedicar a ele um esforço e um espaço que excedem as possibilidades desse artigo. De todo modo, aponto abaixo duas manifestações não idênticas entre si, relativamente à questão da natureza convencional da linguagem escrita.

Para começar do começo, vocês provavelmente sabem que há uma linguagem falada e uma linguagem escrita e que há duas espécies de linguagem escrita, uma baseada no som e outra na vista. Os egípcios acabaram por usar figuras abreviadas para representar sons, mas os chineses ainda usam figuras abreviadas como figuras, isto é, o ideograma chinês não tenta ser a imagem de um som, ou um signo escrito que relembre um som, mas é ainda o desenho de uma coisa; de uma coisa em uma dada posição ou relação, ou de uma combinação de coisas. O ideograma significa a coisa, ou a ação ou situação ou qualidade, pertinente às diversas coisas que ele configura. Gaudier Brzeska, que estava acostumado a olhar para a forma real das coisas, podia ler uma certa porção da escrita chinês, sem qualquer estudo. Ele dizia: “Mas é claro a gente vê logo que é um cavalo (ou uma asa ou o que quer que fosse)." (Pound, Ezra. ABC da Literatura ,1970, p. 26-27); (Devo essa nota à Prof. Iray Carone, de quem sou tributário em um grau que talvez não possa retribuir). *** No seu ensaio Teoria das semelhanças (2ª versão: Sobre a capacidade mimética, ambos de 1933), Benjamin fala de um poder mimético que se manifesta na atividade de cada escrevente e que foi da maior importância nos tempos em que nasceu a escrita. Esse seu lado mágico – intimamente ligado à physis, natureza e corpo, e à fisionomia – coexiste com seu lado convencional, semiótico ou comunicativo. Embora a capacidade mimética tenha-se enfraquecido no decorrer da história da humanidade, existe ainda hoje um acesso a ela e a todo um saber oculto dos antigos, pela via da escrita, esse arquivo de similaridades não-sensoriais (Archiv unsinnlicher Àhnlichkeiten). Temos aí um conceito equidistante – com bem o explicou Winfried Menninghaus (1980) – do mimetismo da linguagem e da arbitrariedade do signo, que nos possibilita compreender as imagens gráficas (Schriftbilder) de Benjamin como uma escritalimite. (Willi Bolle, As siglas em cores no Trabalho das Passagens, de Walter Benjamin. Versão em pdf.) Sítio: http://www.scielo.br/pdf/ea/v10n27/v10n27a03.pdf

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No que se refere às concepções de Benjamin, indicações contidas na Doutrina das Semelhanças, parecem insinuar a opção por um caminho intermediário entre o caráter arbitrário do signo e a conformação mimética da linguagem: Nos dois trabalhos em que ele trata da escrita há uma grande preocupação exatamente com o problema do "mimetismo não-sensível", o que me parece uma premonição muito interessante das teorias mais modernas da lingüística e mesmo, em certos aspectos, da semiótica peirciana, aqueles que mostram os traços icônicos e diagramáticos dispersos na estrutura lingüística. (Campos, Haroldo de. Teoria da linguagem em Walter Benjamin. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) 38

É a temporalidade descrita por Berman, a de um mundo sempre sujeito ao fluxo, em que nada é durável, em que as cidades se desfazem e refazem, um mundo em que "tudo o que é sólido desmancha-se no ar". (Sergio Paulo Rouanet. Por que o moderno envelhece tão rápido? Concepção da modernidade em Walter Benjamin. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE)

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O fast-food é uma das expressões (existem outras) do movimento de aceleração da vida. Nesse sentido, quando MacDonald´s “migra” para outros países, não devemos compreendê-lo como um “traço cultural” que se impõe à revelia de valores autóctones. Ele exprime a face interna da modernidade-mundo. Na verdade, o conteúdo da fórmula fast-food – hambúrguer, salada, pizza, taco, sanduíche – é arbitrário. MacDonald´s e Brioche Dorée possuem o mesmo sentido social. Pouco importa se esta última se volte para a venda de croissants e de tortas. A tradição que se evoca tem apenas um valor simbólico. O mundo artesanal dos padeiros e dos doceiros é atropelado pela cozinha industrial. A padronização é uma condição da alimentação rápida. Como os hambúrgueres de Macdonald´s, ou de Quick (companhia francesa), as guloseimas “tradicionais” são preparações industrializadas. Por isso podem ser encontradas fora de seus horizontes de origem. Quick, Free Time, Brioche Dorée e La Croissanterie são empresas francesas, cujo interesse é disputar o mercado mundial. Seus serviços são transnacionais. (ORTIZ, 1994, p. 86)

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Uma vez que esta assumiu agora uma natureza funcional, como elemento essencial e inerente da imagem.

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Porque que o nome recolhe todo o semelhante com que se depara, acolhendo suas divergências no atual.

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A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes essas coisas espirituais não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da

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astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, o passado, graças a um misterioso heliotropismo, tenta dirigir-se para o sol que se levanta no céu da história. O materialismo histórico deve ficar atento a essa transformação, a mais imperceptível de todas. (BENJAMIN, 1985, p. 223-224) 43

A verdadeira linguagem, visada pela escrita, tem caráter negativo. Ela destrói. (Witte, Bernd. O que é mais importante: a escrita ou o escrito? Tradução de Georg Bernard Sperper. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE)

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“A Origem é o Alvo.” Karl Kraus, Palavras em verso

A história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras”. Assim, a Roma antiga era para Robespierre um passado carregado de “agoras”, que ele fez explodir do continuum da história. A Revolução Francesa se via como uma Roma ressurreta. Ela citava a Roma antiga como a moda cita um vestuário antigo. A moda tem um faro para o atual, onde quer que ele esteja na folhagem do antigamente. Ela é um salto de tigre em direção ao passado. Somente, ele se dá numa arena comandada pela classe dominante. O mesmo salto, sob o livre céu da história, é o salto dialético da Revolução, como o concebeu Marx. (BENJAMIN, 1985, p. 14) 45 O próprio Benjamin salienta que o ato de recorrer ao texto de Gênesis não tem a finalidade de esboçar uma reconstrução histórica, antes visa lembrar outra compreensão da linguagem humana, compreensão quase esquecida, até mesmo repelida pela hipótese lingüística da arbitrariedade do signo e da comunicação como função primordial da linguagem. A importância do texto de Gênesis vem do fato que ele nos faz recordar a outra função da linguagem humana, função verdadeiramente essencial, a de nomear, que não se pode explicitar nem em termos de comunicação nem em termos de arbitrariedade. (Gagnebin, Jeanne-Marie. Teologia e Messianismo no pensamento de W. Benjamin. SIMPÓSIO DO INSTITUTO GOETHE) 46

Esperança que aparece também em Horkheimer:

Se a natureza tem a oportunidade de refletir-se no domínio do espírito, adquire uma certa tranqüilidade pela contemplação da própria imagem. Este processo está no âmago de toda a cultura, particularmente na música e nas artes plásticas. (HORKHEIMER, 2002, p. 179) 47

Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam nem como vazio nem como homogêneo. Quem tem em mente esse fato, poderá talvez ter uma idéia de como

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o tempo passado é vivido na rememoração: nem como vazio, nem como homogêneo. Sabe-se que era proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos, a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o futuro se converteu para os judeus num tempo homogêneo e vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual podia penetrar o Messias. (Benjamin, 1985, p. 232 – Apêndice 2) 48

A teoria romântica da obra de arte é sua forma. A natureza limitadora da forma os românticos identificam com a limitação de toda reflexão finita, e através desta única consideração determinam o conceito de obra de arte no interior do mundo intuitivo deles. De modo inteiramente análogo ao pensamento com o qual Fichte, em seu primeiro escrito para a doutrina-da-ciência, vê a reflexão se manifestar na simples forma do conhecimento, a pura essência da reflexão anuncia-se aos românticos na aparição puramente formal da obra de arte. A forma é, então, a expressão objetiva da reflexão própria à obra, que forma sua essência. Ela é a possibilidade da reflexão na obra, ela serve, então, a priori, de fundamento dela mesma como princípio de existência; através de sua forma a obra de arte é um centro vivo de reflexão. No medium-da-reflexão, na arte, formam-se sempre novos centros de reflexão. Segundo seu germe espiritual, eles abarcam na reflexão conexões maiores ou menores. A infinitude da arte atinge a reflexão primeiramente apenas em um tal centro como valor-limite, isto é, atinge a autocompreensão e, deste modo, a compreensão em geral. (BENJAMIN, 2002, p. 78-79) 49 Nisso, acredito, a teoria do nome em Benjamin se afasta do esoterismo judaico. 50 O que de radical ocorre na substituição da técnica pela tecnologia é o fato de a técnica possibilitar um modo de fazer o objeto enquanto a tecnologia determina o modo de produção do saber. No primeiro caso, a técnica se põe a serviço da criação; no segundo, a tecnologia demanda apropriação. Assim, quando a técnica incorpora o logos (“logia”), significa que o saber perde a “autonomia subjetiva”, em favor da afirmação de uma construção sistêmica centrada na mediação e no controle. Num certo sentido, a apropriação da arte pela tecnologia reinsere a ameaça de uma camuflada modelagem de inspiração fascista. Nesta conjuntura, fascismo pode travestir-se em fascínio. O processo é desencadeado a partir da relação perigosa entre tecnologia e linguagem. Em outros termos, vale dizer que, quando a linguagem manifesta demandar crescente suporte tecnológico, se instala a ameaça progressiva da desautonomização da linguagem. (LUCCHESI, Ivo. Walter Benjamin e as questões da arte sob o olhar da hipermodernidade. COMUM 25 Comum - Rio de Janeiro - v.11 - nº 25 - p. 57 a 91 - julho / dezembro 2005. Artigo sob formato eletrônico). 51

Em Sunrise - A Song of Two Humans (Aurora) de F. W. Murnau, de 1927, o casal que protagoniza o filme troca um longo beijo na rua e, muito

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rapidamente, o trânsito inteiro é estancado, fazendo com que se acumulem carros, carruagens, cavalos e bicicletas, com seus condutores sendo levados ao desespero pela interrupção do fluxo e do movimento. Opõem-se, deste modo, o movimento que é coletivo e próprio da cidade, como ente autônomo mesmo, dotado de artérias e de vida, e o casal, que, em seu gesto espontâneo, torna-se inorgânico para com a urbe. 52

Não é um acidente que o cinema, em seus primórdios, tenha recorrentemente representado a máquina através da qualidade da repetição infinita, da circularidade, da superimposição do ritmo. Não se deve, neste aspecto, ficar restrito a Chaplin, pois Vertov, Ruttmann, Fritz Lang, entre outros, trataram da questão com fantásticas soluções estéticas. 53 Nesta cena há uma explosão da máquina, que se converte em um ídolo – Moloch- , o qual passa literalmente a se alimentar dos operários, que são empurrados para dentro de sua boca. Há, portanto, uma remissão aos sacrifícios humanos, mas em sua forma diretamente arcaica, segundo a qual o ídolo é apaziguado com sangue. 54

Moloch: do hebreu, há-Moléch, talvez originalmente há-Mélech, “o rei”. Ídolo adorado pelos povos cananeus, que exigia terríveis sacrifícios humanos, notadamente de crianças queimadas vivas. Denunciado pelos profetas do Antigo Testamento. Em Marx, alegoria do capital. (LÖWY, 2002, P. 110) 55

É muito interessante observar a intensidade com que o carro e o trânsito são representados como ameaça, não apenas no cinema de começos do século XX, mas igualmente na imprensa e em suas representações gráficas, ou seja, na ilustração e na charge. A rigor houve um longo período de aprendizagem para que o corpo e o olho se acostumassem à velocidade não natural do automóvel e do bonde, por exemplo. Até que isso se desse, até que fosse possível calcular a velocidade de aproximação de móveis de propulsão mecânica, os acidentes se multiplicavam. O carro, contudo, era ameaçador também em um outro sentido: ele era um índice da aproximação de um outro mundo, que em sua aceleração, destruía as formas orgânicas que tinham a tração animal por fundamento. Orson Wells em seu The Magnificent Ambersons (1942) retrata nos termos deste conflito, ou seja, da emergência de uma civilização baseada no carro, a decadência de uma família tradicional, acompanhando sua trajetória da magnificência até a miserabilidade e decadência.

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O berço do romance seria a solidão do indivíduo carente de ajuda, mas que não é capaz de narrar os seus assuntos para que possa ser aconselhado; não tem conselhos para receber, nem para oferecer. O leitor de romance, que é solitário “mais do que qualquer outro leitor” (1983:68), devora o assunto do que é lido numa busca de um calor que não sabe obter em sua própria existência. Ele busca na morte do personagem - mesmo que figurada, no final

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do romance - o sentido de uma vida, sentido este que não encontra no seu próprio existir. Nas palavras de Benjamin (1983:69), ... o romance não tem significado porque representa, talvez de maneira instrutiva, um destino estranho, mas porque esse destino estranho, graças à chama pela qual é devorado, nos transmite um calor que nunca podemos obter do nosso. O que arrasta o leitor para o romance é a esperança de aquecer sua vida enregelada numa morte que ele vivencia através da leitura. Ao isolamento do indivíduo moderno, leitor de romances, corresponderia uma adequação ao mecanismo social, que é descrita por Benjamin com as palavras de Paul Valéry: ... o homem civilizado das grandes metrópoles retorna ao estado selvagem, isto é, a um estado de isolamento. O sentido de estar necessariamente em relação com os outros, a princípio continuamente reavivado pela necessidade, torna-se pouco a pouco obtuso, no funcionamento sem atritos do mecanismo social. Cada aperfeiçoamento desse mecanismo torna inúteis determinados hábitos, determinados modos de sentir (Benjamin, 1983: 43). (ABREU, Eide Sandra Azevedo. Walter Benjamin E O Tempo Da Grande Indústria. Artigo em formato eletrônico) 57

A retransmissão da história narrada pelo ouvinte constituiria condição essencial para a sobrevivência da narrativa. Ela disporia mesmo de qualidades que facilitariam sua conservação pela memória. Segundo diz o autor, a narrativa é destituída de análise psicológica - que seria própria do romance - e de explicações - das quais as informações seriam repletas -, circunstância que possibilita a quem ouve mergulhar o que escuta em sua própria experiência e, mais tarde, transmiti-la de bom grado. Mas esta capacidade de audição também estaria sendo destruída, porque ela depende de um relaxamento psíquico propiciado por atividades naturais, como o fiar e o tecer, que estariam desaparecendo. Com a perda destas atividades, desaparece a “comunidade dos que escutam”, e a narrativa sofre golpe de morte. (ABREU, Eide Sandra Azevedo. Walter Benjamin e o tempo da grande indústria)

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A este respeito Fritz Lang em seu Metropolis desenvolve cenas verdadeiramente antológicas, dissertando sobre o caráter catatônico do movimento dos trabalhadores, não apenas ao trabalhar, mas ao se conduzir em todo o espaço urbano. A força dramática da imagem advém, em grande medida, não apenas do caráter absolutamente esquemático e compulsório do movimento, mas de sua natureza coletiva.

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Para o animismo o mundo divide-se em realidade e supra-realidade, o mundo visível dos fenômenos e o mundo invisível dos espíritos, o corpo mortal e a alma imortal. Os costumes e ritos fúnebres revelam claramente que o homem

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neolítico já estava começando a conceber a alma como uma substância separada do corpo. A visão mágica do mundo é monista, vê a realidade na forma de uma tessitura simples, de uma seqüência contínua e coerente; o animismo, porém, é dualista, forma seu conhecimento e suas crenças num sistema de dois mundos. A magia é sensualista e atém-se ao concreto; o animismo é espiritualista e tende para a abstração. No primeiro caso, o pensamento centra-se na vida deste mundo; no segundo, a preocupação dominante é a vida no outro mundo. (HAUSER, 1995, p. 12-13) 60

Em O anjo exterminador (1962), por exemplo, Luis Buñel disserta sobre a natureza do espaço interior burguês, apresentando-o através da incomunicabilidade com o que é exterior. Este ninho e refúgio, que protege o homem do mundo, contém, contudo, forças destrutivas que se expressam não apenas no interior, mas como decorrência necessária da oposição não mediada com o exterior. 61 A própria escrita benjaminiana exige que se mergulhe cada vez mais nas profundezas das palavras para explorar ao máximo toda a sua abrangência e, a partir daí, seu possível uso metafórico. Seria interessante analisar o uso que Benjamin faz de algumas metáforas ao longo de sua obra, uma vez que algumas, como no caso da constelação, aparecem e reaparecem desde os primeiros até os últimos escritos. Essa insistência, que a primeira vista pode dar a impressão de se tratar de uma atitude repetitiva, seria uma atitude que busca promover um processo de enriquecimento. Surge aí um outro aspecto da constelação, que é o do “extremo” 3: do mesmo modo que cada estrela marca o ponto extremo para o traçado das linhas imaginárias que as interligam, o uso que se faz da palavra em textos e contextos às vezes bem distantes marca os limites da mesma. Não se trataria, como no dicionário, de um mínimo denominador comum que leva à troca indiscriminada dos sinônimos e às traduções de baixa qualidade, porém dos pontos extremos – das estrelas – que circunscrevem uma mesma palavra em todo seu alcance. Quanto maior a distância entre os textos, mais se faz valer a singularidade constelar da palavra que neles aparece. Não existiria um núcleo semântico ao qual as palavras pudessem ser reduzidas: o centro das constelações é vazio e as marcas que definem seu traçado são seus extremos. Como as constelações, as palavras se caracterizam pelo “singular-extremo”. (VOLPE, Miriam Lídia. Um olhar constelar sobre o pensamento de Walter Benjamin) 62

Alguns links no youtube veiculando progagandas de diferentes ordens: Lengerie; Levis; Levis 2; Chervrolet; Toyota|; Pegeaut; Citroen; Mercedez; Hyunday; BMW; Carro; Sandálias Havaianas; Sandálias Havaianas 2 63

É preciso manter em mente as referências que Benjamin faz à coleção sob o aspecto estritamente lúdico, como aparece, por exemplo, com relação às coleções de livros infantis, de que ele próprio era aficionado. Na coleção remanescem elementos que vão da mais intensa luminosidade ao

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profundamente soturno, uma vez que, ela mesma, tem uma natureza alegórica. O filme The collector (Willian Wyler, 1965) explora os elementos sombrios de maneira razoavelmente competente. Lembro-me de tê-lo assistido, em criança, com um misto de prazer e horror, uma vez que exposto acidentalmente àquela figura, que se via condenada a colecionar borboletas, para capturar a beleza extrema de suas variedades e forma, com a meta de fixá-las em uma representação do belo, em sua qualidade de igualmente eterno  atividade sísifa, devidamente figurada nas caixas envidraçadas, em que aquelas mesmas borboletas se viam recorrentemente sacrificadas em tributo à sua beleza. A eternização do belo através dos atos simultâneos da figuração e extinção da vida do que é representado, como vampirização mesmo de sua energia vital, retorna constantemente como tema ao longo da história. Um exemplo fantástico desta construção pode ser encontrado em O espelho oval de Edgar Allan Poe, cujos desenvolvimentos permitem legitimamente relacionar o filme citado (The Collector) com Boxing Helena (Jennifer Lynch, 1993), em que o amor da coisa, levado ao paroxismo, corresponde ao seu sistemático desfazimento. 64

Há que se colocar na adequada perspectiva a natureza psíquica do colecionador. Para Freud há um vínculo entre a atividade de colecionar e a fixação na fase sádico-anal da libido. Não se trata, contudo, de analisar uma eventual psicopatolgia, mas de compreender porque ao relacionamento funcional e hedonista com a coisa se opõe um comportamento que tem os traços da patologia. Não se indica aqui, justamente, que uma relação “sã” com a coisa pressupõe a própria superação da ordem e que, portanto, nesta mesma ordem, todo a interação com a natureza está mediada por potências inconscientes  seja naquilo que a ordem considera adequado, ou nas manifestações que entende anormais?

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Em O advogado do Diabo (Taylor Hackford, 1997) este aspecto sombrio do existente é explorado recorrentemente pelos efeitos especiais, havendo um foco muito preciso sobre os elementos soturnos do feminino, assim como sobre as profundezas abissais encerradas na própria beleza. Em que pese tratar-se claramente de filme B e se apresentar de modo cru aquilo que deveria constar como índice, há um certo interesse nas imagens que emergem do filme.

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Montagem a partir do excerto 1. A sigla Melancolia (vertical roxa dividindo um retângulo preto) pode ser considerada como a abreviatura de uma imagem, precisamente da gravura Melencolia I (1514) de Albrecht Dürer (...). Nesse enquadramento sombrio, temos, em forma de representação alegórica, a reflexão do artista sobre o seu trabalho. Reflexão como interrupção. Esta é figurada na sigla pelo traço roxo que corta e, na gravura, pela incidência dos raios do astro, assim como pela aparição do arco-íris. A cor roxa, segundo Paul Klee, marca o ponto em que o círculo das cores, calcado sobre o modelo do arco-íris, é partido. O artista interrompe seu trabalho e medita, como se dialogasse com outra esfera, transcendental. Em seu livro sobre o drama barroco alemão, Benjamin oferece uma visão do gênero e da época através de sua interpretação dessa gravura. Trata-se de uma alegoria da própria idéia de construção, de uma imagem da condição do artista nos tempos modernos que surgem no horizonte. Na folha de Dürer, pode-se descobrir todo um repertório de formas que Benjamin utilizou em suas siglas: pontos como os que representam o olhar da Melancolia ou o traçado do instrumento que ela segura nas mãos e que pode servir ao mesmo tempo para escrever, desenhar e medir: servir, em suma, à criação; linhas como as da perspectiva ou as que se cruzam na ampulheta como representação do tempo, ou ainda as linhas onduladas configurando o corpo do cão que dorme e sonha ou do demônio nefasto flutuando na atmosfera; planos como o círculo que representa a esfera, emblema da concentração; o quadrado mágico e o enquadramento da cidade no fundo; ou enfim, no centro, o enigmático emblema da pedra, com sua combinação de triângulos. (WILLI, Bolle. As siglas em cores no Trabalho das Passagens, de W. Benjamin). Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_pdf&pid=S010340141996000200003&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt.)

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At the conclusion of Matière et Mémoire, Bergson develops the idea that perception is a function of time. If, let us say, we were to live vis-à-vis some things more calmly and vis-à-vis others more rapidly, according to a

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different rhythm, there would be nothing “subsistent” for us, but instead everything would happen right before our eyes; everything would strike us. But this is the way things are for the collector. They strike him. How himself pursues and encounters them, what changes in the ensemble of items are affected by a newly supervening item  all this shows him his affairs in constant flux. (…) (BENJAMIN, 1999, p. 205)

Este é seguramente um dos conceitos mais complexos e controversos do marxismo em geral e das concepções teóricas que sobre ele se fundamentam. Esta questão não pode ser enfrentada aqui, simplesmente porque ela nos levaria até o ponto que requereria um livro completo apenas para si. É preciso ressaltar, contudo, que a revolução, a atividade e o sujeito revolucionário têm caráter bastante específico em Benjamin, ponto este com o qual iremos lidar ao longo de nossos desenvolvimentos. 69 Somente a massificação urbana permite à prostituição difundir-se por várias partes da cidade. É por isso que ela fascina, e sobretudo por ser objeto vendável. Quanto mais ela reveste a forma-mercadoria, mais excitante se torna (p. 427). Filha da metrópole capitalista, encarnação da mercadoria, ela aparece como artigo de massa. Daí a padronização da roupa e da maquilagem, tão bem simbolizada na padronização da roupa e da maquilagem das coristas, no teatro de revista (p. 437). Mercadoria e massa, a prostituta é a síntese do capitalismo e da cidade. Seu feitiço é o do fetichismo. Ao mesmo tempo, ela não é só o fetichismo, história petrificada em natureza; ela é também a promessa de uma relação mais harmônica com a natureza. De algum modo, ela representa a natureza como figura materna, ainda que degradada. Nas condições atuais, a mãe tem os traços da cortesã. Mas a mãe pode ser reencontrada sob os traços da cortesã. A prostituta é natureza corrompida vida que significa morte (p. 424). Mas é também a perspectiva de uma nova natureza, matriarcal, "a imagem distorcida, mas em tamanho natural de uma disponibilidade acessível a todos e que ninguém desencoraja" (p. 457). (ROUANET, Sergio Paulo. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? História material em Walter Benjamin "Trabalho das Passagens". Os números entre parênteses designam a página correspondente de Das Passagen-Werk (Frankfurt, Suhrkamp, 1982, ed. Rolf Tidemann), vol. V, tomos 1 e 2. 70

Essa era uma das artérias principais da cidade e regurgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou, e, quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar, e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior. (POE, Edgar Allan. O homem na multidão.)

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A alegoria instala-se de forma mais estável nos momentos em que o efêmero e o eterno se aproximam. (BENJAMIN, 2004, p. 247)

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Em Através de um espelho, 1961, Ingmar Bergman desenvolve uma fantástica reflexão sobre Deus, através das alucinações da protagonista do filme. O diálogo final, contudo, em que a verdade “se revela” ao filho como sendo da natureza de que “tudo pode nos acontecer” é de extrema beleza, justamente porque nos coloca face a face diante do vazio e da ausência prévia de sentido; condenados, portanto, a edificar o mundo sem quaisquer garantias metafísicas, a não ser aquelas que podermos derivar de nossa experimentação do existente, à parte da idéia de um deus. Esta temática se recoloca em Luz de Inverno (1962) de uma maneira igualmente dramática, através de um pastor que desespera diante da própria monstruosidade da idéia de um Deus, conforme ele o concebia. Através de um espelho: Excerto youtube: http://br.youtube.com/watch?v=mbcgov_BQdg Luz de Inverno: Excerto youtube: http://br.youtube.com/watch?v=-Ilhq2L4Zcw

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A infinitude da reflexão é para Schlegel e Novalis, antes de tudo não uma infinitude da continuidade, mas uma infinitude de conexões. Isto é decisivo, justamente com o seu caráter temporal inacabável e antes mesmo dele, que deve ser compreendido de outra maneira que não uma progressão vazia. Hölderlin, apesar de não ter tido contato com algumas idéias dos primeiros românticos (...), proclamou a última e incomparavelmente profunda palavra, escrevendo em um lugar onde ele quis expressar uma conexão, a mais acertada e interna: “Conectar infinitamente (exatamente)”. Schlegel e Novalis tinham em mente o mesmo quando compreenderam a infinitude da reflexão como infinitude realizada do conectar: nela tudo devia se conectar de uma infinita multiplicidade de maneiras, sistematicamente como nós diríamos hoje em dia, “exatamente”, como diz Hölderlin com mais simplicidade. Essa conexão pode ser compreendida mediatamente a partir de níveis infinitamente numerosos de reflexão, na medida em que gradualmente o conjunto das demais reflexões seja percorrida por todos os lados. Na mediação por reflexões não existe, no entanto, em princípio, nenhuma oposição com relação à imediatez do compreender via pensamento, pois toda reflexão é em si imediata. (BENJAMIN, 2002, p. 34-35)

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In the ideas of the proletarians, … who confused the finance aristocracy with the bourgeoisie in general; in the imagination of good old republicans, who denied the very existence of class or, at most, admitted then as result of the constitutional monarchy; in the hypocritical phrases of the segments of the bourgeoisie up till now excluded from the power  in all these, the rule of the bourgeoisie was abolished with the introduction of the republic. All the royalists were transformed into republicans, and all the millionaires of Paris into workers. The phrase which corresponded to this imagined liquidation of class relations

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was fraternité. MARX, Karl. Die Klassenkämpfef Frankreich apud BENJAMIN, 2002, p. 123) 75 A historiografia narra as ruínas de seu tempo, "ruínas representam aqui justamente a síntese paradigmática entre tempo e espaço; a ruína é uma imagem-tempo". A destruição do presente na ruína é representada fortemente pela teoria da alegoria. Para Benjamin, a alegoria está ligada a uma "reabilitação da temporalidade e da historicidade em oposição ao ideal que o símbolo encarna"; nesse sentido, pode-se pensar a alegoria em contraposição à idéia de passado eterno, o que determina uma outra compreensão da história, pois o sentido da totalidade se perde a partir do momento em que um pólo duradouro deixa de existir, anunciando a fragmentação/desintegração daquilo que parecia uno. Na alegoria, está presente a tensão entre duas forças que coexistem: eternidade e transitoriedade, ela "ressalta a impossibilidade de um sentido eterno e a necessidade de perseverar na temporalidade e na historicidade para construir significações transitórias", como se pode observar no seguinte excerto de um poema de Baudelaire: As formas fluíam como um sonho além da vista, Les formes s'effaçaient et n'étaient plus qu'un rêve, Um frouxo esboço em agonia, Une ébauche lente a venir, Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista Sur la toile oubliée, et que l'artiste achève Apenas de memória um dia. Seulement par le souvenir. (NASCIMENTO, Roberta Andrade do. Charles Baudelaire e a arte da memória) 76

Fica a pergunta: se a ideologia não é mais o fundamento da ordem, como se dá a hegemonia nas sociedades altamente industrializadas? A resposta que Habermas retoma, já havia sido sugerida por Marcuse (1941) muito antes de serem publicadas suas teses sobre a sociedade industrial. Em seu artigo sobre implicação da tecnologia moderna, pela primeira vez se apresenta um argumento explícito que resolve, teoricamente, no interior do sistema frankfurtiano, o problema colocado. Quando Marcuse define a tecnologia como um modo de organização que perpetua as relações sociais, uma forma dominante de pensamento e de comportamento, ele descobre na técnica uma dimensão que até então era atribuída somente às legitimações. Reconhece-se assim que a técnica desempenha nas sociedades atuais o mesmo papel que tinha a ideologia nas sociedades tradicionais. Com o capitalismo, o saber racional, que anteriormente definia um subsistema, se espalha, e pouco a pouco toma conta da sociedade como um todo. O espírito da racionalidade transborda os limites da fábrica (esfera do trabalho) e se transforma em racionalidade tecnológica que subjugaria até mesmo a própria subjetividade. O homem unidimensional é portanto um produto histórico, ele caracterizaria um tipo de humanidade que não mais se relacionaria através do ato comunicativo,e que

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estaria confinada à esfera, agora abrangente e dominante, do agir racionalcom-respeito-a-fim. (ORTIZ, Renato. A Escola de Frankfurt e a questão da cultura) 77

Acepções: ■ substantivo feminino 1.Rubrica: termo militar. arte de coordenar a ação das forças militares, políticas, econômicas e morais implicadas na condução de um conflito ou na preparação da defesa de uma nação ou comunidade de nações 2. Rubrica: termo militar. parte da arte militar que trata das operações e movimentos de um exército, até chegar, em condições vantajosas, à presença do inimigo Obs.: cf. tática (mil) 3. Derivação: por extensão de sentido. arte de aplicar com eficácia os recursos de que se dispõe ou de explorar as condições favoráveis de que porventura se desfrute, visando ao alcance de determinados objetivos 4. Derivação: por extensão de sentido. ardil engenhoso; estratagema, subterfúgio Etimologia stratégía,as 'o cargo do comandante de uma armada, o cargo ou a dignidade de uma espécie de ministro da guerra na antiga Atenas, pretor, em Roma; manobra ou artifício militar', pelo fr. stratégie (1812, stratège 1712 arql.vb; a prosódia atual sofre infl. das palavras abstratas em ia, como em lat. Sinônimos estratégica, estrategismo. (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa – Versão Eletrônica (UOL)

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Neste diálogo temos em mente especialmente o positivismo lógico e o pragmatismo, ainda que se trate de escolas de pensamento distintas e autônomas.

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