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4.3. “O jongo é de apresentação, não é mais de divertimento”
from Jongo e educação: a construção de uma identidade quilombola a partir de saberes étnico-culturais do
Desse modo, o conhecimento de passos diferentes daqueles típicos da sua comunidade ou grupo e o seu respectivo saber-fazer possibilita a inserção da criança e do jovem na rede de trocas de conhecimentos, além da ampliação dos seus acervos técnico-corporais. Mas é importante destacar que tudo isso tem que fazer parte do universo desses novos jongueiros, pois tal fato é um pressuposto para participarem efetivamente dos eventos relacionados à rede de jongueiros, a exemplo da situação da Raísa, que não queria entrar na roda, com medo de errar
os passos. O chamado jongo de formação em Bracuí se encontra, dessa forma, como um símbolo de (re) afirmação identitária que, tanto a nível local, como em nível de uma rede de jongueiros, atenta para a importância da formação políticopedagógica desses não futuros, mas já militantes da causa quilombola, o que foi legitimado e positivado, a partir da utilização do caráter relacional da cultura, com significados construídos nos processos de interação. A partir do jongo, novas frentes de diálogo e disputa política vão se abrindo.
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4.3 “O jongo é de apresentação, não é mais de divertimento”
A frase acima, dita por Marilda, não apenas determinou o título do presente subcapítulo, como também trouxe uma pauta referente aos novos rumos que o jongo, mais recentemente, vem assumindo na comunidade. Percebemos que as rodas de jongo realizadas para fora, isto é, que ocorrem tanto externamente ao território de Bracuí, como para os externos, ainda que seja realizada dentro do quilombo, vem corroborando, tanto para um reconhecimento externo de sua identidade quilombola, como para uma visibilidade política e um diálogo com a esfera pública, até então não alcançados por nenhum outro meio. Durante nosso trabalho de campo, presenciamos visitas ao quilombo de alguns grupos externos, alguns deles compostos por curiosos e outros por turistas. Nessas visitas, a apresentação do jongo poderia configurar como uma das “atrações” oferecidas no passeio. Como nos disse Marilda, durante um passeio por Bracuí com um grupo (Ong) que vinha do Rio de Janeiro, para conhecer uma comunidade quilombola: “Eles querem ver um pouco de jongo. Daí, a gente faz. Reúne as crianças e faz”.
Como exemplo de diálogo e visibilidade política, destacamos a relação entre Bracuí e a prefeitura de Angra dos Reis. Se, por um lado, há indícios de um embate com relação à legitimidade do território quilombola e a sua luta política, travada pelo próprio município, por outro, o aspecto cultural que se dá mediante a apresentação de uma roda de jongo, é bem recebido. É por aí que eles conseguem se afirmar enquanto “sujeito político de direitos”. Como nos lembra Sahlins (2004), as diferenças culturais encontradas em costumes e tradições sempre existiram, mesmo aos olhos do antropólogo, do colonizador ou do imperialismo. No entanto, podemos assistir atualmente a uma outra função social para a cultura, colocando-a no patamar de um valor superior e um direito político que a torna uma “consciência cultural” capaz de controlar as relações de um grupo com a sociedade dominante, incluindo o controle sobre meios técnicos e políticos, até então utilizados para vitimá-las ou inferiorizá-las. “Todos descobrem ter uma cultura” (Sahlins, 2004, p. 506). No dia 13 de maio de 2011, quando o jongo do Bracuí foi convidado pela prefeitura de Angra dos Reis para se apresentar no centro histórico, na chamada Festa da Cultura Negra, houve o pagamento de um cachê no valor de 400 Reais. Ressaltamos que os cachês recebidos pelas apresentações são revestidos para a associação de moradores. No caso específico desta apresentação citada, pudemos presenciar uma polêmica com relação ao que seria feito com o dinheiro. De um lado, a sede da associação precisava de uma janela. Do outro, as meninas queriam comprar tecido para fazer novas saias de jongo. No fim das contas, a janela de que estavam precisando foi comprada, e um churrasco foi feito com o dinheiro restante, para as crianças e jovens do jongo. As roupas dos jongueiros não puderam ser modificadas. No intuito de destacarmos a relação entre a prefeitura e a comunidade, no tocante à valorização da especificidade cultural própria ao dia festivo, trazemos à tona o convite para a festa da Cultura Negra citada acima, realizada em maio de 2011, uma vez que este faz menção à apresentação do jongo do Bracuí, como grifado abaixo. Ressaltamos que este folder foi-nos enviado pelo Délcio, por meio de correio eletrônico:
Festa da Cultura Negra
A Prefeitura de Angra, através da Fundação Cultural de Angra (Cultuar) vai realizar, pela primeira vez em sua história, um grande ato para valorização da cultura negra no município, denominado “A Festa da Cultura Negra”. O evento será realizado no dia 13 de maio, na Praça Zumbi dos Palmares e nos salões do prédio da Casa Larangeira, no Centro de Angra.
O grande ato acontecerá das 10h às 22h. Contará com a participação de representações das religiões católicas e espíritas, comunidades quilombolas, Irmandade de São Benedito, Escola de Samba Vila Isabel, dentre diversas outras manifestações culturais.
A programação será abrilhantada por diversas atrações, como procissão com a Irmandade de São Benedito, missa afro, posse do Comitê gestor de políticas para promoção da igualdade racial, inauguração de um busto em homenagem a Zumbi dos Palmares; roda de capoeira; palestras com a participação de representantes do grupo de movimento negro de Angra, Ylá Dudu, comunidade quilombolas e com professora Magaly da Silva Almeida; apresentação do jongo do Bracuí e de um grupo de candomblé; concerto com o Coral da Cidade executando músicas sobre o tema; apresentação de capoeira com os grupos Senzala e Congo; espetáculo teatral “Raízes”, com a Cia. Teatro Parceiros; e grande show musical com a Velha Guarda da Escola de Samba Vila Isabel homenageando Zumbi dos Palmares.
A Festa da Cultura Negra também contará com exposição de artesanato, feijoada, exibição de filmes, fotografias, roupas e adereços relacionados à cultura negra, além de barracas oferecendo pratos típicos
Outro exemplo de apresentação do jongo do Bracuí ocorreu no dia 14 de outubro de 2011, num encontro realizado em Angra dos Reis intitulado TEDx, que tinha como objetivo trazer “ideias para uma Baía Sustentável,” em virtude do crescimento acelerado e desordenado ao qual a região vem sendo submetida nas últimas décadas. Neste evento, o cachê cobrado pela apresentação foi de dois mil Reais. Antes da organização do evento “contratá-los”, uma representante foi até o quilombo para ver uma pequena apresentação do jongo. Eles se apresentaram rapidamente a ela, na própria sede da associação e, então, o “contrato” foi firmado, assim como o valor do cachê foi imediatamente aceito. O combinado era que o jongo fosse feito no evento por mais ou menos vinte minutos.
Esta foi a primeira apresentação cujo cachê teve um valor relevante. Nas apresentações ocorridas até então, na própria comunidade, para grupos externos interessados na cultura e nas tradições quilombolas, por vezes, nada era cobrado, e, quando o era, o valor era uma pequena ajuda de custo. Já as externas, como a realizada a convite da prefeitura, começam a acontecer especificamente para o jongo do Bracuí (e não mais para o jongo de Angra), apenas no ano de 2011, ou seja, muito recentemente. Com relação ao cachê pedido à organização do TEDx, as próprias lideranças contaram que, ao pedirem tal valor, já havia a expectativa de negociar para um valor inferior, o que não chegou a ocorrer, já que foi aceito, de imediato, e sem questionamento, o valor cobrado pela apresentação. Sobre o evento propriamente dito, eles contaram que, ao invés dos vinte minutos, dançaram apenas cinco, tendo cantado somente três pontos de jongo. Além disso, tiveram que dançar num formato que não era, de fato, uma roda, pois não havia espaço suficiente no palco, o que fez com que os tambores ficassem separados dos jongueiros, um pouco acima destes. Em novembro, um mês após a apresentação citada, voltei à comunidade e perguntei a uma das lideranças o que fariam ou o que já tinham feito com o dinheiro recebido. Ela me explicou que eles conseguiram investir na confecção de novas roupas para os jongueiros e jongueiras, o que já queriam ter feito há algum tempo, e não fizeram por falta de verba. Inclusive, eles já tinham estabelecido a nova indumentária: blusa de cor bege para os meninos, com uma flor no meio, e saias iguais para as meninas, com uma única estampa florida, diferente das que elas usam até o momento, que possui duas estampas floridas intercaladas. No evento realizado em função do dia estadual do jongo, em julho de 2012, ao encontrar a Jussara e outros jovens jongueiros com as mesmas roupas, utilizadas até então na roda do jongo do Bracuí, perguntei-lhes sobre como andava a confecção da nova indumentária para as apresentações. Eles me disseram que já haviam tirado as medidas e que agora aguardavam a confecção das roupas, o que não tinha data ainda definida. Perguntei-lhes também sobre qual tinha sido a última vez que tinham feito o jongo, e eles me responderam sobre uma apresentação que fizeram na própria comunidade, para um grupo de turistas estrangeiros - segundo os mesmos era um grupo da Bélgica, informação da qual
não tinham certeza. Com relação ao valor do cachê recebido para esta última apresentação, eles não souberam responder. A partir da conjuntura apresentada é que desenhamos a mais recente ressignficação do jongo do Bracuí, isto é, o último momento, até então observado, e que ainda se encontra em processo de transformação. Este foi denominado de jongo de apresentação. Seguindo a lógica proposta por Sahlins (2004), atualmente os quilombolas (refiro-me aqui especialmente à comunidade pesquisada, já que compreendemos que o jongo, apesar de relevante em alguns casos, não pode ser considerado o único elemento utilizado na construção identitária quilombola) não teriam nada a fazer, senão recriar-se à imagem que, externamente, é feita sobre eles.
Atrelado à lógica de visibilidade política, podemos assistir também ao processo de “mercadorização” da cultura popular, neste caso do jongo, a partir da análise acerca da expansão daquilo que pode ser chamado de turismo cultural ou patrimonial, na contemporaneidade:
Os vários processos de apropriação da cultura popular, ou melhor dizendo, no seu plural, das culturas populares, decorrentes de ciclos temporais diferenciados e de movimentos eruditos ou académicos distintos, que a emolduraram, começam agora a ser também eles objecto de configuração e estudo. A este processo de apropriação, soma-se outro que resulta do movimento transformador das sociedades contemporâneas em sentido mais lato. Um processo de mercadorização, promoção e divulgação que começa rapidamente a despontar novos contornos no cenário por onde se movem as expressões das culturas populares contemporâneas. Nomeadamente através da sua procura, projecção e construção mediática e ainda pelo exponencial crescimento do chamado turismo cultural ou patrimonial (Raposo, 2002, p. 3-4).
Sendo assim, a partir do contexto apresentado, podemos dizer que algumas transformações do jongo na atualidade, que se dão tanto na esfera da comunidade de Bracuí, como mais amplamente, em tantas outras comunidades ou grupos jongueiros, podem ser compreendidas como inevitáveis. Até porque, não podemos desconsiderar que tais comunidades estão inseridas em complexos sistemas de rede (como a “rede de resgate” do jongo ou a rede representada pelos eventos realizados pelo Pontão de Cultura Jongo/Caxambu) que estão para além da própria comunidade local, influenciando-as significativamente. Raposo (2002), ao eleger como pauta de estudos o papel da “tradição” na contemporaneidade, lança
mão do trabalho de Canclini (1998) para fazer uma análise sobre a reformulação do “popular”, contestando os modelos clássicos dos folcloristas acerca do papel das “tradições”. A análise se pauta em alguns itens, dentre os quais destacamos que: o desenvolvimento moderno não suprimiu as culturas populares tradicionais, ainda que estas possam ter se transformado; a preservação das tradições em sua “autenticidade” não é sempre o melhor recurso para a sua reprodução (mercantilizada); o popular não deve ser considerado monopólio dos setores populares. Obtivemos a informação de que a associação de moradores está pensando em gravar os pontos de jongos mais antigos, para que eles não se percam com a morte dos velhos jongueiros. Tal fato, aliado ao investimento feito recentemente com as novas roupas para os jongueiros e jongueiras, além da própria relação estabelecida atualmente com o jongo no interior da comunidade, aponta para um processo de profissionalização, fruto do reconhecimento público externo dessa identidade étnica, construída a partir da “reinvenção da tradição” e dos processos de ressignificação aos quais vem sendo submetida. Desse modo, concordando com Raposo (2002, p. 7), compreendemos que as “culturas populares” parecem desejar vender os seus produtos como mercadorias ou como bens, numa percepção objetiva do “valor patrimonial” que suas “tradições” possuem, manipuladas estrategicamente para afirmarem a sua identidade. Na festa do vinte de novembro, realizada em 2011, em Bracuí, foi possível observarmos que a função social que o jongo assumiu passa a ser o diálogo com o poder público, com os externos, o que o configura como “em formato de apresentação”. Desse modo, o jongo que era dançado no interior da comunidade em festividades, como forma de sociabilidade e divertimento, o que se deu desde o seu renascimento até o seu momento formativo, começa a perder aderência dos jovens e das crianças, atuais responsáveis pelas rodas. Estes passam a dançar o jongo principalmente nesse contexto de apresentação. Na festa acima citada, apesar de o jongo estar presente na programação, houve uma discussão constante entre os jovens, para decidirem se iriam dançá-lo ou não. Uma pequena parte queria dançar. A grande maioria não estava com tanta vontade. Esta última preferia fazer outras coisas, como jogar bola ou ajudar na organização da festa. Após os dois dias de festa e de mudança na programação referente à roda de jongo
(na programação seria sábado, mas lá decidiram que seria no domingo), de fato, a festa terminou e o jongo do Bracuí não se apresentou. Se, por um lado, este novo formato do jongo é positivo do ponto de vista político, assim como pelas possibilidades geradas pelo turismo cultural, que acabam por contribuir para o movimento de promoção da autoestima e orgulho local, por outro, há um estranhamento dos próprios jongueiros com relação à sua nova estrutura. Contrariando a ideia de Raposo (2002, p. 3) de que “o popular não é vivido pelos sujeitos populares com complacência melancólica para com as tradições”, percebemos que alguns dos velhos jongueiros que permaneceram nas rodas, mesmo diante das transformações do jongo, além de terem aceitado o domínio das crianças, tiveram recentemente que encarar mais uma ressignificação relativa ao tempo reservado para as apresentações das rodas, que limita, outra vez, as possibilidades dos jongueiros usufruírem da capacidade de versar propiciada pelo jongo de antigamente, isto é, do jongo tradicional. Dona Olga, por exemplo, não gosta do jongo para festas ou eventos, do jongo de apresentação, pois tem hora pra acabar, o tempo é muito reduzido, e isso acaba sendo ruim, pois, quando começa a engatar, eles têm que parar. Ela diz que fica muito marcado, o que choca justamente com a liberdade e o improviso dos versos. Pelo contrário, os pontos a serem cantados já são determinados, antes mesmo da roda começar. Outra questão relevante é a adaptação a novos formatos que não sejam exatamente uma roda. Tudo vai depender do espaço que eles tiverem para se apresentarem. Nessa conjuntura, a apresentação pode ocorrer em meia-lua, os tambores podem ficar fora da roda, pode-se adaptar a roda para um palco, dentre outras mudanças. Mas vale ressaltarmos que os próprios jovens não gostam de fazer o jongo nesse formato adaptado. Por isso, sempre que possível, eles procuram fazer do modo que apreenderam. Ressaltamos, no entanto, que as mudanças no jongo, que o colocam num formato de apresentação e/ou no largo campo do chamado turismo cultural, apesar de, nem sempre, serem bem aceitas, representam, por outro lado, a promoção e a revitalização das celebrações e das tradições locais, ultrapassando a mera fruição autocelebratória. Bracuí e outras comunidades jongueiras se redescobrem através dos “externos”, o que as encorajou e contribuiu para a reflexão sobre suas próprias tradições, saberes e culturas.
As categorias criadas para se pensar a trajetória do jongo em Bracuí na relação dicotômica tradição/modernidade se encerram aqui, junto com a finalização do trabalho de campo. Mas, como nos lembra Cabral (1973 apud Sahlins, 2004): “a luta pela libertação é, acima de tudo, um ato cultural”. Logo, a “inventividade da tradição” estará sempre a serviço dos princípios de existência de um grupo específico, o que significa dizer que um determinado bem cultural ainda pode vir a responder num movimento de libertação de forma totalmente improvisada, isto é, num formato de algo que nunca se viu ou se imaginou antes, e não apenas no formato de uma repetição de costumes antigos. Nesse sentido, ao apontarmos para os três momentos de ressignificação do jongo (renascimento, formação e apresentação), assim como para a memória construída em torno do que convenhamos chamar de jongo tradicional, compreendemos que a hibridização e os conteúdos simbólicos que revitalizam e modificam as tradições, contribuem significativamente para marcar novos usos e novas formas para elas. Mas, é por meio das técnicas corporais e das expressões performáticas que todas essas mutações podem ser observadas.