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5.2. Por uma antropologia da dança

enfoque permite uma análise acerca dos processos de sistematização no que tangem a sua transmissão e apreensão, o que nos leva a crer que a corporalidade, não apenas aquela referente ao jongo, é um elemento presente e socialmente valorizado no âmbito da chamada educação/formação quilombola. Sendo assim, através do estudo da corporalidade do jongo, será possível analisarmos a coletividade na qual ela se insere, assim como a formação e manutenção de suas identidades. Mas, para além disso, pensar na corporalidade expressa por meio do jongo, traz-nos uma possibilidade de reflexão acerca da corporalidade afro-brasileira como conteúdo pedagógico, principalmente no que tange à Lei 10.639/2003, ou, de outro prisma, de refletirmos sobre uma “educação diferenciada” que remeta à corporalidade, valorizando-a enquanto conteúdo político-pedagógico, que pode vir a trazer particularidade às práticas educativas vinculadas à formação e valorização da identidade étnica. Mas, sobre estes últimos aspectos citados, que envolvem a relação do jongo com uma educação para as relações étnicorraciais ou com uma “educação diferenciada” para comunidades quilombolas, discorreremos, mais detalhadamente, no próximo capítulo.

5.2 Por uma antropologia da dança

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Neste subcapítulo nos debruçaremos sobre algumas pesquisas etnográficas realizadas no campo da antropologia da dança. Este, apesar de não configurar uma linha de estudos consolidada na antropologia, traz-nos subsídios importantes para pensarmos o caso do jongo. Aliado aos estudos da performance, que serão abordados, mais detalhadamente, no item 5.3, tais pesquisas nos auxiliam no processo de análise descritiva da prática do jongo. Dentre algumas das questões que emergem da leitura deste conjunto de trabalhos que abordam a temática da dança sob o viés da antropologia, destacamos os seguintes: a dança é um elemento sempre coletivo - e nunca individual - e, portanto, assume função social específica de acordo com o contexto cultural no qual se insere; os processos de transmissão e apreensão da dança, ocorridos respectivamente das gerações mais velhas para as gerações mais novas, , concretizam-se por meio da inserção propriamente dita destas últimas em sua

prática; a dança possui alguns elementos básicos que a configuram, tais como a canção, os movimentos corporais, os instrumentos utilizados, dentre outros. Estes, ao serem analisados em conjunto, apontam para a sua estrutura. Todas essas questões elencadas podem ser transportadas para o caso do jongo nas comunidades quilombolas jongueiras pesquisadas. Segundo Gonçalves (2010), o estudo etnográfico intitulado “Learning to dance” realizado pelo casal de antropólogos Bateson e Mead, em Bali, é pioneiro na problemática de pensar as técnicas corporais da dança para além de simples atos mecânicos do corpo. Pelo contrário, os antropólogos que fizeram a etnografia sobre a transmissão desssas técnicas perceberam que as crianças, desde muito pequenas, eram treinadas para a repetição e imitação dos gestos corporais específicos da dança balinesa. Logo, por meio da observação do aprendizado da dança em Bali, os autores compreendem que este não estava apenas ligado à transmissão de um conjunto de técnicas corporais, mas de uma forma de estar no mundo, que se dava a partir da transformação de uma técnica corporal em um ato cultural. Essa forma de lidar com o corpo, mais do que um aprendizado mecânico, ajustava-se ao que seria um componente do ethos balinês. Outro autor que fez uma etnografia da dança nos traz uma nova possibilidade de abordá-la na antropologia. Mitchell (1956), ao estudar a dança kalela, em seu estudo “The Kalela Dance”, analisa as relações culturais, históricas e socialmente construídas, estruturadas e inferidas nas relações sociais, compreendendo-as por meio do estudo de interações e redes. Para tanto, o autor analisa o “tribalismo” presente na dança kalela - uma dança que, apesar de tribal, expressa pouco esta condição, sendo facilmente disseminada pelo contexto urbano - em cidades recém-criadas da Rodésia do Norte, no intuito de investigar a tradição na cidade. O autor encontra na dança um paradoxo interessante que remete, por um lado, ao fato desta ser uma dança tribal em que as diferenças tribais são enfatizadas, mas, por outro, a língua e o idioma das canções, assim como a roupa, fazerem referência a uma existência urbana, que tende a atenuar o “tribalismo”. Apropriamo-nos da descrição realizada até aqui para abordarmos a transmissão e apreensão da tradição do jongo. Em nossa pesquisa de campo, deparamo-nos com crianças bem novas (na faixa dos quatro anos de idade)

participando, efetivamente, das rodas, isto é, dançando no centro, fazendo os gestos adequados, respeitando a performance que inclui, também, um conjunto de técnicas corporais que foram passadas a elas ali, no cotidiano das rodas, fossem estas realizadas nas oficinas de jongo, fossem realizadas em festividades, na própria comunidade ou em apresentações externas e/ou internas. Em uma roda, na comunidade de Campinho da Independência, nos surpreendemo-nos com uma criança de menos de dois anos de idade vestida com as roupas típicas e batendo palmas junto à sua mãe, o que demonstra, de um lado, o desejo das gerações mais velhas pela imersão, cada vez mais precoce, das crianças no habitus jongueiro e, de outro, na vivência propriamente dita destas crianças nesse saber-fazer corporal - no embodiment - que os insere na cultura e no que convenhamos chamar de identidade quilombola. Temos, desse modo, a inserção de crianças cada vez mais cedo numa corporalidade quilombola voltada para a tradição do jongo. Contudo, devermos ressaltar que elas não apenas reproduzirão as técnicas corporais lhes transmitidas, mas também irão recriá-las, a partir de suas experiências, fazendo do corpo um lugar de produção e base existencial para a cultura. Sobre o aprendizado de gestos durante a infância, trazemos uma citação de Cascudo (2003, p.19-20), que aparece em sua obra “História de nossos gestos”, publicada inicialmente em 1976:

Os gestos são moedinhas de circulação indispensável e diária, mas ignoramos sua emissão no tempo. O gesto é anterior à palavra. [...] Dedos e braços falaram milênios antes da voz. [...] Não havendo a obrigatoriedade do ensino mas sua indispensabilidade no ajustamento da conduta social, todos nós aprendemos o gesto desde a infância.

Evans-Pritchard, em seu trabalho intitulado “The Dance,

” realizado em 1928, é tomado por nós como roteiro para pensarmos minuciosamente a estrutura de uma roda de jongo. Nesse trabalho, o autor tem como objetivo principal discorrer sobre a função social que a dança pode exercer em um determinado contexto, compreendendo-a essencialmente como uma atividade simbolicamente representativa. Para isso, ele faz uma análise das principais facetas de uma dança específica sobre a qual pesquisou. Aliado a isso, ele tece uma crítica à falta de relevância dada à dança nos relatos etnológicos, considerando que esta é muitas vezes percebida como uma atividade independente, sendo descrita,

frequentemente, sem qualquer referência ao contexto de sua existência na vida nativa do grupo. Desse modo, em sua pesquisa, ele correlaciona as danças para cada momento da vida em comunidade:

Existem danças especiais para cerimônias de circuncisão, outras especiais para as várias sociedades secretas, outras especiais para filhos de chefe, outras restritas para mulheres ou, por exemplo, aquelas para cerimônias funerárias e outras que são realizadas apenas como acompanhamento do trabalho econômico (EvansPritchard, 2010, p.3).

Assim, dentre uma gama de possibilidades diversas de danças encontradas entre os Azande do Sudão Anglo-Egípcio, o autor optou por enfocar a dança da cerveja, para demonstrar a função social que ela exerce na comunidade. O artigo é dividido em oito partes, que funcionam como um interessante roteiro para qualquer etnógrafo interessado em descrever uma dança a partir da compreensão de que ela não ocorre de forma independente do grupo no qual está inserida. O autor traz os principais elementos que compõem a dança, tal como pode ser visto abaixo, compreendendo que esta só pode existir em função da coexistência dos elementos que ele destaca ao longo do seu texto como partes estruturantes da dança. Em outros termos, na ausência de um desses elementos, a estrutura da dança da cerveja se perde. Na abertura do trabalho, isto é, no primeiro momento, o autor aborda a dança, enfocando que ela sempre vai possuir uma função social, seja qual for. Principalmente pelo fato de compreendê-la como coletiva e nunca individual, ele enfatiza que a dança não pode ser considerada apenas uma diversão, apesar de também poder sê-la para aqueles que a vivenciam. Sendo assim, ela deve ser compreendida, não apenas pelas funções psicológicas e fisiológicas que exerce, mas, principalmente, pelo seu valor social perante o grupo ao qual pertence. A partir dessa breve introdução sobre a relação da dança tanto com o grupo ao qual pertence, bem como com o momento na qual ocorre, é iniciada a descrição minuciosa dos sete elementos que compõem a estrutura. Inicialmente o autor aborda dois elementos relacionados, a nosso ver, à musicalidade. O primeiro deles é intitulado música. Neste, o foco é a descrição dos instrumentos utilizados e os materiais necessários para fabricá-los. Aponta-se também para os acessórios utilizados nos instrumentos como, por exemplo, as

baquetas, que são utilizadas para bater os tambores, assim como o posicionamento que os músicos devem possuir para tocá-los. O segundo elemento relativo à musicalidade é chamado de canção. Neste, o foco é sobre a “música da voz humana”. As melodias são transitórias e o significado expresso pelos que cantam e/ou escutam as canções vai depender do quanto estão familiarizados com as pessoas ou os acontecimentos neles referidos. Além disso, o autor cita que a habilidade em ridicularizar os inimigos por meio da canção é o que torna um criador de canções popular e perspicaz. Tal como no jongo e na maioria das canções africanas, a canção da dança da cerveja etnografada é antifonal, isto é, cantada alternadamente por um solista e pelo coro. O corpo e os gestos que acompanham os responsáveis pelo canto compõem e integram a canção, tanto quanto as palavras. Em seguida, o autor entra no formato da estrutura da dança propriamente dita, o que compreendemos ter relação com a performance da dança analisada. Este momento é contemplado por três elementos: movimento muscular, padrão da dança e liderança da dança. O primeiro deles, movimento muscular, versa sobre o movimento do corpo realizado na dança. “O africano dança com o corpo todo” (Evans-Pritchard, 2010, p.7). Na dança da cerveja nem todos realizam os mesmos movimentos, no entanto, todos são feitos no mesmo ritmo. O autor insiste na ausência de uma marcação coreográfica específica, dizendo que não acredita que haja alguma correlação específica entre um tipo de passo e um tipo de melodia. Há apenas um ritmo que os leva a movimentar os corpos livremente. O segundo ponto remete à dinâmica da dança em sua coletividade. Para demonstrar o padrão da dança, além de ter desenvolvido um esquema gráfico referente a ele, o autor o descreve detalhadamente sob dois prismas: primeiro em função do posicionamento assumido por homens, mulheres, crianças, solistas e os próprios instrumentos (tambores) na dança; em seguida a partir dos movimentos corporais que cada um desse conjunto de personagens descritos anteriormente assume em relação aos outros, com exceção, nesse caso, dos tambores que compõe a roda sem, contudo, fazerem qualquer movimento. Finalmente, o último elemento abordado sobre o formato da dança propriamente dito é a liderança na dança. Neste, o autor aborda o tema da

liderança, ou seja, ele tanto descreve os líderes de canções da dança da cerveja, como discorre sobre o processo de formação aos quais os interessados em tornarem-se líderes devem se submeter - na condição de aprendiz - para, mais tarde, assim o serem. A função do líder é organizar a atividade. “O prestígio do líder é obviamente condicionado por sua habilidade na composição e no canto das canções, mas tal habilidade, aos olhos dos Azande, deve-se à posse da magia certa” (Evans-Pritchard, 2010, p. 10). O autor também cita as formas de transmissão da magia, que são passadas dos líderes para os aprendizes que, futuramente, ganharão o título e o reconhecimento da comunidade enquanto líder da dança. Finalizando seu trabalho etnográfico, o autor aponta para dois elementos que, em conjunto, podem ser correlacionados ao valor social que a dança da cerveja assume entre os Azande. O primeiro deles é intitulado função social da dança. O autor inicia a narrativa desse elemento com a seguinte questão: “qual é o valor da dança na sociedade primitiva, que necessidade ela satisfaz, qual o papel desempenhado por ela na vida nativa?” (Evans-Pritchard, 2010, p. 11). Uma das questões que emerge dessa reflexão é a inserção de crianças ainda bebês numa sociedade que está para além de seu pequeno núcleo familiar, ou seja, mães levam seus bebês para a dança e, assim, inserem-nos socialmente, na vida em comunidade. Seria, portanto, a forma de inserção e apresentação dos recém-nascidos ao grupo. Além disso, a dança também exerce função sexual, à medida que permite e estimula o flerte entre a juventude que a vivencia. Já com relação aos adultos, o autor cita que o objetivo principal é fomentar a sociabilidade e o divertimento, espaço de troca de experiências. O segundo elemento é intitulado papel da dança em cerimônias religiosas. Aqui, o autor aborda as especificidades dos ritos relacionados à dança, de acordo com a cerimônia que a envolve. Em relação aos atos funerários, por exemplo, Evans-Pritchard (2010, p. 16) diz que: “a multidão torna o banal e desagradável trabalho de levar as pedras para o túmulo, as vergonhosas discussões acerca da quantidade de lanças ou de cerveja a ser trocada, uma ocasião memorável”.

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