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4.1. “Se você é bom decifra o que eu quero te dizer”
from Jongo e educação: a construção de uma identidade quilombola a partir de saberes étnico-culturais do
da sociedade em geral - enquanto quilombolas, que se encontra a mais recente ressignificação do jongo, que intitulamos como sendo o jongo de apresentação. Desse modo, no que tange à dicotomia tradição e modernidade, o jongo em Bracuí apresenta uma trajetória que pode ser traduzida por três processos de ressignificação, experimentados em três momentos diferentes, que acompanhou objetivos sociais específicos em cada um deles, desde o seu reavivamento, pautado na “tradição inventada”, aos quais nominamos numa ordem cronológica de: 1) jongo renascido, sobre o qual já discorremos no capítulo 3, e teve como protagonismo o Délcio e os velhos jongueiros; 2) jongo de formação, representado pelo projeto “Pelos Caminhos do Jongo”; 3) jongo de apresentação. Mas, antes de adentrarmos estas duas últimas categorias analíticas, cabe trazermos um pouco da memória construída em torno daquilo que pode ser considerado, na comunidade, de jongo tradicional, para que seja possível, a partir dessa explanação inicial, compreendermos melhor cada um dos processos vinculados à “inventividade da tradição”. A seguir, damos voz aos velhos jongueiros de Bracuí para a descrição desta memória.
4.1 “Se você é bom, decifra o que eu quero te dizer”
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“Se você é bom, decifra o que eu quero te dizer” foi a reposta de um jovem quilombola, de 22 anos, quando perguntado sobre o que seria um ponto de demanda ou desafio39. Em Bracuí eles utilizam demanda e desafio com o mesmo
significado para a classificação de um ponto de jongo de caráter enigmático ou mágico. Outras pessoas, como no caso da Marilda, consideram pontos de demanda e pontos de feitiço como sendo a mesma coisa. Estamos falando aqui da memória de um jongo que existia antes do seu renascimento na comunidade, representada pela experiência dos velhos jongueiros ainda vivos e/ou pelo discurso construído em torno dele, a partir de sua reinvenção. É o que estamos
39 Um exemplo de um ponto de desafio que pudemos registrar, cantado pelo Seu Guache (Jorge Martins, 56 anos) durante uma conversa informal conosco: “400 bois andando, marchando por um sertão, eles indo eles voltando, quantos rastros tem no chão”. A resposta para esse ponto seria a seguinte: “Comecei a fazer minha conta no barracão do Zé da Cunha, depois da conta somada, dá 3.600 unhas”. Outro exemplo de ponto de feitiço foi cantado pela Marilda, numa entrevista concedida a nós: “Passei na ponte, a ponte tremeu, se essa água tem veneno, baiano que bebeu morreu”.
chamando aqui de jongo tradicional, sobre o qual processos de modernização ocorreram, dentre os quais, a extinção dos pontos de demanda/desafio/feitiço. Para além do título acima, que expressa o ponto de demanda/desafio/feitiço, podemos falar sobre outras questões que emergem na/da performance desse jongo tradicional que reverberam, justamente, dessa “espontaneidade” nos cantos. Nesse caso, se há uma provocação oral, há, consequentemente, o improviso da resposta que, ainda que seja tirada na hora, deve ter coerência com o que foi demandado, isto é, com o desafio lançado. Além disso, a versatilidade dos pontos traz uma maior liberdade no toque dos tambores (ritmo) e, por consequência, nos passos dançados ao centro da roda. Ora, se o jongo era dançado pelos mais velhos, podemos dizer que a técnica corporal do casal no centro da roda não era coreografada e nem exigia grande dificuldade, ou seja, não existia uma técnica ou um gesto específico, o que havia era uma expressão corporal que permitia a cada um deles criar uma dança à sua maneira. Isso pode ser traduzido pela dança de um casal em que a mulher fazia um passo básico, que tinha como objetivo fazer a saia rodar (movimento chamado de pião), enquanto o homem marcava os passos com total liberdade. Mas, como era uma roda de jongo dançada pelos jongueiros de Bracuí? Segundo os relatos que obtivemos, o jongo tradicional acontecia num formato diferenciado dos jongos ressignificados, que categorizamos anteriormente (jongo renascido, jongo de formação e jongo de apresentação). Para começar, os jongueiros não necessariamente dançavam em rodas. Seu Zé Adriano nos contou que “antigamente não se faziam rodas assim não, os casais dançavam livremente ao som do tambor”. Além disso, os jongueiros improvisavam pontos no exato momento da roda, utilizando elementos simbólicos voltados para situações vivenciadas por eles, como se ali fosse um momento para se resolver ou expor alguma pendência, como nos mostra o exemplo a seguir, narrado por Seu Zé Adriano (abril de 2011):
Um rapaz que vinha sempre aqui brincava com a gente, começou a namorar uma moça daqui. Daí ele chegou um dia e viu que ela tava com outro rapaz. Ele chegou no jongo, parou o tambor e cantou assim: “Chega e chora, o canário chega e chora, quando a fruteira é murcha o canário chega e chora”. Ele tirou esse ponto de jongo na hora ali e ninguém sabia o que ele tava cantando.
Marilda nos lembra sobre os pontos de feitiço contandoo que, quando a pessoa não sabia responder ao ponto ao qual foi demandada, ela ficava “amarrada” e a roda podia até acabar. Quando tinha um terceiro jongueiro “entendido,” ele se metia e “desamarrava” o ponto. De acordo com Travassos (2010), na linguagem jongueira, amarrar é um trunfo dos melhores e mais experientes cantores de jongos. No jongo, um jongueiro fica amarrado quando alguém entoa um ponto enigmático que os outros não sabem interpretar, ou melhor, “desatar” . Funciona como uma competitividade entre jongueiros que se provocam reciprocamente e recebem prestígio com pontos de efeitos extraordinários. Os enigmas de tais pontos são construídos com base em metáforas, algumas delas praticamente congeladas numa espécie de código que somente os jongueiros mais experientes dominam. Ainda que em Bracuí, e em grande parte das comunidades que visitamos ao longo do trabalho de campo, o caráter enigmático dos pontos tenha sido abolido, não descartamos a possibilidade de que ainda haja jongos pela região Sudeste que mantenham esta tradição. Além dos pontos de feitiço, Marilda também discorre sobre o processo antigo de apreensão do jongo, que ocorria por parte das crianças, mesmo estas sendo proibidas de entrarem nas rodas, diferenciando-o completamente daquela que ocorre nos dias atuais. Elas aprendiam-no vendo e ouvindo os mais velhos, principalmente os pontos, que eram cantados por vezes no dia a dia mesmo, durante as atividades cotidianas, como no momento de cozinhar ou do trabalho nas plantações. Dona Zélia, outra quilombola de Bracuí, fala sobre este processo tradicional de apreensão do jongo no cotidiano. Ela conta que, enquanto criança, apreendeu os pontos no dia a dia, ouvindo-os dos mais velhos40 . Ela faz questão de tecer algumas críticas ao jongo que vem sendo dançado atualmente, dizendo, enfaticamente, que não era assim que se dançava. Em suas palavras: “tá tudo errado!” A primeira crítica dela é com relação aos tambores utilizados hoje, muito diferentes dos utilizados no jongo tradicional, que eram feitos com couro de caça, de porco do mato. O barulho deste tambor era muito mais alto do que os de hoje. “Ouvia-se de longe as batidas de uma roda de jongo”. Outra crítica diz respeito à
40 Ela aprendeu alguns pontos com seu irmão mais velho. Um deles foi cantado por ela quando visitei sua casa: “Bate tambor arrepia a biborna, cuidado minha gente, tem nego na morna”. Para este ponto ela emenda o ponto resposta cantando: “ê ê ê ê ê ê ê ê”.
performance. Segundo a mesma, no jongo tradicional, isto é, na memória construída em torno do jongo que foi presenciado em sua infância e juventude, não se batia palma na roda, o que era muito importante para ouvir os pontos que eram colocados, e para respondê-los adequadamente. Em suas palavras: “hoje todo mundo fica batendo palma e não se escuta a voz e nem os pontos direito. Fico olhando de longe só pra constatar como tá tudo errado”. Percebemos, então, que, do ponto de vista da performance, há um consenso de que o jongo tradicional foi modificado - continuando a se modificar processo este que teve como marco substancial o seu renascimento em Bracuí. Os elementos destacados a seguir, relativos à performance do que teria sido o jongo tradicional, emergiram da fala dos velhos jongueiros, não de forma a deslegitimar o jongo dançado hoje na comunidade, mas com o intuito de valorizar o que seria, em suas visões, o verdadeiro e autêntico jongo, aquele que eles dançaram, conheceram e apreenderam: liberdade e espontaneidade dos passos na dança, isto é, ausência de uma coreografia; formato livre para o jongo, que não necessariamente pressupõe uma roda; recusa com relação à participação de crianças; enfoque para a característica do tipo pergunta e resposta no canto dos pontos e, por isso, a necessidade de não se bater palmas; a espontaneidade e os feitiços dos pontos e, portanto, a exacerbação do caráter mágico do jongo, isto é, da linguagem cifrada. Dentre estes elementos citados anteriormente, que expressam a memória construída com relação à performance do jongo, o que houve mais dificuldade em ser investigado, ao longo do trabalho de campo, foi o tema dos pontos de demanda. Por outro lado, este foi o único item que pareceu não trazer nenhum saudosismo por parte dos velhos jongueiros. Estes garantem que não há nenhum caráter de feitiço no jongo dançado atualmente na comunidade, o que, em nossa análise, sugere uma concepção positiva por parte deles em relação a tal ausência. Na verdade, pudemos perceber que esse tema é revestido de segredos, pois quando perguntávamos aos velhos jongueiros sobre os pontos de demanda ou sobre os feitiços do jongo, eles demonstravam que isso não lhes pertencia mais, que o jongo hoje era das crianças, que só estas poderiam falar sobre ele, mudavam o foco da conversa, esquivavam-se do assunto.
Perguntei sobre os pontos de demanda algumas vezes para Seu Zé Adriano, se ele já tinha visto ou se tinha vivido isso. Após alguma insistência, consegui a seguinte resposta dele: “Ah isso aí não... nunca demandei com ninguém... Antigamente existiam essas coisas. Aqui até tinha alguns, só os senhores mais velhos, meu pai... só essa gente mais vivida”. Há um paradoxo em sua fala. Ao mesmo tempo em que é negado o envolvimento com a magia e os feitiços do jongo, certa proximidade é demonstrada através do envolvimento de jongueiros próximos, como seu pai, por exemplo, que era considerado um jongueiro “cumba”. Entretanto, se os velhos jongueiros não gostam de falar sobre esse assunto, os jovens, pelo contrário, discorrem abertamente sobre os pontos de demanda/desafio/feitiço do jongo tradicional. Apesar de nunca terem visto um feitiço em roda de jongo, já escutaram muitas histórias contadas pelos mais velhos. Ainda que hoje estes se neguem a falar sobre isso, em algum outro momento isso era falado no interior da comunidade, o que, de certa forma, explicava a proibição das crianças e jovens no jongo, justificativa esta que era passada de geração para geração. Ao perguntar a um jovem quilombola se ele acreditava nos feitiços do jongo, obtive a seguinte resposta: “como seria possível não acreditar nos feitiços do jongo, se o que se ouvia aqui em Bracuí sobre os feitiços foi narrado exatamente igual em outras comunidades, sendo que nós nunca se viu antes”? (Leandro, Novembro, 2011). Ele continua sua fala dando o exemplo da banana verde que, ao longo da noite de jongo, amadurecia por conta da marafunda da roda, e me explica que tal fato é narrado por outras comunidades jongueiras também. Ressaltarmos que a memória coletiva em torno do que convenhamos chamar de jongo tradicional está impregnada de casos, ou melhor, causos que exprimem a propensão ao feitiço, proveniente da prática do jongo. Como já dito anteriormente, outras características do jongo tradicional são sentidas como perdas por alguns dos velhos jongueiros de Bracuí, que assistem, um tanto quanto incomodados, às mudanças relacionadas à sua prática. Com raras exceções, é incomum os vermos nas rodas junto às crianças e aos jovens. Tanto que foi sugerido às lideranças quilombolas, a criação de um jongo só dos adultos, do qual as crianças não participariam. Até onde avançamos, não vimos tal