5 minute read

4. Entre a tradição e a modernidade

4 Entre a tradição e a modernidade

Neste quarto capítulo faremos uma análise sobre o reavivamento do jongo na comunidade de Bracuí e, consequentemente, os processos de ressignificação ao qual tal prática foi sendo submetida, desde o seu renascimento até os dias atuais, quando podemos conntemplá-la no formato de apresentação. Apesar das duas categorias (reavivamento e ressignificação) já terem sido utilizadas ao longo do texto, em capítulos anteriores, entendemos que é chegado o momento de caracterizá-las analiticamente.

Advertisement

Ao trabalharmos com a categoria reavivamento ou reinvenção (compreendidas ao longo do texto com o mesmo sentido) ou ainda “invenção” (que utilizamos para enfatizar a criação do jongo em comunidades como as de Campinho da Independência e Fazenda da Caixa, que não possuíam memória em torno de sua prática e, portanto, passaram por um processo diferenciado na chamada “rede de resgate”), estamos fazendo menção à noção de “tradição inventada” (Hobsbawn, 2006). Esta sinaliza para uma espécie de continuidade que se dá entre o passado e o presente que, operando ideologicamente em conjunturas sócio-históricas determinadas, acomoda-se na construção de campos políticos. Quando falamos do reavivamento ou da “invenção” do jongo, seja pela ideia de uma rede de troca entre comunidades jongueiras, que se dá, tanto através de mediadores externos, assim como de contextos de mediação específicos, seja no interior da própria comunidade de Bracuí, através de educadores populares que contribuíram para transformar uma tradição familiar em tradição coletiva, estamos partindo da invenção de uma tradição - no caso um bem cultural - datada do período da escravidão no Brasil, que legitima hoje, no caso das comunidades quilombolas, sua ancestralidade e, portanto, seu direito sobre o território ocupado. Logo, a memória coletiva, construída em torno do jongo enquanto uma tradição praticada no passado, permitiu tanto a sua reinvenção como, em alguns casos, sua própria “invenção”, ainda que ambos - tanto esta como aquela - possam ser considerados símbolos identitários, sendo irrelevante questionarmos sua legitimidade ou autenticidade. Mas, se por um lado, falamos em reavivamento, reinvenção ou “invenção”, o que segundo o trabalho de campo só foi permitido mediante a memória da

tradição do jongo entre os descendentes das antigas fazendas escravistas, por outro, há processos de ressignificação que assolam essa “tradição inventada”. Esses processos podem ser tanto universais (comum a várias comunidades ou grupos jongueiros), como particulares (nesse caso, as ressignificações são capazes de diferenciar uns dos outros, fazendo com que haja uma grande variedade de jongos praticados). Não queremos, portanto, fazer uma busca do passado no presente, ainda que tenhamos descrito no segundo capítulo o porquê de Bracuí ser considerada uma comunidade de resistência jongueira. Interessa-nos, aqui, discorrer sobre as constantes ressignificações do jongo na comunidade, isto é, as mudanças relacionadas à sua estrutura ao longo do tempo. Para tanto, recorremos ao viés da “inventividade da tradição” (Sahllins, 2004), que compreende as tradições na história moderna como modalidades culturalmente específicas de mudanças recriadas no, e para, objetivos presentes. Nas palavras do autor: “[...] nenhuma cultura é suis generis. E a fabricação mais ou menos consciente da cultura em resposta a “pressões” externas imperativas, é um processo normal [...]” (Sahlins, 2004, p. 522). Como já descrito no capítulo anterior, o jongo do Bracuí passou por três momentos principais de ressignificação. O primeiro deles representou o seu renascimento. Para que tal fato ocorresse de forma positivada, houve a necessidade de um primeiro processo de ressignificação38, que se deu em duas esferas diferenciadas que, no entanto, complementam-se: a extinção dos pontos de demanda ou feitiço e o convite às crianças para entrada nas rodas, o que não necessariamente ocorreu nessa ordem narrada. No entanto, cumpre destacarmos que, caso a primeira ressignificação não acontecesse, o jongo do Bracuí correria o risco de ser extinto, já que os saberes relativos à sua prática morreriam junto aos velhos jongueiros que ainda estavam vivos. Intitulamos o jongo deste momento de renascimento na comunidade de jongo renascido.

38 Lembramos que o jongo vem sendo ressignificado desde o período da escravidão, isto é, vem passando por constantes processos de modernização e mudanças estruturais relacionados à sua prática. Foi rechaçado por um longo período pós-abolicionista em diversas partes do estado do Rio de Janeiro, principalmente nas áreas urbanas que recebiam os velhos jongueiros migrantes originários da área rural. Entretanto, neste trabalho interessa focarmos os processos de ressignificação que surgiram a partir do renascimento do jongo em Bracuí, uma vez que estamos trabalhando com a relação entre esta prática e a construção de uma identidade étnica vinculada ao quilombo.

Após o renascimento, há um segundo processo de ressignficação do jongo em Bracuí, que remete à sua incorporação como prática cotidiana na vida das crianças e jovens, o que foi fortalecido a partir do projeto “Pelos Caminhos do Jongo”, como já descrito no capítulo 3. Ainda que alguns velhos jongueiros não tenham gostado muito desse fato, as crianças e jovens passam a dominar as rodas. Como consequência disso, podemos dizer que os processos educativos vinculados a ele contribuíram significativamente para a formação identitária dos mesmos, bem como para uma espécie de instrumentalização político-pedagógica para adentrarem na luta pelos direitos quilombolas, garantido uma continuidade e um fortalecimento do movimento social promovido, tanto internamente à comunidade de Bracuí, como externamente, com a articulação estadual e nacional do movimento. Intitulamos o jongo neste segundo momento de ressignificação de jongo de formação. Um movimento recente em relação ao jongo vem sendo literalmente observado nos últimos anos, tanto por nós pesquisadores, como pelos “outros,” em geral. Tal movimento deu origem ao terceiro processo de ressignificação, cujo papel do jongo passa a ser o de visibilidade política e (re) afirmação identitária para além da comunidade e dos próprios quilombolas. Como resultado desta ressignificação há uma adaptação que transforma as rodas, que ocorriam no interior da comunidade - ou entre comunidades jongueiras - num formato de celebração e sociabilidade, numa apresentação aos “externos”, com tempo de duração pré-estabelecido, recebimento de ordenado (cachê), palco, sendo, até mesmo, acordados antecipadamente os pontos de jongo que serão cantados por este ou aquele jovem jongueiro. Este último e mais recente processo de ressignificação observado foi intitulado por nós como jongo de apresentação. Sugerimos que, no contexto do que chamamos de “inventividade da tradição” trazido por Sahlins (2004), com a identidade étnica devidamente fortalecida entre eles mesmos, internamente, os jovens quilombolas jongueiros de Bracuí não teriam outra alternativa para permanecerem na luta por seus direitos constitucionais e por políticas públicas diferenciadas, que não fosse recriar-se à imagem que os outros fazem deles. E é justamente nesse ponto de legitimá-los tanto por parte do poder público, como por parte do meio acadêmico e, também,

This article is from: