“O maior carnaval do mundo”: discursos e repertórios no carnaval de rua do Rio de Janeiro

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É interessante notar que no primeiro momento de ocupação do espaço público, no final do século XIX, o espaço de maior interesse já era a zona central da cidade, e naquele momento uma série de grupos, formados nas áreas mais pobres da cidade, tiveram papel de destaque na configuração das práticas musicais envolvidas no carnaval de rua. Atualmente a área que era ocupada por estes grupos está entre as áreas que estão sendo revitalizadas, e ocupadas pelo carnaval, mas não há uma produção musical própria destes locais que as diferencie das outras práticas carnavalescas, como aconteceu com os ranchos e as escolas de samba no começo do século XX. Se naquele momento o carnaval se estabeleceu junto com novas práticas musicais, atualmente ele se baseia muito mais na ideia de tradição. Ao mesmo tempo em que a concepção simbólica destes espaços condiciona seu interesse para os festejos carnavalescos, os próprios desfiles atuam como um elemento simbólico e discursivo que reestrutura o próprio caráter simbólico do espaço. A prática de um repertório específico, uma performance específica, delimita o espaço público como um espaço social, não pela exclusão direta de determinado grupo, mas por atrair grupos específicos. Nepomuceno (2011) apresenta um relato que ilustra esta questão, e destaca alguns processos de exclusão que podem ser observados no contexto do carnaval, em uma situação que já pude observar diversas vezes durante o trabalho de campo: O primeiro estandarte levava o nome do cordão e uma imagem de São Sebastião, padroeiro da cidade. Entre marchinhas antigas – tocadas com muita qualidade e esmero –[...] Em contraste com os homenageados – quase todos negros, do Rio, da Bahia, da Jamaica – os fantasiados que compartilhavam comigo daquela festa, não eram tão coloridos assim. [...] Não pretendo afirmar com isso que houvesse algum empecilho criado pelos membros do cordão ou pela platéia. [...] Nesse Domingo de Carnaval, num dos blocos que reconhece e homenageia ícones da cultura negra carioca, brasileira, atlântica, encontramos a maioria dos negros vendendo água ou catando latinhas pelo chão do centro histórico do Rio de Janeiro. (NEPOMUCENO, 2011, p. 13)

A relação racial descrita por Nepomuceno também reflete claramente um componente social e econômico. Aponta não só para a falta de pessoas negras, mas para a sua presença em uma posição subalterna. Não se trata de qualquer proibição a sua presença, mas da construção de um espaço social específico, dominado por outro grupo. E que tem sua produção simbólica baseada na imagem justamente do grupo excluído daquele espaço. Neste sentido, é possível pensar que o repertório musical faz parte de um repertório mais amplo de performances e ações coletivas ligadas à ocupação do espaço público durante o


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