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CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................1
É possível destacar, neste momento, que o processo de reforma urbana coincide com
um crescimento do carnaval de rua baseado em préstitos. Em um processo de valorização da
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área central da cidade, e remoção de uma população pobre que anteriormente ocupava estas
áreas, o carnaval carioca adota um repertório de práticas que tem como elemento central a
ocupação destas áreas.
O carnaval de rua, neste contexto, não aparece como um elemento subversivo da
ordem, ou como um elemento ligado ao “baixo” como discutem Stallybrass e White (1986),
mas como uma série de práticas heterogêneas e ambíguas, que se posicionam discursivamente
e politicamente como práxis.
O que pode ser constatado, é que entre os diferentes discursos envolvidos nesse
processo, o carnaval carrega inscrito em suas práticas o próprio binarismo social entre elite e
povo. Enquanto o centro da cidade se organizava como um lugar de negócios e lazer, outras
áreas da cidade começavam a se constituir, social e simbolicamente, como locais de exceção,
e que se firmariam em um contexto de segregação social que perdura até hoje.
Como Abreu explica:
Ao concentrarem-se nos morros de Santo Antônio e da Providência na virada do século, entretanto, os barracos que aí surgiram passaram a constituir uma exceção de peso. Somente a chancela da autorização militar e o caráter provisório atribuído a esses alojamentos parecem explicar a ausência de uma condenação imediata da Saúde Pública, de resto tão empenhada na demolição das habitações insalubres. A retomada da ação punitiva, evidenciada pela remoção da favela do morro de Santo Antônio ante mesmo da reforma urbana, indicava, entretanto, que o controle do espaço urbano voltaria ao comando do Estado. É um fato, entretanto, que isto não aconteceu. Tendo sido poupado da remoção forçada que atingira o morro de Santo Antônio, talvez por sua localização mais afastada do centro nervoso da cidade, o morro da Providência não só permaneceu como exemplo notável de um contramovimento que se instalava na cidade, e que desafiava a ordem que lhe era imposta pelas classes dirigentes, como assumiu um papel de destaque na crônica policial carioca. É que logo começaram a ocorrer aí uma série de crimes, em nada diferentes daqueles que aconteciam nos densos bairros populares da cidade, mas que se distinguiam dos demais por duas razões: primeiro, pela localização exótica do aglomerado e pela inexistência, aí do aparato de repressão preventivo que percorria as demais áreas; segundo, porque em função das características do local (acesso difícil, possibilidade de emboscada), a ida da polícia ao morro geralmente se revestia de um caráter verdadeiramente militar. Em 1902, o morro da Providência já é visto pela imprensa como “uma vergonha para uma capital civilizada”, como “o perigoso sítio que a voz popular denominou morro da Favela”. Não há como saber se foi mesmo a “voz popular” ou, o que é mais provável, a “voz burguesa”, que acabou dando a esse morro a imagem de “perigoso sítio”. A verdade, entretanto, é
que a alcunha “morro da Favela” rapidamente tomou o lugar da toponímia anterior, e a associação do termo “favela” às imagens de “perigo”, de “crime” e de “descontrole” generalizou-se pela imprensa. (1994, p. 39)
Neste ponto é necessário destacar que, mesmo que em algum momento o carnaval
assuma o discurso da burguesia e das produções culturais hegemônicas, e que se estruture
uma série de repertórios e campos de produção no seu entorno, o carnaval não encerra o
domínio do espaço, na verdade, como possibilidade de oposição, ele abre caminho à disputa.
Se, por um lado, os grandes clubes e seus luxuosos préstitos incorporaram as
categorias de “alto” da sociedade burguesa da primeira república, estampando as notícias de
maior destaque do JB; uma série de outros grupos vinha ganhando cada vez mais destaque, e
principalmente por sua prática musical.
Neste contexto, os campos de produção envolvidos, em uma tendência de
autonomização, foram formando mecanismos de avaliação próprios, e acionando diferentes
práticas, em um processo que também estrutura uma série de repertórios em diferentes
ambitos.
Dentre os repertórios carnavalescos, o préstito aparece como um primeiro elemento de
destaque na configuração de um carnaval carioca. No campo musical, isso significou a
possibilidade de constituição de um novo sub-campo de produção específico, o da música de
carnaval.
Apesar de uma truculenta reforma urbana, e de todo um processo de exclusão de
populações pobres da área central da cidade, nesse período a produção cultural de uma área
próxima ao centro, e de população pobre, começa a adquirir um papel cada vez mais
importante no carnaval carioca. De certa forma, disputando simbolicamente um espaço do
qual haviam sido expulsos.
Está área, por abrigar um grande número de escravos alforriados, é chamada por
Heitor dos Prazeres de “Pequena África” (MOURA,1995). Segundo Moura (1995), após a
abolição da escravidão, houve um grande processo de migração de escravos alforriados da
Bahia para o Rio de Janeiro, que iria formar “praticamente uma pequena diáspora baiana na
capital do país” (MOURA, 1995, p.61). Sendo que grande parte dos migrantes baianos “iria
situar-se na parte da cidade onde a moradia era mais barata, na Saúde, perto do cais do porto,
onde os homens, como trabalhadores braçais, buscam vagas na estiva” (ibidem, p.62). Assim,
a “Pequena África” se estendia da zona do cais do porto até a Cidade Nova, incluindo a
importante Praça Onze.
Considerada o berço do samba carioca, é nesta área da cidade em que residiam as
figuras mais importantes na história da formação deste gênero. Dentre elas Tia Ciata, uma das
“tias” baianas mais famosas. Em sua casa aconteciam festas que congregavam figuras
importantes do samba, e foi em uma destas festas onde teria sido composto o samba de
enorme sucesso no carnaval de 1917, “Pelo telefone”55 .
Mas também habitavam esta região vários outros personagens importantes na
produção musical daquela época, e como aponta Moura (1995):
Outras tias também fizeram a história da Pequena África. Tia Perpétua, que morou na rua de Santana, Tia Veridiana, mãe do Chico Baiano, Calu Boneca, outra mãe-de-santo, Maria Amélia, Rosa Olé, da Saúde, Sadata da Pedra do Sal, que foi uma das fundadoras do Rei de Ouro com Hilário Jovino, o primeiro rancho organizado no Rio de Janeiro. (p.135)
Hilário Jovino, citado por Moura como um dos fundadores do Rei de Ouro, primeiro
rancho carnavalesco, também participou da fundação de diversos outros grupos
carnavalescos, entre eles o rancho Rosa Branca, que já foi citado anteriormente neste trabalho,
entre os grupos descritos no carnaval de 1900 pelo JB56. Na verdade, esta descrição ressalta
duas das contribuições mais importantes da Pequena África para o carnaval carioca. Os
ranchos carnavalescos e o samba, dois elementos que iriam contribuir para a formatação do
carnaval carioca da maneira como ele é hoje em dia.
Neste ponto, já é possível destacar uma serie de semelhanças entre este primeiro
processo de ocupação do espaço público pelos desfiles carnavalescos e o processo em curso
hoje, do qual trata esta tese.
Inicialmente, é possível destacar a concomitância entre a ocupação do espaço público
pelos desfiles de carnaval, o surgimento de uma serie de novas praticas e performances
musicais, e um processo de reurbanização e revitalização da zona central da cidade que
contemplam um vetor político e econômico. A valorização simbólica do espaço e a
valorização econômica como elementos intrínsecos, e a prática musical como principal
elemento organizador destes novos modelos.
55 “Pelo Telefone” é um samba importante dentro da história do gênero, e possui duas peculiaridades. A primeira diz respeito à história sobre a sua autoria. O samba foi registrado por Donga, como este sendo o autor da música, quando a música teria sido composta, na verdade, deforma colaborativa com outros músicos durante uma roda na casa de Tia Ciata. A segunda peculiaridade diz repeito a um mito fundador de que este tenha sido o primeiro samba gravado, quando na verdade há gravações mais antigas do gênero, mas que não alcançaram o mesmo sucesso de “Pelo Telefone”. 56 Como “uma multidão de gentis e guapas bahianas, a dansar o samba correcto da Lyra” (GRUPOS, 28 fev.1900, p.2).
Além destas semelhanças, outro ponto de comunicação importante entre estes dois
processos, pode ser percebido no atual valor simbólico conferido às práticas e símbolos
surgidos neste primeiro momento. Práticas que alcançaram o status de práticas oficiais da
festa, e que atualmente possuem um caráter simbólico de legitimidade. São as práticas e
símbolos do “legítimo” carnaval carioca.
Foi neste primeiro período que se formaram os modelos de celebração que são
predominantes até hoje, e também os dois gêneros musicais que dominam as práticas
carnavalescas na cidade, o samba e a marchinha.
Dentre os diversos casos atuais em que elementos simbólicos ligados à construção
histórica do carnaval carioca são acionados durante os desfiles dos blocos, um elemento que
se destaca entre os mais recorrentes, é a utilização destes dois gêneros musicais.
Ambos são associados ao contexto carnavalesco a partir de sua popularização neste
período, e principalmente na prática de dois modelos específicos de agremiação carnavalesca,
os ranchos carnavalescos, e posteriormente as escolas de samba.
Não cabe neste trabalho uma descrição pormenorizada do surgimento e da história
destas agremiações, mas é possível destacar algumas informações sobre os elementos que são
acionados de forma mais recorrente no contexto atual.
Os novos grupos atuantes no carnaval de rua carioca, ou seja, os blocos de rua que
vêm surgindo desde o ano 2000, apresentam algumas características em comum entre si, bem
como características contrastantes. Entretanto, apesar das especificidades de cada um,
constituem um modelo de organização que pode ser diferenciado do das Escolas de Samba.
Existe uma clara separação entre o modelo dos blocos de rua e o das escolas de samba,
tanto em termos legais, como no tipo de associação, estrutura de desfile, formação
instrumental dos grupos, e também em sua composição social..
As Escolas de Samba tem como uma característica distintiva, o fato de utilizarem uma
formação instrumental própria, e específica. A bateria das escolas de samba. E também, é
claro, terem o repertório composto exclusivamente de sambas-enredo.
Existem, no carnaval de rua atual, alguns blocos que contam com uma bateria, no
modelo das Escolas de Samba, mas é possível observar um número muito mais diverso de
formações instrumentais sendo utilizadas. Dentre as quais, ainda, é possível apontar a
recorrência de uma formação musical que tem seu cerne em instrumentos de sopro e
percussão.
Trata-se de um modelo que também remonta a este período histórico de estruturação
do carnaval de rua, e se relaciona diretamente com a atuação dos Ranchos.
Como Araujo (2005) nos informa:
Ao final da primeira década do século XX, os ranchos ganham a adesão de representantes de empregados do comércio, da indústria e, principalmente, do setor de serviços. É fundado nessa época o Ameno Resedá, cuja estrutura levará alguns cronistas da época a considerá-lo modelar, um rancho escola. Em padrão típico de seus congêneres, o Ameno congregava funcionários públicos, operários das fábricas de tecido e do Arsenal da Marinha (Efegê, 1965). A adesão desse novo componente social resultou na incorporação de novos elementos aos ranchos, como o conjunto de sopros e o coro de pastoras, além de um repertório de maxixes, marchas e dobrados. A formação instrumental de banda de sopros, que se difundiu no Rio de Janeiro durante o século XIX, principalmente entre as corporações militares, já vinha estreitando seus laços com o carnaval. [...] Segundo Tinhorão, “o advento do Carnaval à européia, no Rio de Janeiro, em 1855, por iniciativa do escritor José de Alencar, numa tentativa de superpor ao entrudo popular um estilo mais ao agrado da classe média” (1998, p.182) fortaleceu a relação das bandas com a música popular. O treinamento de músicos, por e para essas bandas, cria e incrementa o número de músicos profissionais na capital, muitos dos quais seriam absorvidos, futuramente, por outros campos de atuação como o teatro, funções civis variadas e também os ranchos carnavalescos. (p.80)
É possível destacar, a partir das colocações de Araujo, que, assim como uma
organização dos préstitos que agradava os extratos sociais mais abastados do Rio de Janeiro, o
desenvolvimento dos ranchos teve uma ligação direta com a estruturação de uma prática
musical que também continha estes elementos, e a circulação de músicos por diferentes
espaços.
Os ranchos, com seu desfile de caráter ordeiro, também apresentavam em sua prática
musical, elementos ligados às práticas musicais que compunham os repertórios consumidos
pelos estratos com maior rendada sociedade carioca. Tanto em termos de dialogo entre os
repertórios como em termos de instrumentação dos conjuntos.
Verifica-se em pelo menos uma das peças analisadas a alternância de seções marcada pela passagem do modo menor ao maior, expediente bastante presente no repertório operístico desde o surgimento da ária moderna, e que também vai-se tornar um recurso característico da forma marcha-rancho tempos mais tarde, como pode se constatar numa peça emblemática como “As Pastorinhas”, de Noel Rosa, mais tarde recebendo letra de João de Barro [...] Comente-se, por fim, a instrumentação como exemplo do diálogo entre tradições imbricadas de prática musical: no Flor do Abacate, ela mais se conforma à feição dos grupos ad hoc de choro, enquanto a de Ameno Resedá se aproxima mais à das bandas marciais. O contraste, simultâneo ao convívio criativo, entre os contextos marcial e carnavalesco parece bastante evidente no exemplo de nº 5, em que a melodia principal da parte A é desprovida de síncope e tem sua acentuação recaindo sobre o primeiro tempo