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2.2 Ó, Abre Alas

estabelecem em relação a outros, não procedendo como atos isolados, mas como campanhas

que interagem entre si60 .

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Neste sentido, os diferentes gêneros musicais denominados “marcha” são elementos

que integram determinados repertórios de ação coletiva.

A grande amplitude de gêneros compreendidos sob este termo, como a marcha militar

e a marcha carnavalesca, se relacionam diretamente com o ato de marchar, realizado em

contextos e objetivos diferentes.

Esta correlação entre o ato de marchar e a formação de diferentes gêneros musicais,

específicos para estas ocasiões, indica a pertinência do conceito práxis sonora neste

repertório. Trata-se de uma construção histórica, relacional e cumulativa de um repertório de

performances associadas ao marchar.

Assim, é possível pensar que a marcha carnavalesca se relaciona diretamente com o

ato de “marchar” durante o carnaval. E assim com a própria ocupação do espaço público.

2.2 Ó, Abre Alas

Significativamente, uma das músicas mais tocadas no carnaval de rua até hoje, e

considerada por alguns autores como a primeira marcha composta especificamente para um

desfile carnavalesco, tem o nome de “Ó, Abre Alas”, e com seus versos “Ó abre alas que eu

quero passar”, canta exatamente a situação de préstito, pedindo licença para passar entre a

multidão.

Devido ao papel de destaque desta música no contexto carnavalesco, e sua relação

com o carnaval de rua, é importante fazer algumas considerações sobre seu papel discursivo.

A história desta música é um tanto controversa, e surge justamente de um relato sobre

sua criação, feito por Mariza Lira em 1939, em sua biografia de Chiquinha Gonzaga. Segundo

esta autora:

Aproximava-se o carnaval de 1899. Defronte da casa de Chiquinha Gonzaga, no Andaraí, um cordão desesperava a vizinhança com os ensaios dos cânticos e danças, em barulheira infernal. Chiquinha pôde apreciar, certa vez, as evoluções dos figurantes, vendo os negros caminharem aos arrancos, em negaças, requebros e contorsões incríveis, em ritmo estranho. Era o cordão Rosa de Ouro. Uma tarde de domingo, foi procurada por uma comissão. Três ou quatro negros fortes, de largas calças bombachas (como se dizia então),

fraques pretos, colarinhos muito altos e chapéus de coco, esperavam-na de pé. Vinham pedir um obséquio: fazer a música para o cordão Rosa de Ouro. A compositora nada sabia negar e a comissão saiu certa que teria a música. Inspirando-se no ritmo estranho dos negros, nos seus passos coreográficos originais, na alegria ruidosa, Chiquinha pôde compor o famoso: "O' Abre Alas! Que eu quero passar Eu sou da lira Não posso negar. O' Abre Alas! Que eu quero passar Rosa de Ouro É que vai ganhar."

E o Rosa de Ouro ganhou mesmo. O ó Abre alas foi o grande sucesso naquele carnaval e em muitos outros. Ê tal a propriedade da letra e a expressiva cadência da música, que essa cantiga, que se vai tornando patrimônio popular, é um legítimo toque de alarme carnavalesco. (LIRA, 1939, p.65)

Esta versão, no entanto, apresenta alguns problemas. Tinhorão aponta uma primeira

questão:

D. Mariza Lira divulgou [...] versão segundo a qual a maestrina compôs a marcha “Ó Abre Alas” em 1899 a pedido dos integrantes do cordão carnavalesco Rosa de Ouro, do subúrbio carioca de Olaria. O jornalista Jota Efegê, entretanto, descobriu que o cordão Rosa de Ouro foi criado a 9 de março de 1989, mas na Rua Abaeté, número 8, no Bairro de Laranjeiras, da zona sul carioca. E acompanhando as notícias sobre visitas do Rosa de Ouro a redações de Jornais – o que constituía tradição entre os grupos de foliões durante o Carnaval – não descobriu qualquer referência à marcha “Ó Abre Alas” em seus dois primeiros anos de existência. Só em 1901 Jota Efegê encontra referência à marcha de Chiquinha Gonzaga, e assim mesmo indireta: “Sim, abram alas / eu quero passá / Sou da Rosa de Ouro / Não posso negá”. (TINHORÂO, 1998, p.244)

O problema com a localização da sede do cordão, já parece colocar em dúvida esta

estória tão minuciosa sobre a composição da música, na qual “negros fortes”, que até então

faziam um “ritmo estranho” tem o carnaval salvo pela “expressiva cadência” da música da

maestrina. Mas existem outras questões que podem ser levantadas.

Como forma de investigar esta estória, foi realizada uma busca em todos os periódicos

da Hemeroteca Digital Brasileira, em um recorte temporal que compreende o período entre

1890 e 1910, pelos seguintes termos: “abre alas”, “rosa de ouro”, e, seguindo a dica de Efegê,

“abram alas”61 .

Inicialmente, ao realizar busca pelo termo “abre alas”, no período entre 1890 e 1899,

foram encontradas 18 incidências, dentre as quais, nenhuma se remetia à música de Chiquinha

Gonzaga ou ao carnaval carioca. Em seguida, ao realizar busca sobre mesmo recorte

temporal, pelo termo “rosa de ouro”, foi possível encontrar uma descrição completamente

diferente do Rosa de Ouro, em notícia publicada na segunda página do jornal Gazeta de

Noticias, do dia 15 de fevereiro de 1899:

- O Rosa de Ouro, com o seu rico estandarte e um grupo de bonitas raparigas, veiu visitar-nos, cantando assim: Rosa de Ouro É lá da Gloria Içou bandeira Ganhou Victoria. (OS GRUPOS, 15 fev. 1899, p. 2)

Esta notícia contradiz completamente a estória de Lira. Não só o bairro do cordão,

como todas as suas características diferem da descrição de Lira. Inclusive o repertório. Assim,

este mito fundador da marcha de carnaval, proposto por Lira, certamente não condiz com a

realidade.

Mas isto não significa que a autora estivesse totalmente errada quando aponta a

importância desta música. De fato, a estruturação do carnaval como um carnaval baseado em

préstitos, é um elemento intrinsecamente relacionado à formação de um campo de produção

musical carnavalesco, e assim, se por um lado “Ó, Abre Alas” se destaca como uma peça

importante do repertório musical carnavalesco, a ideia de “abrir alas” para um préstito passar,

pode ser entendida como um conceito central no processo de estruturação do campo musical

carnavalesco.

“Abrir alas” é um conceito acionado em relação aos préstitos em diferentes contextos

carnavalescos, e que parece participar de uma formação discursiva mais ampla. Não se trata

apenas de abrir alas para o préstito, mas para uma nova forma de ocupar as ruas, e novos

hábitos.

Ao realizar busca sobre o termo “abram alas” no recorte entre 1890 e 1899 foi possível

encontrar o uso deste termo associado ao préstito carnavalesco desde 1890. Podendo ser

61 Mais uma vez, é preciso ressaltar a importância da ferramenta de busca baseada em OCR, e destacar o árduo, e profícuo, trabalho de pesquisa realizado pelos pesquisadores que se debruçaram sobre estes acervos antes de sua digitalização.

citados como exemplos, um anúncio do Clube de São Christovão, publicado no Diario do

Commercio de 17 de fevereiro de 189062, e um anúncio do clube dos Fenianos publicado no

JB em 26 de fevereiro de 189563 .

Buscando o termo “abre alas” em um recorte temporal entre 1900 e 1909, foi possível

observar que o conceito de “abrir alas” vai sendo, cada vez mais, acionado em relação a um

ideal de luxo dos préstitos de carnaval. E mesmo por grupos que não contavam com o luxo

dos grandes clubes (GRUPO, 26 fev. 1900, p. 4; ESTRANGULADORES, 27 de fevereiro de

1900, p. 2.)64 .

A primeira aparição dos versos que compõem a música de Chiquinha foi a mesma

encontrada por Efegê, no JB de 29 de fevereiro de 1901. E sobre esta versão, é importante

destacar que ela apresenta uma diferença na forma musical com relação à versão da maestrina.

Enquanto “Ó, abre alas” de Chiquinha é composta de uma única estrofe que é repetida de

forma variada, na versão executada pelo Rosa de Ouro, a parte dos versos que se assemelham

aos versos de Chiquinha aparece apenas como uma segunda parte da música. Na versão do

Rosa de Ouro:

Morena, morena, Morena yayá; A Rosa de Ouro Sahiu a passeá, O yáyá, yáyá Chegou meu pessoa;

Sim, abram alas Eu quero passá. Sou da Rosa de Ouro Não posso negá. Sou dá Rosa de Ouro Que me faz chorá. (GRUPOS, 29 fev. 1901, p.02)

É importante destacar, ainda, que a prosódia da primeira parte da versão do Rosa de

Ouro sugere uma melodia diferente da encontrada na versão de Chiquinha. Fato este, que

aponta a possibilidade de que a melodia da segunda parte também fosse diferente.

Nos anos seguintes os versos de “Ó, Abre alas” aparecem em diversas versões,

apropriados pelos mais diversos grupos e contextos (GRUPOS, 22 fev. 1903, p.02; NOTICIAS,

13 fev. 1904; O GRRRRANDE, 06 mar. 1905, p.1)65 .

62 ANEXO I. 63 ANEXO J. 64 ANEXO K. 65 ANEXO L.

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