
Quem és tu, Senhor?
Atos 9:1-8
Bendita sois vós entre as mulheres… Ó menina, ainda nas rezas? faz lá o favor de ir já p’ra cama! Oh mãe estava só a acabar de falar com o nosso amigo Deus… E então, ele disse-te alguma coisa de jeito? Até agora nada, mas Ele também está tão longe… quem é que nos consegue ouvir no céu? Oh rapariga, também rezas baixinho, devias gritar quando rezas, assim Ele ouvia-te melhor, não é? DEUS DEUS! Fala baixo! diabo da catraia! estava a brincar contigo! Oh… acho que para ele me ouvir devia estar perto dele, não é? quem são as pessoas mais próximas de Deus? Isso são os anjos ou… os padres. Então quero ser padre! Tem juízo rapariga, só os homens é que podem ser padres. Porquê? Não sei, é por ouvirem melhor essas coisas, se bem que para acordar o teu pai, é o cabo dos trabalhos! andam a tentar ouvir Deus, quando deviam era ouvir as mulheres! Então quero ser um homem! o que é preciso para ser um homem? Oh filha,
pouca coisa, é como ser uma mulher, mas sem as suas qualidades e com todos os defeitos! Oh mãe não brinques, diz-me lá! Tem juízo, não podes porque nasceste com um pipi e não com uma pilinha, percebes? agora vai dormir, que ainda chamo o teu pai! E encostou-lhe os lábios doces e tranquilos na testa sob o temor autoritário dessa figura que era o pai de Madalena. O pai que aguardava pela mulher na cama depois do círculo de embriaguez à volta dos cafés do bairro, e agora intoxicado resumia a noite em sexo e violência. Madalena ainda resistiu à separação da mãe. Lembrava-se de uma noite assistir pela fechadura da porta do quarto dos pais, o pai nu sobre a mãe, que agonizava à brutalidade dos movimentos caninos. Por isso, já compreendia os gemidos da mulher submetida e encurralada na sua própria condição de mulher. A mulher que se definia por ser alguma coisa de alguém e de algo, mãe de Madalena, mulher de Jorge, mulher de casa… A sua condição feminina era sempre justificada por um apêndice a pessoas, coisas e locais, e, por isso, não tinha nome. Mas Madalena encontrava respostas a esse
sacrifício, uma fuga religiosa à impotência de inverter a ordem natural das coisas, encontrava-as nos seus estudos bíblicos da catequese, a ideia elementar que bastou à mulher existir para que toda a humanidade estivesse condenada ao pecado, bastou a primeira mulher, segundo erro de Deus depois da criação do homem, para sibilar aos ouvidos de Adão para que este também provasse do fruto da árvore sapiencial. É a mulher raiz de todo o mal do mundo e do homem, vítima dessa insolência feminina, vingava-se dominando sobre o seu corpo e sobre a sua liberdade. Madalena cresceu sob este ídolo temerário do homem e aos doze anos olhava-se ao espelho esperando, por qualquer milagre, que também a barba, os pelos nos braços, a largura dos ombros se pronunciasse tal como via nos homens mais velhos e, também, que um dia lhe crescesse a tal pilinha. Mas a si, apenas os seios começavam a sobressair e a anca a alargar-se, evidenciando-se desde muito cedo aos olhares perversamente gulosos desses homens mais velhos que gostava de um dia ser. Via-se, portanto, traída pela sua
própria natureza, atribuída a ela por um simples e absurdo acaso no momento da fertilização. Mas agravou-se a sua indignação quando ao acordar de manhã, uma poça de sangue manchava a cama, saltou de terror, apalpou-se, pensou naquele momento que estava a morrer, rezava a Deus, mas tanto que era o sangue, que já se despedia deste mundo. A mãe entrou de imediato e olhando-a com toda a doçura só lhe disse Já és mulher, Madalena, não é nada demais. Depois de deitar os lençóis à máquina de lavar, explicou-lhe quetodososmeses havia de sangrar edurante quatro dias teria de usar pensos higiénicos para que não sujasse as cuecas. Madalena não podia acreditar que para toda a vida todos os meses durante quatro dias teria que sangrar e para nada. Perguntou-se da necessidade biológica, da necessidade divina, da necessidade moral de isso acontecer-lhe, mais, de isso só acontecer às mulheres e nunca aos homens, que só sangravam no heroísmo de uma luta de rua. Da necessidade biológica, explicou-lhe a mãe, que era assim que também as éguas, as macacas e até as cadelas tinham o período, que era o corpo a expulsar o
óvulo que não tinha sido fertilizado; que da necessidade divina, assim Deus adjudicou à mulher o sangramento, porque só ela seria capaz de suportar as dores da gravidez; da necessidade moral, que era a paga por a mulher ter condenado toda a humanidade, e sangrava dessa ferida aberta que deixara à eternidade. Mas Madalena não podia aceitar essas explicações absurdas, muito menos a de que Deus havia imposto à mulher o período para que depois a mulher pudesse engravidar, não aceitando, também, como já vira na televisão, que só à mulher fossem cometidos os maiores sofrimentos da nossa espécie. E porque tem a mulher que sofrer tanto? Percebia Madalena que a vida de mulher, vítima ao longo da história, o sexo fraco porque submetido aos homens, acometida por hemorragias mensais e pelas dores do parto, era uma vida resumida à submissão e sofrimento. Ao espelho começou a odiar-se a si mesma, ao facto de ser uma mulher, deter aquele cabelo longo e loiro de mulher, de seios proeminentes, de roupas florais e rosadas, e entendeu que sem essa aparência feminina, bem podia parecer um rapaz, um rapaz que
nunca sofre. Então rapou o cabelo com a tesoura, apertou um lenço à volta dos seios e vestiu uma camisola e umas calças de ganga que era o mais parecido com a roupa dos rapazes. A mãe elogiou o novo cabelo da filha, achou-lhe piada, porque a protagonista de uma telenovela que acompanhava, também usava assim o cabelo rapado como símbolo da força e vitalidade da personagem, ao mesmo tempo que estava habituada que a filha fosse uma mariarapaz, a vê-la por entre os rapazes a jogar à bola no descampado. O pai fez somente umcomentário indiferente Estás bonita, estás. E, assim, Madalena não teve a reação tumultuosa que esperava da família. Ao impacto que gostaria de ter causado teve somente o elogio e a apatia da normalidade. Mas o mesmo não se poderia dizer dos rapazes quando a viram, e no seu tom tipicamente jocoso acusaram-na de parecer um rapaz, acusação idiota, visto que ela, claramente, era uma fêmea da espécie humana. Contudo, Madalena respondeu tomando a atitude violenta de os firmar com um lance de cólera, uma ameaça que bastou para desviarem o assunto e nunca mais falarem
sobre isso. Mas esta nova mudança de visual fez realçar uma beleza masculina que Luana não pôde ignorar. Também ela com doze anos, sentiu pela primeira vez um ímpeto apaixonante por Madalena. Via-a agora com uma beleza incomparável, igual às raparigas que via no Youtube, dominante, máscula e, contudo, de uma sensibilidade cuidada no andar e nos gestos. Madalena havia de responder a essa proximidade de Luana com uma rejeição brutal, logo no momento em que a moça lhe procurou os lábios para a beijar, Madalena afastou-se e com uma língua ácida censurou-lhe o comportamento Não sou lésbica, pensas o quê?! Se as mudanças corporais imprimiam em Madalena uma consciência do corpo, ainda não lhedespertavaasexualidadenemse lhe fixava oobjeto do desejo. As reações de Madalena em relação ao corpo e à sexualidade eram, até ao momento, a reação de alguém que não queria crescer, não se admitia a distinguir-se dos seus pares e a ser tratada de forma diferente, ainda não era a questão de não querer ser mulher, mas a de não querer ser diferente dos rapazes que formavam o seu círculo de
amizades. Com o decorrer dos anos, aos dezassete anos, Madalena começava a despertar paraa sexualidade, já com o cabelo diluindo-se na curvatura das costas e uns seios que dificilmente se escondiam com uma banda à sua volta, a agora mulher parecia aceitar a sua condição feminina, quanto mais pela atenção que os rapazes lhe dedicavam, que ela via com um viés maquiavélico. Nunca esquecera o que lhe haviam ensinado em História Foi a beleza de uma mulher que fez a guerra de Troia, a mulher como a destruidora de mundos, a serpente da tentação, a feiticeira que encantava os homens, a Xerazade que escapava à morte pelas palavras e a Medusa que os emparedava. Pela primeira vez, percebera o porquêda condenação damulher pela Bíblia, pela sociedade e pela família, a mulher era perigosa e, por isso, os homens precisavam de a subjugar, de a controlar, não porque eram superiores, mas porque temiam os seus poderes sobrenaturais. Foi a mulher que condenou a humanidade, imagine-se, pois, o poder supremo do sexo feminino. Sabia-o agora, e com um olhar misterioso, um decote profundo, umas saias curtas,
conseguia paralisar todos os rapazes e homens que a viam na rua, e lhe mandavam piropos de baba a escorrer pela boca, com ereções que se notavam proeminentes nas calças. Mas, por outro lado, também via em Luana o lado negro desse jogo que empilhava vítimas - gorda, borbulhentaecomosdentestortos, eraparatodosdaaldeia e da escola uma jovem feia e, por isso, destinada ao pior da opressão patriarcal, ainda por cima, não tinha sucesso escolar, o que não lhe dava grandes esperanças em relação ao futuro. Anos mais tarde, acometida por uma depressão, Luana havia de se suicidar com a espingarda do pai Ninguém quer saber de mim, foramasúltimaspalavrasque ninguém ouviu nem quiseram ouvir. Matou-se para chamar a atenção para si, para alguma compaixão pelas pessoas que a rodeavam, e houve efetivamente umtumulto na aldeia por duas semanas, nesse tempo não se falara de outra coisa e, no funeral, a sua mãe e Madalena choravam pela tragédia. Depois desse período, com o início do campeonato nacional e as guerras que iniciavam no mundo, Susana foi esquecida, mencionada por vezes
quando se queriam ensinar aos filhos para não ficarem tão gordos que um dia ainda se matavam como a Luana. A crueldade humana não derivava de uma maldade natural, antes, da indiferença resultante da dessensibilização por imagens diárias e sucessivas de tragédias que se repetiam em todo o mundo. E a vida continua. E para Madalena continuava com um enorme sucesso, de uma beleza extraordinária e com um mediano sucesso escolar, terminava agora o secundário com média suficiente para ingressar na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Asuasensibilidadeparaavidaeo culto queprestara às coisas belas, começando por si própria, levou-a a dedicar umavida inteira acriar beleza, inflamada, também, pelas biografias de Pablo Picasso e Frida Kahlo, que assumiam nos seus quadros uma vitalidade sexual que Madalena não conseguia ignorar.E ainda mais que Picasso tivera dezenas de mulheres, um womanizer, e Frida que adotara uma vida amorosa independente, amando quem queria e quando queria, mas sempre se amando primeiro a si própria, ao ponto de ser ela o centro dos seus próprios
quadros. Outra curiosidade que captara a atenção de Madalena fora a fotografia de família em que Frida aparecia de fato masculino, pareceu-lhe uma mensagem potente e eficaz: sou mulher, mas, quando quero, sou um homem. E Madalena apreciava essa liberdade e esse poder de se poder transformar quase de forma alquímica em homem quando assim era necessário para afirmar todo o seu poder – pela beleza feminina haveria de controlar os ventríloquos masculinos e pelas roupas masculinas afirmaria o poder omnipotente do homem. Assim estreouse em Belas Artes, de Amarante para o Porto, havia de espantar a cidade com a sua beleza fulminante e a sua rebeldia de destruir os estereótipos da mulher submissa, uma espécie de hermafroditismo social e cultural. Mas a sua entrada não foi o previsto. Não espantou, aborreceu. Com o seu sorriso de saloia e as roupas masculinas, não se distinguia pela diferença num meio em que homens eram mulheres, mulheres eram homens, de cabelos rapados ou curtos tingidos a rosa e a vermelho. A própria beleza de Madalena jogava até contrasiprópria, acumulando invejas
e vinganças das colegas e dos colegas, vendo nela um ser quase divinal como se pairasse sobranceira sobre as lutas individuais e sociais das alunas e alunos que apresentavam uma postura inconformada e ríspida em relação a tudo, e Madalena, como lhe disseram, Parece que nunca foste discriminada, que sempre tiveste as pessoas aos teus pés, não és como nós. Madalena procurava qualquer situação opressora e violenta na sua curtabiografia para depois usar como comprovativo do sofrimento e da discriminação. Encontrou a violência doméstica que a mãe sofria, o suicídio da amiga e os assédios cometidos pelos homens à sua passagem. Depois de alguns meses na faculdade para compreender o registo linguístico e os valores partilhados pelas e pelos colegas, percebeu que a sua história pessoal deveria ser revista à ótica dos mecanismos opressores da sociedade patriarcal e da heteronormatividade, que a linguagem era a base que estruturava toda a realidade e que, por isso, eradesde logo necessário mudar a linguagem para mudar a realidade, começando pela abolição do binómio masculino-feminino que perpetrava as injustiças
sociais, e que sabendo que a identidade começa por ser uma identidade sexual era também necessário rever o conceito de género, para que pudesse englobar todas as subjetividades e, assim, permitir a aceitação das mesmas à realidade. Madalena compreendia agora que a verdade era objetivamente subjetiva, já não era a Verdade que encontrava nas passagens bíblicas ou na ciência que aprendera na escola, que por sua vez era dominada pela visão masculina e heteronormativa, a verdade era agora estilhaçada no indivíduo, era a minha verdade, que não podia ser refutada e era o meu corpo, que era a afirmação da sua liberdade. Madalena despertou, finalmente, para uma nova realidade através do espectro da sexualidade, tudo, na verdade, se resumia à sexualidade e libertar-se dela era também libertar-se da realidade. Num primeiro impulso tudo se tornara relativo, logo, possível. O espelho não a julgava pela sua beleza, que era uma construção social arquitetada pelo desejo de homens perversos que inventaram essa ficção para controlarem as mulheres e as disporem ao seu desejo. Não se julgava mais, agora via-se
como ela própria, um corpo que era uma tela branca onde ela podia inscrever todas as suas vontades e emoções, sem precisar de as filtrar por qualquer consideração ou apreciação social. Voltou novamente a rapar o cabelo para se libertar dessas amarras percecionadas como grilhões que a sufocavam à volta do pescoço, deixou de usar maquilhagem que era um dos instrumentos de controlo policial dos varões da sociedade e começou por questionar a sua própria identidade, pela primeira vez, perguntava-se quem sou eu? não sei. o que posso ser eu? tudo! E perante esta libertação, Madalena não voltaria a ser a mesma ou, melhor, voltaria a ser alguém pela primeira vez. Depois desta afirmação do corpo, voltou para o quarto do seu apartamento, partilhado por mais quatro colegas, e começou a pintar. Apontou o pincel para a tela branca e atirou-o ao chão para lançar a tinta diretamente contra o tecido, misturou-o com as mãos na própria tela, cuspiu sobre a tinta e com uma faca rasgou o meio da tela. Levantou o quadro expressionista golpeado ao centro e chamou-lhe o recomeço do mundo a lembrar,
conceptualmente, a origem do mundo de Courbet. Esse quadro era o resultado da sua revolta iconoclasta, o seu atentado ao cânone ocidental que devia agora ser desprezado pela sua fabricação por uma série secular de homens machistase homofóbicosedehistoriadores dearte que, continuamente, negavam o lugar das mulheres na história da arte. Esse quadro levantado como novo filho divergia em absoluto com todas as outras telas de rigor académico e matemático que reproduziam a perpetuação tétrica do machismo. Olhou-os, e como Medeia completou a sua revolta destruindo todos os seus filhos, rasgando-os numa loucura feliz de afirmação identitária e de revolução perante todo o sistema que a tinha enganado e forçado a ser aquilo que ela nunca havia pensado ser. Mas faltava, ainda, completar toda esta revolta com a experiência sexual, visto que o segredo de Madalena foi nunca ter cedido ao desejo carnal, sabia que era isso que enfatizava ainda mais o seu lado misterioso. Corriam mitos e estórias pela aldeia de que Madalena já se tinha dado a vários homens, inclusive a um empresário de cinquenta anos que
a tinha levado, quando ela tinha ainda dezassete anos, ao Teatro S. João e depois passara a noite com ela no hotel Ritz, mas tudo isso era mentira. Madalena permanecia virgem e não contava entregar-se a nenhum homem. Mas agora estava preparada, havia uma festa nesse dia na discotecaLusitano. Levadapelascolegas, embriagou-seao terceiro shot e experimentava já o primeiro linguado com uma amiga, depois, outra aproveitou o momento e participou também naquela orgia de bocas. Não havendo censura, mas antes um festejo da libertação sexual, Madalena deixou-se levar em toda a sensualidade, dançando com o corpo como serpente em corpos que se desconheciam no escuro apenas flashado por linhas esquizofrénicas de luzes. Às quatro da manhã e com a descoordenação total do corpo, seguiu para casa de uma amiga e naquele quarto as duas despiam-se à sombra de todasas luzespúblicas. Aproximou-sedo corpodespido de Madalena Eu nunca fiz isto, Susana, eu não sei… e Susana beijando-lhe o pescoço Mas eu sei… as mãos escorregaram-lhe pelo ventre e os seus olhos não
despregavam dos olhos de Madalena enquanto os seus lábios deixavam um rasto de saliva quente sobre os ombros, os seios cuidadosamente mordidos, e um tremer do corpo de Madalena, a língua libertava-se e lambia o ventre pulsante de Madalena, e com um mover de olhos sussurrou Vou fazer contigo o que nunca te fizeram… deitou-a na cama e as pernas fletidas de Madalena abriamse à boca faminta de Susana, entrando-lhe com a força da língua na abertura quente e húmida, e num silêncio entrecortado de tímidos espasmos, Madalena apertava as mãos aos lençóis e suspirava com a jugular exposta ao prazer que julgava impossível, o prazer que só uma mulher sabedar aoutramulher, quesó mãos femininasconseguem viajar às cegas sobre outros corpos familiares. Com a língua e as mãos sobre os dois peitos, Madalena tinha na sua primeira experiência sexual o primeiro orgasmo, e assim se apaixonou. Nas semanas seguintes, nas noites seguintes, a sua paixão ardia pela amiga, mas esta, experiente na vida boémia, distanciava-se cada vez mais, porque a sua liberdade também lhe imprimia o desejo de
estar com outras mulheres. Madalena, por vingança, procurou sexualmente outras mulheres para colmatar o rasgo de ferida que sentia dentro de si, e foi no sexo que encontrou a redenção de toda a sua angústia. Ao final de um par de meses, Madalena restituía o seu epítome de femme fatale que havia conquistado aquando adolescente, mas agora, era fatal numa sexualidade hedonista e descompensada. As experiências sucessivas reafirmavam a sua identidade sexual o que, por sua vez, estabelecia a sua identidade. Se antes se afirmava como mulher, agora identificava-se em múltiplas identidades, por vezes homem, por vezes mulher, por vezes sexual, por vezes assexual, conforme a sua perceção subjetiva do momento. Mas uma característica começava a segurar-se como evidente: o ato sexual era agora interpretado de uma forma bruta, dir-se-ia, de uma forma masculina; Madalena procuravadominar aparceira, assumir o controlo egostava de ser tratada como um homem, mais estranho ainda por não se catalogar como homossexual, mas sim heterossexual, porque não se via como igual às outras
mulheres, mas como igual aos outros homens, dizia sou homem num corpo de mulher. Mas nessas noites, nos seus momentos de maior angústia inquietava-se pela ausência de algo, faltava-lhe um elemento cabalque assegurava que na verdade era umhomem e que, como homem, deveria ter um órgão sexual. Sabia por todas as teorias que lhe foram explicadas pelas colegas, que o órgão sexual não define a sua identidade sexual, mas ela, na sua própria verdade, sabia que para ser homem precisava de ser sexualmente masculina, isto é, ter um pénis, a pilinha que ecoava da conversa com a mãe. Esta perceção levou-a ao seu período azul, ambientado por uma depressão que a impedia de sair de casa e de frequentar as aulas, começou por questionar a vida desregrada que levava na noite de copos e sexo sem significado e sentido, descobrira o prazer do seu corpo e explodia numa anarquia sexual ou como dizia envolta no fumo do cigarro Vacuidade das vacuidades… tudo é vacuidade e, por isso, havendo a extinção de qualquer valor na vida, de todos os códigos morais que antes lhe justificavam a autodisciplina, autodeterminação e
autossuperação, restava-lhe a entrega aos prazeres corporais como anestesia à própria vida falida. Ao fim de dois meses incontactável e descurando até mesmo da sua higiene pessoal, a mãe preocupada com o seu estado de saúde exigiu um retorno a casa antes do recomeço das aulas. Quando Madalena se encontrou encurralada, apanhou a camioneta do dia seguinte e chegou a casa convalescidaesem vitalidadealgumapara fazer sequer um esquisso de sorriso no rosto. A mãe abraçou-a de saudades e preparou-lhe um melífluo repasto de chouriças assadas a álcool em travessa de barro, pimentos padrón cozidos e aspergidos de sal, pão de Padronelo, e uma garrafa de vinho doce, conservado da vindima recente. Madalena pousou a mala e cedeu de imediato no sofá Oh filha, vai ao menos p’ra cama… Mas Madalena já fechava os olhos. A viagem não tinha sido longa, mas a depressão vampirizava todas as forças como se o seu esqueleto fosse somente uma cruzeta ao peso pesado da pele ou como se o corpo fosse já o túmulo soterrado da alma. Despertou era já de noite e foi a cambalear para a cozinha onde o pai acolherava a
sopa com metade do rosto escondido nas bordas da malga e uns olhos que não se moveramà entrada da filha, e a mãe agitava-senum vaivémentreamesaeo fogão. Finalmente, a piquena acordou! olha Zé! E o pai num pestanejo viu-a e comentou para o fundo da taça Já vens tarde. Oh não ligues filha, ele anda de mau humor por causa das vindimas. senta-te filha, senta-te que eu já te preparo a sopa. Madalena, encarnando a figura mortiça de um Mefistófeles, arrastou-se para a mesa e ouviu outro murmúrio do pai Que belas figuras… anda-se a gastar dinheiro na faculdade para isto… A figura de Madalena imolava-se num cabelo esgadelhado, uma pele facial seca e desnutrida, as unhas amareladas, corpo anímico e desvitalizado, e umas roupas negras encorrilhadas que libertavam a cada gesto umcheiro fétido. Madalena, até ao momento, tinha segurado a língua fria e ácida e mantinha um contínuo silêncio apenas interrompido pelos ruídos prosaicos da mãe com retóricas de fazer chá, Estás mais magra, que andas a comer? tens de vir cá mais vezes! como anda a tua vida por lá? tratam-te bem lá na casa? é
preciso ter cuidado com as pessoas! a Isabelinha tem-me dito que já não lhe falas, está tudo bem? Estas e outras tantas que mereciam somente um encolher de ombros intervalado pelo engolir forçado do caldo. O pai levantouse, limpou os lábios e atirou para a mesa o guardanapo dobrado como se, por hoje, atirasse a toalha branca de tréguas provisórias ao mau estar que o consumia por dentro. Mas o confronto era inevitável, logo depois de lhe ter ressoado o nome de Isabelinha, a amiga de infância que também havia ido para a faculdade ao mesmo tempo que Madalena e servia como ardina à aldeia, contando as notícias da vida da cidade. Assim, no dia seguinte, à hora de almoço, aproveitando a cara mais corada e carnal da filha, enfrentou-a de olhos abertos e, Noutro dia falei com aquela tua amiga, a Isabelinha… diz-me lá uma coisa: Tu, por acaso, passaste o primeiro ano de faculdade? ah? vá lá, diz-me! Madalena não teve tempo para engendrar uma mentira, e encurralada sibilou Não… o pai fechou os punhos, e voltou Ai não? e andamos nós a pagar-te a boa vidinha no Porto, para quê? ah? Madalena mediu desta
vezaconsequênciadassuaspalavras e, preparando-separa o fogo cruzado, caiu num silêncio absoluto ai agora não falas, é? isto está bonito, está! então e diz-me outra coisa… vamos lá ver… porquê que andas assim vestida como um homem, ah? tu és um homem ou uma mulher, ah? Envolvidaem sicomosdois braçosapertandoo corpo, não voltouadizer nada. Opaiapertavaosdoispunhosevoltou, novamente, comum bafo húmido de bagaço é verdade que andas a levar p’ra cama outras mulheres, não é? A mãe meteu-se na conversa para acalmar as chamas que começavam a deflagrar. Com a mão no peito e umas palavras tremidas Agora não Zé, deixa a menina, dei e sem a deixar concluir fez um só golpe de braço na sua direção para a calar e voltou Andas a levar gajas, putas, para a tua cama? diz-se na aldeia que és uma puta… um travesti desses que andam na rua como paneleiros! Madalena aninhava-se sentindo todo o ódio do pai esmagá-la anda, fala, queres ser homem fala como um homem, ou essa boca só serve para andar metida em coisas porcas?! Zé, não fales assim da tua filha…! Ela? a minha filha...? isto já
não é nada, já nem sei que bicho é este, olha, olha para esta coisa que aqui está, aninhada, com medo como um ouriço, uma canalha, uma pulha! anda, diz-me, és um homem ou uma puta? é preciso de saber para te tratar como a coisa que és! E Madalena levantou-se forte, reunindo todas as forças possíveis naquele pequeno corpo atormentado, irava-se com toda a violência que ouvira acerca do patriarcado, da opressão às mulheres, da submissão das eternas vítimas, e que chegava a hora de se levantar por ela mesma e fazer frente ao domínio do pai como figura arquétipo de toda a maldade lançada às mulheres Sou um homem e também sou puta! E ouviudeste modo as últimas palavras do seu pai Então vais levar como um homem e como a puta que és! esmurrou-lhe a cabeça e pontapeou sete vezes o corpo que gesticulava no chão como um verme socorrendo-se da vida, e a mãe, como barata, levava as pequeninas patas à cabeça gritando de horrores para a chacina do marido. O pai, vociferando, olhou-a e de olhos vermelhos de lágrimas, saiu porta fora, deixando a mãe abraçada à filha. No mesmo dia, Madalena
foi levada aos ombros pela mãe até à casa da tia e lá ficou a recuperar durante uma semana. Não se chamou uma ambulância, não se fez queixa à polícia, a aldeia fez silêncio à brutalidade do pai para com a filha e nunca mais se falou no assunto. E sob a cumplicidade do silêncio, Madalena regressou ao Porto como atirava a uma sarjeta. Por um longo período esteve só no seu pequeno quarto, alimentando-se a bolachas, pão e água, delirando durante o dia e afundando-se em pesadelos durante a noite, não distinguia já a noite do dia, o dia da noite, estava desfeita, empedaços na cama como cacos de vidro de uma jarra que antes enfeitava a janela com um ramalhete simpático e colorido. Havia abandonado a universidade, perdia a mensalidade dos pais estava deserdada - pelo menos enquanto o pai fosse vivo - Madalena, por fim levantou-se, e ainda sonâmbula, vagueou pelas ruas noturnas do Marquês. Encostou-se a um poste de eletricidade suplicando por uma qualquer luz de revelação que a salvasse do seu calvário. As luzes surgiram nos faróis de um mercedes que estacionava à sua frente, Miúda…! ó
miúda, estás de serviço? Ela balbuciou N...ão, mas os dois rapazes que estavam no carro repetiram Anda lá, só queremos um broche, nada demais, ainda por cima está frio, anda e ela voltou a repetir Já disse que não! não sou puta! Um dos rapazes saiu, olhou à sua volta, chegou-se a ela e começou a brincar com o seu cabelo loiro enquanto sussurrava Gosto de ti, gosto delas difíceis… mas agora já chega, mete-te no filho da puta do carro que já não estou a gostar da brincadeira. Ela afastou-se e ele agarrou-lhe no braço, puxou-aparadentro do carro epor meio degritos cansados de Madalena, um dos rapazes conduziu até um descampado. Parou, e ambos abriram as calças, pegaram na cabeça dela e obrigaram-na a cobrir os dois pénis na boca. Enquanto os trocavam, um segurava no corpo e outro, com a mão, obrigava-a a baixar a cabeça em direção ao sexo. Madalena perdia já a noção de quanto tempo estava ali, os dois libertaramo esperma nos seus olhos e na sua boca adormecida, atiraram-lhe sessenta euros para a cara e deixaram-na como aparição sob o pó volteado pelo arranque do automóvel. O regresso solitário a casa
enevoava-lhe de emoções contraditórias, sentia-se suja e nauseada pela violação, como se o seu corpo tivesse sido estropiado, cuspido e largado na estrada como uma cadela abandonada. Contudo, também se sentia empoderada pelo seu sexo, lembrava-sequando Susana lhe haviadito O sexo é a nossa arma e ninguém pode retirar-nos e separar-nos do nosso corpo, que é nosso por direito natural. Por isso, concluía agora Madalena, não me vou culpabilizar pelo que aconteceu, não tenho esse direito, não vou! fui violada, é umfacto. não sou culpada, não sou culpada pelo que me fizeram, mas o que farei agora do que fizeram de mim, disso sou absolutamente responsável. Pensava-o de um modo ainda não claro. Estas palavras que imaginou dentro de si não soaram deste modo frio, só mais tarde conseguiu formá-la nesta exata forma, mas a essência permanecia: não me vou culpabilizar. Antes de entrar em casa tomou uma decisão rápida e incisiva: vou esquecer isto, foi um pesadelo, nada mais. E ao entrar na desarrumação do quarto, de roupa por lavar espalhada pelo chão, decidiu de modo brutale urgente: amanhã é um novo
dia, amanhã o meu corpo é independente e vou fazer dele o meu negócio. Esta experiência, que poderia ser tão somente umtrauma e enfatizar ainda mais a sua depressão, serviu antes como a queda final no abismo, o despertar de que a partir de agora sairia pelas suas próprias forças do negro túmulo emque havia mergulhado. Teve a certeza, ao deitar os sessenta euros na cómoda, que o sexo a poderia salvar, resolver-lhe os problemas financeiros e restaurar a sua independência. Se durante toda a sua vida compreendera que a sua beleza era a arma maquiavélica que usava para manipular quem a rodeava, também seria agora a estratégia para se apossar do dinheiro dos homens que julgavam aproveitar-se dela, quando afinal era ela que se aproveitava deles. Ao adormecer, sonhou uma lembrança de Susana, o exato momento em que tinha descoberto que a sua antiga namorada a traiu quando foi apanhada com dois colegas de Belas Artes a fazerem sexo na antiga torre da faculdade. No momento de flagrante delito, perante a traição à relação e ao ideal que Susana sempre defendera, de ser uma feminista que sentia repulsa
pelos homens Esses porcos do patriarcado, ela teve uma defesa brilhante Não foram eles que se aproveitaram de mim, fui eu que me aproveitei deles. não foi ele o herói que teve um broche, fui eu que lhe fiz porque quis e bastou darlhe a ordem com um olhar não foi o outro que me penetrou porque me usou como propriedade, fui eu que lhe disse para me penetrar, para me agarrar os cabelos, para se vir dentro de mim, fui eu, eu é que os usei! E enquanto lhe gritava estas palavras de empoderamento feminino, Madalena chorava e como a inocente que ainda não compreendia os novos arranjos do mundo, soube responder somente É? foi assim? e nós? traíste-me!... traíste-me! e Susana, do mesmo modo manipulativo, Nunca te poderia trair se te amo. A reminiscência apareceu-lhe no sonho com a vivacidade de uma calma perversa, como se tudo tivesse sido perdoado pela suspensão de todos os juízos, o mesmo perdão, que no mesmo dia, levou Madalena a passar a noite com Susana e a persistir obsessivamente em passar os dias e as noites com ela, motivo pelo qual levou Susana a afastar-se do
comportamento controlador e obsessivo de Madalena. Depois do sonho, Madalena acordara pela primeira vez ao início da manhã, e vendo-se com a roupa da noite passada, mergulhou no chuveiro. Esfregou todo o corpo, tanto que sangrava das mãos e do ventre, não porque quisesse lavar alguma sujidade, mas como cobra, iniciava a sua própria mudança de pele. Nessa mesma manhã foi ao cabeleireiro e aparou-o detal modo que parecia uma jovem francesa da belle époque, tingida com um loiro tão claro, que aparecia platinado. Voltou ao apartamento, arrumou e organizou o quarto, limpou as vidraças e sob a plena luz da anunciada madrugada, abriu o portátil e soube que seria uma profissional do sexo, mas uma inteligente profissional, não andaria pela rua à espera de clientes, não cobraria quarenta euros por uma noite, segura de si e da sua sensualidade, abriria uma conta num site de partilha de fotografias privadas e íntimas com um estipulado preço e faria serviços particulares de streaming a um certo preço. Não seria, pois, uma puta, não, ela conhecia demasiado bem as histórias de algumas das suas colegas que enveredaram
pela prostituição para exibir uma vida de luxo, como uma vez lhe confessou Rita Foi um broche, sem engolir, que me pagou esta Bimba y Lola. E mesmo que pudesse ser chamada de tal, não se arrependeria, o seu próprio catolicismo oferecia-lhe a redenção do evangelho de Mateus Os cobradores de impostos e as prostitutas vos precederão no Reino dos Céus. Porém, seja esclarecido o fundo motivacional de Madalena, a sua atitude revitalizadora de uma nova vida não derivava de uma epifania ou de uma consciência de que ela deveria tomar as rédeas da sua vida, mas antes, como tantas vezes ocorre a quem muda de hábitos e repete ad infinitum que é feliz e está a seguir os seus senhos, de uma fuga a sucessivos traumasdassuasúltimasexperiências, o amor falhado com Susana, o fim da relação familiar, o abandono da faculdade, o trânsito depressivo que atravessava e a violação que foi reprimida com um simples pesadelo. Apesar deste autoengano, necessário à sua reabilitação, Madalena começaria a viver exclusivamente para o trabalho, agora, solta das amarras de qualquer relação e
vivendo numa profunda solidão, depois do incêndio à sua volta, só restava ela mesma, feita em cinzas, soerguer-se temerosamente. Na primeira semana não conseguiu captar aatenção dosclientes, masquando anunciou no instagram, uma horda de curiosos, tanto do sexo masculino como do sexo feminino, acorreram ao site. Alguns colegas de faculdade ainda lhe enviaram mensagem privada a perguntar se era ela mesma, se não tinham roubado a sua identidade, mas ela, firmemente, negava essa possibilidade, era ela mesma, despida nas fotografias: pés cruzados comum malmequer no dedo mindinho, depernas cruzadas com o sexo desnudo, as nádegas a contraluz, os seios com as mãos timidamente pousadas e os mamilos espreitando duros sobre um auréola rosácea, a boca semiaberta e os olhos revirados como no momento do orgasmo, edepoisasposturasmaisousadasacorpointeiro, deitada na cama com as pernas dobradas e abertas e os dedos a abrir em compasso a vagina, de costas alongadas sobre os lençóis encordoados e o rosto espreitando em desafio para a câmara ou, de costas, debruçada sobre a
janela com a silhueta dos seios caídos sobre o parapeito. Estas foram algumas das publicações que Madalena partilhava diariamente para um número cada vez mais crescente de fãs que pagavam mensalmente quinze euros para a ver no ecrã e masturbarem-se na sua presença virtual. Começaram, depois, as lives privadas que chegavam aos cinquenta euros por quinze minutos e por maisuma sériedeextras, como dizer o nomedapessoaque pagava ou manter um diálogo ao vivo com pessoa, que poderiam alcançar a soma de cento e cinquenta euros. Ao final de um mês, o seu rendimento, livre de impostos, calculava-se por volta dos seiscentos euros, um valor que ainda estava longe do seu objetivo. Começou, então, por perceber o que realmente lhe rendia mais dinheiro, e percebeu que eram exatamente as conversas privadas com os seus seguidores, as videochamadas em que ela aparecia só com um decote enquanto falava de coisas banais com o cliente. O que achou curioso, é que, principalmente os homens, não tinham um interesse particular em que ela se despisse ou fizesse um número de striptease, mas que
falasse com eles, que eles, e esta foi a sua descoberta mais incisiva sobre a real motivação dos homens, sentissem que estavam a ser ouvidos por uma mulher bonita, que alguém tão perfeito e angelical se interessava por eles e que tinha um mínimo interesse sobre as suas preocupações prosaicas. O elemento sensual, com um decote que às vezes descaia, mas somente isso, estava sempre presente, mas aquilo que sustentava a permanência do homem na chamada era exatamente o ouvido feminino, o órgão sexual mais excitante para aqueles homens. Havia compreendido, ainda, que as sessões de foro sexual eram as mais curtas, entre os cinco e os dez minutos, o tempo que durava a masturbação e depois disso, invadia em cada um dos homens um sentimento de humilhação e vergonha que os fazia rapidamente desligar a chamada e, por consequência, diminuir o lucro de Madalena. Cada sessão de conversa, que ela designou de private talks, podia demorar duas a três horas, e a maior parte dos homens cumpria uma média de uma hora por chamada, pagando cem euros, um valor que sofria um desconto segundo a
regularidade do cliente. A solidão masculina, e não a sua masturbação, era realmente o seu negócio, um viés que alterou a sua imagem sobre os homens, como dizia Os homens não têm cio, têm necessidade de atenção. Uma necessidade que muitas vezes era confundida, por eles até, por desejo sexual, como se não tivessem o direito a confessar os seus conflitos, medos e receios, mas só o direito de personificar o arquétipo másculo de que toda a conversa conflui para o sexo. José Lino era um caso exemplar desta solidão. Começaram pelas sessões de striptease, mas José não conseguia sequer ter uma ereção ou, quando a tinha, sentia repulsa em masturbar-se para Madalena. Numdesses momentos, José confessou que não achava moral aquilo que andava a fazer, que se estava a aproveitar de uma mulher – o que era o caso contrário, como bem sabia Madalena – e lhe pagava para fazer o que ele mandava. Nesse momento pediu-lhe para parar, aproximar-se da câmara e vestir-se de forma decente, porque Se não for incómodo, gostava de falar contigo… só falar. De uma maneira educada e delicada, José pedia um
confessor, uma pessoa a quem podia contar a sua vida Madalena, quero só falar contigo e se não te importas quero dizer-te que… não sei te interessas, mas eu queria falar com alguém… eu sei, eu sei que não vamos ter nada, apesar de me fazeres sentir especial e isso é muito importante para mim, há muito tempo que ninguém me faz sentir o único homem no mundo… eu queria-te dizer, deixa-me contar-te a minha história, que é muito simples… tenho quarenta e seis anos, sou canalizador em Penafiel e passo os meus dias entre trabalhos, biscates, o café central e o meu pequeno T1. não sou muito bom a conhecer pessoas, cresci numa aldeia e esta vida da cidade incomoda-me, sinto-me como uma barata tonta no meio de tanta gente a olhar para um lado e para o outro, para todos os lados sem nunca olharem uns para os outros e já ninguém olha para mim há dez anos, que foi quando a minha mulher me deixou. não chegamos a ter um filho e acho que o problema era meu, porque tentámos engravidar e nunca deu, Deus não deve ter querido que eu tivesse filhos. então de lá para cá não tenho estado com
nenhuma mulher, e as coisas têm de ser ditas assim: sou feio, tenho a cara marcada por rugas do tempo em que trabalhei nas obras, e depois tenho os dentes tortos e faltam-me dois dentes que apodreceram. sou feio e eu sei que sou feio e ninguém me quer, também não sou muito inteligente, quando vou ao café não falo com ninguém, não tenho muita coisa para dizer, vejo a bola, mas só porque os outros veem, não sei falar disso, nem de política nem de religião. gosto de plantas, não digo isto às pessoas, porque iam gozar comigo, mas gosto, tenho uma pequena coleção de suculentas que me dão trabalho, porque quando chego a casa rego-as e falo um pouco com elas, acho que elas gostam disso, as plantas são como as pessoas, precisam de carinho, bons sentimentos para que fiquem felizes. vi isto na televisão, que elas também se podem sentir tristes. e eu sou como elas, Madalena, sem carinho também me sinto triste, e sou como elas, não tenho muito para dar, estou aqui como se estivesse num vaso, vendo a vida a passar, mas também tenho direito a ser bem cuidado e bem regado! e é isto, eu gostava de te dizer isto. Desta longa
confissão, Madalena espontaneamente tinha uma linha de lágrimas nos olhos, aquela história tinha-lhe tocado e aberto à perspetiva de que por detrás da ideia política e crítica de homem, da ideia de cliente, se encontra um ser humano único e sensível, que procurava não mais do que um ouvido disponível e uma voz que lhe dissesse que estava tudo bem, que tudo ia correr bem. E na vida de Madalena tudo começava a correr bem à medida que estas conversas se tornavam cada vez mais frequentes e, assim, conseguia, mensalmente, um rendimento de dois mil euros, o suficiente para estabilizar a sua vida e conquistar, pela primeira vez, a sua independência. Madalena, tinha então, vinte e um anos.
Pois toda a mulher que se faça macho entrará no reino do céu Dito de Jesus Cristo nº 113, Evangelho de Tomé
Aos vinteetrêsanos, Madalenatinhaconstruído uma larga base de seguidores de múltiplas nacionalidades, internacionalizava-se e, apesar de algumas situações de assédio, ou de, por vezes, a obsessão de alguns homens por si os terem levado a persegui-la, como o caso de um ter chegado a passar um dia inteiro à sua porta, só afastado pela polícia, a vida de Madalena corria de forma bemsucedida. Contudo, ainda havia nela duas problemáticas a resolver e não eram a família, que se esfumava pelo ódio consumido do pai. Era exatamente o desejo de ser mãe e de se afirmar como homem. Quanto à primeira situação, a sua vida sexual cobria-se de um ascetismo paradoxal à sua prática profissional, o erotismo que demonstrava nas redes sociais banalizava-se de tal modo, que o aspeto sexual se tornava uma irrelevância. Quanto à segunda, Madalena percecionava já a sua profissão como uma performance de
travestismo, vestia-se de mulher em frente à câmara, mas fora dela, tirava a peruca azul e desnudava uma cabeça rapada, volteava uma banda ao largo dos seios – pensou em realizar uma mamoplastia, mas foi incapaz porque receava que as mamas, agora seu instrumento de trabalho, a prejudicassem no encanto que surtia nos homens – e vestia uma larga sweat com umas calças de ganga que lhe escondiam o formato das nádegas, parecendo, no movimento corrido da rua, mais um homem comum. Quando a lei da identidade de género foi promulgada, Madalenadecidiraadotaro géneromasculino e chamar-seia Paulo, tal e qual como esse homem, que na travessia na estrada de Damasco, no deserto de miragens e infernos tivera a sua revelação, de Saulo, o perseguidor, fez-se Paulo, o apóstolo. Paulo não desprezava o seu corpo, percecionava-se como um travesti que aproveitava as suas características hipertrofiadas para se fazer passar por uma mulher chamada Madalena, e Paulo olhava para a fenda que se abria por entre as suas pernas e imaginava que aquela era a cicatriz deixada depois de, à nascença, ter
ocorrido um incidente queobrigara os médicos a operar de imediato e, então, aferir-lhe o sexo. Apesar da disforia que sentia entre o que pensava ser e o que efetivamente via, Paulo reconhecia-se absolutamente como um homem e era assim que se apresentava à sociedade ou como Simão lhe havia dito Bem-vindo ao mundo encantado do Patriarcado! Mas faltava-lhe o falo, esse instrumento de poder só concedido a metade da população mundial que se sentia privilegiado por ter um. Paulo procurou durante meses por esse órgão perdido, mas as respostas que encontrava resumiam-se a uma só trágica realidade – a perda da sensibilidade sexual, a impossibilidade de atingir o orgasmo, um penoso tratamento de testosterona e longo processo de redefinição corporal para, no final de contas, ganhar uma prótese de carne que tinha a única função de ilustrar um corpo ferido de chagas cirúrgicas. Na mesma linha de raciocínio, também a Paulo não atraía a ideia de esquartejar o seu corpo extraindo os caracteres sexuais primários, como o útero, eos secundários como as mamas. Convenceu-se, definitivamente, aquando a autodefesa
apologética de Simão sobre a sua masculinidade Ó filho, tu sabes que nessas coisas sou uma bicha conservadora, mas apoio-te nas tuas lutas e estarei sempre ao teu lado! o que te posso dar é o meu testemunho como homem que sou. porque eu sou homem, mas ninguém me vê assim, que sou paneleiro, uma gaja com piça, uma vergonha para todos os homens, como dizia o meu pai. ó filho, eu tenho todo o macho pack, e mesmo assim olham-me como se fosse um impostor da masculinidade. sabes o que digo? que se vão foder! é que eu no gozo até digo que sou machista, porque um verdadeiro machista é aquele que gosta tanto dos homens que lhes vai ao cu! e também te digo, da mesma forma que uma mulher não deixa de ser mulher por não ter útero, vagina ou mamas, também um homem não deixa de ser homem por não ter pénis. falam dos cromossomas XY e XX… olha eu quero é que os cromossomas se fodam, era o que mais faltava que o meu ADN determinasse aquilo que eu sou! não se nasce homem, faz-se homem; não se nasce mulher, faz-se mulher! onde é que há dúvidas? tu não te sentes só um
homem, não acordaste hoje e a meio de uma dentada nas torradas pensaste que ias ser homem, isso já é-te natural, contaste-me que desde da tua infância te sentias um homem, por isso, aí vês! se o teu cérebro te diz que és um homem, caralho, és um homem! alguns vão dizer que isso é uma aberração, mas meu querido, somos todos aberrações, uns anormais, não conheço ninguém que seja normal, porque somos todos absolutamente únicos e individuais. no dia em que formos normais, é o dia em que deixamos de ser individuais. depois disto tudo, posso-te garantir que não será um penduricalho que te vai fazer quem tu já és. E Simão rematou com mais uma razão que concluiu o conflito de Paulo Paulo, meu querido, eu só estou à espera do meu afilhado que tu me prometeste faz um ano! Paulo realinhou as suas prioridades e com vinte e cinco anos tinha agora um único objetivo: ser pai de uma criança. Os meses passaram e Paulo decidiu avançar com a sua decisão. Depois de sucessivas consultas médicas, tinha entrado com Simão numa clínica do Porto para realizar uma fertilização in vitro para dentro dele ser
germinada uma nova criação. Quando, um dia, sozinho, vestindo o seu fato a lembrar a Frida Kahlo, olhou para o espelho vertical do seu quarto com as mãos sobre abarriga de cinco meses e recordou o que o ginecologista lhe havia dito: É espantoso, nunca conheci um caso assim, é que você por nunca ter tido penetração vaginal é completamente virgem. você será o segundo caso na história da humanidade a dar à luz, virgem. E Paulo, o virgem, sorriu.