[poesia] no meu país ainda se morre por amor

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1. no meu país

não comeces

não mergulhes nestas águas profundas sem a experiência do oceano não te seguram boias - serás engolido não experimentes sequer estender o pé sentir a temperatura deste mar bravo acharás demasiado quente, demasiado frio e o mar afunda e o mar queima não dês a mão a experientes para saltar no abismo tens que ser só não há guia no meio do caminho permanece aí e finge que não vieste provar estas alturas esquece o que leste e não compreendeste de modo contrário estarás a condenar toda a literatura pela tua velocidade se não demoras na poesia então tardaste a chegar e já foi cedo demais vai e não voltes a entrar com essa tua impaciência

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geração adiada

estás do outro lado da margem à parte grito por ti ampliado pelas mãos afónicas não me ouves, não me ligas puto estás entretido nas mensagens sempre assim foste

distraído a quem te chama se bem que, ao menos, não é com o futebol

- telenovela masculinamas continuas igual um quarto de século, estudante estacionado, desempregado por condição, frequentador assíduo e pontual da casa dos pais estás como figura desta geração adiada.

quando é que cortas a barba e vestes um fato engomado?

fazeres-te à vida, T1 com a namorada

- que ainda não te decidiste a escolher umanas periferias da cidade

- porque não tens sustento para quatro paredes capitaisemprego na função pública ou caixa no supermercado qualquer coisa para ti serve tens a flexibilidade e a precariedade nos genes

já és assim de nascença ou foi-te imposto

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que fosses ginasta acrobata borracha

de segunda a quinta motorista

(sem possibilidade de greve)

de sexta a domingo repositor de stocks

(sem subsídio de férias)

e estudante noturno

(sem perspetivas)

mas alarga-te filho, fragmenta-te torna-te estoico e assume a heteronímia

como forma do dia a dia

- não prolongues mais essa hora adiada

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a vida a mil rotações por minuto disseste-me que andavas zangado com o mundo

é natural não alcançaste nada na vida

não falhaste com o mundo

porque nunca te reconheceu nem soube quem eras não falhaste com os teus pais que não vês há quase uma década

e que tu nada sabes deles nem eles sabem de ti mas falhaste contigo próprio

e disso não te salvas podias fazer um filho

pelo desgosto de não te teres salvo como fez a malta do nosso bairro

tu sabes como é mas não porque tu não és assim nem assado

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convenceste-te que eras especial

o próximo Lobo Antunes

o próximo Guterres

o próximo António Variações

mas hoje

já nem te cospem nas costas

simplesmente

esqueceram-se de ti

mas tens orgulho no teu órgão sexual

podias ser ator pornográfico

mas tens princípios

e porque os tens nunca alcançaste os fins

podias ser influencer

postar fotos das tuas férias a Roma

fazer playback e danças no tiktok

sobreviveres de gostos

já que não gostas de ti

podias ser empreendedor

acordar às seis da manhã

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para estar à frente da competição

tomar banhos frios responder a e-mails ir ao ginásio bem sabes que o teu sucesso

é proporcional à tua massa muscular mas não que tu és diferente um idealista espiritualista um romântico e por falar nisso amaste uma talvez duas na vida mas tiveste medo de te constipar

e apenas soubeste multiplicar

multiplicar mulheres e nunca somar conservar arriscar no amor

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deste tudo na vida em troco de nada e não tenho consolo para te dar desiste porque não desistes?

com essa idade atingiste o limite de velocidade e já não vais a lado nenhum assim é a tua vida a mil rotações por minuto

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sempre é verdade

sempre é verdade nunca chegámos a marcar o tal café que agendámos num futuro sem dia lembras-te?

quando nos cruzámos a meio do caminho com um sorriso largo de avenida

e uma troca rápida com palavras a perguntar pela saúde

- não tive tempo para te dizer que andava mal dos pulmões -

porque chegámos a prometer lembras-te? lembro-me?

prolongá-lo num café noturno ali perto da faculdade para recordar esses tempos de glória mas soube há pouco que andavas para casar

- não recebi o convitecom aquela garota que eu nada gramava porque nunca gostei da ideia de partilhar amigos com mulheres e logo eu que sou um romântico anacrónico

e que p’ra’qui ando a fisgar o próximo grande amor mas

é verdade que sempre soubeste encontrar

e eu apenas procurar...

lembras-te quando te disse que com a x, y e z era para casar?

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pois então

já são variáveis de outras mãos enquanto as minhas se engolfam nestes bolsos vazios das calças de ganga e tu, porque tu, saías do bar antes da meia-noite para lhe seres fiel consolá-la com uma mensagem de boas noites que tinhas chegado inteiro inteiro... era isso que procurava contigo ser inteiro

completo como um puzzle da Clementoni montar-me como a mobília do IKEA mas tu, porque sempre tu, vinhas montado já de fabrico esculpido numa qualquer loja de Paços de Ferreira bem arredondado e torneado

depois de lixares as arestas e envernizado a remate mas sempre é verdade que nunca marcámos o tal café para pôr a conversa em dia nos seus carris de bitola ibérica

depois de tanto tempo dois três anos?

também que me importa o tempo nunca passou por nós

mas vê lá isso, tenho a semana desocupada o domingo inclusive, onde não há almoços de família

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nem passeios ao parque da cidade por isso, faz-me lá esse favor e marquemos esse café que sempre chegará a horas mas sempre será pouco para resgatar o sentido subterrâneo da amizade

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em excesso ou calo ou grito não sei senão ser este excesso de mim se me calo é porque não tenho a dizer se grito então muito menos que o silêncio não tenho o meio termo

necessário ao convívio social essa virtude central que é o caminho aristotélico

mas algum dia alguém amará tranquilo e moderadamente? mas pode alguém beber senão até ao fundo da garrafa?

significaria isto deixar tudo a meio e no entanto é necessário deixar tudo radicalmente no início ou até ao fim

não sei pois

não ser este excesso de mim que me insulta à falta da presença dos outros - entretenimento exatamente isso

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e à falta de mundo

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faço-me ele por inteiro

que serás quando tens só o ir e já não podes ficar quando partes sem ter que chegar por razão alguma ou nenhuma

um amor que não suportaste um emprego que não arranjaste uma vontade para te renovar ou somente essa qualidade de pernas que te obriga a andar a andar a andar e tenho de te perguntar depois do quando depois do onde por onde passaste a pena que te valeu a mutação de alquimia que julgaste empreender perguntar-te qual será a tua confissão última

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depois de tudo e agora o nada o que serás tu quando fores meia-noite e fim de estrada?

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esta cidade

O Porto não é um lugar, é um sentimento Agustina Bessa-Luís

esta cidade tem a dimensão de uma patanisca molhada a frito na rua marginal de s. bento

tem um sabor abafado de palavrões que alongam as línguas como estradas tem um céu sem plenitude e de estrelas enferrujadas

umas gaivotas a metamorfose gozando elipses no patamar das estátuas um rasgo de chavalos sobre a ponte

num aninho de encarpado mortal para o fim do rio tem túneis ao fundo da luz e gravidades diversas em diferentes vielas

esboroa de gente e está sem gente como velhos a formol abancados na praça da batalha é uma cidade tão mal-amanhada sem distância entre o mar que anoitece e a manhã desempregada tem tudo isto e mãos de granito e asfalto

um som, uma tempestade, uma espinha na garganta é uma cidade - está descrita nos livros de geografia que não compreendem a possibilidade do movimento e das fronteiras da boca da boca calada interrompida por um paredão sem ondas e sem areias e sem pescadores e sem horas cabe no bolso e, no entanto, é tanto maior para um verso

são pontes a galgar a pele de borracha declinada em declínio

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tem tanto de seu que é inglesa francesa e não deixa de ser um palavrão em português esta cidade é bela como a merda

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2.ainda se morre por amor

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que faremos quando tudo arde

há de o mundo arder e nós a fazer amor e há de haver guerra e armas a desfilar trincheiras de corpos suspensos no tempo e um grito de morte ouvir-se-á na terra queimada viva

e eu ao teu lado nos lençóis danados da paixão onde te irei prometer a eternidade sabendo do fim do expectável fim que nos aguarda

porque sei que a história das tragédias se repete:

- não aprendemos a morrer pelo outro não esquecemos como matar o outro.

e então a técnica, a ciência e a arte

juntar-se-ão em mais um espetáculo do mundo uma chuva ácida cairá sobre a terra e havemos de fazer amor e o mundo a arder

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bombons da arcádia

criaturas excecionais habitam lugares comuns

na fila para o pão de domingo

nos restaurantes de menu económico

nos jardins a pisar a relva aparada

na rua passando depressa

na discoteca enlatada

e na arcádia do shopping

onde ela

coisa rara e deliciosa

serve cafés e bombons

de camisa branca e segura

com uns olhos perdigueiros

e um sorriso lunar

ela

fora dos tops masculinos

em escalas de 0 a 10

ou da suscetibilidade do piropo

ela

atrás do balcão

só e chega

é preciso gostar do que ninguém gosta

de estar acordado quando outros dormem

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orientações conduzir veloz, mas sem pressas pela circunvalação parar nos vermelhos, prego a fundo nos amarelos entrar de emergência na A4, a seguir ao hospital s. joão encher o depósito – noventa e oito octanas ver, e não comprar, uma revista feminina analisar o horóscopo que a ser falso - apenas se arde uma casa a ser verdadeiro - sempre se esquiva do eu te avisei retomar pelas linhas tracejadas pelo alfaiate no asfalto ajeitar o retrovisor mas nunca, mesmo nunca olhar para trás tomar a via verde mesmo que não se tenha há multas que não valem o tempo perdido e não perdendo distrair-se com a composição das nuvens em bolas fofas de algodão doce e desenhar nelas o corpo feminino para que ao chegar perto dele

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não se perca na sua geografia de gato pardo retomar ao presente imediato abrandar à entrada da cidade aquática como quem murmura conspirações e estacionar na diagonal em frente à casa com um ramo de flores que nunca esteve nos planos iniciais mas que foi adquirido à revelia destas orientações - nunca fiar nos conselhos alheios –e ao toque de campainha, brindar com um sorriso a aparição súbita de quem não queria estar noutro lugar

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descrito depois do amor

o gesto mais perigoso da minha vida

foi sentar-me à tua mesa e falar-te como um poeta

não sabia o quanto amar-te-ia

e o quão impossível era viver desse amor

os beijos que demos nessa noite malograda deveriam ser condenados a pena capital ou apedrejados no palco das multidões

o sexo que devorámos na tua cama

foi de uma insanidade do júlio de matos

que devíamos ter os corpos agrilhoados em camisas de força

mas o mais altamente inflamável foi termos declarado em simultâneo

amo-te e isso

meu amor não se perdoa

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os elevados sentimentos do mundo

a modos que andamos a carga d’ombro um contra o outro tu para a direita e eu para a esquerda no sentido político e prático da vida ainda por cima

tenho constipações em agosto e tu fisioterapia a modos que

não temos tempo para nos engriparmos ou exercitarmos nisto constando o que mais belo daqui advém a canja de galinha e a toalha húmida sobre a testa ou os levantamentos de pernas e se para aí estiveres virada a espargata de acrobacia

Mas pode ser que um dia tenhamos tempo para a felicidade ou se não deixemo-la para outros porque no fundo no fundo nunca nos fizeram falta os elevados sentimentos do mundo

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carta de um Amor desempregado

estou desempregado e não te posso dar o mundo (mesmo que o mundo estivesse em saldos e eu pudesse pagar em prestações).

o fisco confiscou-me os bens que te poderia oferecer como aqueles brincos de viana que comprei com o dinheiro que por longos meses juntei cortando no tabaco, no café e por vezes no pequeno almoço para materializar em ouro e diamante o nosso amor

o desemprego arruinou-me a carreira de ser um amante com classe e tornou o nosso amor precário tanto que os nossos encontros

têm de ser economizados com o bilhete do metro e com os cafés low cost e ainda assim

sai-me caro beijar-te quando um beijo deveria ser livre de impostos

não te posso dar o que não me pertence mas contudo posso dar-te tudo do pouco que tenho

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posso por exemplo

oferecer-te a fatia do meio

daquelas torradas amanteigadas da pastelaria

posso dar-te o último cigarro do meu maço

posso levar-te à boca uma colher de iogurte

porque é tudo o que a vida me permite

posso também

dar-te tudo o que o Amor implica como um doce e prolongado beijo

mas eu queria dar-te mais

porque és

nas minhas mãos sujas

pura

e em vez de irmos a uma reles tasca

desejava levar-te a um restaurante em paris

mas paris fica longe

e eu não tenho dinheiro

e porque não tenho

dou-te um beijo francês

e sinto-me mal

porque não é a mesma coisa

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não tenho

também

metafísica suficiente para embelezar

o nosso amor com palavras requintadas e elaboradas porque não se fala bem quando a boca tem fome e sede

nem a imaginação de um futuro nosso é fácil de deslumbrar não porque não nos amemos visceral e eternamente

mas porque as contas da vida não são as matemáticas do Amor

porém

é na tua boca que mato a sede à falta de água

é nos teus braços que me aconchego no inverno à falta de aquecedor e ao teu corpo candidato-me com um

curriculum suavium

e sou aceite no teu coração que nunca me deixou desempregado

bem… estou no metro e encontro cinquenta cêntimos

dá para um cafezinho na esquina

mas para ti

e porque é tudo o que tenho

e porque é tudo o que posso dar

dou-te este poema

(com a dívida do custo do papel que comprei na papelaria)

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é fácil amar-te

é fácil amar-te à distância como olhar o sol

e tomar como pequenas as grandes estrelas

mas de perto

tudo ofusca tudo engrandece

e é difícil amar-te perto

tão perto que não te vejo inteira que não te amo como pedes nem seguro quando cais porque não sou quando és

e de longe de tão longe

és perfeita, inocente e virginal

e de perto

tão perto

és desfeita, ausente e real

e de longe de tão tão longe

é fácil amar-te

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discorpo o teu corpo não-lugar de passagem sem paragem sem uma geografia sentimental de um coração - capital desabitada

não há mapas para cidades perdidas

há um sonho - que não existe e encontra a utopia que é lugar - que não existe há a minha mão que não te encontra porque não te segura todos os corpos humanos contrariam a gravidade

esta é a sua primeira condição

levitam - sempre mas tu és corpo ausente

levitas pela ausência de peso e não pelos sonhos

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tu lugar sem espaço onde passam sem ficar onde ficas sem estar

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Trou du cul, putain, merde, nom de Dieu, piège à cons, saloperie, bordel.

Le mépris (1963), Jean-Luc Godard

Brigitte Bardot

a tua boca malcriada e suja de fuck girl de uma língua sem compromissos

sem porquês com uns dentes afiados que mordem e matam o céu da tua boca miúda arde arde e eu adoro

é a boca o primeiro órgão sexual

e é com ela que fazemos amor

e é por amor que saem estas palavras

sempre que a abres boca que desperta

disparas um botão de rosa direto ao coração

e eu sei disso

32 bb

e calo e sei muitas outras coisas mas tu sabes uma e é a mais importante

- o equilíbrio na ponta da língua

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durante a cama

durante a cama

somos mais de dois e não aguentamos por mais das vezes

atiro uma perna inteira para fora

ou subo para cima de ti

nunca dentro de ti

e fazemos amor para esquecer que somos essa multidão que sufoca dentro dos lençóis tenho-te a meu lado

e o que restou de nós

os meus receios de não saber amar

e a minha constipação mal curada

e tu tens sonhos e expectativas

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e os homens que te entraram

e nunca deixaram de estar tenho tanto medo

é tanta gente

tanta tonelada para suportar

sobre estes braços tão líquidos

- gostava que fôssemos mais leves que o ar

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barbitúricos

quando estiver de molho como agora

não me dês brufen, anti-histamínicos ou xaropes - que me custa a engolir e tu és contra -

dá-me antes a literatura

para quando tiver quarenta de febre aquele poema do drummond

quando to disse na serra do pilar no tempo em que te levei a voar sobre a cidade como o quadro de chagall aquele poeminha, lembras-te? deves lembrar

lembro

para quando espirrar e me sentir menos masculino

folheia-me algumas páginas de guerra do hemingway

são esses aí, não vês? por cima das nossas roupas

este dos sinos?

sim, lê-me

e para limpar o pingo do nariz dispensa os lenços de papel

antes dá-me a assoar

esses livros sobre o amor incompreendido

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este poema

este poema tem sol

e bocas de sal

tem areias com moldes de pés alheados

tem uma toalha estendida

e dois corpos deitados

tem o sabor da vida

e do amor aliado

este poema tem-te a ti

veraneante e venerada

e eu tenho-te a ti

sobre ti

dentro de ti

como um verso

virado do avesso

à espera que o líquido do mar

nos mergulhe por completo

e possamos também

com as bocas sufocadas

respirar

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a possibilidade do outro amor estás em agosto como estivemos em janeiro

agora na orla de outros lábios

banais, simples e convencionais

estás como no maio do nosso recomeço

quando prometemos um amor de trezentos anos e agora reencontro o teu perfil na praia lugar por mim detestável

e apesar de tudo não estamos estás e penso feliz nos versos de ruy belo eles beijam-se na tarde de verão.

o amor (ainda) é possível

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amor doméstico

chegas hoje às duas da tarde

e às oito da manhã já me preparo para te receber

largo as cartas de amor e os poemas

e começo a desfilar o aspirador pela tijoleira

depois de uma varrida genérica pelos cantos mais difíceis e depois de lavar o chão lavo-me a mim

visto a camisa sem gola que tu gostas as calças de bombazine que tu adoras

os chinelos abertos à frente que tu achas piada

e perto da hora começo a preparar o refogado de cebola e alho picado

o arroz malandro um pouco molhado que é assim que tu gostas e preparo o vinho branco que tu não te importas depois fumo e fumo muito

e quando sei que estás para chegar lavo os dentes para te receber com uma boca fresca de colgate

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e tu chegas a esta nossa casa a este nosso amor doméstico sem palavras e só de gestos como gosto como gostas que assim seja o aspirador o incenso a canela a toalha posta em cima da mesa são as armas que tenho para te cativar e já não os poemas de romântico adolescente que um dia julguei que fossem a única forma de amar

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