[ensaio literário] diálogos escolásticos II , MDC

Page 1

Acho que os alunos estão cada vez piores, isto não se resolve. viste aquela notícia de um jovem de vinte anos que matou a filha e a mulher à espingarda? Devo ter visto nas manchetes, mas não li. Também não há muito a saber do caso, foi somente isso. o curioso é que conseguiram entrevistar o miúdo e perguntaram-lhe se sentiu remorsos. o velho professor deu um toque clínico no cigarro e enquanto a cinza caia grave sabes o que lhes respondeu? muito eloquente com um olhar coloquial e desassombrado para as câmaras: por vezes, o destino não está em nós, mas nas estrelas. Ah! mas isso não é Shakespeare? É, mas virado do avesso. fiquei curioso com aquela perversidade e aproximei-me mais da televisão, e percebi uma coisa: eu dizia muitas vezes aos meus alunos a frase: por vezes, o destino não está nas estrelas, mas em nós mesmos; e, afinal, aquele bruto tinha sido meu aluno há dois anos. eu, eu próprio o tinha educado, partilhado com ele o meu conhecimento sobre o mundo e sobre a Filosofia, e esse canalha, que não tem outro nome, e que nas minhas aulas estava sempre a armar confusão, aprendeu o aforismo, virou-o de pernas para o ar e usou-o para justificar um crime horrível e indesculpável. Sim… e agora sente-se com peso na consciência? Não, sinto-me pior, sem completa consciência sobre tudo isto que durante quarenta anos andei a fazer… sabes… é que esse bruto ensinou-me uma lição perversamente democrática, uma última lição a poucos meses da reforma… é que durante todo este tempo formei professores, engenheiros, artistas, e também não esqueço que ensinei Filosofia a professores burocráticos, engenheiros corruptos, artistas oportunistas, criminosos, traficantes, violadores, traidores, agressores. ensinei-os antes de eles o serem e o perverso é que todos têm direito ao ensino, mesmo aqueles que um dia se vão tornar os destruidores de pessoas e mundos. e agora estou na reta final e já nada me interessa, mas tu, que começaste agora a ensinar, pergunta-te no que se vão tornar os alunos que tens à tua frente e que podes tu fazer por isso. E foi sobre este conselho que entrei na sala. Parei um momento a olhar aquela assembleia de adolescentes e varri-os com o olhar a adivinhar-lhes o futuro e com um terror de que, pelo menos, um deles poderia ser um assassino a citar um aforismo filosófico. Mas nesta inquietação orgânica, sentei-me por momentos à mesa elaborando o sumário da aula, e no mecanismo habitual deixei-me a pensar no outro lado da observação do professor António, é que ele próprio havia sido meu professor há dez anos e agora era meu colega. Penso que formou também gente boa, acredito, formou-me a mim, que sou um criador. Mas e os meus alunos? Haverá entre eles já um futuro predestinado? O Tiago que é violento e recorrentemente suspenso, e que o psicólogo justifica o comportamento por uma família destruturada, então quer isto dizer que este

2

miúdo não se salva? Ou a Matilde, quieta e absorta, que tem no caderno desenhos a vermelho de símbolos da morte, cruzes, o demónio? Haverá neles alguma liberdade? Levanto-me e deixo no quadro o rasto de álcool da caneta: lição número cinquenta e quatro, conclusão ao problema do livre-arbítrio. Vocês devem ter visto na televisão o caso de um antigo aluno desta escola que cometeu femicídio e ao responder aos jornalistas, disse que o destino estava nas estrelas e não nele. é perversa esta forma de reagir, mas tantas vezes frequente em menor grau. quantas vezes vocês se portaram mal e disseram Não fui eu! ou arranjaram desculpas para que as consequências dos vossos comportamentos não vos fossem impostas? pois… não são apenas vocês, também eu o faço, todos o fazemos, não admitimos a culpa, porque não queremos ser punidos. mas o raciocínio é simples e também ele desumanizante: se não fui eu, quem foi? se aquilo que eu fiz, não foi da minha responsabilidade, então não agi na minha liberdade fui uma marioneta? fui levado pelos sentimentos? condenado pelo destino? esse rapaz que matou teve culpa de matar ou, como ele diz, foram as estrelas, o destino, Deus? é exatamente sobre isto que gostava que investigássemos, se somos realmente livres e, se o somos, se fomos responsáveis pelo que fizemos ou, se somos determinados, e, nesse sentido, lavamos as mãos por tudo de bom e mau que possamos fazer façam, primeiro, um autoexame, em silêncio, às vossas opiniões e, depois, redijam um ensaio sobre as problemáticas do acontecimento. abandonem a vossa primeira opinião como rejeitam a primeira impressão que têm de uma pessoa. a primeira coisa que pensarem é sempre preconceituosa, instintiva e irracional, não respondam com o corpo, mas com a cabeça. o importante, depois de negarem as vossas certezas infundadas, é o raciocínio, a vossa argumentação precisa e correta. dispensem o Na minha opinião… que é sempre uma forma de se defenderem, de não mudar de opinião perante refutações fortes, e do Depende que é outra forma de preguiça, que éficar pela aparência dos casos particulares sem encontrar neles aquilo que lhes é comum. estamos a filosofar, não a opinar ou a divagar. saibam, também, que a Filosofia não é perguntar, mas responder, procurandose a resposta mais bem fundamentada. queremos, arrogantemente a verdade, mas humildemente a procuramos. porque a filosofia não é o exercício recreativo do pensar, mas um ofício sério que procura uma aproximação à verdade. se a alcançamos, não sabemos, se vamos nesta aula inferir que somos livres ou não, não sabemos, mas saberemos, pelo menos, que certos itinerários de pensamento estão incorretos. há dúvidas?... avancemos então.

3

não sou livre, porque aquilo que faço não corresponde à finalidade da minha ação

Dúvidas? Fogo! Isso é o que mais tenho nesta disciplina, mas então não vou perguntar nada, porque não sei o que perguntar. Se sou livre ou determinado… eu sei lá, como hei de eu saber, eu que nem sei quem realmente sou. Chamo-me Miguel e estou sentado na primeira fila de mesas, na segunda mesa perto da janela. Sei isto e já é muito bom. Pela janela vejo pessoas a passar, curioso que estão sempre a ir a algum lado, com pressa ou menos pressa, mas dirigem-se para algum lado, têm um objetivo e parecem cumpri-lo. Mas eu, que aqui estou, desconfio sempre que chegue a algum lugar, porque sempre que desejo que algo aconteça, e trabalho para isso, nunca consigo obtê-lo. Sendo assim, não sou claramente livre, porque as minhas intenções nunca se concretizam. Por exemplo, quantas horas estudei para o teste de filosofia para, no final, ter cinco valores? A português o mesmo, a biologia o mesmo, e por aí fora. Gostava de ter uma boa média, mas já me vejo à rasca para ter uma média positiva, gostava de fazer faculdade em História, mas não vou ter média para entrar, mesmo com os esforços que tenho tido. Se assim é, de que me vale a minha liberdade se dela não resulta aquilo que espero? Talvez porque não seja efetivamente livre, mas não é porque o futuro está escrito, mas porque o passado cai sobre mim como a gravidade esmaga as coisas. O meu passado, isto é, as condições que me formaram. A genética que não tem sido benéfica para mim, sou pequeno para a minha idade, acho-me feio com estes olhos de meia lua e um cabelo que, espantosamente, começa a cair e a descobrir uma calvície precoce, depois a criatividade, nem sequer sei desenhar ou escrever de forma elegante, a minha imaginação é o que está à vista, eles sabem disso, é por isso que as minhas ideias que nunca são aceites. Depois a minha inteligência… devo ter um QI de quarta classe, ainda escrevo o à como á, não me entra na cabeça o funcionamento do binómio de Newton nem todas as complicações que entram no processo de erupção de um vulcão. E depois o meu meio? Os meus pais que estão divorciados, o meu pai que volta e meia me envia uma mensagem a perguntar como estou e nada mais, e a minha mãe atarefada com os seus dois empregos não tem tempo para me levar a museus, para me estimular à leitura ou ao pensamento… podia agora armar-me em herói iludido destes tempos que tenho de ter fé em mim, mas como pode um amputado correr maratonas? Claro que não acredito em mim porque não há nada em que acreditar e, quando acredito, tudo sai furado. Se sou livre, de nada me serve porque faça o que fizer a realidade não corresponde às minhas expectativas. Se sou determinado,

4
Miguel

de nada também me serve, porque faça o que eu fizer a vida impor-se-á sobre mim e comandar-me-á tal como a marioneta que o stor falou. E de que serve ser marioneta, fantoche, boneco de palha num campo de trigo? Mas, muito bem, vou rejeitar isto e avançar para outra possibilidade: talvez seja livre só que estou a fazer tudo errado, logo eu que procuro fazer tudo certo, ser bomamigo, altruísta, respeitador, concentrado e bemcomportado, mas façamos o contrário, serei terrivelmente mau, pode ser que assim as coisas funcionem. Quantas vezes vi na televisão homens poderosos que roubaram, chantagearam, corromperam e nunca foram apanhados, e foram ricos, tiveram mulheres, filhos, uma boa casa, etc. e etc.?Pois eu lembro-me que da última e primeira vez que quis ser sacana, aproveitar-me deste desarranjo do mundo, foi no teste de inglês. A stora não via do olho esquerdo e quando entregouos testes, estendeu o jornal e ficou compenetrada na leitura. Ora, sabendo eu isto, e sabendo que por mais que estudasse não ia ter positiva, decidi-me a fazer uma cábula tão engenhosa que, pela primeira vez, tive orgulho nas minhas capacidades. Um folha de acetatos impressa com letras pequeninas que enfiei a meio do dicionário. O plano era, claramente infalível, porque podíamos consultar o dicionário durante o teste, e enquanto o fazia olhava para a cábula. Não é que, nesse teste, mal abro o dicionário e estou a consultar o copianço, a professora apanha-me? Enquanto outros copiaram e tiraram boas notas, eu fiquei com o teste anulado. Não há justiça neste mudo, pelo menos para mim, é como aquele poema do Camões, que diz que só para ele anda o mundo concertado. Pois para mim anda tão bem concertado que ser livre neste mundo é o mesmo que ser determinado.

Agora o caso que suscitou toda esta minha divagação. Aquele assassino, como calculo, dirá mais tarde Não queria fazer isto! Aliás a sua própria fuga para as estrelas já é um prefácio a essa mesma defesa. E será difícil de acreditar que ele não queria mesmo fazê-lo? Se amava a mulher e a filha, por que razão havia de cometer um ato tão desprezível? Novamente, como expliquei, sempre que procuramos fazer alguma coisa, aquilo que acontece não corresponde à nossa intenção, e se não corresponde, até que ponto podemos dizer que essa pessoa foi livre? E se não foi, como pode ser responsabilizado?

5

Helena a desimportância do livre-arbítrio

o dia em que nasci, morra e pereça o dia inaugural da minha existência desapareça da história humana e universal que existir ou não existir é indiferente como um sopro ao vento, um grito na trovoada nasci sem pai, que morreu antes de ter nascido sem mãe, que cedo me abandonou se a minha família não me quis porque há de o mundo querer? se não fiz falta quando não estava se antes de nascer, estive morta durante milhões e milhões de anos do universo e depois de morta assim continuarei até à extinção do próprio universo porque faria agora falta, que estou e nada faço? se por ser Eu sou uma exceção no mundo que importa quando há tantos milhões de Eu’s no mundo assim? que valor tem a exceção quando é comum? que importa a liberdade para quem nada tem a oferecer ao mundo?

não valho nada, não tenho qualquer valor não gostam de mim nem eu gosto de ninguém não sou inteligente nem bonita não sou rica nem alguma vez terei sucesso então de que serve ser livre se todo o meu passado que gravita sobre o meu presente já me determinou?

mas o futuro é a abertura à possibilidade mas que possibilidades tenho eu se não tenho nada?

não tenho a ilusão de construir castelos na areia

O dia em que eu nasci, morra e pereça

6

que dias poderão haver em mim se sou da substância da noite perpétua que fica e não sai como doença venérea mas nada fiz para merecer tantos desgostos caída numa depressão que não me segura só me desilude com tudo o que desejo querer? não quero não posso querer o que não conheço nem querer o que conheço se o primeiro porque impossível como todos os meus sonhos o segundo porque impensável que a natureza a uns deu toda a sorte nasceram iluminados pela lua deram-lhes nozes e não tinham dentes mas têm, têm tudo e uns são felizes porque sempre a vida lhes correu como quiseram e outros que são infelizes, mas porque ignoram a sua tristeza são felizes para si e só eu, que não sou feliz e sei que não sou podia ao menos ter recebido a ignorância sobre a minha condição mas quiseram que eu nascesse de olhos abertos para um mundo fechado só para mim

O dia em que eu nasci, morra e pereça que nasci sem ter pedido permissão rompi à vida sem ter desejado e exigem de mim que cá continue por certos códigos morais porque tudo pode ser diferente

porque temos de acreditar mas acreditar em quê se tudo em que acredito me desilude?

7

e acreditar em Deus que já estava morto quando nasci? e acreditar no absolutismo de uma bússola moral quando tudo depende, tudo é relativo, tudo é circunstancial? dizem que devo seguir o meu próprio caminho que devo, pois, ser eu própria mas posso ser outra coisa que não eu? e como posso ser aquilo que desconheço? o eu – como um feixe de luz em perpétua mudança atravessa as mãos quando o tento agarrar como grãos de areia por entre os dedos se sou livre ou determinada tenho que primeiro saber quem sou e só eu o posso saber olhando-me para dentro, pelo autoexame mas não há maior paradoxo do que este procurar o eu através do eu como cumprimentar a própria mão como olhar-se diretamente com os próprios olhos desta forma impossível também se burla a demanda do eu usando o eu como ao procurar observar de modo imparcial como se piscam mecanicamente uns olhos e quando tomamos consciência sobre eles já somos nós que contaminamos a sua mecânica natural já somos nós que voluntariamente piscamos os olhos já pois não podemos conhecê-los naturalmente como paradoxo do observador cientista em que para compreender a experiência precisa de estar presente mas a sua presença modifica de imediato a própria ocorrência da experiência em si, o comportamento dos átomos a vida e morte do gato assim como nós que buscamos quem somos mal partimos para essa demanda corrompemo-la pela nossa presença

8

é a nossa existência que nos impede de entender a nossa própria existência pois então se estou impossibilitada de saber quem sou nada posso dizer sobre mim própria nem livre nem determinada e o dia que me fez viva é o mesmo dia que me condenará a não estar viva pois que sentido tem tudo isto porque paradoxal, porque impossível se existir é já por si o cúmulo do absurdo? para que serve ser livre ou determinado se não há direção para ser seja o que for? O dia em que eu nasci, morra e pereça O dia em que eu morri, viva e permaneça

E só poeticamente soube expressar-me, porque o meu pensamento é emocional.

9

a liberdade só existe politicamente

Sabemos que o ser humano é um ser social, um ser político, como aprendemos com Aristóteles, ou seja, vive naturalmente na pólis, na sociedade, com os outros. Assim, valores como a igualdade, a solidariedade, a felicidade, a liberdade, todos estes e outros valores só se justificam e só podem ser avaliados do ponto de vista social. Mas social significa somente que deriva da relação com os outros, mas o que nos importa é saber se efetivamente somos livres na sociedade, quais os fatores que permitem a sua existência e que graus, a existir, de liberdade, e isto só pode ser analisado do ponto de vista político. A liberdade, do ponto de vista político, que é aquele que realmente importa, revela-se pelos direitos que estão plasmados na lei. Se uma sociedade é livre, então os indivíduos são livres. Uma sociedade é livre quando legisla e efetivamente pratica os direitos e liberdades garantidos na sua Constituição e nas suas leis. Se assim é, se a liberdade depende das leis da sociedade, então aquela só pode ser conquistada social e politicamente. E que relevância têm os direitos, se não existe o direito à liberdade de expressão, que garante, desde logo, a manifestação da nossa existência? Anulando-se este, anula-se qualquer outra liberdade. Então só nos importa saber que somos livres em relação à sociedade. Eu sou livre, porque social e politicamente posso falar acerca das minhas crenças e posições sem consequências legais (liberdade de expressão), eu sou livre, porque tenho o direito (concreto) de sair à rua e passear, entre outras liberdades básicas que apenas se afirmam numa realidade social e política quando concertadas politicamente. É, por exemplo, a Constituição do meu país que me permite usufruir da liberdade.

Contudo, estas liberdades têm graus que são condicionados, talvez, por dois fatores: a liberdade do outro e a liberdade concertada. A primeira limita a nossa liberdade individual, porque se esta ocorre e só adquire realidade em sociedade, então necessariamente está condicionada pela própria sociedade, isto é, limitada pela liberdade dos outros. A minha liberdade, como se diz, termina quando a do outro começa.

Mas esta expressão infantiliza uma condição demasiado complexa para ser objetivamente assim formulada. Por exemplo, a liberdade de eu aprender corresponde também ao meu direito de não querer aprender, mas quando me recuso a exercer este direito, este entra em conflito com a liberdade e com o dever do professor exigir que eu aprenda. Outro caso ocorreu durante a pandemia quando os governos limitaram a nossa

10

liberdade de circulação

não podermos sair a partir de determinada hora

e a nossa liberdade de expressão – a ilegitimidade de um discurso considerado fake news ou conspiratório, apesar deste ter tido um viés mais social, do que propriamente jurídico ou político. Estas medidas condicionaram a nossa liberdade, o que corrompe o princípio da expressão popular que mencionei, e, contudo, tiveram legitimidade política, jurídica e, maioritariamente, social.

Mas este caso explica-se porque acima do valor da liberdade se sobrepôs o valor dasegurançaeda vida, o raciocínio apresentava-se destemodo:o cidadão só podeexercer a sua liberdade se tiver condições para o seu exercício, desde logo, se estiver vivo e em segurança. O problema é que podemos exagerar de tal modo as consequências deste argumento que o governo, motivado pela garantia da segurança, instaure um estado de exceção em que perdemos todas as garantias da liberdade para assegurar uma segurança individual e social. É exatamente o mesmo raciocínio do filósofo Thomas Hobbes para justificar um estado absolutista: umEstado só subsiste se garantir a segurança, logo todos os valores políticos estão submetidos ao critério da segurança. Se a liberdade afeta a estabilidade social, então aquela deve ser quartada. Sabemos que esta tese assenta numa falácia por generalização por duas razões: primeiro, a instabilidade social não significa, necessariamente nem provavelmente, um estado anárquico em que todos se encontram numa situação de todos contra todos; e, em segundo, é possível compatibilizar um certo grau de liberdade com a segurança social e política, existirem liberdades não implica a anarquia. Aliás, historicamente, sabemos que, quando as liberdades são reduzidas e anuladas, o sentimento deinsatisfação cresce, oEstadotorna-seuminimigo do povo, uma insegurança para o próprio povo, que o leva, depois, a reivindicar as suas liberdades através da violência. Curioso, que a subordinação de todos os valores à segurança levem ao despoletar da própria insegurança.

Este raciocínio vai de encontro com a segunda condição da nossa liberdade, a liberdade concertada por uma espécie de contrato sociopolítico que expressa os valores básicos e essenciais dos nossos direitos, que se exemplifica pela nossa Constituição. Se todosos direitos só adquirem realidade política através de umacordo social, segue-se que também os seus limites sejam acordados socialmente. Ora, a necessidade dos limites à liberdade não são um atentado à própria liberdade, mas a sua própria garantia. Se acordássemosquetodospoderiamfazer oquequisessem, então aminha liberdadeentraria emcontradição coma liberdade do outro, porque, por exemplo, se desejássemos a mesma coisa, este conflito seria irresolúvel, porque ambos temos o mesmo direito. E este estado

11

de uma liberdade ilimitada resultaria num estado de anarquia pura em que as únicas limitações à nossa ação, seriamas leis da natureza, emque a leido mais forte iria imperar, e não a lei do mais justo.

Em segundo, as nossas liberdades, apesar de serem fundamentais para a nossa vivência social, elas coexistem com outros direitos e deveres, o que obriga a que entre leis fundamentais estas se condicionam mutuamente. Isto é, como todos os direitos e deveres básicos são fundamentais, então o critério de preterir um em relação ao outro torna-se impossível, visto quesão fundamentais, logo de igual valor e importância. Então, a sua resolução só se torna possível, quando entram em conflito, por exemplo, o direito de porte dearma como direito desegurança, o direito de circulação como direito àsaúde, o direito à informação fidedigna e imparcial com o direito de expressão, o direito à liberdade religiosa como direito àpropaganda religiosa, o direito à propaganda eo direito de recusar propaganda, o direito à educação com o direito à liberdade de pensamento, o direito à justiça com o direito à melhor defesa jurídica possível, entre outros direitos que entram em conflito entre si. Ora se estes e outros direitos são fundamentais, então não podem ser anulados quando entram em conflito, mas também não podem ser ilimitados, porque se anulariam mutuamente, por exemplo, se todos pudessem usar uma arma estaria aentrar emconflito como direito àsegurança, porquecriariaumasituação de insegurança entretodosouseo direito àinformação fidedigna fosse absoluto, aliberdade de expressão com opiniões contrárias à ciência ou ao discurso geral da população, seria de tal modo anulado, que haveria somente um pensamento único, que seria uma autocontradição com o próprio direito à informação fidedigna ou da procura da verdade, mesmo quando esta se revelasse contra aquilo que se poderia, no momento, chamar de informação fidedigna ou true news

Sabendo isto, posso concluir o seguinte: Anossa liberdade só existe comvalor em sociedade, logo só através da sociedade é que se adquire a liberdade. Segue-se que a liberdade só pode, então, ser concertada pela via política, mas isto implica que seja limitada por duas razões baseadas no conflito: a nossa liberdade encontra-se limitada pela liberdade do outro, porque se assim não fosse, se ambas as liberdades fossem ilimitadas, anular-se-iam e entrávamos num estado anárquico; e, sem segundo, a nossa liberdade encontra-se limitada pelas outras liberdades, porque ao percebermos que existe uma malha ou rede de liberdades fundamentais e que estas, por serem fundamentais, não podemser violadas, então ao entrarememconflito anular-se-iamouaresolução seriauma aporia. Deste modo, para a resolução do conflito deve-se afirmar a sua importância

12

absoluta, mas não o seu valor ilimitado, mas que só podem substituir equilibrando-se e é neste limite entre liberdades que a nossa liberdade individualse limita a outras liberdades.

Assim, somos livres quando vivemos num Estado que reúne as condições dos direitos fundamentais, mas de uma liberdade limitada para que esteja possa ser garantida.

O que no caso presente do assassino tem fácil resolução, ao transgredir os direitos auferidos pelo Estado, perde também o direito à sua própria liberdade, mas não o direito à sua dignidade.

13

Jorge sou livre, porque sonho

Sim, conhecemos a velha rapsódia de que todos os corpos são resultado do passado, o efeito de uma causa, o que por sua vez implica que nada que aconteça neste mundo acontece por si mesmo, está sempre sob o jugo de relações e estímulos externos e precedentes. O mesmo, também se diz, acontece connosco. Qualquer gesto que façamos é despoletado por uma ação anterior que nos determina absolutamente, contando com as leis rígidas da natureza. Ainda se diz que quando não há estímulos externos no caso humano, estes ocorrem interiormente, por exemplo, se bati em alguém foi porque reagi à emoção da ira, se me calei, foi porque estava envergonhado, tal e qual como uma reação involuntária quando retiramos imediatamente a mão do fogo. Mas é esquecido que, no caso humano, o passado, apesar da sua importância, não é suficiente para determinar as nossas ações, esquece-se que toda e qualquer ação se parte do passado dirige-se, contudo, para o futuro. Se eu decido bater é para produzir um resultado no futuro, se eu decido calar é para negar um resultado no futuro, ou seja, não ser humilhado pelas minhas ações.

Compreendamos o seguinte: se as nossas ações se dirigem para o futuro, então é o futuro que determina o nosso presente. O passado existe, os estímulos existem, mas é uma declaração absurda considerar que o mesmo estímulo no caso humano produza o mesmo resultado, numapedraserádiferente, masno casohumano háuma indeterminação em relação à reação a esses estímulos.

Assim, o que nos importará é o futuro, é o futuro que nos determina. Mas não é isto o mesmo que reafirmar a mesma situação determinista do passado, trocando passado por futuro?

Ora, o passado já existe, está estabelecido, por isso não é passível de ser alterado. Contudo, o futuro não está, encontra-se em aberto e se se encontra em aberto não está determinado. Paradoxalmente, é esta indeterminação que determina a nossa ação, que firma a nossa liberdade, esta como o largo espectro em que as nossas ações podem ser concretizadas.

Mas porque se encontra o futuro em aberto? Porque não se encontra já determinado? A sua própria condição implica esta abertura, senão não seria futuro, isto é, otempo queainda não decorreu, masestáparadecorrer.Sefor demonstradoqueasnossas

14

ações são livres porque partem e se dirigem para o indeterminado, ou seja, o que ainda não foi decidido, então as nossas ações são necessariamente livres.

Mas como demonstrar que o futuro não está decidido? Primeiro, estamos abertos ao futuro, porque não nascemos pré-determinados; Segundo, porque o nosso projeto de vida não é subordinado às leis da natureza que, por via da imaginação, tudo o que é possível estará fora dessa dimensão – a imaginação onde tudo é possível; terceiro, por não ter ocorrido, não significa que não tenha sido livre – a liberdade não é a concretização das nossas intenções na realidade, mas a concretização das nossas intenções nas nossas ações, seja qual for o resultado delas, visto que sobre o resultado não temos uma determinação absoluta, logo não acontecer exatamente como quisemos não significa que não tenhamos sido livres.

Em primeiro lugar, poder-se-ia afirmar que nascemos com um destino, uma definição e uma função. Dizem que temos um destino, mas que o desconhecemos; que estamos destinados, mas não sabemos a quê; ora, facilmente se refuta esta perspetiva, porque se não conhecemos a que estamos destinados nem há qualquer evidência ou raciocínio que nos demonstre que estamos necessariamente destinados, a não ser a ficção dosoráculosdatragédiagrega, então nãopodemosafirmar queestamosdestinados. Como aprendemos, defender algo (estamos destinados) a partir do que desconhecemos (ignoro o meu destino e a sua factualidade), é o mesmo que cometer uma falácia de apelo à ignorância.

Ainda afirmam que estamos definidos, que o ser humano está definido por uma série de características biológicas e genéticas que caracterizam a espécie humana, como ilustradas naquelas figuras genéricas da mulher e do homem que encontramos nos livros de biologia. Mas não é da própria natureza que tudo esteja em constante mudança e evolução? Não é próprio da natureza que nada seja monolítico e fixo? Não é, pois, a principal implicação da teoria da evolução que nada foi criado e nada se mantém inalterável? Que o ser humano era outro há um milhão de anos? Então como podemos afirmar que qualquer espécie se define se as próprias leis da natureza determinam essa indefinição?E não étambém absurdo julgar que só porque nomeamos os seres vivos com nomes latinos e os colocamos sossegadamente numa tabela, julguemos que esta taxionomia é absoluta e clarifica, organiza e cristaliza o que a própria natureza deixou indefinido por conta da sua permeabilidade à mutação e ao desenvolvimento? Não nos enganemos com este cientismo dissimulado, de que se está numa tabela é porque a realidade assim é e assim permanecerá, porque todas as tabelas, todos os nomes, todas as

15

categorias científicas nunca partem da observação de todos os casos e, por isso, não são universais, apesar de assim induzirem em generalização; e também não procuram a universalização, porque seria o conjunto de todos os casos particulares, o que tornaria impossívelconfigurar uma ideia gerale concisa; o que na investigação científica acontece é que procuram um padrão e o que é comum num dado grupo, e daí inferem que todos assim sejam, criando não uma criatura que exista, mas uma abstração da mesma, um monstro de Frankenstein Como nos demonstrou a nossa professora de Biologia: quando um grupo de cientistas parte para investigar a fauna na Amazónia são sempre acompanhados por desenhistas, eo trabalho destes artistas não é retratar a particularidade dos animais de uma certa espécie, mas uma figura que reúna aquilo que é comum entre eles, para que os investigadores tenham uma imagem geral, mas não particular, da espécie. É esta imagem padronizada que depois tomamos como real e verídica; contudo, nesta composição de pontos em comum, ignora-se, como ignorou Mendel de forma grosseria as ervilheiras vermelhas, as particularidades de cada animal, construindo uma imagem absolutamente imaginativa e irreal. O geral não é, nunca, o real. Quem dirá que ao olhar para uma figura humana num livro de anatomia, aquela figura existe na realidade? Que o retrato figurativo de um periquito no livro de Biologia corresponde a um periquito real? Se virmos uma fotografia dele, podemos dizer que existe, mas por outro não podemos dizer que todos os periquitos sejam assim. Dito isto, que nada está definido e que a própria indefinição constitui a natureza das coisas, e que só não o sabemos por um desentendimento em relação às caracterizações científicos, podemos afirmar que, desde logo, nós não estamos definidos.

Por fim, e este parece-me o mais elementar, nós não temos uma função à partida, não nascemos com uma marca no nosso corpo que nos obrigue a prestarmos tal função. Num cientismo redutor, dir-se-á que nascemos, crescemos, reproduzimos e morremos. É verdadequeseexistimos, nascemos;é verdadeque secontinuamosaexistir, cresceremos; é verdade que se reproduzirmos, teremos descendência; é verdade que se existimos, morreremos. Mas isto são obviedades, tautologias e raciocínios circulares, que não caracterizam absolutamente nada acerca da nossa existência, apenas realçam algumas etapas que poderemos passar, e digo poderemos, porque a reprodução não é uma necessidade biológica, se o fosse então todos reproduziriam, o que não é o caso. Nascemos e, por isso, estamos determinados a morrer. Pois isso é óbvio, mas não quer dizer que a nossa função ou objetivo seja morrer, porque, se assim fosse, cumpriríamos de modo célere e eficaz ao tomarmos por nossas próprias mãos a conclusão dessa missão.

16

Ora, neste sentido, acrescento que, efetivamente, há coisas que partem já de uma definição e de uma natureza. Por exemplo, esta caneta que uso para escrever só existe, porque alguém a pensou como objeto e só a concretizou para ela desempenhar um objetivo, e quando esse objetivo é cumprido e não tem mais utilidade, perda o seu valor de existir, é pois deitada ao lixo para ser transformada noutra coisa. Mas uma coisa é falar de coisas inanimadas como canetas, cadeiras ou telhados, outra coisa é falar de seres animados que não foram feitos com um objetivo. Os meus pais não me fizeram para que eu cumprisse um dado objetivo e para quando o cumprisse deitar-me-iam fora. Eu nasci, por certo, por um desejo dos meus pais, a partir daqui quem orienta a minha vida são os meus próprios desejos. Isto era o que o dizia aquele filósofo francês, Jean-Paul Sartre, de que, no caso humano, a nossa existência precede a nossa essência, isto é, primeiro existimos e depois é que nos fazemos, que nos criamos. É o mesmo que a Psicologia esclarece, queo nosso desenvolvimento ocorre, por exemplo, como a construção danossa identidade, que a vamos formando na medida em que interagimos ativamente no nosso meio. Curioso, portanto, saber que até aquilo que está determinado biologicamente para nós, como o crescer, é na verdade uma determinação da nossa liberdade, uma força que nos obriga a exercer o nosso arbítrio.

Assim, espero ter demonstrado que não nascemos pré-determinados, que esta é uma condição da própria natureza para a nossa existência, ao que se segue que se não somos determinados por este passado, então estamos abertos ao futuro.

O segundo ponto, relativamente à nossa abertura para com o futuro, evidencia-se pela finalidade das nossas ações e comportamentos. Perguntamo-nos: Para que faço isto?

Para que estudo para o teste de Filosofia? Para que possa ter boa nota. Mas para que quero ter boa nota? Para assegurar-me que, efetivamente, aprendi e para que depois tenha boa média? Para que quero ter boa média? Para poder escolher o meu curso universitário. E podíamos fazer isto ad aeternum, mas o que quero demonstrar é que qualquer que seja a nossa ação, esta dirige-se sempre para o futuro; agimos, não porque somos determinados pelo passado, mas porque nosorientamos parao futuro. Se as nossas ações não tivessem futuro, e só passado, não existiriam.

Ora, se cada ação é movida e toma como fim o futuro, e este ainda não existe, não seria absurdo agirmos de forma tão empenhada e assertiva para algo queainda não existe?

Não é absurdo por uma razão: porque sempre que agimos imaginamos o resultado das nossas ações. E se ampliaremos toda a rede das nossas ações, percebemos que todo o seu

17

encadeamento não tem por finalidade resultados imediatos, mas um objetivo maior: o nosso projeto de vida.

Toda a cadeia das nossas ações desemboca neste fim: o nosso projeto de vida. Se estudo para um específico teste não é apenas para ter uma boa nota, é também para que o meu projeto de vida, como ser professor de português, se torne cada vez mais verossímil. Se procuro estar bem com a minha namorada, que se senta ao meu lado nas aulas, é para que possamos continuar com a nossa relação e esta permaneça no futuro. Se fico atento à minha saúde e como de forma saudável, é porque desejo que no futuro me mantenha saudável e possa durar muitos anos. Todos estes pequenos gestos só têm significado segundo o meu projeto de vida – que, claro, vai sofrendo modificações à medida que cresço -, o projeto de vida de ser um homem casado com filhos, professor e a viver em Lisboa.

Ora, este é o meu projeto de vida, no momento, e surgiu unicamente da minha imaginação. No campo da imaginação não há nenhuma lei da natureza que a determine ou limite, porque é próprio da imaginação extravasar todos os limites, incluindo os da lógica. Se assim é, se a minha imaginação não se encontra subordinada às leis da natureza ou leis determinísticas como é a causalidade, e se é daquela que deriva o meu projeto de vida, e se é este que dá sentido e significado às minhas ações, que é a razão de elas existirem, então posso concluir que todas as minhas ações são livres, porque derivam da minha própria imaginação, que escapa a qualquer determinismo e onde tudo é possível. Mas podemo-nos questionar, e assim entramos no terceiro ponto: E se eu não cumprir o meu projeto de vida, isso significa que as minhas ações não foram livres?

A resposta é claramente negativa, porque se a liberdade é o arbítrio de agirmos segundo a nossa vontade, então as consequências da mesma não contrariam o nosso próprio arbítrio. É como dizer que um caçador só por ter falhado o alvo, não foi ele que disparou.

Mas compliquemos: Se as nossas ações têm a finalidade do nosso projeto de vida e esta não é cumprida, ao falharmos o nosso projeto de vida todas as nossas ações perdem sentido, porque é o projeto de vida que dá significado às nossas ações. Ora, efetivamente, é ele que dá sentido às nossas ações, e isso posso observar pelo estado de letargia e apatia de alguns dos meus colegas. Dizem-lhes que devem estudar mais, mas o que lhes deviam dizer era: procura o que deves fazer à tua vida, começa a construir oteuprojeto de vida. Porquesótendoobjetivos na vida é que anossa vida ganha

18

sentido, que o nosso comportamento se vivifica e a nossa postura se altera como a ferocidade de uma criança sedenta de sugar todo o néctar da vida.

Imaginemos, por isso, que o nosso projeto de vida é tornarmo-nos astronautas. Profissão que não recomendo, principalmente a quem vive e procura permanecer em Portugal, mastemo seu direito,temo direito asonhar conquistá-lo. Assumindo quenunca será astronauta, não significa isto que durante a sua vida não procure sê-lo, que não faça todos os esforços para o ser, que toda a sua vida tenha perdido sentido se no fim não o tiver conquistado, da mesma forma que um atleta treina intensamente para ganhar as Olimpíadas, e nunca ganhou. Pensará esse atleta que todo o seu esforço não serviu para nada? Não viveu ele movido pelo seu sonho? Não conseguiu ele, muitas vezes, superarse a si mesmo? Alcançar o que julgaria impossível para si próprio? Não foi ele sedento em todos os gestos que fez? Não manteve ele a gana de lutar, persistir e lutar pelos seus sonhos? Há algo mais digno do que lutar pelos nossos sonhos?

Se assumirmos a derrota à partida, nem nos levantamos, nunca poderemos vencer ou pelo menos aproximarmo-nos da vitória. Não queremos nós também uma sociedade justa? Sabemos que é impossível, mas é isso que nos fará baixar os braços? Porque ao assumirmos que esse ideal é impossível, então cumprimos a nossa própria profecia – é impossível, porque fiz com que fosse impossível. Mas se não considerarmos impossível, mas possível, pelo menos, aproximamo-nos desse ideal, o que suficiente para que as nossas ações adquiram significado pelo nosso projeto de vida.

É este o caráter libertário do nosso projeto de vida, é provável que não o conquistemos, mas é possível aproximar-nos dele, e isso não retira a nossa liberdade, afirma essa nossa liberdade não como um estado paralisado, mas como um movimento constante, assim como a própria vida e a própria natureza são movimento perpétuo. Paradoxalmente, a conquista absoluta do nosso projeto de vida, seria a natural perda do sentido das nossas ações, como se depois dele não houvesse mais a necessidade da liberdade. É, por isso, necessário que as nossas ações sejam firmadas no próprio impossível, no ilógico, porque só através dele é que afirmamos a nossa liberdade. Se as nossas ações são movidas por um ideal utópico, um sonho impossível, um projeto de vida em constante mudança, então elas não podem ser determinadas, porque se o impossível determinasse alguma coisa, estar-se-ia a contradizer.

Somos, pois, absolutamente livres. E sobre o caso presente, o sujeito é, tão simplesmente, um assassino e deve assim ser tratado. Não tem desculpas, o seu estado emocional, psíquico, biológico, fisiológico, o que entenderem, a ação foidele, é dele toda

19

a responsabilidade. Não há alibis na nossa ação nem aliviantes, há somente a responsabilidade. E a sua condenação não é o crime, mas a sua própria liberdade.

20

tudo está determinado

Porque tão desesperadamente queremos afirmar que somos livres? Para que a nossa vida tenha algum sentido? E se não tiver o que acontece? Se nos afastarmos do nosso umbigo e olharmos todo o universo, somos nada, não fazemos eco no terror do vazio. Porque haveríamos nós, partículas finitas, frágeis e temporárias, de ter aliberdade?

A liberdade é uma ideia nidificada no negativo, surgiu como a possibilidade humana de nos salvarmos do pecado original. O arrependimento das nossas ações só é possível se formos responsáveis por elas, ou seja, se formos livres. Deus, que é omnipotente, não poderia ser o autor das nossas ações, porque também seria responsável pela nossa maldade. Não sendo, somos nós, e nós que temos livre-arbítrio, atribuído por Deus, temos o dever de o superar. Acresce a isto, que devemos levar uma vida afastandonos do pecado e só a nossa liberdade o permite. A entrada no Reino dos Céus é, na verdade, o bom uso da liberdade. Mas se Deus existe, e nele existe a presciência, então as nossas ações são previsíveis, logo pré-determinadas, sendo assim é impossível a nossa liberdade. Em segundo, se nascemos com o pecado original, então o pecado é já inerente em nós, e como não fomos nós que o praticamos, não podemos resolvê-lo pelas nossas ações, seria como se tivéssemos condenados a uma liberdade inócua, inofensiva à nossa salvação. Em terceiro, Deus não existe e, como tal, como não somos a criatura especial, segue-se que não recebemos esse atributo divino. Exclui-se o livre-arbítrio por explicação divina. Avançamos para a explicação racional. Se sou racional, tenho então a capacidade de agir segundo a minha vontade pura, isto é, não é pelos meus desejos ou instintos, mas pelo que racionalmente considero que deve ser a minha ação. Mas se a liberdade pertence à ordem da razão, também ela fica determinada pela lógica, o que é um determinismo em si. Por outro lado, se o exercício da liberdade se subordina a esta condição, implica que apenas somos absolutamente livres, quando somos absolutamente racionais, o que, numa breve inspeção ao comportamento humano, concluímos que é um impossível absoluto. Então, pela explicação racional, o exercício do livre-arbítrio só se aplica ao Deus Racional que não somos nem poderemos vir a ser.

Daqui se pode concluir que nem pelo divino nem pelo divino sem deus, podemos ser livres. Se é este o caso, então que somos? Constatando que não somos uma criatura cuja origem se demarca, divinamente, das outras, nem que sobre nós há uma qualidade

21
Rita

que transcenda a própria natureza, então temos de admitir o seguinte raciocínio – como não somos seres excecionais, também não temos características excecionais, como é o caso do livre-arbítrio que tem servido para nos demarcarmos das outras espécies.

Ao não sermos excecionais, somos de igual natureza que os outros seres, se assim é, e nenhum deles apresenta a qualidade de livre-arbítrio, resta-nos concluir que também não a temos. No mesmo sentido, podemos argumentar do seguinte modo: A nossa realidade é uma realidade física. Os átomos compõem essa realidade. Nós somos compostos por átomos. Se os átomos não têm livre-arbítrio e estão absolutamente determinados pelas forças físicas, então, também nós, estamos absolutamente determinados, ou seja, não temos livre-arbítrio.

Que implicações, existenciais e morais, derivam desta inferência? Relativamente ao aspeto existencial, teremosqueadmitir que não existeumsentido intrínseco no mundo, que existimos por existir, de modo gratuito e acidental. Não pedimos para existir, e existimos. Podíamos nãoter existido, não ser quemsomos, mascalhousermoseestarmos.

E que mal tem isto? Os existencialistas aproveitam esta novidade para rematar Se não há sentido, temos a liberdade de lhe dar um sentido nosso. Mas isto não seria o mesmo que cobrir o vazio quetrazemosdentrodenós só paranãoo esquecermos, paranosalegrarmos como sentido absurdo da vida?Não é, no fundo detudo, umautoengano que usamos para persistir na vida?A minha resposta é clara: não existe sentido nemprecisamos de sentido. Primeiro, porque não temos a liberdade para atribuir e para viver esse sentido, e, em segundo, não precisamos de sentido para viver. Da mesma forma que as formigas e os peixes vivem, também nós, não sendo diferentes, vivemos. Acordamos, estudamos ou trabalhamos, voltamos a casa, e reiniciamos tudo de novo. É um ciclo perverso, inautêntico e desmoralizante? Talvez o seja, mas não é por esta rotina que negamos a vida, é antes por julgarmos ter a liberdade nas mãos e termos falhado a nossa própria biografia, que nos queremos extinguir. Ah, mas que vida pobre podem alguns dizer, mas não há vida mais rica do que aceitar, corajosamente, que somos mais uma partícula no universo? Não há vida mais serena do que cumprir a ordem natural das coisas? De compreender que somos um grão na roda da fortuna, e aceitarmos tudo o que a vida nos tem dado com a maior das serenidades em vez da revolta? Não é a serenidade, ou a felicidade, a aceitação irrevogável dos acontecimentos naturais?

E que dizer do caso daquele assassino? Não seria expectável a sua bestialidade olhando para a sua vida? Não estava ele já pré-determinado para a própria destruição?

Terá agora o resultado que é determinado para estes casos, a condenação pelos seus atos.

22

E se não for, o que poderíamos esperar? Uma justiça divina que se aplicaria sobre ele, condenando-o a vaguear pelo deserto como Caim? Não, de todo. Bem sabemos que não existe uma ordem pré-estabelecida no universo que condene os nosso atos, não existe um Juiz Supremo que nos observa e nos julga sobre os nossos mais ínfimos comportamentos, por muito que queiramos acreditar. A justiça é somente uma forma de apaziguar a nossa consciência, sem relação alguma com o movimento indiferente do mundo. Ao condenarmos as suas ações, condenamos também a sociedade, etudo isto para que ànoite possamos dormir serenos na ilusão de num mundo determinado possa haver alguma coisa a que se possa chamar de justiça, porque ele continuará, mas a mulher e a filha, já não. Não pode haver justiça, se não se pode mudar o passado ou permitir um futuro.

23

Catarina

tudo é indeterminado

Segundo a mecânica quântica, o nosso universo é indeterminado. Todas as nossas, tudo o que acontece no mundo é o resultado de um lançamento de moeda ao ar. O que procuramos são padrões na natureza, nos comportamentos, que depois concluímos como leisuniversais Ora, não éabsurdo afirmar quesó porqueascoisasacontecemdeste modo, significa que têm de acontecer desse modo? E se começam a ter outro modo já dizemos que há outras leis da natureza Não é isto uma batota que cometemos, uma precipitação das nossas conclusões, só para dizermos Isto deve acontecer assim, logo acontece assim.

Mas é por isto que as leis da natureza não são prescritivas, mas descritivas, descrevem como ela é, como se comporta, não como deve ser. Mal acontece que os fenómenos não se comportem “como se deviam comportar”, então arranjamos logo outra lei para dizer que esse comportamento, ou mesmo essa exceção, comporta-se assim, porque se deveria comportar assim. Por esta razão, é falho o nosso raciocínio quando dizemos que tudo está determinado por leis da natureza, quando estas próprias são uma construção, uma ficção, da nossa investigação para tornar o mundo mais previsível, mas não mais verdadeiro.

Não podemos, pois, com base nas leis da natureza, afirmar que tudo está determinado. Mas avancemos para uma outra razão determinística: a causalidade. Não sabemos o que determina, porque nada nos garante que se x antecede y signifique que x causa/determina y. Dizemos que determina, porque a lei da natureza…, mas caímos novamente nas leis da natureza, que demonstrei ser uma ideia instrumental e não descritiva

Se x acontece e depois y, dizemos que x o determinou. Mas se y não acontece, dizemos que x não determinou. Então se apontamos que x determina não é contraditório dizer que determina e não determina?

E se determina devemos saber o que determina. Curiosamente só sabemos que determina depois do resultado na experiência. É a mesma falha que nas leis da natureza, postulam um princípio a priori baseado no a posteriori, o que não encontra implicação lógica.

Noutro sentido, o que pode x determinar em y? O acontecimento x não pode ter muitas consequências? Dizemos que há múltiplos fatores para que algo aconteça, o movimento da bola causa o movimento de outra. Na realidade isto só necessariamente

24

acontece se apenas existirem num universo em que só existem as bolas, o movimento e o espaço. Mas na realidade, os fatores são múltiplos e infinitos (direção dabola, intensidade da força, textura do espaço, clima, o movimento planetário, a dinâmica do universo naquele preciso momento, etc.)

Ora se não podemos simplesmente dizer que x determina y, porque existem infinito fatores envolvidos no comportamento de x, então não podemos afirmar que y é determinado por x ou, de forma mais radical, que y é causado pela infinitude de fatores envolvidos no seu acontecimento. Novamente, só nos resta concluir que o acontecimento de y é indeterminado, porque os fatores que o “determinam” são infinitos.

Assim, pelas falácias da lei da causalidade e pela imprevisibilidade dos acontecimentos, só podemos inferir que há um indeterminismo na causa dos acontecimentos, o mesmo indeterminismo que nos levou a existir e que nos leva a viver e depois a morrer, de forma absolutamente aleatória.

Porque fizemos o que fizemos? E damos múltiplas razões, e nenhuma delas é suficiente como condição sine qua non para o acontecimento, por exemplo, almoço, porque tenho fome, mas poderia não comer, mesmo tendo fome. Esta ausência de causalidade determinística só desemboca numa aleatoriedade que escapa ao nosso controlo, como se fossemos moedas atiradas ao ar – o que vamos fazer? o que nos vais acontecer? morremos agora? Não sabemos. Há probabilidades? Certamente. Mas o que significam as probabilidades na realidade? Uma probabilidade não é uma realidade, ou seja, não nos configura a existência, écomo se estivesse à partedos acontecimentos. Trata do que pode ou não existir, não do que é dado a existir.

Sobre o caso do homicídio, não culpabilizou ele as estrelas, como se elas tomassem a direção das suas ações? E quão longe está a verdade desta exteriorização das nossas ações, se por todas as coisas somos influenciados e ignoramos o modo como elas nos afetam? Foi ele, mas não poderia ter sido qualquer outro a cometer a mesma ação? Ou estamos tão seguros da nossa liberdade ou do nosso determinismo, que a nossa existência impossibilita essas ações? Procuremos justificar o seu comportamento, encontrar uma ou múltiplas causas para o acontecimento, mas nunca poderemos afirmar que a causa x levou ao comportamento y, pois não haverá nenhuma implicação, como já havia explicado, para que estes dois estejam implicados. É, tão somente, até onde nos é dado a conhecer, queo ato foitão aleatório como o própria existência de quemo cometeu.

25

Tiago

as paixões do crime

Conhecia-o. Jogávamos à bola no ringue do bairro. É um tipo porreiro. Mas basta um acontecimento terrível para resumir a nossa vida. Vão dizer que é um monstro. Que seja. Mas a única coisa que estamos a dizer é Eu não sou ele. Mas todos poderíamos ser ele, todos somos potenciais anjos e demónios, então de que vale demonizar um ser humano como nós, se apenas nos afastará da nossa própria compreensão? A nossa desumanidade não é, também, humana? Falamteoricamente, mas não enxergamarealidadeprática. Têm medo de enfrentar o seu lado mais obscuro quando este se revela no outro. É monstro e, por isso, não sou eu e, por isso, posso condená-lo, encerrá-lo em quatro muros para não me ver ao espelho, aquilo em que me posso tornar ou mesmo não tornando, aquilo que posso fazer. Não sabem que ao condená-lo estão a condenar vocês próprios a afirmar absolutamente a vossa monstruosidade? Não ignoro que deva ser responsabilizado, que a pena lhe seja pesada como a terra sobre o seu caixão, porque ele é inerentemente livre e mesmo não o sendo, as suas ações devem ser julgadas. Mesmo admitindo que não é livre, também teríamos de afirmar que ninguém é livre, que o próprio juiz também não o é, por isso, da mesma forma que ele cometeu deterministicamente o homicídio, também o juiz pode condená-lo deterministicamente. Não há qualquer perturbação deste tipo na ordem social, por isso não existe o tão apalavrado problema de que o determinismo desresponsabiliza, o que poderia levar a uma anarquia social e, por sua vez, à nossa extinção. Contudo, ele poderia, como Héracles, que num estado de loucura assassinou a mulher e os filhos, ter os seus doze trabalhos para demonstrar a sua humanidade ou até a sua heroicidade Mas não, estará encerrado durante vinte e cinco anos calcinando o sofrimento e a mágoa. Curioso, que um assassino pode ainda ser herói, como os homens de coração púrpura celebrados como heróis por terem chacinado pelo seu país. Muda-se o motivo, o contexto e o objetivo, e a besta transforma-se em bestial, o monstro em herói… e não são todos os heróis simultaneamente monstros, que são demonizados ou celebrados de acordo com a narrativa histórica? Mas analisemos os possíveis motivos desse homem, não para o ilibar, mas para o esclarecer. Ele que nasceu no mesmo bairro que eu, que também teve as mesmas lutas que eu, uma mãe com três empregos, um pai alcoólico que à noite, depois do bagaço, lhe batia; ele que nunca teve um beijo da mãe nem um aperto de mão do pai, que vivia abandonado pelas esquinas, que traficou, bateu, roubou, assediou… ele que em qualquer julgamento é escória, uma pessoa reles que teve

26

o direito à vida. Mas apaixonou-se por ela e teve um filha linda, que era tudo para ele. Sabem o que é sentir pela primeira vez o amor? Não é a alegria romântica, é antes a ansiedade e a violência de se sentir impotente, descontrolado, incapaz de pensar corretamente, de viver em agonia quando não se está com ela, e numa persistente mágoa quando não se está pelo medo de aperder. Ele, quepela primeira vez sentiu o amor, sentiu também a violência mais primitiva. Foi exatamente isto que aconteceu, a razão do duplo femicídio se deve a um homemque nunca foiamado e quando sentiu aqueles quatroolhos abertos à alegria a romperem-lhe o peito e penetrarem no seu coração, reagiu como qualquer organismo perante um corpo estranho – ataca, mata, extingue. E se é um corpo que está habituado a reagir comextrema violência, quando se sentiu violentado pelo afeto que nunca teve, sentindo-se vulnerável, a sua resposta foi cabal. Matou por amor, porque não sabia o que era o amor, porque só conhecia o ódio dentro de si.

27

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.
[ensaio literário] diálogos escolásticos II , MDC by Manuel Da Cruz - Issuu