
1. pensamento mágico
2. pelo sonho nos vimos
3. o jovem Hans está ocupado
4. última chamada
5. Ismael, o doente mental
6. do lado esquerdo do coração
7 nunca se sabe
8. Cristo, enfant terrible
9. lagostas
10. o acontecimento de B.
11. a mosca, a mão, a mãe
Dentro das quatro linhas do ringue de futebol, duas crianças de seis anos estão frente a frente sob um calor surdo e seco. Um cheiro de merda saído dos balneários ondula no campo e uma bola esfarrapada desliza ao fundo das duas crianças. Os olhos estão semicerrados e gotejam o suor datensão entreos dois. Aprimeira criança esconde o olhar sobre o chapéu castanho de cowboy, enquanto uma gota de suor navega pelo lenço vermelho apertado ao pescoço e depois pela camisa amarela quadriculada com um colete de manchas de vaqueiro. Amão pequena e branca está sobre o revólver e com o polegar ativa o cão. A arma esquenta no coldre, e a gota de suor provoca um fino de vapor que logo evapora a última humidade daquele corpo em pólvora. As pernas, nas suas calças Levi’s, afastam-se milimetricamente para uma posição firme para o embate do disparo e a espora iluminada a estanho faz o único som tinido que percorre a serpentar a atmosfera violenta. O olhar da criança cowboy fere os olhos gázeos da outra criança que enverga umaarmaduraespacialcomumcapacetepararespirar no espaço, uma mochila metalizada nas costas que, ao toque de um dos botões coloridos da frente, abre um par de asas roxas e de luminosas sinaléticas. O fato protege-o das condições impossíveis à humanidade se vagueante no espaço, mas a criança espacial duvida se o fato resiste a um cartucho do século dezanove. Acriança espacial tem o braço direito firme e basta levantá-lo, apertar o botão no pulso e um raio laser atravessa qualquer corpo sólido, desde da carne humana ao titânio. As duas crianças entreolham-se, sufocam neste impasse há mais de cinco minutos, o embate é inevitável, e só um deles sairá pelos seus próprios pés. Analisam os movimentos um do outro, os pequenos gestos, calculam a cobardia e a precipitação. Um pensa que o primeiro a fazer o movimento vencerá, pela experiência que havia observado nas corridas de cem metros, o outro pensa que esse é o erro comum dos duelos, porque havia estudado os filmes de western e estava seguro da tática. Um deles teria que decidir e o silêncio era total. De súbito, uma voz aguda e maternal vibrou pelas redes do ringue e aturdiu a atmosfera, umvibrante chamamento à vida, à ação rápida e imediata O almoço está na mesa! não volto a avisar! Era este o aviso final, o gatilho que definiria a tragédia e o nunca voltar atrás, o momento em que se fariam homens. Acriança cowboy levantou o revólver, apontou ao corpo miúdo, e disparou uma bala certeira no ombro, enquanto, na direção contrária, viajava insondávelumraio laser.Atravessou-lhe o centro do córtexpréfrontal, uma incisão perfeita no crânio. Um buraco negro no fundo da testa da criança cowboy esfumava e a criança caia morta no chão escaldado do cimento do ringue. A criança espacial levantou o canto direito do lábio e disse de satisfação Até ao infinito.

Os cabelos despenteados cobriam-lhe o rosto de suor acompanhando o movimento serpenteado da anca sobre o meu corpo nu, e entre os rasgos de unhas sobre a minha pele em ferida aberta e os seus olhos pardos e felinos, soltou um grito de dentro de si ao sentir no seu interior um disparo de esperma. E assim acordei, e assim todas as noites sonhava com ela, e todas as manhãs acordava com os boxers e os lençóis grudentos da ejaculação. Acordava sempre com o corpo cansado, como se corresse a meia maratona, a ofegar e com sede e fome. Corria para a casa de banho e abria a torneira para beber desesperado e depois Foda-se atirava os boxers para a máquina de lavar onde se amontoavam outras roupas interiores manchadas de esperma e sangue, cuja origem ignorava. Não podia aguentar mais e falei com alguns amigos, que me disseram estar somente a reviver a adolescênciaou como tinhasaudadesda minhaantiganamorada, quehavíamosterminado fazia meio ano, o meu inconsciente projetava-a agora nos meus sonhos, mas eu já não gostava dela, por isso não era possível essa reminiscência nostálgica. Uma outra amiga, mais sábia pela idade e experienciada nestes acontecimentos, havia-me aconselhado, tal como prescrevia o livro de S. Cipriano, porqueo que estaria em jogo seriam más energias ou certos espíritos malignos assombrando, a colocar sal na ombreira da porta e da janela quando fosse dormir, a queimar sálvia branca e fumegar todos os espaço da casa, e se conhecesse o peixe de Tobias, também o seu coração queimava, depois aconselhou-me a abrir as portas e janelas, para que os espíritos malignos fossem escorraçados pelo bater dos tachos e pela oração, repetida e sonante, do salmo O Senhor é o meu pastor e nada me faltará, assim como, porque a coisa ruim poderia estar em mim, a tomar banho com esses sais para me purificar. A contragosto, assim o fiz durante uma semana, mas não obtive nenhum resultado e até parecia ter agravado ainda mais os acontecimentos oníricos, porqueo sexo era cada vez mais violento e quando acordava precisava de tomar três cafés cheios para conseguir revitalizar o corpo. Por esta razão, e como estes sonhos começavam a afetar a minha relação com Sofia, principalmente nos dias de ovulação em quetentávamos engravidar, decidiresolver o assunto coma própria M. Procurei falar com ela, mas na chamada, apesar do desconforto de voltar a falar com uma antiga relação e a vergonha que sentia ao expor-lhe o caso, consegui ter o tempo para lhe explicar da forma mais normal e racional possível. Não sabia o que procurava, nem sequer o que poderia ela fazer por mim, mas falar com os mortos, por vezes, é a melhor forma de os enterrar. Talvez precisasse desta última conversa, concluir de vez a nossa relação e libertar alguns ressentimentos. Durante a chamada de dez minutos, ouvia somente a sua respiração às minhas confissões, e quando me cansei de falar, esperei pela sua resposta. Ouvido outro

lado uma gargalhada fina e subtil, o mesmo riso de malvadez que vemos nos filmes quando as bruxas atravessama lua cheia sobre umcabo de vassoura, olhando-nos de cima com um esgar sórdido e deixando um rasto amargo e premonitório de uma tragédia. Logo de imediato desligou-me a chamada sem me ter dado qualquer explicação. Então procurei-a nas redes sociais para investigar os pormenores recentes da sua vida. Sabia que depois da nossa relação, justificada pelo meu desinteresse em ter filhos, ela, transposto um mês, já tinha arranjado um namorado e pareciam felizes. Concluí que não poderia haver razão de que M. tivesse algum interesse em me fazer mezinhas ou amarrações. Perdi a esperança, e agora só colocava no sexo uma meia atufada de papel higiénico para não acordar sujo. Passaram-se semanas sem alteração na frequência dos sonhos húmidos. Contudo, sem que nenhuma mudança na minha vida o pudesse justificar, as minhas atividades oníricas foram esmorecendo até que deixei completamente de sonhar. As minhas noites apaziguavam-se agora num sono sem sonho, dir-se-á, como se à noite eu estivesse completamente morto. Liberto destas inquietações, pude voltar a acordar com a energia que me era habitual e descartar os três cafés que tinha de tomar logo ao acordar. Acontece que um dia, haviam passado alguns meses desde o fim desses meus sonhos, um amigo contara-me que M. havia publicado uma foto no instagram do seu filho recémnascido. Por qualquer razão, porqueo meu interesseporela jáse haviaesfumado há muito tempo, senti-me impulsionado a ver a fotografia do bebé. E o mais curioso, é que nas suas feições, ainda pouco definidas, eu conseguia notar indícios de uma futura aparência semelhante à minha, como os seus olhos que já se mostravam esverdeados, o nariz fino, o olhar esguio e as covinhas que fazia nas bochechas. Achei curioso, mas nada de estranho, porque o namorado de M. tinha muitas particularidades que me faziam lembrar de mim, como se, na verdade, sempre procurássemos no outro a mesma pessoa que amamos no passado. Voltei para a minha vida sem dar qualquer importância e, de certo modo, fiquei feliz por eles, porque também desejava o mesmo futuro com Sofia, que tentávamos, ainda sem sucesso, engravidar. Mas nessa noite aconteceu algo de muito particular. Depois de meses de um vazio onírico, voltei a sonhar, mas desta vez, vi-me envolvido numa atmosfera negra e húmida onde estava eu, pelo menos assim parecia, a boiar em alto-mar e completamente nu. À minha volta, num movimento circular e predatório, como se fosse um tubarão sedento de carne, aparecia uma mulher de longos cabelos negros e com uns dentes compridos e afiados que refletiam uma luz prateada, parecia-me ser M., que dançava em círculos. De repente, abrindo a boca mostrando umas mandíbulas monstruosas, lançou-se até mim e num só movimento rápido e clínico,
decepou-me o sexo e fugiu a grande velocidade. Sob as águas do mar, uma mancha começava adiluir-seetodoo meu sonho secoloriu num vermelho ocresobreumaespuma viscosa e translúcida. Acordei em pânico depois do sonho, encharcado em suor por todo o corpo, como se estivesse mergulhado no mar. Daqui em diante, não voltei a ter este sonho, nem sequer voltei a ouvir o nome de M., que havia desaparecido completamente da minha vida. Hoje, volvidos dez anos, recordo este peculiar episódio da minha vida ao olhar para a moldura de fotografias sobre a minha mesa de cabeceira, em que apareço eu, a Sofia e os nossos dois cães.
Quando o jovem Hans - dêmos-lhe este nome ao jeito de certos escritores portugueses para atingir o público estrangeiro – começou à procura do amor no Tinder, não se tinha apercebido do quão aborrecida e desinteressante era a sua vida. Um engenheiro informático de 30 anos a viver em Gondomar, interessado em anime e jogos de playstation. Quando teve o seu primeiro encontro, ao fim de cinco minutos sentira-se derrotado, um fracasso da sua geração. A rapariga que tinha à sua frente cursava doutoramento emArquitetura eo quinto ano de Medicina no S. João, dava sopas na praça da Batalha aos sem abrigo e tinha como wallpaper uma foto com uma criancinha negra de uma tribo africana. O jovem Hans tinha apenas de extraordinário os hackathons em que participava e o privilégio de trabalhar em casa sem horários pré-definidos. O encontro, até às duas da manhã, resumiu-se à longa e carismática biografia da rapariga aos ouvidos diminuídos de Hans. Ainda agendaram um segundo encontro, um almoço –erro crasso, não se almoçam com dates por razões que nós cá sabemos – mas como a rapariga tinha uma agenda preenchida, teve que adiar por compromissos súbitos e inadiáveis mas que ficaria para a próxima. Frustrado, o jovem Hans também se quis sentir ocupado para que a sua vida apresentasse um sabor de mistério e de exclusividade. Foi isto que decidiu. Já que os seus encontros seriam apenas casos de uma só noite, começou a inventar histórias extraordinárias de si próprio. No segundo encontro, Hans era um jovem rebelde que havia hackeado os sistemas informáticos do governo angolano e assim havia contribuído para expor a corrupção da filha do antigo presidente, tinha viajado pela América Latina e desbravado a Amazónia com um machete, tinha sido raptado emGuadalajara e escapado a umgrupo deparamilitares traficantes de narcóticos. Como viajava muito e era muito requisitado, disse-lhe, Tenho pouco tempo. Ela ficara espantada, porque era somente uma empregada de mesa na Rua das Flores determinada e frontal.Admirada, combinaram um segundo encontro, mas como Hans agora era muito ocupado, teve que ser marcado para dali a uma semana. Mesmo assim ficou agendado. Enquanto não sucedia, Hans teve o terceiro encontro no dia seguinte. Era agora um empreendedor focado na área dos mercados flutuantes, como as criptomoedas e os NFTs.
Tinha uma carteira de clientes sumária, mas considerável, onde se contava um antigo jogador do Sporting. Claro queHanstinha ido detrotineteparao encontro,mas justificouse pelo seu modo portuguesinho de ser A minha discrição deve-se à minha humildade
Também admirada, voltaram a marcar um encontro para dali a uma semana. No dia seguinte, o quarto encontro, e já Hans, novamente, tinha alterado o seu perfil do Tinder, mas agora para algo mais audaz. Tinha estudado num seminário, ordenou-se padre aos 20

anos, mas por amor à arte, tinha deixado o ministério de Deus e dedicava-se agora exclusivamente à produção de grandes telas e painéis encomendadas pelos melhores hotéis deste país que, curiosamente, só no Porto não havia rasto dos seus quadros. Interessadíssima, a rapariga do quarto encontro, efabulada por aquelas histórias, apaixonou-se por ele, pelo seu lado selvagem e impulsivo, quis naquele momento fazer sexo no chão salpicado de tintas do atelier do jovem Hans, mas como, explicou Hans, o odor aterbentina tornava desconfortável certas atividades no seu atelier, ela sugeriu então que o fizessem no seu apartamento partilhado commais três estudantes de Ciências. Hans também se encantara com a rapariga e queria aproveitar o momento, a sua estratégia de homem ocupado e exclusivo tinha resultado. Chegaram à porta do apartamento e ao darem o primeiro beijo, ela suspirou enquanto rodava a chave Ainda bem que tens tempo para mim, sinto-me uma privilegiada. E Hans, subitamente, lembrou-se que tempo era a única coisa que ele não tinha, que ele não podia ter, que o tornaria desinteressante e alcançável, novamente um mortal entre mortais. Que se lhe desse o seu tempo, ela perderia todo o interesse e ele voltaria a ser o tipo aborrecido de uma vida banal. Ela entrou, mas ele ficou à porta Marta, desculpa, mas tenho que ir, tenho uma tela para pintar. E foi, perante os olhos frustrados dela. Os próximos encontros, uma hora antes dos jantares agendados, Hans enviava a mesma mensagem Desculpa, mas tive um compromisso súbito e inadiável, fica para a próxima. E, assim, o jovem Hans foi adiando todos os compromissos, que só existiram, porque nunca poderiam existir.
última chamada
De todas as vezes que ocorria um evento extraordinário, ligava ao Pedro para discutirmos sobre o assunto. Quando o FCP de José Mourinho foi campeão com dois golos do Derlei e um do Alenichev frente ao Celtic, liguei-lhe imediatamente para seguirmos para os Aliados. O Pedro era do Benfica, mas a nossa amizade firmava-se de um tal desinteresse, que as minhas alegrias eram vividas por ele, mesmo as mais difíceis de engolir. Quando perdi a virgindade com a Rita, ainda os corpos arrefeciam na cama, telefonei-lhe a dar o meu espanto ao novo mundo de prazeres que se me abria e que o Pedro não poderia ficar de fora. Quando o avô, figura âncora da sua família, faleceu, estivemos uma hora em silêncio ao telemóvel, apenas partilhando o ritmo sincronizado das nossas respirações cardíacas. Quando terminei com a Rita, o Pedro confessou-me que se havia apaixonado por ela havia tempo, mas mantivera o silêncio para que nada afetasse a nossa relação, que estaria sempre acima de qualquer interesse particular. Uns meses após o luto amoroso, pediu-me licença para que pudesse falar com ela, cedi-lhe com o mesmo entusiasmo que senti quando o FCP foi campeão europeu. Casaram a vinte e quatro de agosto, sendo eu padrinho do matrimónio. Tiveram dois filhos um ano depois. E a alegria com que ele olhava os miúdos, eu sentia-a por dentro, como se também eles fossem meus. Quando o Pedro fez quarenta anos, parecia magnífico, um César entre os convivas, e dedicou-me a mim a sorte que tinha tido na vida, toda a felicidade conquistada no emprego, na família, no amor e na amizade.Apesar determos tido vidas paralelas, que raramente se cruzavam, os telefonemas nunca pararam, fosse em qualquer geografia, em qualquer momento. Um dia depois do seu aniversário, a Rita telefonou-me às quatro da manhã. Soluçava num sufoco tal, que não conseguia articular palavra, somente dizia Ele… ele… Compreendi, dentro de mim, que o Pedro havia falecido repentinamente. Era um acontecimento fatal na minha própria vida, um evento tão extraordinário que não podia calar. Ainda com o telemóvel na mão, liguei ao Pedro. E choramos juntos pela sua morte ao som intermitente e contínuo dos bips da chamada.

Aos oito anos, Ismael lutava para estar sentado na cadeira da sala de aula, para ele, estar sentado a aprender o que já sabia, era uma crueldade que a vida o obrigava a suportar. Desde cedo que Ismael se compreendia como o centro da vida e que o Universo conspirava à sombra da sua biografia. Mas era necessário que o comportamento fosse controlado, e o psiquiatra, considerando a situação perfeitamente normal, recomendou que, pontualmente, o rapaz tomasse ritalina quando se sentisse mais agitado. Ismael sentia-se sempre agitado na escola, não porquetivesse uma hiperatividade hormonal, mas pela facilidade em aprender, o que o levava ao inevitável e frustrante aborrecimento. Os comprimidos eram suficientes para o sedar, mas depois de um ano, os pais decidiram, pelo bem do miúdo, cortar as doses. O rapaz sentiu como se lhe tivessem roubado uma bengala para momentos de maior tensão da vida. Contudo, a proximidade da mãe, que o mimava de beijos e histórias à noite, facilitaram a transição do viciado para uma criança normal. Os anos decorreram com subtil normalidade até ao oitavo ano, quando as classificações baixaram consideravelmente. Já não lhe bastava estar atento na aula, tinha de estudar. Mas estudar implicava ficar sentado longas horas emcasa e, mais do quetudo, deparar-se com uma intrigante verdade: não era um génio. Era, aliás, uma criança perfeitamente normal com as limitações intelectuais típicas da sua idade. Este conflito entre o que julgava de si e o que era a realidade, intensificou-se com o afastamento da mãe quando nasceu a irmã. De repente, Ismael já não tinha os elogios de menino prodígio nemos aplausos pelas suas acrobacias. Ismaelera tão normal como o leitor. Mas estadura realidade não era aceitável, principalmente quando alguém cresce convencendo-se de que é especial. Seráque nãotinha o génio só por causa da mediania escolar?Pesquisou. Soube por um qualquer site que Einstein era mau a matemática e que, mesmo assim, se tornou um grande génio. Isto amenizou a sua frustração, ainda ia a tempo de ser especial, de ser alguém que veio ao mundo por motivos transcendentais. Os anos da adolescência foram cobertos da mesma vulgaridade, desempenho mediano, mediana na competência escrita e interpretação e mediocridade na compreensão lógico-dedutiva.Ainda o acompanhava a velha crença de que podia ser um génio, apesar da sua banalidade intelectual e artística, porque tinha descoberto que alguns artistas não tinham frequentado a escola ou que, simplesmente, tinham sido chumbados ou expulso. Começou, pois, a compreender que não seria uma instituição, principalmente a escola, tão limitativa e quadrada, que o impediria de revelar os seus talentos. Dedicou-se então à escrita. Os típicos poemas adolescentes de amor e niilismo escritos em segredo nos cadernos de capa preta, que os guardava no caixote debaixo da cama. Por vezes, quando mostrava aos colegas, recebia a

singular indiferençados mesmos.Assucessivas ignorânciasecríticas, quenão lhe faziam, mas que ele supunha que fizessem nas costas, converteu-o num dogmático de que, afinal o Universo estaria contra ele. Era, no final da adolescência, um incompreendido e como escrevia para espantar o mundo com o seu génio, e o mundo se estava a foder para ele, decidiu aos poucos deixar de escrever poemas e concentrar-se noutras áreas de interesse: a doença mental. Porque, veja-se, Ismael não era capaz de ver a sua falta de talento, o que ele considerava é quetinha algumdefeito que justificaria a incompreensão externa e a sua dificuldade em atingir a qualidade literária que invejava nos seus ídolos. Voltou-se para dentro e ao remexer nas memórias da infância, lembrou-se da sua hiperatividade. Era exatamente isso! A razão pela qual era vulgar e incapaz, devia-se a uma doença mental que tinha sido subvalorizada, subdioagnisticada e desvalorizada pela sociedade. Ali estava a razão para asua mediocridade! E sabendo quetinha hiperatividade sentia-se mais perto de alguns génios da humanidade que também haviam sido diagnosticados com hiperatividade como o caso, descobriu, de Einstein. Mas isso não lhe servia para resolver a sua saúde mental, servia apenas como justificação para não entregar os trabalhos na faculdade ou para não conseguir escrever uma página em seis meses. Depois descobriu, numa discussão com a namorada, queo acusava de estar sempre desatento nas conversas, que afinal ele talvez tivesse défice de atenção. Aí está! Só podia ter ADHD, porque, que outra razão havia para ele não conseguir estar concentrado numa discussão de duas horas com a namorada? Não podia haver outra razão. Com essa justificativa, safou-se durante um período das discussões mais acaloradas. Mas perante o fim da relação, Ismael apercebeu-se ainda de outra doença pelas acusações da namorada, que o atirava à cara o facto deele num dia lhe dar mimos e no outro ignorá-la completamente, percebeu então quetinhatranstorno bipolar!Claro queestasvariaçõesdehumor não sedeviamàstraições de Ismael, isso seria impensável, a sua própria pesquisa no google demonstrava claramente que só havia um diagnóstico verossímil. Mas a namorada, apesar da sua atração por homens frágeis, já não aguentou esta desculpa e terminou com ele. O fim de uma relação é sempre difícil e exigente, então para Ismael foi como se lhe tivessem arrancado as entranhas e as servissem ao pequeno-almoço. Ismael estava tão triste que não conseguia compreender o vazio que se concentrava dentro de si, um buraco negro que sugava toda a luz à sua volta. Era inevitável o diagnóstico: depressão. Desta vez consultouumpsiquiatraqueapenas lhereceitouunsantidepressivos, masque lhegarantiu que estava a passar por um processo de luto natural e que, no caso dele, não se afigurava nenhuma doença mental. Ismael consolou-se com os rebuçados, mas não com a opinião
médica. Procurou outro especialista, que lhe repetiu o diagnóstico anterior. Foi a um terceiro, e o mesmo de sempre. Perante esta unanimidade, Ismael apenas podia concluir que os psiquiatras não tinham conhecimento suficiente para avaliar a sua situação especial, porque os mesmos psiquiatras não recomendavam o consumo de drogas leves, e Ismael discordava, com o único discurso articulado e semicientífico que ouvi da boca dele, advogando sobreos poderes curativos da ganza, as suas potencialidades económicas e a estratégia conspiradora transgeográfica e transcultural que os governos de vários países organizaram para impedir o consumo da droga e criar uma imagem aterradora na opinião pública. Não convencido e com o potencial da internet ao seu dispor, Ismael enfatizava o seu dogma cada vez que o criticavam, tornando-se, assim, a sua mente numa muralha impenetrável. Anos se passaram até arranjar uma namorada que compreendia as suas doenças mentais não diagnosticadas, a ADHD, o transtorno bipolar, a depressão e agora a ansiedade, nos momentos em que o trabalho apertava e ele se tornava um incompetente. Foi assim que conheci Ismael, quando em cinco minutos de conversa biografou todas as suas doenças e de como era necessário consciencializar a sociedade para a saúde mental. Ele tinha por hábito, como uma espécie de testemunha de jeová, só que das doenças mentais, aproveitar cada conversa para falar de si próprio e dos seus transtornos. Não era, claro está, um ato de autocentrismo e negação da sua própria vulgaridade, era antes um ato de consciencialização e de moralismo. Falamos algumas vezes, até que um dia, enquanto fazíamos um trabalho em grupo, avisei-o de que a data do trabalho terminava no dia seguinte e ainda não tinha nada dele. Contou-me, novamente, a sua bateria de doenças mentais e eu disse, a bons modos, que aquilo que eu queria era que as suas doenças mentais fossem à merda e que apenas cumprisse com a merda do trabalho. No dia seguinte, não atendeu nenhuma chamada e não cumpriu. Ismael, o doente mental, passava agora a ser um filho da puta mental. Mas sem pressas, uma semana depois esbarrei-me contra ele e discutimos. O assunto não poderia ser outro. Quis safar-se de levar nas orelhas atirando-me a cartada da ansiedade social, depois a da depressão, que andava em baixo e tal, depois ainda veio com a bipolaridade e que segunda-feira ele era sempre mais bipolar que nos outros dias, etc. e etc. Furioso, não aguentei o idiota que tinha à minha frente, o rato em que se havia tornado, fugindo aos seus problemas criando outros problemas maiores e inimputáveis para justificar os mais pequenos, como uma matrioska para anormais, puxando da condescendência e da pena do ouvinte para se desresponsabilizar. Foi nesse momento que o empurrei contra a porta e no meio de tantos insultos, larguei-lhe esta Seu hipocondríaco de merda. Perante esta
acusação, Ismael parou muito sério à minha frente, cerrou os olhos e disse Tens razão, desculpa, apercebo-me agora que todas estas minhas doenças não são suficientes para justificar a minha falta de compromisso e competência… tens toda a razão… mais que essas doenças, também sou hipocondríaco e aí tens a minha razão para não ter entregue o trabalho. E assim foi Ismael, o idiota mental, levando a sua nova doença no espírito como se fosse anunciar uma boa nova.
do lado esquerdo
À noite, Ricardo e Beatriz gostavam de se aninhar sob os cobertores num tetris amoroso. Num S perfeito, ele encostava-lhe a cabeça para que ela ouvisse o seu respirar vivo e sentir, durante o sono, a brisa quente da sua boca. Depois, ele colocava a mão esquerda sobre o seio esquerdo paratambém lhe sentir o pulsar do coração e afagava-o como festas a um gato escondido entre a camisola interior, e a mão direita dela pousava na dele, entrelaçando-lhe os dedos numa organização de tricô e enroscava-se com o corpo o mais possívelpara que entre eles a separação física e espiritualnão fosse nunca possível. Numa dessas noites, com a chuva disparando contra as persianas, Ricardo sentiu algo de estranho no seio de Beatriz, uma coisa dura e nodosa que desconcertava com a suavidade da sua pele serena. Bia, sabes o que é isto? O quê? Isto, não sentes? é duro. Como ela adormecia rapidamente naquele embalo, não voltou a responder e a preocupação de Ricardo evolou-se como se entre os dois sobre a jangada de espuma e molas nada de mal pudesse ocorrer. No dia seguinte, ao ver-se ao espelho enquanto se tocava, reparou que, efetivamente, havia ali algo de estranho. Talvez não fosse nada, porque ainda era jovem para sofrer de alguma enfermidade, e não se preocupou. Passaram-se alguns meses, até que ao passar pela biblioteca, uma carrinha cor-de-rosa estava estacionada de portas abertas para consultas gratuitas. Cancro da mama leu Beatriz na lateral da carrinha e encolheu os ombros. Como se fazia acompanhar por uma amiga, esta disse-lhe que talvez fosse importante experimentarem Nunca se sabe e essa coisa apanha-nos em qualquer idade, tenho ouvido falar cada vez mais.Avançaram. Beatriz entrouna carrinha comduas enfermeiras que lhe pediram para despir a camisola e o sutiã e começaram a apalpá-la para lhe sentir um possível nódulo. Beatriz sentiu-se desconfortável naquela situação, e as mãos frias que roçavam o latex das luvas na sua mama, estranhavam-na ainda mais. Mas aguentou até que uma das enfermeiras lhe pediu para se voltar a vestir. Não quero que entre em pânico, mas é muito provável que tenha indícios de cancro da mama. contacte o seu médico de família o quanto antes e leve estes documentos. é importante que o faça, não adie. Beatriz saiu da carrinha de cabeça baixa, ainda confusa com o que havia acontecido. Talvez não seja nada, mas mesmo assim vai ver. A amiga tentou consolá-la, mas só quando voltasse para Ricardo é que decidiria alguma coisa. Ricardo ficou mais preocupado que ela, e nesse momento foram ao médico de família. Depois do doutor ter validado as suspeitas, foram encaminhados para o hospital submeter-se a uma bateria de testes. Confirmado, começaram a terapia. Em todo esse período de agonia e preocupação, Ricardo não saiu nunca perto dela, acompanhava-a a todas as consultas e tratamentos, levava-lhe todos os dias as gardénias que ela tanto amava e gladíolos, para
do coração
que a cor amarelinha lhe desse o otimismo de mais uma vitória sobre a morte. Depois de sucessivos tratamentos de quimio, o cancro não diminuía de tamanho e era necessário remover a mama esquerda para evitar a metastização.Aúnica preocupação deBeatriz não era perder umdos seus belos seios, que tanto gostava de ver quando se olhava ao espelho, mas o receio de perder Ricardo, de ele não voltar a olhar para ela. Ricardo acalentava-a dizendo Somos para sempre, meu amor. e nada nos vai separar. Assim, Beatriz, no dia da mastectomia, estava com um sorriso maravilhoso e calmo, deitada na sua bata de paciente como sefosse uma personagemda Disneyà espera daboca blandícia de Ricardo. No dia em que regressaram a casa, ela correu para a casa de banho e olhou-se. O seu corpo continuava tão perfeito como sempre, mas ao apalpar o seu lado esquerdo, sentiu um vazio tal que, pela primeira vez, sentiu-se diminuída e insegura de si. Ricardo, ao ver aquele olhar quebrado, passou-lhe a mão sobre o peito e disse Vês? a minha mão estará sempre sobre o teu peito, sempre sobre o teu coração, e continuas a ser a mulher mais bela que conheci. À noite, voltaram a deitar-se como antes faziam, nesse intricado jogo de corpos que se cruzam solenemente. A respiração de Ricardo novamente fez-se sentir pelos cabelos ruivos de Beatriz e colocou, como habitualmente, a mão sobre o lado esquerdo, mas não encontrando o seio que lhe preenchia a mão carente, mas somente uma pele enrugada e cicatrizada sob a qual pulsava o ritmo regular de um coração, voltou-se para o segundo, e aí adormeceu. Meses passaram pelo casal, o quotidiano voltara à sua normalidade e os dois mantinham-se cada vez mais próximos à luz do dia. Mas à noite, as coisas mudavam, já não faziam uma só geografia de ilha dos amores, o Ricardo dizialhe que ao ter a mão no seio direito, a mão adormecia, e, por isso, não lhe dava jeito tê-la ali durante o sono. Começaram então a dormir cada um para seu lado e o sexo, que há muito havia sido extinto pela insegurança dela e pelo cansaço e falta de apetite dele, por causa do trabalho cada vez mais exigente, como ele dizia, afastavam esses dois corpos jovens do amor doméstico. Ao final de uns tempos, Ricardo entrou na casa de banho e viu Beatriz nua em frente ao espelho com a mama decepada, e sentiu, pela primeira vez, repúdio por aquela figura. Voltou costas e saiu de casa.Ao final de um ano, Ricardo tinha encontrado outra mulher. Nessa noite, Beatriz deitou-se só e à luz fímbria do candeeiro, uma sombra ganhava forma nas paredes do quarto, não era a sombra desenhada em perfil de um corpo mutilado que a espantava, mas a ausência de uma outra sombra, de um outro corpo que o cancro tinha metastizado e engolido para sempre.
Naquele momento, Isabel era a pessoa mais importante para mim, finalmente o meu futuro estava ali, o casamento, os filhos, a vida de classe média. O nosso primeiro encontro seria numrestaurante italiano perto do Campo Pequeno, por isso, teriaquetomar medidas rigorosas para estar bem vestido, levar a minha melhor camisa, 100% linho da Massimo Dutti. Lavei o rosto com esfoliante para os pontos negros e água micelar para eliminar aoleosidade, desfiz a barba atéao limite semilunar de dois dedos da extremidade do rosto e tomei um banho semifrio para que a pele não ficasse rubra pela violência do calor. Depois, ainda de toalha alçada ao corpo como uma toga romana, subi ao andar de cima para passar a ferro a camisa 100% linho da Massimo Dutti. Liguei o ferro e, com extremo cuidado, fui deslizando unidirecional e assertivamente começando no colarinho e só depois, por fim, é que engomei o colarinho com a delicadeza de ourives. Levantei e coloquei numa cruzeta, espantado com a perfeição com que ficara, sem nenhum vinco nem manchas aspergidas do vapor. Vesti as calças de ganga, que não precisavam de ser passadas a ferro, e calcei os sapatos com uma meia de cano médio. Olhei para a camisa, e estava esplêndida, até tive receio de a vestir, mas não tardava a ter que sair de casa para o encontro, por isso vestia-a e ao ver-me ao espelho vertical, fiquei radiante com a minha elegância, sem dúvida que Isabel ficaria admirada com a primeira vez que nos visse que, para ela, a primeira impressão era fundamental, dizia que se à primeira corresse mal, não valeria a pena tentar, dever-se-ia cortar logo o mal pela raiz. Não podia concordar com mais. Antes de sair, olhei ao redor da casa para me certificar de que tudo estaria correto, até pelo motivo de que Isabel, a correr bem, pudesse passar a noite em minha casa, por isso, estava tudo arrumado, aspirado e passado a limpo, até coloquei o rolo de papel higiénico por estrear e pulverizei a casa num nevoeiro de lavanda. Estava já com uma perna fora e outra dentro da porta, quando, subitamente, me pareceu importante conferir se a ficha do carregador estava na tomada, porque nunca se sabe, basta um curto circuito para incendiar a casa. Olheipara ele, ao pé daminha cama, e não se passava nada. Desviei o olhar, e pareceu-me ver um sinal vermelho, podia ser o início de um incêndio. Olhei, mas não era nada. Volteicostas, mas pensei que o melhor fosse tirar da tomada. Tirei, mas depois pensei que talvez fosse melhor guarda na gaveta. Mas a gaveta era de madeira, talvez incendiasse, então guardei no parapeito da janela, depois de ter fechado a janela. Mas coma janela fechada, se houvesse um incêndio, os vizinhos não poderiam ver. Então abri, não muito, porque poderia entrar um pássaro. Coloquei o carregador na cozinha sobre a banca que era de zinco. Olhei novamente o quarto. Estava tudo em ordem. Achei por bem olhar para a casa de banho, a ver se não me tinha esquecido de deixar a torneira

aberta. Não deixei, mas de qualquer forma apertei uma vez o manípulo. Olhei cerradamente parao cano datorneira, só uma gotagordaestava suspensa. Volteia apertar, para o caso de. Olhei e apertei outra vez e dei dois toques na torneira só para cair a gota e voltei a ver na rede da torneira se havia algum vestígio de água que pudesse inundar a casa. Não havia. Volteipara a mangueira do chuveiro. Não pingava nada, mas de qualquer modo, enrosquei-a como força para que não houvesse nenhuma fuga. Pronto, saí da casa de banho e apaguei a luz. Toquei outra vez no interruptor para me assegurar que a luz estava desligada. E estava. Toquei outra vez. Acendi a luz e apaguei. Voltei a tocar, fiz pressão. Nunca se sabe, deixar uma luz acesa pode ser a desgraça no orçamento. Estava bem, convenci-me. Volteià portade saída. Olheia sala de estar, fui verificar se a televisão estava desligada. Estava, mas o sinal vermelho no centro incomodava-me. Desliguei na ficha e assim ficou melhor, veja-se o estranho que seria regressar a casa com a televisão ligada ou um trovão que fizesse uma descarga de energia que incendiasse a casa. Nunca se sabe. Voltei para a porta que sempre esteve aberta. Finalmente saí de casa, apertei o botão do elevador e enquanto esperava puxei a porta para ver se estava bem fechada, nunca se sabe, e depois de saber que, depois da pandemia, os roubos das casas aumentaram, é sempre bomprecaver. Puxeinovamente a portae empurrei-a. Parecia estar segura. O elevador chegou e olhei o telemóvel: faltava uma hora e trinta minutos para o encontro, o comboio para Lisboa era dali a quinze minutos e depois eram mais quarenta minutos de viagem. Estava com tempo, mas não podia vacilar. Comecei a sentir as mãos húmidaspelo suor,aansiedadecomeçavaaatacar-me, masenxuguei nascalçaseacalmeime. Desci do prédio para a rua. Estava a caminhar e pensei: E o ferro de engomar? Desliguei-o na tomada? Deixei em cima da placa protetora da prancha ou na parte metálica? Será que está no chão em cima do tapete? Bem, precisava de regressar a casa. Perderia o comboio, mas depois apanhava outro e chegaria em cima da hora. Regressei a casa, subi para o andar de cima e o ferro estava desligado na tomada. Mas o cabo estava virado na direção do tapete e isso poderia fazer com que, num deslize de energia, incendiasse o tapete e a casa. Coloquei-o pendurado na parte metálica da prancha, assim não poderia afetar nada. Desci as escadas, mas pelo sim pelo não, voltei a subi-las para ver se o cabo tinha mudado de lugar, mas não tinha. Desci, mas voltei a subir para me certificar outra vez. Desci, mas voltei a subir. Talvez o melhor fosse tirar uma fotografia do cabo. Para me descansar, tirei uma fotografia ao cabo. Desci. Lembrei-me de que algumas senhoras, quando iam de férias, levavam o ferro de engomar e só não levavam o fogão, porque era demasiado pesado. Ouvi também quem levasse o microondas e outras
que levavam o alisador de cabelo, apesar de não precisarem dele. Saí de casa, mas voltei novamente para ver o cabo pendurado. Estava tudo bem. Desci as escadas. Mas agora tinha de me certificar como estava o quarto, voltei a verificar tudo, agora alterei também alguns objetos em cima da cómoda, de modo estratégico para o caso de haver uma inundação ou um incêndio. Voltei à casa de banho e fiz uma vistoria, abrindo e fechando torneiras, até dei descarga na sanita e fiquei à espera até que o tanque ficasse cheio para verificar se não havia nenhuma fuga, algum fio de água a escorrer. Saí da casa de banho, depois de verificar se a luz estava efetivamente apagada e novamente o fiz na sala de estar,retirando, destavez, osobjetosqueestavamsobatolhade mesa, porqueestapoderia incendiar-se. Estava agora em condições de sair de casa. Mas ao olhar para o espelho, percebi que a camisa estava amarrotada com todas as gesticulações que fiz, por isso, subi novamente ao andar de cima, passei a camisa a ferro e coloquei-a na cruzeta. Olhei para ascalçaserepareiqueafinalestavamsujas, tirei-as efuiprocuraroutras.Entretanto recebi uma mensagem da Isabel que já tinha chegado. Merda! Apressei-me a sair de casa, nem chamei o elevador e desci as escadas apressadamente, fui com um andar apressado para apanhar o comboio, mas já era tarde. Ia-me custar uma fortuna, mas a única coisa que podia fazer era apanhar aquele táxi. Fiz sinal e entrei, mas o motorista olhou para mim como se fosse um louco fugido do manicómio Desculpe, mas eu não posso levá-lo assim. Assim como? Você já viu como está? Não tinha reparado que estava só de boxers e de meias calçadas. Voltei a casa, ia abrir a porta, mas tinha deixado as chaves nas calças. Precisava de avisar Isabel, mas tinha deixado o telemóvel nas calças. Merda
Não continuarás o teu caminho.

IV, Evangelho de Tomé sobre a infância de Jesus
Jesus tem cinco anos e brinca no vau de um riacho com outras crianças. Sob um vago calor exasperante, tema túnica descaída mostrando otronco nu desértico e moreno, como um beduíno, o cabelo desarmonioso, cortado à faca, assim como uns olhos negros e oblíquos, habituados aos clarões violentos dos dias secos. Banha-se e chapinha na água, atirando-a às outras crianças, que molhadas, gritam esfuziantes pela brincadeira, e entram no jogo aspergindo as mesmas águas para o seu rosto molhado. Sobre a gritaria, Jesus volveu-se para a corrente esuspirou O que é uno, seja disperso; que as águas que correm, parem e se reúnam em lagoas. E, num espetáculo sublime, as crianças viram o riacho dobrar-se e separar-se emdiferentes direções e inundar emcírculos perfeitos o terreno em volta, transformando-se o riacho num sapal de águas puras e límpidas. As crianças pararem de imediato a brincadeira e olharam pasmadas para Jesus, enquanto este, acocorado sobre aterra, moldou do barro doze pequenos pardais, desenhando-lhes as asas fechadas e o bico aberto. Sobre o silêncio súbito que se havia instaurado, um judeu acompanhava aterrorizado as ações insólitas e a audácia daquela criança que ousava perturbar a santidade do sábado. Correu sobre a encosta até à morada de José e contoulhe o que vira com os seus próprios olhos O teu filho profanou o sábado! José, que contrastava com a sua jovem idade um rosto disciplinado e duro, apenas anuiu com os olhos e seguiu firme e calmo para o lodaçal. Ao ver o filho admirando as esculturas, gritou-lhe Filho, que estás a fazer? não sabes que é sábado? Jesus, sem desviar o olhar, bateu palmas e com uma só palavra imperativa despertou as figuras de barro para um levantar de voo, e uma mancha de pequenas aves saltitantes cobriu o céu em pasárgada. O espetáculo repetido e a indiferença de Jesus perante a autoridade do pai, levou a que, já reunidos alguns judeus, estes fossem a denunciar as ações heréticas aos seus chefes. Enquanto Jesus paralisava a olhar o movimento dos pardais, o filho de Anás, que se encontrava ao lado de José, começou a dispersar as águas formadas com um ramo de salgueiro, impurificando-as e destruindo a sua perfeição geométrica. Jesus, inundando-se em raiva, pela destruição ingénua da sua obra perfeita, dardejou um olhar furioso para a criança e gritou-lhe Tolo! que mal te fizeram as águas? quem és tu para destruir o que eu criei? E com o levantar do dedo indicador apontado à criança aterrorizada sentenciou assim também tu perderás a água do teu corpo e murcharás como uma árvore e o corpo
do rapaz começou a ressequir, a pele a definhar como um ramo caído, os músculos a emagrecer e a descolorar até se transformaram-se em pó, restando, no final, somente um montículo de ossos encimado por uma caveira pueril. José, com um olhar trágico, silenciou-se sobre a morte da criança, e encaminhou-se para casa na companhia de Jesus. Quando os pais da criança tomaram conhecimento que aqueles ossos eram do seu filho, depois de o procuraram durante todo o dia em sobressalto, acorreram em aflição até à porta de José e acusaram-no da perfídia que o seu filho havia feito sem nenhum arrependimento e sobre a cumplicidade de José. O pobre homem soube apenas lamentar a perda e prometeu que o seu filho não voltaria a repetir as mesmas ações, mas a uns pais inconsoláveiscoma mortedoseujovem filho, assuaspalavrasnão tinhamqualquer valor, mas calaram-se sob o temor que tinham pelos poderes sobrenaturais de Jesus. Quando partiram, José voltou-se para o menino que se refugiava no seio da mãe adolescente. Olhou para Maria de olhos negros e suplicantes, e calou-se. No dia seguinte, Jesus atravessou a aldeia numa atmosfera absorta de olhares escondidos e assombrados dos nazarenos, as barracas corriam as lonas quando ele passava, as mães escondiam os seus filhos e os homens paralisavam tensos com a mãos direitas abertas prontas para agarrar em paus ou pedras sobre a ameaça das palavras do menino. Neste silêncio, uma criança corria desatenta pelas vielas da aldeia e esbarroucontraoombro deJesus. Reconhecendoo, acriança levantou asmãos e suplicou-lhe misericórdia, mas a cólera de Jesus inflamouseàousadiadacriançaemperturbar-lheo seu espírito puro econdenou-o não continuarás o teu caminho. E a criança caiu morta sobre a terra batida perante os olhares impotentes do povo inocente. Um ruído de fundo começou a levantar-se Quem é este menino para que a sua palavra se faça ato? Porque nos amaldiçoa? Quem o enviou o mundo para que o fizesse pior do que já é? À tarde, quando Jesus regressou a casa, viu os pais do menino morto a censurar José pelas maldições do filho O teu filho não pode viver connosco!... ou ensina-o a abençoar e não a amaldiçoar! José, vendo Jesus chegar, não aguentou mais o seu silêncio negligente, e perguntou-lhe com uma raiva implosiva Porque fazes estas coisas? não vês que provocas sofrimento aos inocentes e perseguição a nós e aos teus irmãos? Jesus levantou os olhos em ira e respondeu-lhe como se o seu tamanho aumentasse pelo tom da voz autoritária Eu sei que as tuas palavras, não são tuas. falas do que não sabes e ouves quem nada diz, mas por ti, calo-me. mas vocês, que falam sem saber ver, ficarão cegos, já que os olhos de nada vos servem. E os pais do menino morto, cegaram. José, não aguentando mais a violência do filho, levou-lhe a mão à cabeça e puxou-lhe a orelha como castigo, dizendo Para que ouças! Jesus, revoltado com a
arrogância daquele homem que não era verdadeiramente seu pai e, por isso, desprovido de autoridade, afastou-lhe a mão com um gesto bruto e cresceu para ele José, sabes quem sou eu? sou o filho de Deus. castiga-me e Deus castigar-te-á. não cometas uma ação sobre aquilo que desconheces e tu nada sabes sobre mim. preferes dar ouvidos a esses perversos do que àquele que nasceu para salvar a humanidade. quem és tu, José, sabendo tu quem eu sou? sabes, que a justiça só a Ele pertence, o julgamento, a condenação e a execução só serão justos à mão Dele, e eu sou Ele. sobre mim tudo será injusto, e sobre os homens eu levarei a espada da justiça. não me julgues assim, se não me compreendes, se não sabes que à tua frente está a tua redenção! e voltando costas para José, concluiu foste ignorante, mas nada farei contigo, porque procuras, mas não sabes encontrar. volta para casa e cobre-te de silêncio, para que não me entristeças e sobre ti caia o meu terror.
lagostas
Filho, para!... olha que o senhor vai ficar chateado e ainda nos vão expulsar! Ah, não se preocupe, os bichos daqui a nada estão no prato. O empregado da marisqueira olhou carinhosamente parao miúdo que persistia em bater comos dedos no aquário das lagostas Oh filho, já disse para parares! olha que as lagostas ainda saltam do aquário e comemte vivo! e o empregado, bem-humorado, respondeu de gás Não se preocupe que elas não fogem, são lagostas portuguesas, isto é, quando uma tenta escapar as outras puxam-na para baixo. O pai riu, o empregado sorriu e a criança continuou a bater no vidro. Ao fim de um tempo, o pai voltou-se para o telemóvel, deslizando no feed e enviando DM’s para ver se arranjava uma madrasta ao puto, já que a mãe, ao fim de dois anos de casamento, fartou-se de ser ela o viveiro de lagostas a quem o pai, assim como agora o filho, batia persistentemente. Como filho de peixe sabe nadar, já se pontuava no miúdo a violência cíclicaeperversa, assimcomo o gosto pérfido deassistir ao espetáculo deviolênciacriado por si. Com os olhos, seguia as lagostas e aproximando a boca, libertava um bafo para embaciar o vidro e depois, desenhando um círculo de tiro ao alvo, segurava o dedo indicador com o anelar e libertava a tensão criada como uma fisga apontada ao centro. O choque reverberava como uma onda sísmica nas águas paradas e borbulhantes, e as lagostas aturdiam com o ressoar do impacto. A criança ria histérica para o fenómeno, assoberbada pelo poder vivo das suas pequenas mãos, pela constatação possível da destruição humana, que é a primeira evidência do nosso poder sobre o mundo. Não que a criança fosse idiota, era apenas um artista em ascensão a fazer malabarismos no recreio da vida. A beleza da extinção foi-lhe despertada na noite de Natal, quando assistia, hipnotizado, ao crepitar da fogueira, ao estalar dos troncos em demorada agonia. Ou quando esmagou, por distração, o montículo construído por formigas e depois regozijouse ao observar o caos criado no carreiro, com as formigas ziguezagueando em pânico e sem nenhuma direção. Ao vê-las, abafou-as com a sola da sapatilha e moeu a terra até todas elas ficarem desmembradas e amputadas, parecendo, agora, não uma frase em linha reta, mas vírgulas e pontos finais dispersos. Da outra vez que a criança sentiu o sublime da destruição, foi quando assistiu, escondido nas escadas, o pai bater na mãe até esta se resumir a um esperneio de pernas e braços no chão da sala. Lembrava-se de tudo isto, enquanto cutucava o santuário fúnebre das lagostas.Até que, cansado, voltou costas, pela inanição dosbichos, quepareciammortosousomenteensimesmados, como seestivessem a elaborar um plano. Acriança chamou o pai Pai, acho que elas morreram. E o pai olhou para ele e de boca aberta, viu no ar um arco circunflexo de lagostas com as pinças abertas para trinchar a carne do filho. As lagostas, afinal de contas, não eram portuguesas.

AprimeiravezqueB. reconheceua suaexistência no mundo foiatravésdoolhar dooutro, foi também a primeira vez que reconheceu a opressão contida nessa existência. Aos doze anos saiu para a praia com a tia para o seu primeiro dia de férias passado no Portinho da Arrábida. Quando chegaram ao areal, B. subiu com as suas all star rosa a um rochedo e despiu o vestido branco de pregas, mostrando ao mundo o biquíni floral que a mãe lhe havia oferecido para lhe conservar os traços ainda infantis. Desceu do rochedo para junto da tia com o seu andar descomprometido e indiferente, o que lhe ressaltava ainda mais a sua beleza fértil e inocente, o que não escapou à multidão de olhares masculinos, como lobos sedentos da caça, que agora se concentravam no seu corpo, babando-se pelos mamilos intumescidos e pelo volume dos seios queexcedia oslimites dotop. No primeiro momento, achou quenão olhavamparaela, masparaatia, masrapidamentecompreendeu que afinal era o seu corpo moreno e curvilíneo que despertava as atenções. Achou engraçado, porque já havia conhecido os apetites masculinos ao seu redor, e também os seus já os haviam cruzado quando beijara Francisco na casa de banho das raparigas. Contudo, aqueles olhares adolescentes eram, para ela, uma novidade, sentia neles uma excitação mais carnal, mais perigosa à sua inocência. Mas deixou-os de lado para apanhar o primeiro sol de agosto que queimava silenciosamente a sua pele, e assim se estirou na toalha para receber as ondas de calor. Lembrando-se que no ano passado a mãe lhe dissera que podia andar semo topdo biquíni, decidiu levantar-se, agarrouno cabelo e desenlaçou o biquíni, deixando cair suavemente os seios no tronco nu. Como uma conspiração levada pelo vento, os rapazes a dez metros dali levantaram as cabeças como suricates e gesticulando-se, tocando uns nos outros para verificar que de facto estavam todos a testemunhar aquela aparição na praia, ficaram paralisados a olhar os movimentos indiferentes de B. que deixava agora cair o biquíni ao chão e se agachava para o apanhar. Voltou-se a deitar na toalha e assim ficou, ignorando a excitação hormonal dos rapazes. Havia passado uma hora, quando a tia decidiu ir ao café comprar tabaco e um gelado para ela Mas só se comeres essa maçã, ok?. E ali ficou B., deitada sobre toalha mordendo a maçã golden ao ritmo do barbatanar das pernas, enquanto, do outro lado, os rapazes discutiam entre si quem avançaria para um diálogo. Foi o mais corpulento deles, de cabeça rapada e calções adiadas. Para ele, apanhar uma dourada daquelas no areal, era mais um dia, já que estava habituado a enfrentar o perigo nos seus extremos, como as largadas em Alcochete ou a entrar em coma depois de beber dez shots de Jägermeister. Levantou-se no seu gingar juaniano traçado a bacalhau português e pôs-se entre ela e o sol. B. sentiu o peso da sombra e o cheiro a batatas fritas e litrosas que transpiravam do

rapaz, levou a mão à testa e abriu o olho Sim? e ele, aspirando a saliva da boca, Como é que tás? vi-te ali e vim, né? e ela ficou espantada com a impertinência do adolescente, porque desconhecia os motivos que o levavam até ali Mas que queres? O que eu te pergunto é se tu queres, né? Ah? Não é ah?, é chupa logo, heheh Fogo, mas o que é que tu queres? Nada, calma miúda. posso deitar-me aqui à tua beira, só um coche, ok? Não, que estou com a minha tia e ele deitou-se à mesma ao lado dela, enquanto falava com os seus mamilos, por ser incapaz de olhá-la nos olhos, ao mesmo tempo que intervalava essa interação, olhando para os amigos a rir-se como um porco em agonia. Tava a ver-te ali, né, e queria falar contigo, és muito bonita, sabias? dás-me o teu insta? Não, podes sair daqui, por favor? a minha tia está a chegar e ela não gosta destas coisas Como ele estava habituado a lutar na vida, a considerar que tudo só se ganha pelo esforço e persistência, como fazia com os garraios, desconsiderou o seu não e apenas disse Tu és difícil como se ela lhe tivesse dado razões dissimuladas para ele continuar a insistir. Ele era um homem e os homens têm um instinto caçador, não é verdade? E como nenhuma criatura se quer tornar presa, só contra a sua vontade é que pode ser caçada. Então ele persistiu no desafio que se lhe abria aos seus olhos e avançou com maior audácia para o corpo infantil. Colocou-lhea mão sobre osmamiloseabruptamente massajou-os, apertando-oscomuma força bruta. Ela ficou inanimada com aquela ação, não foi capaz de reagir e abriu a boca admirada com aquele gesto insólito. Ele vendo que a sua presa não reagia, tomou isso como um sinal de submissão da parte dela e continuou a mexer-lhe nos seios, até se aproximar dela com a boca, e libertar a língua sobre a língua dela, enquanto a outra mão, escorria pela sua barriga até os dedos lhe tocaram no sexo e aí, enquanto beijava, com o dedo médio fazia círculos e penetrava dentro dela. Em nenhum momento B. fez algum gesto, não se mexeu um milímetro e os seus olhos que esbugalhavam, fechavam agora numa tensão onde se imaginava desparecer daquele lugar, repetindo para si É só um sonho estou a sonhar é um sonho... De repente, ouviu os amigos gritarem-lhe que a tia da miúda se aproximava, então rapidamente retirou o dedo húmido de sangue e afastou-se, lançando-lhe um beijo no ar com a mão suja. A tia chegou com o gelado de leite na mão e B. lançou-o para longe e afogou os olhos na toalha, aninhando-se pelo terror que havia sofrido, jurando odiar-se para sempre, enquanto a tia, aborrecida pela atitude, voltou a deitar-se e por entre o fumo do cigarro pensou para si Enfim, adolescentes… Na paisagem que circundava a toalha de B., algumas pessoas que inicialmente haviam visto o encontro, fecharam os olhos para continuar a apanhar o sol, outras ficaram somente a assistir, pensando que tudo aquilo havia sido consentido pela
rapariga e nas dunas, acompanhando toda a situação, um velho agitava a mão por entre as calças e outro, escondido atrás do jornal, ejaculava para a areia com o sexo de fora. Quando a tia e B. se levantaram para ir embora, já o leite do gelado se diluía rúbeo pelas areias, ainda ouviram uma velha de chapéu de palha olhar para B. e comentar Esta geração está toda perdida, até já nascem putas!
a mosca, a mão, a mãe
Quando ele se sentava ao piano e alongava os dedos, estava pronto para compor. Para sentir a intoxicação do daimon artístico, encerrava-se no sótão da casa, fechava as portadas, e num calor insuportável, suava, arrastando os dedos em peregrinação. Da mesma forma que Santo Antão se prostrava na aridez do deserto à espera de um sinal de Deus ou o asceta Simão se exilava próximo do céu fervendo no topo da sua coluna para receber diretamente a mensagem divina de forma clara e sem interferências, também o jovem compositor, através do abafado e seco calor no canto mais elevado da casa, procurava a inspiração de melodias sagradas. Neste exílio, nada o poderia incomodar, protegia-se das tentações mundanas e das distrações humanas. Naquele momento, era ele amortalhado numa gruta do deserto. A não ser por esta última vez, um adversário à sua altura queo impedia de se concentrar ecompor aobra encomendada pela Casa da Música, com um prazo bastante apertado. O seu inimigo, ou o demónio com asas, como referiu a partir deste dia, era um bicho que voava elétrico à volta da sua aura, pousando ora no seu ombro,ora no cabelo, ou, comalguma audácia, na pontado seu nariz chupando-lhe a gota de suor. Ao início, o bracejar do compositor parecia ser uma solução eficaz, porque a mosca compreenderia, assim como qualquer animal, que quando se agitamos braços para alguém é porque este não quer ser incomodado. Mas a mosca, por razões até hoje desconhecidas, tanto pelo povo como pelos especialistas, não interpreta esses gestos frustrados como uma mensagem de perturbação ou mesmo ameaça à sua própria vida, mas antes, como um desafio, assim como quando corremos atrás do nosso cão para o apanhar, e ele se afasta ainda mais com o focinho babado de felicidade, porque entende a corrida como uma simples brincadeira. A mosca, portanto, persistia, e olhando para ele como um pedaço de carne encharcada de suor ou como um monte de merda húmida, o seu apetite ignorava o instinto de sobrevivência, e ela, com investidas cada vez mais agressivas, sugava-lhe o suor suspenso na barba, nos dedos, no pescoço e, depois de alguns safanões que quase lhe tiraram a vida, pousou no topo da cabeça nua do jovem, quetinhao aspeto deumatonsura, masque no casodeleresultavadapersistência maníaca de arrancar cabelos nos momentos mais tensos. Aí estacionada, no planalto careca, esfregava as garras, enquanto calculava os próximos voos ao corpo do compositor. Ele, compenetrado na sua criação, ainda não tinha sentido o poder magnânimo daquele pequeno Davi, que o enfrentava, a ele, o artista como um Golias. Amosca Davi levantou voo numa trajetória curiosa, parecia não querer pousar para se banquetear, mas somente, irritá-lo de tal modo, que o compositor acabasse por ceder e se deitasse ao chão para que o seu corpo fosse completamente sugado pelas suas mandíbulas. Voava em círculos à

volta da sua cabeça, num zumbido cada vez mais grave e pesado, ao ponto da sua desarmonia violentar a composição inspirada. Este desarranjo musical impossibilitava a produção de uma peça tão serena, por isso, impaciente e já sem forças, o compositor perdeu o seu poder de concentração e focou-se somente em acabar com o seu martírio, exterminando a mosca. Esta era a sua missão impossível, e se não fosse resolvida, toda a sua vida ficaria suspensa. A mosca voou para a tampa do piano e fitou-o com a multiplicidade dos seus olhos e o compositor, limpando os beiços à mão, respirou fundo e comprometeu-se com o desafio, que não era novo para ele, as perturbações foram tão frequentes que aprendeu a lidar com elas, isolando-se. Aperturbação mais feroz com que lidava há décadas, era com a sua própria mãe, que agora o fazia lembrar aquele pequeno demónio. Amãe que o incomodava persistentemente no momento da sua criação, ela que ignorava tudo o que fosse música clássica, porque habituada ao exclusivo consumo de telenovelas, e que achava no filho um desperdício de tempo e talento, porque tinha sobre ele a expectativa de um funcionário público casado com uma mulher que lhe pudesse dar netos antes dela se reformar, ela que perturbava os momentos de maior inspiração, abrindo de rompante a porta do quarto para lhe perguntar se precisava de alguma coisa, ou para o chamar à atenção por não ter posto a roupa no cesto, ou quando ligava o aspirador às sete da manhã, hora em que o jovem artista descansava de pois de uma noite criativa, ou, ainda, especialmente berrante, quando lhe gritava soprana que o jantar já estava na mesa, sempre com uma urgência repetida a compassos de dois minutos com avisos do comer estar a esfriar, de que ela ia levantar a mesa, de que ele devia comer por estar mais magro, etudo isto, com berros que contaminavam as suas sinfonias que depois oobrigavamarecomeçar tudodenovo.Estamãe, aquela mosca, olhando-ocomdesprezo, ignorando o seu génio, incompreendendo a sua dedicação, resmungando-lhe ao ouvido com emergências fúteis, corrompendo as suas harmonias com gritos desafinados, aquela mosca estava ali como o demónio da própria mãe, e teria, mais uma vez, o seu gesto de assombração. Até ao momento, não desviavam o olhar, mas o compositor, tomando iniciativa, aproximou-se vagarosamente com a mão direita para a mosca, enquanto a esquerda, sem se mover, pousava no teclado, pressionando um longo dó sustenido. Quando o braço estava a pouca distância da mosca, o compositor largou a mão com uma velocidade reta e eficaz, e bateu na tampa do piano que se fechou e esmagou, num estalo sem misericórdia, a mão que segurava a nota fúnebre. Depois do grito, dos olhos chorosos, a mosca morria no chão, a mão partia-se para nunca mais voltar a tocar, e a mãe não voltaria a chamá-lo para jantar.