[ensaio] enviuvar dos vivos , Manuel Da Cruz

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Clarice Lispector - Você já sofreu muito por amor?

Pablo Neruda - Estou disposto a sofrer mais.

Entrevista de Clarice Lispector a Pablo Neruda em abril de 1969

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Introdução

Não existe nada mais aborrecido do que o amor, e nada mais excitante do que o desamor, a perda esmagadora e terrível que é enviuvar de um vivo, morrermos, morrerem-nos e, depois do fim, a exigência vital de continuar arrastando os destroços de um corpo de olhos apagados para terminar num espectro, lembrança do que se foi, noite do que se será. E perguntar o que será depois de ser meia noite e fim de estrada. Demasiado poético e, contudo, continua a ser forma mais objetiva de descrever a experiência amorosa. A Filosofia, surpreendentemente, não se dedicou a um estudo sistemático deste aspeto humano, salvo o Banquete de Platão, que o resume à mitologia, a Metafísica do Amor de Schopenhauer, que o circunscreve ao aspeto biológico e os Fragmentos de um discurso amoroso de Roland Barthes, de análise linguística. Obras pertinentes, mas insuficientes para iniciar um estudo sério sobre o amor, talvez o aspeto mais estruturante e fundamental da nossa condição e, contudo, pelo viés racional, marginalizado da investigação filosófica. Para avançar um passo na sua compreensão, este ensaio de notas encadeadas e seminais sobre a face obscura do amor – o período da pós-relação. São notas, porque não arrisco, ainda, um retrato mais geral e conciso sobre a experiência totalizante do caso amoroso.

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1. Objetivo

O objetivo é claro: identificar as fases da pós-relação vivenciadas pelo sujeito excluindo fatores subjetivos. As fases da pós-relação são transversais e não são determinadas pela personalidade, contexto cultural ou outros fatores subjetivos e relativos. Só a sua intensidade e duração é que pode ser condicionada por tais fatores e, nesse caso, por serem casos particulares e não eliminarem ou criarem fases, são irrelevantes para uma investigação, porque a partir deles não se poderia concluir uma tese geral ou pertinente para a compreensão do luto amoroso.

2. Enviuvar de um morto e de um vivo

É comum a comparação entre as fases do luto derivado da morte física e da morte afetiva, aplicando exatamente as mesmas fases e o mesmo processo de enlutamento e de superação a ambos. Contudo, se a tipologia da causa é diferente, o efeito será necessariamente diferente. No primeiro caso, experiencia-se a morte física do outro, o seu desaparecimento, mas no segundo caso a pessoa não morre. No primeiro, procura-se manter viva a memória da pessoa para conservar o elo afetivo, no segundo procura-se esquecer para se desprender da vinculação. No primeiro, a morte física é um absoluto, não há esperança de uma ressurreição, no segundo, a morte amorosa é relativa, contingente, há sempre a esperança de um recomeço. No primeiro, não se abre uma ferida narcísica nem é afetado o orgulho pessoal ou a autoestima, no segundo isso ocorre. Por estas substanciais diferenças, onde se poderiam apontar muitas mais, não podemos defender que as fases são as mesmas, que o processo de resolução dos conflitos é semelhante nem que a finalidade de uma superação de um falecido é o mesmo que a superação amorosa.

O conflito permanente da morte física será Ela morreu, mas tenho de continuar a viver sem a sua existência, o conflito da morte amorosa será Ela morreu para mim, mas vive. Por isso, o problema: como enviuvar de um vivo?

Pressupostos
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3. O enlutado – quem sofre e quem não sofre

O enlutado, aquele que atravessa as fases, é aquele que é rejeitado. Quem toma a decisão de terminar a relação, apesar de igualmente sofrer, mas com menor intensidade e sem a necessidade de atravessar estas fases, tem só um conflito a resolver: o arrependimento. Fiz o mais correto ou não? Foi o momento certo ou precipitei-me? Como rejeita tem o poder simbólico de reatar a relação, por isso não sofre da humilhação, da vergonha, da rejeição, como não foi rejeitado encontra-se num outro nível que o permite lidar melhor com o sofrimento e com a situação.

Arriscando, as fases da pós-relação não se devem a uma morte, mas ao próprio processo de matar. As fases não derivam, pois, da morte em si, mas da rejeição, e será o sentimento de rejeição o gatilho para as fases posteriores.

4. Remédios do amor: conselhos dos amigos e a prescrição filosófica

São vários, mas somente paliativos. Se há um remédio para esta situação traumática é sofrer no luto, isto é, atravessar todas as fases descritas, sem procurar atalhos, porque o luto tem de ser vivenciado para que seja possível uma recuperação saudável.

Os conselhos de amigo são tão verdadeiros como insipientes. É verdade que um dia vais esquecê-la, porque não podemos viver com um morto aos ombros, ou como diz uma amiga já esqueceste a falecida? É verdade que há mais mulheres no mundo, biliões delas aliás, e que provavelmente encontrarás outro amor. Também é verdade que não vale a pena sofrer por algo que não volta, que terminou. Mas também é verdade a inutilidade destas verdades, porque dizer que se vai esquecer de uma pessoa não fará a pessoa esquecer, isto não é uma simples equação; também é inútil dizer que se encontrará outro amor quando ainda se está enamorado e, por fim, de que serve dizer que não serve de nada sofrer? É como ser atropelado por um autocarro e ter alguém ao nosso lado a dizer Não vale a pena sofreres, porque já foste atropelado. Mas desta insipiência, apesar de fundada em verdades, pode ser orientada para aquilo que comumente dizemos ultrapassar. É preciso ultrapassar o fim de uma relação, e apenas ultrapassamos matando o que amamos. Matar na memória (passado) e na imaginação (a esperança no futuro). Ovídio já receitara os remédios para o amor e, em geral, nada mudou. Se é preciso matar a memória é necessário, então, que se matem todos os

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estímulos que a ativem. Necessário obliterar a sensação descrita por Cesariny Em todos os lugares te encontro/Em todos os lugares te perco, a sensação de uma presença fantasmagórica em todo o lugar, a sensação que sentimos de a cada esquina nos vamos cruzar, esta expectativa da omnipotência de quem amamos só pode ser afastada se os estímulos do nosso meio não a reativarem, evitar passar pelos lugares que antes frequentávamos, fazer as atividades que antes fazíamos, evitar os hábitos que só nós os dois tínhamos. Porque os lugares têm memória, não são apenas ambientes físicos, mas memoriais à nossa existência a dois. O banco de jardim onde víamos as estrelas, o jardim onde dançámos à chuva, o caminho que fazíamos até tua casa. Dir-se-á que devemos enfrentá-los, porque só assim esquecemos, porque só assim ultrapassamos esse trauma. É verdade, mas há um momento para tudo, não se atira um recém traumatizado de volta ao seu trauma. Deve-se, então, evitar esses lugares, afastarmo-nos o mais possível desses estímulos, em resumo: viajar, diz Ovídio, e escreve Eça de Queirós nos Maias. Depois de um amor traumático, uma viagem de dez anos à volta da Europa. Grand tour apenas à mercê de um burguês ocioso, mas para as massas, uma viagem ao país, mudar de rota.

Mas seja qual for o paliativo escolhido, a vontade manifestada é sempre esta

Não quero sofrer e, porque não quero, a atitude adotada é tenho de ignorar o sofrimento e, para isso, tenho de distrair-me. Então viajamos, saímos à noite, ocupamo-nos a ver séries, fazemos de tudo para não lembrar a pessoa que julgamos esquecer. Contudo, ao acionarmos o mecanismo de evitamento não estamos a resolver nenhum problema e proporcionamos a que este se torne crónico e patológico. E este problema só pode ser resolvido com aquilo que é naturalmente expectável: Se sofro, devo sofrer. Se terminei uma relação que para mim era estruturante na minha vida e até uma extensão da minha personalidade, Sem ela eu não sou nada, é natural que ao terminar seja necessário fazer o luto. Uma parte de mim morreu, Já não sei quem sou, De que vale a pena viver sem ela/e, todas as expressões se repetem após o rompimento. E é suposto que este sentimento angustiante seja a norma, seja natural e aceitável. Se assim é, é completamente justificável sofrer por aquilo que morreu. A solução? Se provoca dor, devo sofrer. Até quando? Até eu próprio já não conseguir sofrer. Porque é um processo, demora tempo, e é sempre um tempo relativo e subjetivo. Pode durar uma semana, um mês, um ano. Mas só termina depois de aceitar o inevitável sofrimento. Depois, o corpo fica cansado, já não tenho mais lágrimas, ainda penso nela, mas já não tenho mais vontade nem forças para sofrer. A fase final do luto amoroso não é o esquecimento em

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relação à pessoa amada, mas a autoperceção de que já não consegue sentir mais dor, que já não tem mais lágrimas – o estado de anestesia. E este estado não é só alcançado pela nossa resolução emocional, mas pela nossa reestruturação e reorganização do nosso projeto de vida. Se os períodos do dia que eram ocupados com essa pessoa continuam vazios, então ainda não superamos, porque de certa forma deixamos intacto esses momentos para que voltem a ser preenchidos pelo passado, pelo regresso dessa pessoa, tal como o quarto do filho falecido, que permanece intacto pelos pais, como se fosse um mausoléu à sua memória ou como se ainda existisse a esperança do seu regresso.

5. Dor fantasma – como é possível sofrer sem a causa da dor?

O corte da relação é paralelo com a situação do membro fantasma, continuamos a sofrer por algo que já não nos pertence. É, na verdade, uma dor fantasma. Se habitualmente conseguimos identificar de forma objetiva a causa da nossa dor e esta como uma causa concreta e mensurável, na perda amorosa já não existe esse elemento. Poder-se-á afirmar que a causa é a pessoa e, por isso, concreta. Mas o contínuo sofrimento, mesmo já ausente a pessoa, só pode surgir de algo interno e não externo. É o sofrimento por ausência de estímulo concreto, a ideia de que antes eramos estimulados por x e agora este x não existe, mas permanece estimulando internamente. Esta sensação fantasmagórica expande-se à ideia de omnipresença do amado, de que está em todo o lado e a qualquer momento posso reencontrá-lo. A passagem por certos lugares ou certas experiências marcadas na memória pela presença do outro no passado, são estímulos a estas reminiscências, a sentirmos um vazio, de algo nos falta. E é neste vazio que, novamente, sentimos esta dor fantasma.

6. Quando não há luto

Se não há apego emocional, não há luto. O luto amoroso só é possível se existir ainda uma ligação emocional ou apego emocional a uma pessoa, se esta ligação foi quebrada no próprio decorrer da relação ou se, efetivamente, nunca aconteceu – no caso em que há uma semirelação ou uma relação conformada, mas não existe afeto pelo menos da parte de um dos elementos – então a pessoa não terá que passar por um luto. É

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como se sentisse a morte de algo que nunca chegou a existir, mantendo o mesmo grau de indiferença emocional que já sentia.

7. Causas

Não se pode confundir relação amorosa com o sentimento amoroso. Por vezes, termina-se por já não amar, por outras vezes, termina-se ainda amando. De qualquer das formas, o luto amoroso só ocorre na presença de apego emocional, não havendo esta condição, não existe causa para o luto. Significa isto que depois de uma relação amorosa não se segue necessariamente uma fase de luto. As relações amorosas prendem-se somente por uma ligação emocional ou sexual, se o elo não é suficientemente forte para implicar os sentimentos amorosos da pessoa, esta não sofrerá. Quando a relação é baseada somente no princípio do prazer sexual, o único efeito é a abstinência sexual que pode ser eficientemente resolvida encontrando outro parceiro sexual.

8. Base de dados

A sequência e a dinâmica que apresento padece, no momento, da falta de dados factuais que poderiam servir de justificação empírica para as teses postuladas. Estes dados podem ser colhidos através de entrevistas, questionários, mas, o mais importante, e é essa a origem das minhas ideias, derivam da autoanálise de experiências particulares e da observação de casos amorosos narrados por outros. Julgo que este é o ponto de partida, mais do que suficiente, para teorizar sobre a experiência amorosa, assim como ocorreu com as teorias de Freud que, inicialmente, tomaram por base a sua autoanálise (A Interpretação dos Sonhos e a Psicopatologia da vida quotidiana) ou no caso de Carl Jung com a revelação do inconsciente coletivo.

É deste modo que as novas teorias, principalmente na Ciência, se originam, como hipóteses ad hoc à espera de serem corroboradas pela observação. Assim, que à falta de uma extensa lista de factos sobre as minhas teses, que foram orientadas pela lógica e pela experiência pessoal e interpessoal, aconteça, mais tarde, como acontecerem às teorias de Einstein, o seu eclipse. Espero, por isso, como advogava Popper, que possam ser, pelo menos, falsificáveis.

9. Fronteiras

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As fronteiras das fases apresentadas são porosas e nebulosas. Sentimentos e lógicas inerentes a uma fase são seminais na fase precedente, de igual modo, esta transição entre fases não é linear nem unidirecional, mas arrítmica, como se compreendesse um movimento similar a uma montanha russa. Contudo, podem ser identificados elementos estruturais de cada fase que permitem a distinção clara entre as várias fases apresentadas.

10. Estado da arte

Até ao momento, considero que não existam estudos relevantes sobre a experiência amorosa, sejam filosóficos ou psicológicos. Na Filosofia, com Fedro, o amor é tratado mitologicamente; na Metafísica do Amor há uma descrição escatológica de um amor teleológico em direção, somente, à reprodução – o que me parece limitativo e errado; os Fragmentos de um discurso amoroso é o mais interessante, principalmente pela análise linguística, mas insuficiente para se sistematizar uma teoria geral. Na Psicologia, a linguagem tecnicista e esquemática descreve, paradoxalmente, uma imagem pouco clara da experiência amorosa, assim como toma como fundamento, na sua maioria, questionários formais, o que não creio ser o melhor instrumento de recolha de dados, porque não conseguem captar as nuances da narrativa que cada um elabora sobre a sua experiência. E como é recorrente constatar, tendemos a hiperbolizar alguns aspetos e a vitimizarmo-nos e a culpabilizar o outro para o insucesso da relação, e este enredo deve ser contrabalançado por uma análise mais depurada. É necessário, por isso, que o método seja analítico e subjetivo para que as conclusões sejam objetivas e padronizáveis.

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Fases da pós-relação amorosa

1. Negação situacional

Partindo da posição do rejeitado, compreendamos como é que este lida com as várias fases do fim da relação.

A situação que despoleta todo o encadeamento de estádios da rejeição amorosa principia na declaração (escrita, oral ou atitudinal) do fim pelo outro. Quando se termina por carta ou por mensagem, por um encontro marcado agendado para esse fim ou pela atitude de progressivo distanciamento entre o casal, o interesse de terminar a relação é revelado. Esta concretização pode ser previsível, quando os indícios de fim já se tornaram claros para os dois, ou súbita e imprevisível, como acontece quando a relação é estável, mas o outro apaixona-se por outra pessoa ou quando ocorrem mudanças no projeto de vida do outro (mudança de emprego ou de país).

Seja como for, a declaração de fim raras vezes é naturalmente aceite e sem perturbações, por razões claras: qualquer relação romântica pressupõe, implicitamente, a fidelidade e longevidade; a fidelidade que se manifesta pela monogamia (que é tanto um aspeto biológico como cultural) como a longevidade, explícita no arranjo e intersecção de um projeto de vida a dois. Por causa destes dois fatores, a vida a dois estrutura a rotina, objetivos, expectativas e hábitos de cada membro do casal, é por esta razão que o fim de uma relação não é apenas o corte emocional, mas implica, também, mudanças no próprio projeto de vida do sujeito, o que dificulta, ainda mais, a aceitação do fim.

É, pois, o imperativo de aceitar a situação que funda o primeiro estado emocional do rejeitado. O mesmo ocorre no primeiro estado do luto físico, em que a primeira dificuldade é aceitar o sucedido – não acredito que morreu, como é possível? No caso do luto amoroso, a reação pode tomar diversas variáveis: espanto pela declaração – porquê? Como é possível?, frustração derivada da dedicação e investimento colocado na relação – Depois de tudo o que fiz por ti? Depois de tudo o que passamos?, traição pelo fim do contrato amoroso – Mas juramos que era para sempre! Porquê que me fazes isto, eu não mereço! Já não gostas de mim? Gostas de outro/a?

Estas reações obstaculizam a aceitação do fim o que leva, na maioria dos casos, a um estado emocional de negação situacional, isto é, a recusar o fim absoluto da relação. Daqui deriva uma atitude de salvamento da relação através de ações de 10

remedeio para conservar a vinculação amorosa. Sob esta atitude podem ser tomadas diferentes estratégias, que são de igual natureza: a primeira é a tentativa de compreender a causa do fim – Porquê que queres terminar?; a segunda é de resolução dessa causa –Se a causa é x, então podemos resolver com y -, como a alteração dos hábitos do casal, a modificação de certas atitudes, as promessas de melhoria, a compensação por certos falhanços ocorridos durante a relação ou o afastamento provisório para aclarar as razões do fim e verificar a solidez das mesmas. Este período extraordinário de resolução do conflito firma-se na esperança de que tudo se pode resolver de que o amor vence tudo, na lógica de que se fomos feitos um para o outro, então a relação tem de funcionar.

O problema que aqui se encontra é a usual incompreensão da natureza do amor, isto é, amar alguém não implica uma relação com essa pessoa e ter uma relação não implica, necessariamente, amar essa pessoa. Como consideramos que existe uma relação direta e estrita entre amar e relacionar, consideramos que a primeira é condição suficiente para a segunda, como se amar muito alguém significasse uma relação com sucesso. Contudo, as variáveis de uma relação bem-sucedida ultrapassam o sentimento amoroso, implicam, por exemplo, a concordância entre os projetos de vida pessoais que resultam num projeto de vida comum (é recorrente o fim da relação motivado, por exemplo, pela discórdia do casal em ter um filho), a tolerância razoável entre as duas diferentes posturas em relação à vida, os mesmos ou similares valores partilhados, ou, ainda, o similar investimento de cada um na relação.

Por estes e outros aspetos que contribuem para uma relação bem-sucedida, o sentimento amoroso não é condição suficiente. Creio, também, que não seja necessária. O mito romântico leva-nos a acreditar que uma relação implica um forte sentimento amoroso, contudo, se compreendermos que uma relação amorosa se conserva, porque proporciona estabilidade emocional (e também financeira), o amar o outro torna-se um aspeto irrelevante, surgindo outros mais relevantes, como a admiração, o respeito, o apoio mútuo e o afeto. O afeto tem de estar presente, mas isso não significa que exista um sentimento amoroso, que pode muito bem ser substituído por um sentimento de amizade.

Regressando à negação situacional, pode ocorrer essa identificação do problema e a posterior tentativa da resolução do mesmo, como também é verdade que possa nem sequer começar. Porque esta atitude é a racionalização da situação, contudo, acontece frequentemente que sejamos movidos pelas emoções de tal forma que não consigamos adotar uma postura pragmática.

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Perante a declaração de término, persistimos na negação do mesmo, mas não agimos em direção à resolução. Movidos pela frustração e por uma ferida narcísica de termos sido rejeitados, surge-nos um sentimento de orgulho que nos leva a recusar qualquer tentativa de resolução, de modo prevenir uma nova rejeição que pode resultar num sentimento de vergonha ou de humilhação. A situação de Se queres terminar, então terminamos, é como entenderes; Se mudares de ideias, estou aqui. E os pensamentos Foi ele/a que terminou, então é ele/a que agora tem de vir atrás.

Este orgulho implica que a pessoa que declarou o fim seja também culpada por esse mesmo fim, isto é, se terminou então é um problema dessa pessoa, logo, eu não tenho o dever de fazer nada, se a pessoa quiser, eu aceito, se não quiser eu vou à minha vida. O problema desta postura é que ao colocar a solução nas mãos do outro, desresponsabiliza-se pelo sucesso da relação, o que inevitavelmente levará ao seu irremediável fim. Esta situação só ocorre por um sentimento de orgulho que deriva da já mencionada ferida narcísica e daí a recusa de regressar à mesma pessoa que o feriu, o que poderia ser visto como uma atitude masoquista.

A resolução desta fase pode, ainda, complicar-se se a declaração de fim é ambígua ou dúbia – Se calhar era melhor terminarmos. Não estou certo sobre a nossa relação. Esta ambiguidade pode derivar de um mal-estar na relação, mas com a dificuldade acrescida de não identificar o problema ou da pessoa não se sentir capaz de tomar a decisão do término. Pode, então, ocorrer um conformismo com a situação, esperando que esse mal-estar se resolva por si ou adotar um comportamento que leve o parceiro a sentir o mesmo, tornando-se mais fácil a resolução.

Contudo, a declaração ambígua do término condicionará toda a relação a partir desse momento, levando o parceiro a ter sentimentos ambivalentes, como a investir na relação, mas, simultaneamente, a desinteressar-se e a aceitar o fim anunciado, como também leva a uma situação de arrastamento da relação, impedindo a sua evolução, mas também à suspensão de vários aspetos da vida de cada um.

Nesta situação, as promessas de amor ou de vontade de continuar e resolver contrastam com a ambivalência da desmotivação do casal e da intensidade das discussões ou a uma diminuição progressiva da comunicação o que, invariavelmente, levará ao seu fim, visto que se nenhum dos dois avança para o fim, o desgaste da relação implicará, naturalmente, esse mesmo.

Esta suspensão ou adiamento do fim é penosa para ambos, porque põe em causa o futuro de cada um e do casal, e havendo uma expectativa difusa em relação ao futuro, 12

o desconforto entre os dois cresce – a suspensão temporária é, normalmente, manifestada pela expressão vamos dar um tempo.

Adianto que as estratégias que podem resolver esta situação, ou seja, quando nenhum toma uma decisão, é permitir que a resolução seja determinada (e, por isso, responsabilizada) por acontecimentos externos: o enamoramento ou atração por outra pessoa (visto como um plano B ou plano de fuga), o distanciamento geográfico (o que enfatiza o distanciamento afetivo e comunicacional) ou o próprio distanciamento da vida de casal (quando ocorrem mudanças de hábito na vida pessoal de cada um para evitar o contacto físico ou comunicacional).

Por esta razão, e porque uma relação em suspensão é, normalmente, um mal adiado, o término deve ser tão eficaz como cirúrgico, amenizando as dores resultantes, tal como é recomendável retirar rapidamente um penso de uma ferida, e não demoradamente com uma dor prolongada.

Por fim, a negação situacional poderá levar a comportamentos radicais. A incapacidade de aceitar o rompimento pode estimular à persistência constante do parceiro em alterar a intenção do outro, desembocando num comportamento de perseguição e obsessão, que muitas vezes se resolve pelo distanciamento físico e geográfico.

Outro caso de extremismo, mas sem a mesma violência exercida sobre o outro, exemplifica-se pelo desenvolvimento de uma psicose, a recriação e vivificação de uma realidade alternativa em que o casal permanece numa relação. Ocorre, neste caso, a generalização da negação da situação para uma negação total da realidade. A lógica é clara: Se não consigo aceitar esta situação, nego todo o seu conteúdo real e substituo por uma perceção subjetiva.1

Em síntese, a fase de negação situacional deriva do conflito entre a vontade de conservação e a vontade de desvinculação, quando os dois estão em desacordo quanto à continuação da relação ou ambos adiam o fim da mesma. A resolução pode ocorrer pela resolução dos problemas identificados na relação2 e, assim, esta é conservada ou, quando não acontece, inicia-se o processo de luto amoroso.

1 Uma psicose coletiva ou a dois. Por exemplo, quando o casal sustenta a sua relação com base numa vida pública agitada de sucessivos eventos, alimentando-se da imagem social que criaram como casal para a sobrepor ou substituir a vida íntima e afetiva. A clássica imagem de um power couple que depois de uma festa de glamour sendo admirados e invejados pelos outros, regressam a casa, despem o fato e o vestido, e cada um se bifurca em dois quartos separados.

2 A conservação da relação ocorre quando o casal consegue identificar, objetivamente, o problema e, por sua gestão, consegue resolvê-lo. Quando o problema deriva de uma traição, de mudanças de projetos de vida ou do desvanecimento do interesse amoroso é muito provável que a situação seja irremediável.

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2. Negação afetiva

Quando há um enfrentamento da situação, e não necessariamente a sua aceitação per se, porque esta só é conseguida no final do luto amoroso, o mecanismo de reação é reflexivo, assim como quando colocamos a mão no fogo e, imediatamente, a retiramos. O mesmo ocorre com todas as dores psicológicas, perante o estímulo da dor, afastamonos e, a posteriori, evitamos. O evitamento aparece nesta fase como elementar e dinamizador de todo o seu desenvolvimento.

Encarando a impossibilidade de se reunir com o objeto de prazer e a perceção de que este implicará sofrimento, ocorre uma dicotomia entre a vontade de reunião e a vontade de separação, de querer ultrapassar. É este conflito entre reunião e separação que leva o sujeito a momentos de euforia e disforia, de euforia quando procura aliviar o sofrimento ou a suspendê-lo por momentos, ao recusar tempos mortos, que são momentos de introspeção e ruminação da situação trágica, o que leva à frequência de festas e saídas e ao consumo de substâncias psicologicamente entorpecedoras3; simultaneamente, ocorre-lhe momentos de disforia quando não consegue manter uma permanente distração, quando momentos antes de adormecer surgem-lhe memórias e vontades, quando lhe é despoletada uma memória da relação por algo que percecionou, resultando, periodicamente, em estados de apatia, desmotivação e desmoralização.

Esta dialética só é alimentada pela insistência do sujeito em negar os seus sentimentos de tristeza, solidão, melancolia, de negar que uma pessoa lhe possa ter causado essa sua situação trágica, recusando aceitar a naturalidade dos sentimentos negativos derivados de um rompimento.

A lógica é clara: se eu aceitar as emoções vou sofrer, logo procurarei afastarme delas, negando-as. Esta lógica revela-se pelas declarações habituais e claríssimas sobre a autonegação emocional, como está tudo bem comigo, já a ultrapassei; agora só me quero divertir. Que se complementam com a negação da própria figura da dor: já não penso mais nela/e; já a esqueci; ela/e é passado; já estou noutra. A negação completa da existência do outro serve este propósito: se negarmos aquilo que nos provoca dor, deixamos de a sentir – o que não é verdade.

3 Este esquema comportamental é evidenciado pela publicitação nas redes sociais de que o sujeito está feliz e a aproveitar a vida em festas e viagens.

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O extremo desta fase leva-nos à completa negação dos sentimentos negativos, envolvendo-se num estado emocional de indiferença, principalmente em relação ao sexo oposto, acumulando vários casos sexuais para substituir esse vazio emocional. O caso oposto é a afirmação total dos sentimentos negativos e a sua somatização, permanecendo num estado depressivo profundo complementando com isolamento social, descuido da higiene pessoal e rememoração do fim da relação – o que se poderia designar de um estado tipicamente romântico.

A resolução desta fase implica a gestão do conflito emocional entre vivenciar os sentimentos negativos e recusá-los, o que implica a tomada de consciência de que o sofrimento não só é natural, mas um imperativo para a resolução do luto, assim como a perceção de que a vivência do sofrimento será provisória e restituidora do estado emocional.

Em síntese, podemos afirmar que nesta fase de negação sentimental, o sujeito procura negar o que sente para evitar o sofrimento, recorrendo a distrações que entorpeçam a memória e o raciocínio, só podendo esta fase ser superada se existir um vivenciamento do sofrimento na sua plenitude atribuindo ao mesmo um sentido e objetivo, o sentido de que é natural que se sofra, mas que é essencial sofrer para que, paradoxalmente, se possa deixar de sofrer.45

4 No próximo capítulo exponho as diferentes formas de atribuir significado, que me parecem inválidas. Só esta atribuição de significado é que me parece saudável, porque procura lidar com a realidade sem subterfúgios.

5 Em todos os estádios do luto amoroso, o desejo de não sofrer é transversal. Parece-me, aliás, um dos principais obstáculos à superação amorosa.

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3 Depressão ativa

Apesar do significado e objetivo que possamos atribuir à dor é inevitável atribuir-lhe, também, uma causa, um responsável – quem é o responsável pelo meu sofrimento? Eu ou ele/a? O conflito desta fase funda-se neste exato conflito: entre a culpabilização heterónoma/externa (ele/a, os outros, o mundo) e a culpabilização autónoma/interna (eu).6

A culpabilização heterónoma/externa ocorre quando identificamos como causa do nosso sofrimento e, por sua vez, a causa do fim da relação, o outro. Este outro pode ser o parceiro, Acabamos, porque já não gostas de mim; Acabamos, porque és inseguro/a. Os amigos ou familiares do parceiro, Terminamos, porque os teus amigos não gostam de mim; Terminamos, porque os teus convenceram-te a terminar a relação; Ou o próprio mundo, Terminamos, porque estão todos contra nós; Terminamos, por causa do trabalho; Terminamos, por causa da pandemia.

Apesar de existirem estas variáveis, os efeitos da culpabilização externa atuam em direção ao antigo parceiro, por isso foquemo-nos no comportamento dirigido a ele. Quando acontece esta culpabilização, o rejeitado desresponsabiliza-se do seu comportamento e dos erros que cometeu, e demoniza o antigo parceiro como a causa principal do insucesso da relação. Por esta razão, é atribuída esta causa também ao sofrimento, Eu sofro por causa dele/a; Estou assim por causa dele/a; Ele/a é culpado/a O problema desta atribuição é que resultará num sentimento de injustiça aliado à cólera, frustração, raiva e desespero que, em situações extremadas, poderá levar à violência verbal ou física, como forma de se vingar pelo sofrimento causado pelo parceiro, Se eu não estou feliz, ele/a também não pode estar. Este estado emocional capitaliza-se em comportamentos de obsessão, perseguição do parceiro ou mesmo o homicídio justificado pela lógica perversa da vingança.

Relativamente à culpabilização autónoma/interna, ocorre quando não tendo sido nós a declarar o fim, culpabilizamo-nos pelo seu fim. Apesar de uma relação implicar uma dinâmica interpessoal, em que, normalmente, há responsabilidade dos dois, o rejeitado atribui a si a única causa, Se eu não fosse assim…; Se eu tivesse feito…; Não estava à altura dele/a. Esta autoavaliação hiperbolizada leva a um estado angustiante e

6 Utilizo a asserção da culpa no seu sentido mais trágico e católico e não da responsabilidade, porque o seu aspeto é negativo, de condenação, pejorativo. A culpa surge da dor e da frustração, enquanto que a responsabilidade é já um movimento psicológico racionalizado e pragmático, o que nesta fase não acontece.

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de humilhação, radicalizando-se em comportamentos de súplica, Vamos voltar, eu juro que vou mudar; Volta para mim, que eu já sou outro; Desculpa-me pelos meus erros, não volto a errar

O comportamento de súplica deriva desta autoperceção denegrida e de inferiorização, considerando-se a si próprio como sem valor e que o seu valor só pode ser encontrado pela aceitação do parceiro.

A vivência da angústia pode, no seu extremo, levar ao comportamento autodestrutivo ou à automutilação, porque se eu sou o culpado eu tenho que pagar pelos meus erros, sendo que o facto de ter sido rejeitado pelo outro não é suficiente, é necessário também rejeitar-me a mim próprio.

A manifestação deste tipo de comportamento autopunitivo manifesta-se em dois sentidos: projetar visual e materialmente essa dor fantasma como um comportamento tipicamente romântico, mas também, à semelhança do princípio utilizado na psiquiatria com os choques elétricos, o de provocar dor noutra região do corpo, para que deixemos de nos focar na dor anterior. A substituição de um sofrimento pelo outro, mas de um sofrimento curável, passageiro, suportável. Enquanto o coração se rasga por dentro e não consigo agarrá-lo e sarar a ferida, rasgo a pele, vejo a ferida aberta, o sangue e, por momentos, aquela é a dor mais importante, é aquela que tenho de suportar e posso e consigo, e esqueço a dor interna.

Por tendência psicológica, associamos o real ao visível, é preciso ver para crer. Por isso, aqui está a ferida sob a minha pele, a prova da ferida interna, vejam o tamanho da minha dor, extremado na tentativa de suicídio, vejam o quão real é a minha morte, o quão insuportável é viver sem ela/e

Deste modo, podemos constatar que o conflito inerente a esta situação ocorre entre a culpabilização externa e interna, sendo que só pode ser resolvida, somente, pela recusa da culpabilização, porque se for externa o sujeito recusa a sua responsabilidade e autoria no desvanecimento da relação, e se for interna leva à enfatização e aprofundamento de um estado já por isso angustiante, dificultando a superação da fase. A resolução ocorre pelo distanciamento afetivo, evitando o contacto com a pessoa e a sua demonização, assim como a substituição da culpabilização pela responsabilização.

A revisão racional da relação, os erros cometidos e as razões (quando existem objetivamente) que levaram ao seu fim, devem ser compreendidos de forma racional com o objetivo de se conformar com a sua inevitabilidade. Uso esta expressão forte, porque um dos fatores que impedem a persecução do luto é a constante esperança de 17

que a relação pode voltar ou que ainda há uma hipótese, mesmo que irreal, de existir um recomeço. É verdade que tudo é possível, e todos nós temos histórias românticas de regresso à relação, contudo, adotar esta postura de que sempre é possível voltar, impede uma eficaz vivência do luto e obstaculiza a resignação, necessária perante a situação

factual do fim da relação.

Acrescento, ainda, um ponto pertinente sobre a possibilidade da aprendizagem que deriva do fim das relações e a atribuição de significado a esse mesmo.

Independentemente da natureza da culpabilização, procuramos sempre, através da culpa, adotar estratégias de atribuição de significado para lidar com o sofrimento, não só amoroso, visto ser mais fácil vivenciar uma dor que tem um objetivo ou um sentido, do que uma dor aleatória, acasuística e sem sentido. Por esta razão, geralmente, atribuímos um significado cósmico ou pessoal.

Quando dizemos Estava destinado; É o mundo a avisar-me que devia ter terminado. Estas expressões manifestam a justificação do nosso sofrimento por uma certa ordem cósmica, tornando-se mais compreensível e conformável aquilo pelo qual estamos a passar.

A outra justificação mais recorrente, e que não é autoexcludente da razão acima, é a atribuição pessoal de que o nosso sofrimento serve para o nosso crescimento pessoal, para que, com esta aprendizagem, consigamos lidar melhor com as futuras relações (Preciso de sofrer para aprender; O que não me mata, torna-me mais forte; Cresci muito com a minha antiga relação; Depois do fim, sou outra pessoa; Já não vou cair nos mesmos erros).

O problema desta atribuição de significado cósmico ou pessoal é que, pareceme, ser mais um mecanismo de defesa do que propriamente uma gestão eficaz com a própria realidade. Primeiro, nem sempre quando uma tragédia nos ocorre, ela tem um significado. Por exemplo, o parceiro decide viver no estrangeiro e, por essa razão, a relação termina. Que significado tem isto? É o universo a dizer que não deveriam estar juntos e, por isso, por uma mão invisível levou o parceiro para o estrangeiro? Podemos aprender alguma coisa deste acontecimento? A não confiar nas pessoas, porque elas podem ir viver para o estrangeiro e deixar-nos? Não há nenhuma razão que nos permita atribuir significado a esta e muitas outras situações, principalmente quando não as controlamos. Claro que teremos sempre a tendência psicológica a atribuir significado mesmo quando este não existe, mas esta atribuição é impor à realidade uma qualidade que não faz parte dela.

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Em segundo, quando uma relação termina, procuramos identificar as razões para o seu fim para, desse modo, aprendermos a não cometer os mesmos erros. Contudo, como podemos verificar, é sempre difícil apontar uma única causa, até porque normalmente são várias causas intrincadas. Simultaneamente, essas mesmas causas numa relação podem ser determinantes para o seu fim, como para outro não serem, porque esta situação depende necessariamente da gestão do casal em relação aos seus problemas. Quer isto dizer que as razões para o fim são, na maioria das vezes, ambíguas, imprecisas e nada objetivas. Quem já terminou relações sabe a dificuldade que é arranjar uma ou várias razões para justificar o fim ao parceiro, porque sabe que ao dá-las de forma objetiva elas poderão, hipoteticamente, ser resolvidas. E quando se termina não se procura resolvê-las, por isso, as razões, para que possam parecer válidas, expressam-me nestes exemplos Já não gosto de ti; Não somos compatíveis; Estou cansado/a; Preciso de mudar de vida; A culpa é minha, não é tua (este clichê é a perfeita razão para terminar uma relação, porque não permite ao outro atuar e resolver, é uma questão que, sendo totalmente subjetiva, só pode ser resolvida pela pessoa em questão).

Estas dificuldades de justificar a atribuição de significado complementam-se com a minha tese de que não há aprendizagem derivada do fim de uma relação ou que, a existir, é profundamente inútil e insipiente nas próximas relações.

Centrando-me no aspeto do significado relativo ao crescimento pessoal, acontece que não é possível aprender por estas razões: Primeiro, mesmo identificado uma causa objetiva, esta não possibilita nenhum tipo de aprendizagem. Por exemplo, quando o parceiro trai e a relação termina por causa disso, o que podemos aprender? A não confiar no outro? A sermos mais cautelosos? Então devemos mudar o nosso caráter para uma pessoa desconfiada e suspeita só porque o nosso parceiro nos traiu? Estas possibilidades de aprendizagem não me parecem válidas, principalmente porque se foi o outro que errou, e nós não podemos controlar o outro, então é o outro que tem de mudar, não nós. Contudo, é usual, principalmente nesta situação, que a pessoa de tão magoada se puna a si própria pelo erro do outro, o que é um absurdo, porque aquele que é traído não tem nenhuma responsabilidade nesta situação.

Em segundo, por vezes é tão difícil identificar os erros e as causas que levaram ao fim da relação, que não podemos derivar deles uma lição de aprendizagem. Acontece, também, que esses erros cometidos não são, geralmente, individuais, mas derivam da própria dinâmica da relação, sendo que esta dinâmica mudará noutra

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relação. Ou seja, mesmo que existam duas relações com os mesmos erros, uma pode terminar e outra não, porque não é possível comparar relações nem impor uma fórmula que se aplica de igual forma a uma e a outra, observamos isto pela idiossincrasia das diversas relações em que umas são saudáveis e outras não, e os erros são os mesmos.

Por esta razão, pela idiossincrasia das relações, estas são incomensuráveis, isto é, ao terem uma dinâmica particular não podem ser comparáveis, o que impossibilita que não possamos aprender com uma relação um comportamento para aplicar noutra.

Assim, mesmo que haja uma possível aprendizagem numa relação esta não é transferível para outra, até porque, quando temos uma nova vinculação amorosa, tendemos a apagar as memórias ou traumas da anterior, procurando não interpretar esta nova relação com as lentes da anterior. E quando o conseguimos fazer justificamos isto dizendo Esta é diferente; É especial e, por isso, não se compara a nenhuma outra. Quando o fazemos, estamos a afirmar que aquilo que supostamente aprendemos não se pode aplicar à nova relação, e quando tentamos aplicar, a reação do parceiro é tipicamente esta Eu não sou o/a teu ex. Ou seja, não me trates como trataste o outro, porque eu sou diferente, e a nossa relação é única e especial.

Por outro lado, se efetivamente aprendêssemos, eu não teria observado recorrentemente homens e mulheres entre os quarenta e os cinquenta anos, divorciados, com um comportamento tipicamente adolescente, aliás, uma hiperbolização desse comportamento, por causa da sua mentalidade excessivamente autocentrada, revelada pelas expressões Não preciso de ninguém, estou bem sozinho/a; Não confio em ninguém, só em mim mesmo/a; Se ele/a quiser, vem atrás. Eu não vou atrás de ninguém.

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4. Depressão reativa

O cansaço e as resoluções inglórias que derivam da fase da depressão ativa, uma fase de desespero, para reabilitar a relação amorosa, ao saírem frustradas imprimem no sujeito rejeitado uma atitude de desistência sobre a antiga relação, mas, também, sobre o próprio mundo. Se compreendemos que uma relação amorosa estrutura o nosso projeto de vida é natural que se a primeira é anulada, a segunda também o-é. É previsível que a resolução desta situação arruinada seja a de reestruturar o projeto de vida e imprimir esforços em recondicionar os seus objetivos. Contudo, para que este esquema de ação ocorra é necessário que o esquema emocional do sujeito esteja estruturado. Para que tal reestruturação aconteça, o sujeito primeiro vivencia a totalidade da destruição da sua vida, o vazio que o preenche.

Neste conflito que existe no intervalo de um antigo e novo projeto de vida, experiencia-se uma depressão reativa ou passiva, uma espécie de recobro depois das ações infrutíferas que foram tomadas. Por causa desta insipidez das ações, o sujeito agora internaliza as suas consequências negativas manifestadas por sentimentos de humilhação e vergonha Porquê que fui tentar só para ser rejeitado outra vez? Porquê que me fui humilhar? Não fui capaz de a reconquistar, não valho nada! Não quero voltar a sair de casa, tenho vergonha de ser visto, de enfrentar o mundo.

Esta autocondenação em concomitância com a desesperança levam o sujeito a evadir-se do mundo e a voltar-se para si, como um animal ferido aninhado a lamber as próprias feridas. Refugia-se no próprio quarto – lugar fortaleza protegido de todos os estímulos externos -, evita qualquer contacto social – não pretende lidar com outras pessoas, porque não se encontra em condições para socializar -, começa a desinvestir nas suas tarefas e responsabilidades (sociais, laborais e de higiene pessoal) e prolonga um estado letárgico - manifestado nos dias passados a dormir.

Estes aspetos comportamentais confluem numa circularidade que se retroalimenta, por exemplo, a evasão estimula à própria evasão, a letargia enfatiza e intensifica a própria letargia, adensando um estado que é autodestrutivo para o sujeito.

A par destes comportamentos, o sujeito apresenta uma fadiga que deriva da própria situação de apatia e lentificação, e uma impotência que resultado num estado melancólico e anestésico. As expressões de Nada vale a pena; Já nada me interessa; Não quero saber de nada; Não tenho razões para viver; são expressões comuns nesta fase, só sendo resolvida quando próprio sujeito a compreende como um momento

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necessário, mas temporário, para a sua própria reabilitação. A situação torna-se problemática quando há um aprofundamento prolongado deste estado e o sujeito fica capturado pela mesma, exigindo-se, então, uma intervenção mais direta e violenta para o próprio sujeito.

A resolução natural e comum ocorre quando o sujeito se mantém vivo pelas suas obrigações sociais, desde logo, o emprego. Estas obrigações que o obrigam a sair de casa e lhe são necessárias à sua sobrevivência, evitam que o estado depressivo se prolongue e se adense, sendo, pois, necessária à resolução um contínuo, mesmo em condições mínimas, cumprimento das suas responsabilidades.

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5 Aceitação funcional

A partir desta resolução provisória através do cumprimento das responsabilidades sociais, evitando que o sujeito se feche em si próprio, o sujeito começa por recondicionar o seu projeto de vida e as suas prioridades, mas isto só acontece por uma recanalização da energia sexual – estruturante na relação amorosa. É vulgar que após uma relação amorosa, as pessoas façam uma viragem de cento e oitenta graus na sua vida, apareçam como completamente renovadas e focadas em si próprias. Se o seu ego foi completamente fragmentado pela relação anterior é agora natural que se procure restituí-lo e, para isso, é necessário que se proceda a um comportamento que o inflame e estimule – é uma fase puramente autocentrada.

O ego torna-se protagonista de todas as ações, movido pela energia sexual, demonstrado por um excessivo foco no emprego7, nos projetos pessoais – retomar ou investir em novos hobbies -, no cuidado com a sua higiene, com a sua aparência –mudança de penteado, ida ao ginásio, etc. -, com um desejo constante e perpétuo de prazer – contrário ao estado anterior de anedonia. Esta mudança é reforçada pelas gratificações sociais e pessoais que são retiradas do sucesso e da prática destas atividades, restabelecendo um ego ferido e uma autoestima e autoimagem anulada. Expressões como Sinto-me eu novamente; Sinto-me bonito/a; Ele/a não sabe o que está a perder; Ele/a já não me interessa, agora estou focado/a em mim; Eu sou a pessoa mais importante na minha vida; Agora sou eu que importo, chega de me entregar aos outros

O curioso deste repentino narcisismo é que parece ser uma superação efetiva da relação anterior quando, na verdade, não passa de um encobrimento das feridas narcísicas que ainda estão a sarar. Seria difícil olhar para um homem ou para uma mulher que é ativo nas redes sociais mostrando a sua felicidade, o seu corpo em forma e a conquista dos seus objetivos, e não considerar que é uma pessoa perfeitamente resolvida. Contudo, se analisarmos atentamente, conseguimos depreender que todo este movimento tem um só objetivo: restituir um ego fragmentado. É a partir do sofrimento que ainda sente e do vazio que não foi preenchido emocionalmente que esta pessoa

7 É o movimento que ocorre na sublimação freudiana, isto é, reorientar a satisfação dos nossos desejos para uma situação ou objeto que os possa efetivamente satisfazer. Se o meu desejo por ela/e não pode ser satisfeito com ela, transfiro essa energia/pulsão/vontade para outras atividades como o trabalho. Esta canalização emocional pode ser observada no processo artístico, quando o artista é impulsionado a criar pela energia derivada das suas frustrações.

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procura estratégias de remedeio para se sentir valorizada e considerar que superou o fim da relação, porque agora é outra pessoa ou a melhor versão de si. 8

Há um aspeto vingativo em todo este comportamento, uma expressão que é recorrente em tom de gozo é a Ele/a não sabe o que perdeu como se toda esta mudança ocorresse não para saudavelmente restituir o ego, mas para provocar ciúmes no outro.

Não há, sem dúvida, melhor estímulo à concretização dos nossos objetivos, que fazê-lo como vingança em relação ao nosso antigo parceiro. É essa a causa da necessidade de demonstração dos seus progressos nas redes sociais, é essa a causa para mostrar que está a ter sucesso, não é porque somente isso lhe agrada, mas é porque, no raciocínio do sujeito, isso desagradará ao antigo parceiro. O esquema é: Empodero-me para que o outro se sentia fraco e não Empodero-me para que eu me sinta realizado.

O contrário também pode ocorrer quando o sujeito não empreende numa transformação completa, mas regressa funcionalmente às suas responsabilidades laborais e sociais, restituindo o seu ego de uma forma mais silenciosa e interior. A exteriorização desta reabilitação tem o único fim de mostrar a esse outro o valor do sujeito rejeitado, como um puro movimento de retaliação.

Em qualquer um dos esquemas comportamentais, exteriorização ou interiorização da mudança, ocorre o regresso funcional aos seus deveres – fase da aceitação funcional – e a aceitação do fim da relação e da impossibilidade do seu regresso.

Contudo, não deixa de ser uma fase em que o outro continua bem presente na reconfiguração do seu eu, é necessário, para que a superação ocorra, que esse eu esteja liberto das influências da relação passada.

8 Esta publicitação da sua “mudança exterior” tem por objetivo demonstrar a sua “mudança interior”, que é alimentada retroativamente pelos gostos e reações às suas publicações. Contudo, este comportamento ativo nas redes sociais é a procura do afeto público, do gosto dos outros para reabilitar a sua autoestima e autoimagem. Não é mais, pois, do que o raciocínio de que aquele que não tem afeto na vida privada, procura-a na vida pública.

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6. Superação

A fase da superação só ocorre, efetivamente, se existir um enfrentamento com o antigo parceiro, na mesma medida que a solução das fobias se realiza pelo enfrentamento com o próprio objeto da fobia. Não havendo este enfrentar do passado, o desfecho saudável da relação (closer) não é possível, correndo o risco, se não ocorrer, do sujeito se conservar numa situação de longos anos com esse espectro do antigo parceiro a gravitar. O desfecho é necessário para que, através de um diálogo, ocorra o esclarecimento de pontas soltas da antiga relação e se desfaça a imagem de monstro do antigo parceiro que só existiu para trazer dor e sofrimento. Só através deste diálogo de tréguas é que a superação é possível e uma tranquilidade possa ser restituída no sujeito.

Contudo, o comportamento comum é a fuga a esta situação de desfecho, à persistência de que não é necessário falar com essa pessoa porque, novamente, se estará a expor a uma situação de sofrimento e fragilidade; de que ao pedir este desfecho se está a dar armas ao outro para uma nova rejeição e, novamente, a uma nova humilhação; ou, ainda, que se sinta medo de novamente cair na tentação de desejar restabelecer a relação.

Estas são preocupações aceitáveis e razoáveis, porém, são somente razões para que o sujeito permaneça num estado irresolúvel da sua condição que se manifesta, por exemplo, na dificuldade em avançar para uma nova relação. É curioso que o principal motivo para o falhanço de todas as relações após o fim da relação, seja a frustração que o sujeito encontra nesses novos parceiros, porque continuamente procura nos novos parceiros a aparência e o comportamento do parceiro da relação anterior. Isto ocorre, porque não conseguiu, ainda, superar a anterior relação. É como se diz, coloquialmente, Procuro-a/o nos outros

Sabendo desta impossibilidade de reencontro do fantasma da relação anterior nos novos vivos, o sujeito é obrigado a encarar o desfecho como uma necessidade.

Este desfecho, como já referido, ocorre num diálogo concertado para resolver de vez a antiga relação, através de certos esclarecimentos que persistem no sujeito rejeitado, como a explicação de certos comportamentos do outro, e para ver no outro que, efetivamente, é um ser humano imperfeito e não o monstro de Frankenstein que tem vivido e assombrado a memória do sujeito.

Outros exercícios de enfrentamento, como o sujeito regressar a lugares marcados pela memória da antiga relação ou rever fotos do antigo parceiro, são exercícios

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intensos e desconcertantes, mas fundamentais para que o sujeito verifique se, efetivamente, ainda sente um ímpeto de paixão ou já lhe causa indiferença. A insistência em enfrentar estas situações tem o único objetivo de gerir as emoções de nostalgia e de frustração e senti-las como indiferentes ou não causadores de vontades contrárias à resolução da antiga relação.

Os principais sentimentos que desvanecem na superação são o ódio, a humilhação e a frustração: o ódio por aquela pessoa ter desencadeado o estado de sofrimento, a humilhação de ter sido rejeitado e ignorado e a frustração de não ser possível a reconciliação amorosa. Significa isto que o ódio não é nunca o contrário do amor, é o resultado da ausência de concretização do amor, mas não o sentimento paralelo. A indiferença, o já não sentir um impulso ou nostalgia ao ver o antigo parceiro, é o sentimento comum que se observa naqueles que já ultrapassaram uma relação.

Ocorrendo, assim, o esvaecimento dos sentimentos negativos, com o resultado da indiferença sentimental resultante do luto, e a imagem monstruosa do antigo parceiro, o sujeito encontra-se livre para investir em novas relações significativas - e não temporárias ou de refúgio - que não estejam assombradas pela antiga relação.

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