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CIDADES
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a crítica MANAUS, DOMINGO, 25 DE JANEIRO DE 2015
a crítica MANAUS, DOMINGO, 25 DE JANEIRO DE 2015
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Pai denuncia tráfico de órgãos no AM EM MANAUS
Desde2013NaeffRibeirotentaprovarqueofilhodele,mortoaos7anosemumhospitalpúblico,teveosrins‘roubados’porquadrilhadecirurgiões Winnetou Almeida
LUANACARVALHO cidades@acritica.com
Umpaiconvictodequeosrinsdofilho foram retirados para alimentar umarededetráficodeórgãos.Esteé o drama do professor Naeff Ribeiro, 58, que há dois anos tenta provar queofilhoBórisdeAraújoSilva,que tinha 7 anos quando morreu, foi vítima de uma quadrilha que, segundoele,atuanosProntosSocorrosInfantisdoEstadodoAmazonas. Depois de dez dias internado no Hospital e Pronto Socorro da Criança da Zona Oeste, onde deu entrada com vômitos e diarreia (ver box), a criançaveioaóbitonodia13defevereiro de 2013. Desconfiado das cirurgias que estavam descritas no prontuário, Ribeiro solicitou detalhes dos procedimentos médicos e atéaexumaçãodocorpo,quelevantouasuspeitadequeofilhodelefora enterradosemosrins.“Noprontuárioconstamprocedimentosquenão autorizamosfazer.Nãosabíamosde todasaquelascirurgiasqueelesalegam. Então notei que havia alguma coisa errada e descobri que meu filho caiu nas mãos da quadrilha que tiraosórgãos”,denunciou. Elecontouqueumexameradiológicodetóraxfoifeitodoisdiasantes da morte de Bóris mas não foi entregue à família. “Vi no prontuário que foram feitos raios-x e solicitei os exames que fizeram antes e depoisdascirurgias.Nãomeentregaram nada. Esta seria a única coisa que provaria se meu filho estava ounãocomosórgãos”. ASecretariadeEstadodeSaúde (Susam)informouqueo“examefoi realizado no sistema convencional da época, utilizando película-revelador e fixador, com caraterísticas voláteis”. Segundo a secretaria, o “filmeapagou”eporissoaimagem foidescartada. Depoisdefazeradenúnciano8º DistritoIntegradodePolícia(DIP),o professor solicitou a exumação do corpo do filho. “Eles estão acostumados a fazer isso porque sabem que nenhum pai tem coragem de mandar desenterrar o filho pra fazerexumação”,relembra. EXUMAÇÃO
O exame foi realizado três meses depois.OlaudodoInstitutoMédico Legal(IML)apontaque“foievidenciada a presença de material compatívelcomcompressas”dentrodo corpodeBóris.Apósaretiradadesse material, foi encontrada uma bolsacoletoradeurina,“suturadaà aponeurose abdominal, compatível com técnica cirúrgica”, segundodetalhaoIML. Sobre a suspeita de que os rins foramretirados,operitolegistadescreveu que “pelo estágio de decomposição avançado”, a identificação de tecidos (órgãos) ficou prejudicada. No entanto, Naeff afirma que acompanhou todo o processo de
Frase
Entrevista > Paulo Airton Pavesi Gerentedesistemaslutaháquase15anoscontraa‘máfiadotráficodeórgãos’
Não vou desistir, pois a alma não descansa enquanto não houver justiça”
“Nunca recebi apoio nenhum” Divulgação/Arquivo Pessoal
Em 2000, Paulo Airton Pavesi, 46, trouxe à tona uma denúncia de que médicos do Hospital Pedro Sanches e da Santa Casa de Misericórdia, ambos em Poços de Caldas (MG), mataram o filho dele, Paulo Veronesi Pavesi - o “Paulinho” -, na época com 10 anos, para abastecer o tráfico de órgãos. Após 14 anos de investigações e denúncias, dois médicos foram condenados e presos no ano passado, em MG. No entanto, um mês depois, Celso Roberto Frasson Scafi e Cláudio Rogério Carneiro tiveram o pedido de habeas corpus concedido pela Justiça. Ele, a exemplo do professor Naeff Ribeiro, luta sozinho para provar que o filho foi vítima de uma rede criminosa.
Naeff Ribeiro Professor
exumaçãoequeabolsafoicolocada parasubstituiroórgão. No laudo médico emitido pela Susam, o procedimento em que a bolsa foi suturada não foi descrito. “A bolsa coletora estava no lugar de umrimdacriança.Comoessabolsa foiparardentrodelesenãoautorizamosenemsabíamosdesteprocedimento?”,questionouNaeff. EledenunciouocasoaoMinistério Público Estadual (MPE-AM), e o juizAnésioRocha,da2ªVaradoTribunal do Júri, declinou a competência do caso a “uma das varas criminaiscomuns”,umavezqueosuposto crime não apresenta caracteristicas de homicídio doloso consumado, de acordo com a decisão. O processo criminal está “parado” no setorde“distribuição”daJustiça. Ribeirotambémdeuentradaem um processo cível de número 0635920-10.2014.8.04.000, que tramita na 3ª Vara da Fazenda Pública Estadual, onde ele processa o Estado e pede uma indenização de R$1milhãopordanoseperda.
Como desconfiou que seu filho foi morto para retirada dos órgãos? Meu filho sofreu um acidente e foi levado para o hospital. Quando recebi a conta, após a morte dele, percebi dezenas de materiais que estavam sendo cobrados e que não tinham sido usados. Ao questionar a conta, tive acesso ao prontuário e todo o assassinato estava descrito lá, em detalhes.
‘SEMAPOIO’
Incansável, o professor alega que nenhuma autoridade se dispôs a ajudá-lo na investigação. “Já pedi ajuda de tantas pessoas. Fui na delegacia, no Conselho Regional de Medicina,naCâmaraMunicipalde Manaus, na Assembleia Legislativa e nada. A única certeza que tenhoéquenãovoudesistir,poisaalma não descansa enquanto não houverjustiça”,lamentou. OUTROCASO
Embora Naeff se sinta só, esse não é o único caso de um pai que denuncia o tráfico de órgãos no Brasil. Assim como ele, o gerente de sistemas Paulo Airton Pavesi denunciou e luta há quase 15 anos contra uma ‘máfia do tráfico de órgãos’deMinasGerais. Sob proteção internacional do Governo Italiano por meio de asilo humanitário concedido em setembrode2008,Pavesiescreveuolivro intitulado “Tráfico de Órgãos no Brasil: o que a máfia não quer que vocêsaiba”.Apublicaçãodahistória com pouco mais de 400 páginas foi censurada, mas é disponibilizada gratuitamentenainternet.
Há dois anos o professor Naeff Ribeiro se empenha na elaboração de um ‘dossiê’, que reúne toda a documentação e prontuários dos exames e procedimentos cirúrgicos realizados no filho dele, Bóris, na época com 7 anos. Ele já denunciou ao CRM, ao MPE e à Justiça, mas até agora nada aconteceu
Saiba mais >> Transplantes
De acordo com levantamentos da Organização Mundial de Saúde (OMS), de todos os transplantes realizados no mundo, 5% estão relacionados diretamente com o tráfico de órgãos. O Ministério da Saúde informou que, em 2013 foram realizados 23,4 mil transplantes em todo o Brasil. Atualmente, 38,4 mil pessoas estão fila de espera de órgãos para transplantes no País.
Menino foi levado ao hospital com vômitos
Laudo diz que criança não tinha um rim No laudo médico emitido pelo Pronto Socorro da Criança da ZonaOeste,agerentetécnicaEriane Leal de Oliveira informou que, quando Bóris deu entrada no hospital,foiconstatadoqueeletinha “excesso de cicatrizes intraabdominais causadas por cirurgiarealizadaháseisanoscomretiradadeumrim”. No entanto, o pai afirma que o hospitalestámentindo.“Meufilho foi internado no mesmo hospital
quandotinha11meses,comproblemas intestinais. Nenhuma cirurgia renalfoifeita”. Ele apresentou a alta médica da primeiravezqueacriançaesteveno hospital(em2006).Afichadizquea criança teve alta dia 22 de setembro de 2006, com evolução “sem intercorrências”. No dia 25 do mesmo mês, Bóris passouporumexamedetomografia computadorizada do abdômen feita no Hospital Adventista de Manaus.
Estadohámaisdedezanos. “Omédicofalouqueiafazeruma cirurgiadeobstruçãointestinal,mas minha esposa discordou, já que o meninoestavacomdiarreeia.Maso médico explicou que haviam vários tipos de obstruções e autorizamos essacirurgia.Nadacomosrins”. Ainda segundo Naeff, a criança foilevadaparaaUTIdepoisdacirurgia. “O médico relatou que tinha dado tudo certo na cirurgia. Mas algumas horas depois o Bóris estava em
estado lastimável, do abdômen para baixo que nem um balão cheio de água,inchado”. Doisdiasdepois,acriançafoisubmetida a uma nova cirurgia, onde uma equipe médica composta por outros dois cirurgiões e uma anestesista do Icea constataram mais uma “fístula”(abertura)intestinal. No prontuário da Secretaria EstadualdeSaúde(Susam)constaque houvepioranoquadro,sendonecessáriaumanovacirurgiadia5eoutra
“Leveimeufilhoaumhospitalparticularparatercertezadequeestavatudobem.Aprovadequehospitalestámentindoéquetenhoolaudo da tomografia feita três dias depois que ele teve alta. Depois que denunciei,elesusaramadesculpa de que meu filho já não tinha um rim”.Oresultadodatomografiafeita pelo hospital particular apontavaqueacriança“possuiosrinstópicos”,sendoqueoesquerdoapresentavaaumentodevolume.
Winnetou Almeida
Apósmortedopaciente,famíliacontestouprocedimentosdoprontuáriomédico Deacordocomopaidacriança,Naeff Ribeiro, 58, tudo começou quando o garotocomeuumapizzadecalabresa e foi levado ao Pronto Socorro da CriançadaZonaOeste,comvômitose diarreia. Ele foi internado no dia 2 de fevereirode2013,às23h15.Nodiaseguinte,porvoltadas16h,Bórisfoioperadoporumcirurgiãoquefazpartedo Instituto de Cirurgia do Estado do Amazonas (Icea), sucessor da antiga Cooperativa de Cirurgiões do Estado do Amazonas, que tem contrato com
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Naff Ribeiro mostra foto da bolsa coletora de urina encontrada dentro do filho dele
dia 11. No entanto, Naeff afirma que sóforamrealizadasduascirurgiase que o pronturário foi fraudado para “esconder” a retirada ilegal dos órgãosdacriança.Segundoele,emum dos dias, a hora apontada no prontuário como o momento da cirurgia (10h50) era horário de visita e a famíliaestavacomacriançanaUTI. “Depois que meu filho morreu que fui ligar os fatos. No prontuário eles descreveram cirurgias que nunca foram feitas, o que me levaram a crer que eles só querem abrir as crianças para ganhar dinheiro. Porissopediaexumaçãodocorpo”. A reportagem tentou entrar em contato com os médicos citados no processo, mas o Icea informou que elesestãoviajandoenãopodiamser encontrados. A cooperativa informou que comunicaria os médicos, para que eles procurassem a reportagem, o que não aconteceu até o fechamentodestaedição.
‘Denúncia incoerente’ Gerente técnica do Pronto Socorro da Criança nega retirada de órgãos Evandro Seixas
A gerente técnica do Pronto Socorro da Criança da Zona Oeste, Eriane Leal de Oliveira, afirmou que a denúncia é “ incoerente”, uma vez que o paciente teve todo o tratamento necessário naquela unidade. “O senhor Naeff focou em cima de um erro de digitação de um laudo, onde escrevi que houve a ‘retiradadeumrim’.Quandonaverdade eu quis dizer que na primeira vezqueacriançaesteveinternada, em 2006, foi retirado uma ‘parte’ de um rim devido um abscesso. Quando ele questionou, me desculpeiecorrigioerro”. A médica explicou que Bóris de Araújo deu entrada no hospital em estadograve.“Assimquefoiatendido, o médico logo identificou que o caso era de urgência”. De acordo com Eriane, a primeira cirurgia foi feita para correção de uma fístula (abertura) intestinal, ocasionada pelas cicatrizes de uma operação feitaháseisanos. “Quando os médicos abriram a criança, viram que o intestino estavaperfurado.Nosdiasseguintes opacienteapresentoupiora,sendo necessário fazer outros procedimentos cirúrgicos. A equipe tentou até o último dia salvar a criança”,completou. Em relação à bolsa coletora de urina que não foi descrita no prontuário, a médica explicou que faz
Gerente da unidade, Eriane Oliveira alega que Bóris recebeu o atendimento devido
parte do procedimento da colocação de “tela de marlex”. “Uma tela de marlex faz com que o aparelho do abdômen não se junte, dá mais espaçoprointestinoqueestáinchado. Essa tela pode ser auxiliada por uma superfície de plástico, isso pode ser feito conjuntamente. É o que chamamos de ‘técnica de bogotá. Mas o médico cirurgião não achou necessário descrever no prontuário”,ratificou. Mas o médico que fez a cirurgia
relatouemdepoimentoaoConselho Regional de Medicina (CRM-AM), que a bolsa coletora de urina estéril foiusadaemsubstituiçãoda‘telade marlex’ e não “conjuntamente”. O CRM arquivou a sindicância e concluiu que “ao analisar o farto material contido nos autos, o médico denunciado agiu de forma correta quando realizou o procedimento cirúrgico e o CRM não encontrou nenhum indício de infração ao Código deÉticaMédica”.
Para quem você fez a primeira denúncia? Eu tentei entrar em contato com o Sistema Nacional de Transplantes, mas não localizei nenhum número de contato. Então enviei uma denúncia à ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos). Infelizmente a ABTO não tomou nenhuma providência e tentou me oferecer um desconto na conta do hospital para que tudo fosse esquecido. Eu descobri que o irmão do principal acusado pela morte do meu filho fazia parte da diretoria da ABTO. Enquanto isso, como você levou a vida? Minha vida parou. Eu e a mãe do Paulinho nos separamos pois eu não tinha mais tempo para nada. Passava dias estudando e denunciando o que estavam fazendo. As descobertas que fiz durante estes anos foram encaminhadas para todas as instituições que deveriam fazer alguma coisa, mas nunca fizeram nada. Em 2004 eu consegui instalar uma CPI em Brasília para apurar o caso do meu filho e diversos outros, resultado das minhas pesquisas. A pressão desta máfia é muito forte. Eles possuem braços em todas as instituições, inclusive na imprensa. Em 2002 passei a ser processado e ameaçado por médicos e procuradores. Não satisfeitos com as minhas vitórias, as ameaças de morte começaram a crescer em 2008. Foi neste período que percebi que era hora de deixar o País para poder continuar a luta. Você recebeu ajuda de algum órgão público na investigação do caso? Nunca recebi apoio nenhum. Ao contrário. Todas as portas foram fechadas. Eu visitei pessoalmente dezenas de instituições e todas disseram
que não podiam fazer nada. Em 2002 eu passei a enviar e-mails para todos os deputados federais em Brasília, quase que diariamente, demonstrando como o meu filho foi assassinado e como a máfia trabalhava fraudando o SUS. A CPI foi tumultuada porque a bancada dos médicos tentou impedir que as investigações andassem. O relatório final concluiu que eu tinha razão e indiciou nove médicos. Este relatório, assim como todos relatório de CPIs, foi enviado para o procurador Geral da República e desapareceu em seguida. Depois de muitos anos consegui descobrir que o relatório havia sido arquivado com a justificativa de que o Ministério Público faz o que quer sem ter que dar explicações a ninguém. Já ouviu relatos ou casos parecidos no Amazonas? A máfia nunca esteve tão atuante como agora. Com a impunidade em casos de tráfico de órgãos em que doadores estão sendo assassinados, criaram uma rede de proteção a esses marginais. Eles operam tranquilamente, com a ajuda da Justiça e do Ministério Público. O procedimento é fácil e também beneficia o governo. O Brasil tem poucos leitos de UTIs disponíveis. A máfia, percebendo isto, tem abreviado a vida de muitos pacientes para que leitos sejam liberados. Eu recebo com frequência muitas denúncias de tráfico de órgãos, inclusive do Amazonas. As pessoas me escrevem e pedem anonimato. Infelizmente não é possível ajudar anônimos a resolver um problema como este. Por que você acha que os casos são “abafados” ? Primeiro porque as pessoas que estão praticando este tipo de crime possuem escudos fortíssimos. Um escudo é o argumento de que se divulgarem casos como o meu, poderá atrapalhar a doação de órgãos, levando as pessoas da fila da espera a óbito.
Outro escudo é a influência política. Doação de órgãos traz votos. Há diversos deputados que são padrinhos destes traficantes com influência em muitas instituições. Com este braço político, eles conseguem impedir qualquer investigação mais detalhada. Segundo, porque este tipo de crime movimenta muito dinheiro, sem qualquer esforço. Após 14 anos, os médicos foram condenados e soltos um mês depois. Sua luta continua? A luta nunca vai acabar, exceto quando eu morrer. Os médicos já estão condenados, mas continuam soltos. Durante estes 14 anos, ficaram presos apenas 30 dias. Há ainda outros casos que estão sendo julgados e também o júri popular que deve acontecer em 2015 e que vem sendo adiado desde 2010 sem qualquer explicação. Fora do País, eu posso continuar a fazer as minhas denúncias, sem qualquer medo de retaliação. O que você diria para o professor Naeff Ribeiro, que também acredita que o filho dele foi vítima do tráfico de órgãos? Eu não tenho dúvidas, mesmo sem conhecer detalhes do caso, que alguma coisa de errado aconteceu. Como pai, eu entendo muito bem o que o senhor Ribeiro está enfrentando. Infelizmente eu não posso enviar nenhuma mensagem positiva, pois conheço bem a estrutura das instituições no Brasil e posso afirmar, sem medo de errar, que tudo será abafado. Para que ele tenha algum resultado, precisará abrir mão da própria vida, como eu fiz, e enfrentar um grupo poderoso que não mede esforços para calar a boca de quem denuncia. Não há leis para esta quadrilha. E não há qualquer autoridade que tenha coragem de enfrentar essas pessoas.