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DJAMILA RIBEIRO A meritocracia é um mito que esconde o racismo

BARULHINHO BOM Batuque de umbigada, no interior de SP, celebra a cultura afro

nº 123 novembro/2016 www.redebrasilatual.com.br

A ONDA DOS MILIONARIOS Salário mínimo pela metade, direitos trabalhistas roubados, bilhões a menos em saúde e educação, tudo para garantir juros e lucros para uma minoria. É para onde Temer, o Congresso e o STF levam o país


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ÍNDICE

EDITORIAL

6. Judiciário

O STF demonstra cada vez mais ser parte do golpe contra o Brasil

12. Economia

O valor do salário mínimo, para quem recebe e toda a economia

20. Atitude

RAFAEL NEDDERMEYER/ FOTOS PÚBLICAS

A juventude que se apresenta como esperança de resistência

26. Ambiente

Temer promove a maior ofensiva ambiental desde a ditadura

30. Educação

Professores, alunos e uma experiência ecológica integradora

34. Entrevista

Se as regras da PEC 55 estivessem em vigor 20 anos atrás, o salário mínimo valeria R$ 400

Djamila Ribeiro: cotas são arma transitória contra a desigualdade

37. Cidadania

Poderes fora da lei

40. Cultura

Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 55 tende a abolir cláusulas pétreas previstas na Constituição. Ao propor engessamento de gastos públicos de governos nos próximos 20 anos, a PEC viola princípios da Carta que se referem ao voto direto, secreto, universal – de que adianta o cidadão eleger um governo se ele não pode governar? –, à separação de poderes e aos direitos e garantias individuais. Por essas razões, deve ter sua tramitação interrompida no Congresso Nacional. A posição acima descrita não é de nenhum dirigente da CUT, senador da oposição ou jurista de esquerda. Trata-se de parecer do advogado Ronaldo Jorge Araujo Vieira Junior, mestre em Direito pela Universidade de Brasília e consultor legislativo do Senado. Se a proposta, já aprovada na Câmara como PEC 241, não for retirada da Casa, conclui o consultor, estará sujeita a sofrer ação direta de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal. Como se vê pelo andar da carruagem, a PEC não foi retirada. A questão é: e se o STF lavar as mãos e fechar os olhos para a violação das leis? Já o fez em diversos episódios de sua história, como foi reportado na revista anterior, e sua cumplicidade com as agressões ao Estado de direito segue em pleno andamento, como se vê em nova reportagem nesta edição. Afinal, o que significa uma Corte restringir o direito de greve dos trabalhadores do setor público, afirmar que a Justiça do Trabalho protege empregados e prejudica empresários ou tolerar a terceirização irregular de mão de obra? Se as regras dessa PEC estivessem em vigor 20 anos atrás, os orçamentos da saúde e da educação teriam recebido algumas centenas de bilhões a menos nas últimas duas décadas. E o salário mínimo, segundo um estudo, em vez de R$ 880, valeria R$ 400 por mês. Aos trabalhadores e movimentos populares cabe se organizar para reagir e resistir a essa onda de retrocesso. Ou os ataques ao Estado de direito estarão apenas começando. Como escreveu certa vez o colunista Emir Sader, “estão tratando de constitucionalizar o neoliberalismo”, objetivo que Fernando Henrique Cardoso não conseguiu, a seu tempo, materializar porque o voto popular não permitiu. Agora, o próprio voto é uma conquista posta em xeque.

Conquista da moradia não é apenas um sonho, são vários

ADRIANO ÁVILA

A

O batuque de umbigada reúne a comunidade negra em Tietê (SP)

44. Viagem

Museu da Gente Sergipana junta sabedoria e talento popular

Seções Emir Sader

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Mauro Santayana

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Curta essa dica

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Crônica: Lalo Leal

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ENTRE OS MAIS ACESSADOS

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Pesquisa do jornal espanhol El Pais-Brasil sobre redes sociais e manifestações revela que “uma proporção muito grande”, conforme matéria publicada em abril/2016, de leitores de portais, acessou a Rede Brasil Atual, ao lado de Tico Santa Cruz, Socialista Morena, Leonardo Sakamoto, Duvivier, Boulos e O Tijolaço. Acesse você também notícias sobre o mundo do trabalho e da cidadania, na defesa da democracia e de um Brasil com crescimento econômico e inclusão social.

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EMIR SADER

Se é público, é para todos

Um Estado democrático tem de garantir direitos para todos. O governo golpista repele o que tem a ver com o público. Em sua concepção não há direito. Tudo é mercadoria, tem preço, se vende, se compra

MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

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om esse lema, a Fenae (Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal), com outras entidades sindicais, está desenvolvendo, em todo o país, uma campanha que toca em cheio no tema central do Brasil hoje. A campanha foi lançada em junho, e adotada pelo Comitês de Defesa das Empresas Públicas antes do golpe consumado, mas o governo que surgiu deste reatualiza, de forma dramática, a temática de tudo o que é público no Brasil, alvo central da ofensiva do governo Temer. Os neoliberais dizem que a polarização fundamental do nosso tempo é aquela entre estatal e privado. Eles destroem o Estado, o reduzem a suas mínimas proporções, e depois apresentam sua alternativa com a roupagem do “privado”. O privado deve ser muito valorizado, se refere aos direitos individuais das pessoas. Mas a proposta do neoliberalismo, ao contrário, ataca os direitos das pessoas. A esfera deles é a esfera mercantil. O neoliberalismo quer transformar tudo em mercadoria: a educação, de um direito, se transformaria em mercadoria. Quem tem dinheiro compra, quem tem mais dinheiro, compra uma melhor. Na concepção neoliberal, tudo é mercadoria, tudo tem preço, tudo se vende, tudo se compra. Por isso eles combatem os direitos para todos. Um Estado democrático tem de garantir os direitos para todos, fortalecer seu caráter público. Daí a importância das empresas públicas, como a Petrobras, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica, assim como os serviços públicos sob responsabilidade do Estado, como a educação, a saúde, a assistência social, entre outros. O governo golpista tem como alvo central dos seus ataques exatamente tudo o que tem a ver com o público, com a esfera pública, desde as empresas públicas até os serviços públicos. A Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Economia, os recursos para políticas sociais, os direitos dos trabalhadores. Quando o ministro da Fazenda diz que a Constituição não cabe no orçamento do governo, ele está querendo dizer que os direitos garantidos pela Constituição de 1988 não serão atendidos pelo orçamento estreito em que o ajuste fiscal tenta comprimir o Brasil. Ele está querendo reduzir o Estado às suas mínimas proporções, para promover a centralidade do mercado. Está que-

BEM APERTADO Quando o ministro da Fazenda diz que a Constituição não cabe no orçamento do governo, ele está querendo dizer que os direitos garantidos pela Constituição de 1988 não serão atendidos pelo orçamento estreito em que o ajuste fiscal tenta comprimir o Brasil

rendo destruir os direitos em função dos interesses mercantis. Porque os juros, pagos pelo Tesouro ao sistema bancário que negocia títulos públicos, cabem no orçamento. O público é para todos, porque atende os interesses dos cidadãos. Cidadão é o sujeito de direitos. A esfera mercantil atende os interesses dos consumidores, caracterizados pelo seu poder aquisitivo. O público é a esfera democrática, a esfera dos direitos, a esfera pública. O governo golpista repele tudo o que tem a ver com o público. Ataca empresas públicas, como a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, entre outras. Ataca serviços públicos, como a saúde, a educação, assistência social, entre outros. Promove os interesses da minoria, os interesses das empresas privadas, em todas essas áreas. Daí a importância da campanha “Se é publico, é para todos”, no momento em que se decidem os destinos do Estado brasileiro e de toda a cidadania vinculada a políticas públicas. REVISTA DO BRASIL

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JUDICIÁRIO

SUPREMO TRIBUNAL TRABALHISTA

Pressa de implementar reformas transfere decisões para o STF, ameaçando direito­s sociais Por Vitor Nuzzi

ELZA FIÚZA/AGÊNCIA BRASIL

MEIAS VERDADES Gilmar Mendes: o TST proporciona “hiperproteção” ao trabalhador

A

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 323 repousou mais de um ano na mesa do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Protocolado em junho de 2014, a ADPF – usada com o objetivo anunciado de evitar ou reparar prejuízo por um ato do poder público – passou por 6

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variados trâmites até a manifestação da Procuradoria-Geral da República, em julho de 2015. Mas só no último 14 de outubro, quando a reforma trabalhista voltou à pauta nacional, saiu a decisão do ministro, favorável à ação proposta pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen). A questão ainda será julgada pelo plenário do STF. As ADPFs só são apreciadas limi-

narmente em caso de urgência. “Depois de dois anos? Qual a urgência?”, comenta um representante do Judiciário. O que a entidade patronal questionava? A Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) referente à chamada ultratividade, princípio pelo qual direitos previstos em convenção ou acordo coletivo são mantidos mesmo depois da vigência, enquanto não há renovação. Mendes


JUDICIÁRIO

durante evento em São Paulo, o ministro do STF falou que o TST proporcionava “hiperproteção” ao trabalhador, desfavorecendo as empresas. “Esse tribunal é formado por pessoas que poderiam integrar até um tribunal da antiga União Soviética. Salvo que lá não tinha tribunal”, gracejou, diante de representantes empresariais, como se poderia supor. Os comentários e decisões de Gilmar

está “preparando o terreno” para o Executivo, com decisões e sinalizações em diferentes casos. No episódio do direito de greve do servidor, por exemplo, pode abrir caminho para que o governo Temer apresente um projeto de lei restritivo, argumentando que está seguindo diretrizes do STF. No último dia de outubro, em artigo publicado no jornal O Globo, os advogados Eduardo Pastore e Luciana Freire comentaram um caso do STF relacionado

Mendes provocaram reações irritadas no Judiciário. Mas não são isolados. O STF vem colecionando casos que se referem a questões trabalhistas, o que, para muitos, já representam os primeiros passos de uma reforma (confira quadro à página 10), que ainda enfrenta resistência no Congresso. Os empregadores acompanham com interesse. Um magistrado avalia que o Supremo

ao princípio do negociado sobre o legislado. E também a ação da ultratividade. E elogiou: “Eis o Supremo Tribunal Federal mostrando como se faz a reforma trabalhista, com segurança jurídica, bom senso e valorizando o princípio da autonomia da vontade na negociação coletiva”. O mesmo Eduardo, filho do consultor e professor José Pastore, não mostra sutileza em comentários políticos: “É sempre bom

Fora, esquerda

TOMAZ SILVA/AGÊNCIA BRASIL

concedeu liminar à Confenen, e em sua decisão avançou sobre a Justiça trabalhista, que para ele continua “reiteradamente” aplicando uma alteração jurisprudencial (a nova redação da 277, modificada em 2012) “claramente firmada sem base legal ou constitucional que a suporte”. Adiante, nova crítica: os tribunais trabalhistas, afirma, interpretam “arbitrariamente” a norma constitucional. Foi até pouco pelo que se veria uma semana depois, em 21 de outubro, quando,

OLHAR DISTORCIDO Enterro simbólico da carteira de trabalho: entidades empresariais pressionam os três poderes por reformas

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RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

JUDICIÁRIO

“O BRASIL TEM PRESSA” Ives Gandra, presidente do TST, é um defensor da reforma trabalhista. Para ele, a flexibilização das leis significaria “segurança maior para o trabalhador”

ver esquerda ser retirada do Poder Executivo”, escreveu em sua página no Facebook no dia seguinte ao segundo turno das eleições municipais. Mesmo assim, ele achou pouco: “O duro é eliminá-la das entidades de classe, igreja, imprensa, docência, exército, do Poder Legislativo e do judiciário. Este último, o único onde não há eleição”. O mesmo advogado que diz prezar a negociação coletiva não se mostra tão flexível na convivência ideológica. Ele também já sugeriu transformar a Constituição de 1988 em “adubo”. Enquanto a Carta de 1988 não passa da função jurídica para a orgânica, a legislação trabalhista é vista como entrave ao desenvolvimento e até ao emprego. E o STF entra no debate não por acaso, avalia o advogado trabalhista Luis Carlos Moro, ex-presidente das associações brasileira e latino-americana da categoria. “O Supremo resolveu ser uma instância de correção do TST, uma espécie de inspetor escolar”, afirma. 8

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Para ele, afirmar que a principal Corte trabalhista do país favorece um lado em prejuízo de outro “não tem lastro empírico, muito menos técnico-científico”. “O TST se encaminhou para um equilíbrio nos últimos anos”, diz Moro, lamentando a queda do nível de discussão para a categoria “tosco”. Há diferença entre neutralidade e parcialidade, observa. “Essa acusação do ministro Gilmar contra todos os integrantes de um tribunal é de uma gravidade atroz.”

Solapando a democracia

Dezoito dos 27 magistrados do TST se insurgiram contra as declarações do ministro do Supremo e, em 26 de outubro, encaminharam ofício à presidenta da Corte, Cármen Lúcia, expresssando “indignação, constrangimento e inquietação ante a ofensa gratuita que lhes foi irrogada”. Manifestação dessa natureza, afirmam, “enodoa, desprestigia e enfraquece” o Judiciário e cada um de seus

i­ntegrantes”, além de “solapar o Estado democrático de Direito”. Assinam o ofício, entre outros, os ex-presidentes João Oreste Dalazen (decano do TST) e Antonio José de Barros Levenhagen. O atual, Ives Gandra Filho, não integra o documento. Preferiu divulgar uma nota mais comedida, no dia 21, para “lamentar profundamente” a forma “infeliz” do pronunciamento de Gilmar Mendes, “não se admitindo dar à Corte tal tratamento, nem a nenhum de seus ministros”. No caso da Súmula 277, ele também já havia sido contestado. “Com todo respeito ao ministro Gilmar, o entendimento (de suspender a norma) é equivocado. A súmula tem base constitucional. A ultratividade tem apoio da doutrina”, diz o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Germano Siqueira. Segundo ele, a jurisprudência garante segurança jurídica. “Enquanto não houver


MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

JUDICIÁRIO

PRECARIZAÇÃO Manifestantes contrários à terceirização cercam o presidente do Congresso, Renan Calheiros

novo acordo (coletivo), é prudente que o anterior permaneça em vigor.” Segundo ele, a “intervenção brusca” de Gimar, se confirmada, provocará instabilidade todos os anos. As reações não ocorrem só em Brasília­. O desembargador Davi Furtado Meirelles­, que presidia interinamente a Seção Especializada em Dissídio Coletivo do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região, em São Paulo, se manifestou durante uma sessão para manifestar estranheza pelo momento da decisão liminar neste momento do país. Momento de crise econômica e “em que os empresários buscam, a qualquer custo, reduzir os direitos dos trabalhadores, e o ú ­ ltimo patamar de resistência é a Justiça do Trabalho”. Para ele, decisões do STF já têm apontado na direção da prevalência do negociado sobre o legislado. “Eu sempre fui um defensor da negociação coletiva, mas dentro de um patamar mínimo civilizatório de direitos, o que não está ocorrendo”,

afirma. “Isso é arriscado, pois veremos uma total desregulamentação do Direito do Trabalho e uma precarização das condições dos trabalhadores.”

Flexibilização já

O cerco cresce, mas não é de hoje. No final de 2015, o então deputado e agora ministro da Saúde, Ricardo Barros, relator do orçamento, propôs corte para a Justiça do Trabalho e criticou a legislação. Para ele, as regras atuais “estimulam a judicialização dos conflitos, na medida em que são extremamente condescendentes com o trabalhador”. Cotado para o STF, na vaga do ministro Celso de Mello, o próprio presidente do TST é um defensor da reforma, a ponto de discordar do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, que durante um evento em setembro afirmou que as mudanças ficariam para o segundo semestre do ano que vem. “Eu não esperaria. O Brasil tem pressa”, disse Ives Gandra Filho, também

favorável à chamada flexibilização das leis, que significaria “a segurança maior para o trabalhador”. Ele defende o Projeto de Lei 4.962, do deputado Julio Lopes (PP-RJ), que retoma o princípio do negociado sobre o legislado, tema de outro projeto, no governo FHC, arquivado em 2003, já sob o governo Lula. A visão de Gandra parece ser minoritária no TST. Em entrevista ao site jurídico Jota, o procurador-geral do Trabalho, Ronaldo Curado Fleury, respondeu com cautela a uma pergunta sobre “resistências internas” no tribunal. “Com relação à posição do ministro Ives perante o TST, eu acredito até pelas manifestações escritas, aquela carta que a maioria dos ministros fez, que ele de fato defende posições minoritárias, entretanto ele é presidente, pode dar suas opiniões­, e o cargo dele é de representação. Sob esse aspecto da representatividade, penso que as posições devem ser da maioria dos ministros do tribunal. Mas essa questão é interna do tribunal é deve ser decidida lá.”

Segurança jurídica

Na mesma entrevista, Fleury falou sobre certa “inquietação” no meio jurídico com as questões trabalhistas analisadas no STF. A preocupação, afirmou, “é se a visão que o Supremo vai dar é uma visão mais sob o ponto de vista econômico ou sob o ponto de vista trabalhista efetivamente”. Ele observou que a possibilidade do negociado se sobrepor ao legislado existe, de fato, mas “com o intuito de conferir mais direitos”. O procurador também se manifestou com apreensão quanto à decisão liminar de Gilmar Mendes no caso da ultratividade. “Penso eu que essa decisão é extremamente prejudicial aos trabalhadores e à segurança jurídica que deve permear as relações capital e trabalho porque vai trazer uma insegurança às partes, no sentido de não saberem qual será a regra do jogo após a vigência das normas coletivas.” Uma entrevista de Gandra ao jornal O Estado de S. Paulo, em 29 de outubro, fez aumentar a turbulência. Ao responder uma pergunta sobre suposta “proteção” do TST ao trabalhador, deu razão às REVISTA DO BRASIL

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JUDICIÁRIO

críticas. “Se há tanta reclamação no setor patronal, alguma coisa está acontecendo”, declarou. E também jogou responsabilidade no trabalhador: “Às vezes, ele não tem razão nenhuma, mas só de o empregador pensar que vai ter de enfrentar um processo longo, que vai ter de depositar dinheiro para recorrer, acaba fazendo um acordo quando o valor não é muito alto. Isso acaba estimulando mais ações.” Imediatamente, a Abrat divulgou no-

ta para lamentar, afirmando que Gandra omitiu que no Brasil “é mais vantajoso ser condenado na Justiça do Trabalho do que cumprir as leis e pagar de forma espontânea”. Segundo a entidade, a questão “crucial” sobre o número de processos trabalhistas “reside na falta de efetividade ou concretude dos direitos sociais”. A associação acrescenta que o caminho para que esses direitos se tornem efetivos “perpassa pelo fortalecimento, e não pela de-

gradação, da Justiça do Trabalho”. O problema da falada reforma trabalhista, diz Luis Carlos Moro, é que se trata de uma questão “contramajoritária, para atender ao reclamo de uma elite”, conforme define. “Como toda minoria, tem dificuldade de se impor politicamente. O Legislativo exige o processo político. O caminho do Judiciário é menos oneroso. É mais simples, mas talvez o mais perigoso.”

Decisões causam preocupação Alguns casos na pauta do STF têm impacto direto no universo do trabalho. São temas como terceirização, validade de acordos coletivos, direito de greve e prevalência do negociado sobre a legislação. As decisões podem ter repercussão imediata e ampla em várias situações, limitando direitos e o chamado poder normativo da Justiça do Trabalho. Conheça alguns.

n Negociado sobre o legislado

Em setembro, uma decisão do pleno do TST contrariou o próprio presidente do tribunal e um precedente do STF a respeito da prevalência de acordos coletivos sobre a CLT. O caso se referia a ação movida por um trabalhador rural contra uma usina em Maringá (PR), condenada a pagar adicional de horas extras e reflexos sobre verbas trabalhistas. A empresa recorreu, alegando que firmara acordo com o sindicato local. Gandra considerou que o caso se encaixava em precedente do ministro Teori Zavascki, do STF, referente a um caso envolvendo outra usina, em Pernambuco, e baseado no artigo 7º da Constituição, que permite flexibilização de salário e jornada. Mas a maioria dos juízes entendeu que se tratava de outra situação. “Uma coisa é flexibilizar o cumprimento das leis trabalhistas e valorizar a negociação coletiva. Outra, muito diferente, é dar um sinal verdade para a pura e simples redução de direitos, contrariando a natureza e os fundamentos do Direito do Trabalho”, comentou o ministro João Oreste Dalazen, expresidente e decano do TST. Em outro processo, de 2015, o plenário do STF considerou válida uma cláusula que considera definitiva a quitação de direitos em planos de demissão voluntárias. Na ocasião, o caso envolvia o Banco do Estado de Santa Catarina, que havia sido comprado pelo Banco do Brasil. O TST tinha sido contra a quitação plena, afirmando que ela vale apenas para parcelas especificadas, enquanto direitos trabalhistas são irrenunciáveis. O BB recorreu. Com a decisão do Supremo, que teve a chamada repercussão geral, a Corte informou que seriam resolvidos 2.396 processos sobre o mesmo tema.

n Acordos coletivos

Pela Súmula 277 do TST, alterada em 2012, as cláusulas de uma convenção coletiva continuam valendo até que outro acordo seja firmado. O texto diz: “As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”. Em ação movida pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), questionando a súmula, o ministro 10

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Gilmar Mendes concedeu liminar à entidade. O caso ainda será examinado pelo plenário.

n Corte de ponto do servidor

Em 27 de outubro, em julgamento de mandados de sindicatos de servidores no Espírito Santo (policiais civis), João Pessoa (trabalhadores em educação) e do Pará (funcionários do Poder Judiciário), o STF decidiu aplicar ao funcionalismo público a Lei 7.783/89, a lei de greve do setor privado. O tribunal declarou a omissão do Congresso ao não regulamentar até hoje o direito de greve no serviço público. O ministro Celso de Mello chegou a falar em “abusiva inércia do Congresso”. Por maioria (6 a 4), os ministros consideraram legal o corte de ponto e consequente desconto de salários dos dias de paralisação. Pela decisão, não pode haver desconto se a greve for causada, por exemplo, por atraso nos salários ou recusa do poder público à negociação. Ainda mais preocupante foi a avaliação do ministro Luiz Fux, que relacionou o direito de greve ao momento político e econômico brasileiro, com possibilidade de paralisações. Segundo ele, “é preciso estabelecer critérios para que nós não permitamos que se possa parar o Brasil”.

n Terceirização

O STF julgaria em 9 de novembro o Recurso Extraordinário 958.252, sobre a constitucionalidade da Súmula 331 do TST, que trata da legalidade nos contratos de prestação de serviços. O relator é o ministro Luiz Fux. O processo foi movido pela Celulose Nipo Brasileira (Cenibra) contra o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Extrativas de Ganhães e Região (Sitiextra). A empresa recorreu ao Supremo depois de ser condenada, perdendo em todas as instâncias, por contratar terceirizados. A 331 veda a terceirização na chamada atividade-fim (principal) de uma empresa. O caso, que pode virar precedente para todas as questões relativas ao tema, desperta muito interesse: CUT, Força Sindical, CTB, Nova Central e UGT entraram como amicus curiae (amigos da Corte), além da Confederação Nacional da Indústria. A decisão certamente influenciará na tramitação de projeto que prevê terceirização irrestrita, já aprovado na Câmara e em tramitação no Senado (PLC 30).

n OSs na administração pública

Em abril do ano passado, o STF concordou que as chamadas OSs (organizações sociais), entidades privadas, podem prestar serviços públicos não exclusivos em algumas áreas. Com isso, em certa medida permitiu a terceirização no setor. Dois partidos (PT e PDT) questionavam as leis 9.637, de 1998 (sobre as OS) e 8.666, de 1993 (licitações).


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FELIPE STEDILE

Dom Paulo, hoje e sempre

Dom Paulo com o boné do MST em apoio à luta pela reforma agrária

Projeto para o país Qual proposta pode ser construída para o país para os próximos 20, 30 anos?, questiona o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que lembrou do movimento das Diretas Já, em 1984, para ele o melhor já feito neste período de redemocratização. Agora, é preciso criar um movimento para restabelecer a democracia, diz Lula. Ele se reuniu em 5 de novembro com centenas de representantes de movimentos sociais, artistas e intelectuais em ato de solidariedade ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) devido à invasão policial, na véspera, da Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema (SP). O ex-presidente manifestou receio de que o país perca uma série de conquistas sociais e ressaltou o protagonismo internacional assumido pelo Brasil em anos recentes. A ex-presidenta Dilma Rousseff considerou a invasão um “precedente grave” no caminho da criminalização dos movimentos sociais e do desrespeito ao Estado democrático de direito. bit.ly/rba_projeto

Jovem e remendada

ARQUIVO/AGÊNCIA BRASIL

A homenagem feita a Dom Paulo Evaristo Arns no Teatro da Universidade Católica (Tuca), em São Paulo, em 24 de outubro, misturou ecos do passado autoritário com protestos contra o atual governo. O auditório lotou para ver e aplaudir Dom Paulo, que em setembro completou 95 anos. Estavam lá Ana e Clarice, as viúvas de Santo Dias e de Vladimir Herzog. Dom Angélico Sândalo Bernardino denunciou o “capetalismo liberal”. Jovens cantaram a Oração de São Francisco de Assis, que o cardeal emérito de São Paulo acompanhou. Em dezembro, será relançado o livro Dom Paulo – Um homem amado e perseguido (Expressão Popular), das jornalistas Evanize Sydow e Marilda Ferri. bit.ly/rba_dompaulo

Ulysses Guimarães presidiu a Asssembléia Constituinte de 1988

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) dos gastos públicos (241 na Câmara e agora 55 no Senado; leia mais nesta edição) pode ser a centésima alteração na Constituição desde 1988, quando foi promulgada. Para o cientista político Cláudio Couto, o elevado número de mudanças pode estar relacionado ao fato de a Carta tratar, em vários trechos, de políticas públicas. Segundo ele, isso pode fazer com que algumas questões se choquem conforme a agenda deste ou daquele governo. Não chega a ser um “desvio da democracia”, diz Couto, mas a consequência de um texto muito detalhado. Já o ex-presidente da OAB Cezar Brito vê falta de “apego” à Constituição. bit.ly/rba_constituição REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA

Estado e salário

MINIMOS Valorização do piso nacional teve efeitos positivos para toda a economia, mas corre o risco de ser interrompida. Segundo um estudo, se a política desejada pelo governo Temer valesse desde 1988, mínimo hoje seria R$ 400 Por Vitor Nuzzi e Juliana Afonso 12

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ECONOMIA

lário mínimo a ser fixado para janeiro de 2017. O mínimo é referência nos acordos do setor, observa o presidente da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras Assalariados Rurais (Fetaepe) e diretor de Política Salarial da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado (Fetape), Gilvan José Antunis. “O salário mínimo é uma referência a partir de janeiro”, diz Gilvan, lembrando do mês em que o piso nacional é reajustado. “A política de valorização na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ajudou bastante os canavieiros. Antes, o governo não via o salário mínimo como importante para o país”, afirma o dirigente. Um possível fim dessa política, fixada a partir de meados dos anos 2000, preo­ cupa os trabalhadores. “Estamos preocupadíssimos, principalmente com a supressão de direitos.” Entre esses direitos, está a Previdência, área em que o governo pretende mexer. O que pode causar impacto direto na vida do trabalhador rural. “Eu mesmo comecei com 12 anos de idade”, lembra Gilvan, que iniciou no corte de cana em 1985, sendo registrado como aprendiz. Com 44 anos e 31 de contribuição, ele poderia daqui a quatro requerer sua aposentadoria por tempo de serviço. Agora, receia ter de trabalhar mais tempo. Já se sabe que o salário mínimo não terá aumento real (acima da inflação) no ano que vem. O ganho real corresponderia ao Produto Interno Bruto (PIB) de

2015, que caiu. Os canavieiros têm garantidos R$ 16 a mais do que for fixado em janeiro, mas temem o fim da política. As centrais sindicais também. O salário mínimo está no foco do ajuste, materializado na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, aprovado na Câmara e agora em tramitação no Senado, com o número 55, com previsão de segunda e definitiva votação em 13 de dezembro – mesma data do ­AI-5, em 1968.

Marchas

Ao sair de uma reunião com investidores em Nova York, também em outubro, o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles­, negou que a PEC irá prejudicar o reajuste do salário mínimo. Só se o teto de gasto público for desrespeitado, afirmou. Em tese, há uma lei – 13.152, de 2015 – que estabelece uma política para o mínimo até 2019. A regra de reajuste inclui o INPC do ano anterior mais o PIB de dois anos antes. Para 2017, por exemplo, considera-se a inflação deste ano, que deve ficar abaixo de 8%, mais o PIB de 2015, que caiu 3,8%. Estima-se que o mínimo ficará em torno de R$ 946. É o valor que consta do projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Quem também se preocupa, e muito, com uma possível mudança nas regras do salário mínimo é o casal Ana Damasceno­ Rocha, de 71 anos, e Ulisses Almeida ­Rocha, 74, moradores na zona rural de Jacinto, no Vale do Jequitinhonha, em

CANETADA NA APOSENTADORIA No radar do governo Temer também há uma possível desvinculação entre o mínimo e os benefícios previdenciários

LULA MARQUES/AGPT

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s trabalhadores no setor canavieiro da zona da mata, em Pernambuco, fecharam em outubro acordo que incluiu aumento de 9,39%, pouco acima do INPC acumulado (9,15%). O salário mensal passou a R$ 944. Eles garantiram ainda cesta básica no valor de R$ 40. Um bom acordo, avaliam, apontando o momento favorável para os preços do açúcar e do álcool. Outra cláusula considerada importante pela categoria – aproximadamente 70 mil pessoas – é a do chamado piso de garantia, de R$ 16 acima do valor do sa-

WILSON DIAS/AGÊNCIA BRASIL

BASE DA ECONOMIA Marcha do Salário Mínimo de 2004: valorização virou política de governo, agora ameaçada

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Minas Gerais. Eles conseguiram tudo o que têm trabalhando na roça, plantando feijão, milho, mandioca. Cada um recebe uma aposentadoria e, juntos, alcançam uma renda de R$ 1.760 por mês, imprescindível para pagar as despesas e viver com tranquilidade. “Hoje eu não tô plantando mais porque a seca tá difícil. Ano passado eu perdi, este ano eu perdi. Eu tô comprando ração pros porco, porque eles não podem ficar sem comida”, lamenta Ulisses, que ainda mantém uma horta e alguns animais. O casal passou por uma situação complicada ainda no início deste ano, após o fim do período de chuvas, quando o córrego que passava ao lado da casa onde moram secou. Ulisses teve de ir a prefeitura e pedir que um caminhão-pipa levasse água. O serviço acontece de 15 em 15 dias. Os dois concordam que o benefício é fundamental, mas afirmam que se ele diminuir, podem voltar a trabalhar, apesar da seca, ou pedir ajuda para os filhos que, “graças a Deus, tão tudo encaminhado”, como repete Ana. Hoje, com a aposentadoria, o casal paga as despesas da casa e compra alimentos, vestuário e remédios. “Tomo remédio para controlar a pressão alta. É caro. Tem que saber gastar pra poder viver”, diz. Criado em 1940, pelo Decreto-lei 2.162, o salário mínimo sempre provocou reações extremadas na política e na economia. Em 1954, custou o cargo de João Goulart, que como ministro do Trabalho de Getúlio Vargas propôs aumento de 100% no piso. Em artigo de 2014, o economista João Sicsú afirmou que de sua criação até 1964 três presidentes defenderam o ganho real: Getúlio, Juscelino­ Kubitschek e Jango. O mínimo atingiu um dos valores mais altos pouco antes do golpe. Na ditadura perdeu em torno de 50% do seu valor em termos reais. Parte das conquistas sociais do atual período, segundo ele, deve-se à atual política de recuperação do salário mínimo. Essa política é resultado de mobilização conjunta das centrais, que em 2004 fizeram uma primeira marcha a Brasília. Outras se repetiriam nos anos seguintes. O piso nacional foi sendo reajustado e virou objeto de duas leis, em 2011 (12.382) 14

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VICTOR CHILENO/ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA MS

ECONOMIA

FESTA DOS RENTISTAS José Silvestre: “Por trás da PEC 241 há o papel do Estado brasileiro. A questão central é a dívida dos juros. Vamos discutir a dívida pública e os juros. É uma indicação do que vai ser o Estado brasileiro daqui para a frente”

e a de 2015 (13.152). De acordo com o Dieese, de 2003 a 2016 o mínimo foi reajustado em 340%, enquanto a inflação do período ficou acumulada em 148,34%, resultando em aumento real de 77,18%. No parecer à PEC 241, o relator na Câmara, deputado Darcísio Perondi (PMDB-RS), incluiu entre o que chamou de “aprimoramentos” ao artigo 104 a “vedação a medidas que impliquem reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação, observado o atendimento do inciso IV do art. 7º da Constituição Federal – fixação do salário mínimo”. Este é o item VIII do artigo 104 da PEC.

Para o analista político Marcos Verlaine, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), a PEC pode não atingir o salário mínimo diretamente, mas afetará por outras vias. “Vai haver

REAJUSTE DO SALÁRIO MÍNIMO Período Valor Abril/2003 Abril/2007 Janeiro/2012 Janeiro/2015 Janeiro/2016

R$ 240 R$ 380 R$ 622 R$ 788 R$ 880

Reajuste nominal 20% 8,57% 14,13% 8,84% 11,68%

INPC Aumento real 18,54% 3,30% 6,08% 6,23% 11,28%

1,23% 5,10% 7,59% 2,46% 0,36%

Total de 2003 a 2016 Inflação (INPC): 148,34% Reajuste total: 340% Ganho real: 77,18% Fonte: Dieese


RANGEL MOREIRA/RBA

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PASSO ATRÁS Ana e Ulisses pagam as despesas da casa com a aposentadoria, mas se o benefício diminuir terão de voltar a trabalhar

uma pressão grande para mudar a política. Já há intenção clara (de não ter aumento real). A própria campanha do Aécio (Neves, do PSDB) sinalizou para isso. Não há uma grita agora porque não houve crescimento do PIB”, observa. O assessor parlamentar considera que as regras de aumento do mínimo constituíram uma política pública fundamental, com impacto nas pensões e nos benefícios da Previdência – 80% dos benefícios correspondem a um salário mínimo, segundo ele – e também importante para distribuição de renda. Verlaine chama a atenção para impactos negativos da proposta. “A aprovação da PEC impõe necessariamente a aprovação de uma reforma da Previdência de cunho fiscalista”, afirma. “Adia a concessão do benefício, a Previdência acumula mais e paga por

menos tempo. Vai fazer mais caixa. A reforma vai obrigar todo mundo a ir para a previdência complementar.” No radar do governo Temer também há uma possível desvinculação entre o mínimo e os benefícios previdenciários. Se isso acontecer, significa que num futuro breve os benefícios de Ana e Ulisses deixarão de acompanhar os reajustes do piso e terão seus rendimentos achatados. Os sinais são claros. Durante uma palestra no Rio de Janeiro, o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga afirmou que a PEC se tornaria insustentável sem uma reforma da Previdência “muito boa”.

Desmonte

Para o economista e professor Marcio Pochmann, presidente da Fundação Perseu Abramo, está em curso um “desmon-

te do acordo político estabelecido pela Constituição” de 1988, que estabelecia no gasto social (incluindo educação, saúde, previdência e outros itens) um elemento importante da dinâmica econômica. Passou de 13,5% do PIB, em 1985, para 23% atualmente. “O que temos hoje é um golpe de Estado em que a maioria do Congresso vai aprovar um conjunto de reformas que estavam estancadas.” O que mais cresceu desde a Constituição, lembra Pochmann, não foi o gasto social, mas o pagamento de juros – de 1,8% para 8% a 9% do PIB. “Não tem travas ao gasto financeiro. É um gasto que não gera emprego nem crescimento”, afirma. “Gasto social é dinheiro na mão das pessoas. Podemos dizer que hoje quase 50% do PIB brasileiro está atrelado ao gasto social”, aponta. REVISTA DO BRASIL

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Não se trata de um projeto de desenvolvimento, mas de redivisão do fundo público, alimentando o rentismo, acrescenta Pochmann. “O salário mínimo foi o principal elemento da elevação da renda na base da pirâmide social. Foi o que permitiu que os ganhos de produtividade não se descolassem dos salários.” Também evitou o aumento da desigualdade e fez crescer a participação dos salários na renda nacional. “Obviamente, isso está comprometido para os próximos anos.” Para o economista José Silvestre, coordenador de Relações Sindicais do Dieese, o significado da PEC é maior do que um simples congelamento de despesas primárias da União. “Por trás disso, uma das dimensões é o papel do Estado brasileiro”, afirma. “A questão central é a dívida dos juros. Vamos discutir uma PEC da dívida pública e dos juros. Isso (241) é uma indicação do que vai ser o Estado brasileiro daqui para a frente.” Ele destaca ofensivas do governo no sentido da privatização, como no caso do pré-sal. “Os recursos gerados com a privatização não são para investimentos. Você está transferindo ativos para estran-

FETAPE/DIVULGAÇÃO

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FUTURO INCERTO Os canavieiros garantiram em acordo R$ 16 a mais no valor que for fixado no ano que vem, mas estão apreensivos com o provável fim da política de valorização

“Já derramei meu suor” Vilma Rosa de Lacerda, 61 anos, mostra com orgulho a cozinha da sua casa. “As coisinhas que eu tenho foram tiradas com esse salarinho. Geladeira, fogão, bicama.” O “salarinho” a que se refere é o dinheiro da aposentadoria rural, que garante a ela – e a cerca de 7 milhões de brasileiros – R$ 880 por mês. Moradora de Rubim, no vale do Jequitinhonha, norte de Minas Gerais, Vilma passou a vida inteira trabalhando na roça. Plantar, colher, fazer farinha e vender os produtos na cidade eram atividades diárias, que assumiu ainda jovem. A aposentadoria veio aos 55, após anos de contribuição ao sindicato. “Eu saí da farinha, saí de tudo né? Agora com meu beneficinho, sofrendo, mas economizando, dá pra mim vencer”, afirma. Hoje, o valor da aposentadoria dos trabalhadores rurais é de um salário mínimo, o que faz com que esse benefício seja parte considerável dos repasses da Previdência: só no ano passado, esse valor chegou a R$ 91 bilhões. O atual governo estudou a possibilidade de desvincular a aposentadoria do mínimo com o argumento de que esse elo faz os benefícios subirem acima da inflação, impedindo a reforma da Previdência. O Palácio do Planalto diz ter abandonado essa proposta devido à possibilidade de questionamentos na Justiça. Outro fantasma que ronda a aposentadoria rural é a PEC 55. Se a proposta prejudicar o reajuste do salário mínimo, o repasse aos pequenos produtores aposentados também será prejudicado. O recém-eleito prefeito de Rubim, Alencar Souto de Oliveira (DEM), 16

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diz que a questão é controversa. “Na verdade, houve uma queda grande dos recursos, e por isso as instituições estão sucateadas. Mas não sei se isso (a PEC) é necessário ou não. Eu tenho uma visão dupla”, diz. Para Alencar, se o reajuste do salário mínimo for abaixo da inflação, o poder de compra das pessoas será afetado. E, consequentemente, a arrecadação do município e a qualidade de vida da população também. Vilma controla o dinheiro que recebe na ponta do lápis. E sozinha. “Hoje eu que controlo ele. Não vou pegar meu dinheirinho e gastar ele pra no final do mês eu não ter nem um quilo de carne pra comer. Eu tenho que pôr meu braço onde eu alcanço”, ensina. Ela se divorciou recentemente e a aposentadoria lhe deu independência financeira. “Eu trabalhei muito puxando cabo de enxada. E cê sabe, mulher é mais sofrida ainda, porque homem não dá dinheiro a mulher. Eles acha que mulher num precisa”, conta Vilma, que costurava para ganhar um extra e poder comprar produtos de higiene pessoal, como desodorante, e roupas íntimas. Ainda que a aposentadoria rural seja vista como o maior componente do chamado déficit da Previdência, ela é uma política que assegura ao pequeno produtor a manutenção das suas necessidades básicas. Sem o benefício, Vilma, que também sofre com problemas de pressão e colesterol, precisaria trabalhar para se manter. “Isso é meu. Eu já derramei meu suor lá, ó. Eu tô recebendo agora”. (JA)


ECONOMIA

geiros. O governo não fez nenhuma medida, nem sequer tentou uma reforma tributária, taxar grandes fortunas.”

Consequências

Silvestre observa que a política de valorização do salário mínimo propiciou, além da melhoria na distribuição de renda, impactos nos pisos salariais das categorias e em outras políticas públicas, como os benefícios de prestação continuada, para o sistema da seguridade. “E, principalmente, para a grande maioria dos municípios brasileiros. Foi também um estímulo para a atividade econômica, para o comércio, setores industriais cuja produção tem baixo valor unitário. Teve esse efeito irradiador. Foram impactos não apenas na questão da renda, mas da atividade econômica.” Números divulgados nas últimas semanas, após a edição da PEC, demonstraram efeitos nocivos da proposta governista.

Com a curiosidade de terem sido contestados pelas próprias instituições, em um dos casos em órgão do próprio governo. O economista Bráulio Borges, pesquisador associado da Fundação Getúlio Vargas (FGV), por exemplo, fez simulação segundo a qual o salário mínimo poderia ser de R$ 400, menos da metade do valor atual, se a regra da 241 existisse desde 1998. A FGV divulgou nota afirmando que a análise do pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) “não reflete a opinião da instituição”, considerando “impraticável” associar a política do salário mínimo à PEC. Caso mais rumoroso aconteceu no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério do Planejamento. Nota técnica assinada por dois pesquisadores, Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Benevides, apontou possibilidade de perdas de até R$ 743 bilhões na área de saúde, em 20 anos, em

consequência da PEC 241, que partiria de um pressuposto equivocado de que os recursos públicos para o setor já estão em níveis adequados. Imediatamente, o presidente do instituto, Ernesto Lozardo, divulgou nota contestando o estudo e manifestando apoio à PEC, o que causou estranheza por se tratar de um órgão de pesquisa. Dias depois, Fabiola deixou o cargo de coordenadora de Estudos e Pesquisas de Saúde na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais. Oficialmente, pediu exoneração. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) criticou o episódio. “O pedido de exoneração da servidora não é apenas uma posição pessoal, como tenta indicar a nota da presidência do Ipea. É, em verdade, um grito de alerta sobre os rumos que temas tão caros à Abrasco, com a liberdade de expressão e o espaço do debate público, vêm tomando no país.”

RANGEL MOREIRA/RBA

PUXANDO CABO DE ENXADA Vilma: “Eu saí da farinha, saí de tudo né? Agora com meu beneficinho, sofrendo, mas economizando, dá pra mim vencer”

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MAURO SANTAYANA

Aos gringos, filé. Para a Petrobras, o osso

A empresa nunca esteve quebrada. Cabe aos petroleiros processar a PricewaterhouseCoopers para que prove os alegados prejuízos por desvios à companhia

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ntre os aspectos mais perversos da atual retirada nacional – baseada filosófica e administrativamente na diminuição do papel do Estado e das empresas públicas como instrumentos de desenvolvimento do Brasil em sua natural disputa com outros países do mesmo porte territorial e demográfico –, um dos mais abjetos é o que envolve o acelerado enfraquecimento da Petróleo Brasileiro Sociedade Anônima. Inclusive pelo cinismo com que tem sido levado a cabo. A desculpa é sempre a mesma. Estariam, a ­Petrobras e o país, quebrados devido à atuação dos governos anteriores, embora a estatal estivesse, até há poucas semanas, a caminho de zerar o déficit cambial acumulado nos últimos anos; suas ações tenham se valorizado em mais de 170% neste ano, em processo iniciado quando Dilma ainda se encontrava à frente da Presidência da República; e esteja batendo sucessivos recordes de produção, especialmente no pré-sal. E o Brasil quebrado de Lula seja o mesmo país em que o BNDES tem tão pouco dinheiro que se prepara para “devolver” R$ 100 bilhões ao Tesouro e seja a mesmíssima nação que pagou as dívidas com o FMI e que acumulou US$ 370 bilhões em reservas internacionais, diminuindo, ao mesmo tempo, a dívida pública bruta e a líquida nos últimos 13 anos. O cinismo é tanto que a turma que alega que faltava transparência à direção anterior da empresa é a mesma que, agora, pretende concentrar mais poder nas mãos de pequenos grupos para decidir questões estratégicas. Como o que vender, ou melhor, “doar”, dos ativos da empresa e a quem fazê-lo; a participação ou não da Petrobras como operadora neste ou naquele poço do pré-sal; o uso ou não de peças e equipamentos comprados ou encomendados no Brasil nesse ou naquele projeto; e até mesmo a fixação do preço da gasolina “seguindo a média dos preços internacionais”. 18

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São práticas que levarão, se não houver transparência e discussões públicas, à possibilidade da eventual ocorrência de corrupção em altíssima escala. Qualquer um desses temas envolve, direta ou indiretamente, interesses que vão de multinacionais a fornecedores estrangeiros de equipamentos a donos de postos de gasolina, em uma escala que vai de bilhões de reais a dezenas de bilhões de dólares. Nesse processo, abandona-se a lógica, evitando que a Petrobras, que, durante anos, subsidiou os consumidores brasileiros, quando a gasolina estava mais cara lá fora, seja ressarcida por isso agora, quando ela está mais barata. Adiando a recuperação da maior empresa nacional, o que é uma excelente desculpa para entregar, a toque de caixa, e a preço de banana, seus mais importantes ativos, sem consulta à sociedade brasileira, que é, em última instância, a dona do negócio. Áreas de maior valor agregado e de maior potencial de avanço da pesquisa tecnológica e científica, como a petroquímica, o transporte e a distribuição de gás e de combustíveis, estão sendo entregues a concorrentes, deixando apenas o osso, ou a produção, para a Petrobras, dependendo do poço, quando ­isso for de interesse do “mercado”, representado pela associação que reúne, no Brasil, as petroleiras estrangeiras. O que dá mais dinheiro? Um barril de petróleo bruto, em um momento em que os preços se encontram historicamente deprimidos, ou um barril de gasolina ou diesel, vendido diretamente ao consumidor, na bomba de combustível? A ganância, e a possibilidade de lucro é tanta, que o anúncio demagógico da inútil queda do preço da gasolina nas refinarias saiu como um tiro pela culatra, aumentando os preços para o consumidor, em muitos estados, no lugar de diminuí-los. Ou alguém achou que os donos dos postos iriam repassar o desconto para os clientes? A contradição dos recém-chegados é tanta que o


STÉFERSON FARIA /AGÊNCIA PETROBRAS

MAURO SANTAYANA

seu discurso privatista e entreguista defende a superioridade e proeminência da iniciativa privada sobre o Estado, mas os ativos da Petrobras estão sendo entregues a estatais, leia-se, a estados estrangeiros, como a Noruega e a China, porque no mundo real, e não no da midiotização brasileira, são as empresas estatais, como as sauditas e as chinesas, que dominam o mercado mundial do petróleo, e são nações altamente estatizadas, como a China, que dominam a economia mundial e são os maiores credores da Europa e dos Estados Unidos. Enquanto nossa maior empresa vai sendo desmontada, esquartejada, descaracterizada estrategicamente, as mentiras sobre ela vão se acumulando. Cabe aos petroleiros processar a PricewaterhouseCoopers para que ela prove os alegados desvios de R$ 6 bilhões na companhia, que já deveriam ter sido reincorporados aos novos balanços. Ao contrário do senso comum baseado em um discurso apressado e rasteiro, a gasolina no Brasil não está entre as mais caras do mundo. Há mais de 50 países em que ela custa mais do que aqui, incluídos grandes produtores, como a própria Noruega, a quem estamos entregando megapoços do pré-sal, quando podería-

mos simplesmente estabelecer alianças entre a Petrobras e estatais estrangeiras, mantendo o controle dos poços e das reservas em nossas mãos, como deveria ter sido feito agora com a francesa Total. A verdade é que a Petrobras não está, nem esteve, nunca, quebrada da forma que foi divulgada. O seu endividamento decorreu não de algumas dezenas de milhões de dólares efetivamente pagos por empreiteiras a bandidos como Paulo Roberto Costa e Nestor Cerveró para que não atrapalhassem seus negócios, mas da brutal queda do preço do petróleo que a afetou e também outras companhias. E de uma estratégia deliberada de sabotagem da credibilidade da empresa, para derrubar o governo anterior e levar as suas ações ao chão, para que grandes investidores privilegiados, como George Soros, por exemplo, e acionistas estrangeiros que nunca acreditaram em sua quebra e no catastrofismo fascista fizessem extraordinárias fortunas, em poucos meses, como aconteceu este ano, enquanto otários tupiniquins pseudoconservadores e midiotizados se desfaziam de suas ações, metendo o pau na empresa, nas redes sociais, a R$ 5, quando elas estão valendo hoje quase R$ 20. REVISTA DO BRASIL

SABOTAGEM A verdade é que a Petrobras não está, nem esteve, nunca, quebrada da forma que foi divulgada. Seu endividamento decorreu não de corrupção, mas da brutal queda do preço do petróleo que a afetou e também outras companhias

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A improvável

PRIMAVERA BRASILEIRA

Jovens sem ligação partidária ou participação em movimentos sociais ocuparam mais de mil escolas públicas por todo o Brasil em defesa da educação e de direitos ameaçados pelo governo Temer Por Frédi Vasconcelos 20

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uem, há alguns meses, ou dias, poderia imaginar que uma das principais respostas aos retrocessos que o país vem passando viesse de jovens, principalmente que cursam o ensino médio, e em estados como Paraná e Santa Catarina e no Distrito Federal, que estão entre os mais conservadores do Brasil? A reportagem da Revista do Brasil visitou escolas, entrevistou estudantes e participou de oficinas em locais ocupados para tentar entender quem são e o que pretendem esses novos ativistas, que têm entre 13 e 18 anos e não haviam ainda participado de um movimento social.


MÍDIA NINJA

ATITUDE

DENTRO DE UM ABRAÇO Jovens da ocupação do Colégio Estadual Central, em Belo Horizonte, demonstram união e solidariedade

“Antes de vir para cá, a gente não tinha nenhuma vinculação política, partido, nada”, diz Maria, uma das líderes de ocupação numa escola na periferia de Curitiba – os nomes dos estudantes usados na reportagem são fictícios. “Algumas pessoas falaram que o PT estava fazendo nossa cabeça, coisa assim. Mas a gente veio por conta própria. Fizemos assembleia e os alunos decidiram”, diz a aluna do Colégio Estadual Olívio Belich, no bairro do

Cajuru, na região leste de Curitiba. “A gente nem se conhecia direito antes, não tem militância até hoje. Sou contra todos os partidos”, complementa Paulo, do Colégio Estadual Teotônio Vilela, na Cidade Industrial, também em Curitiba. O que os move, mais do que questões do ambiente escolar – como a tentativa de alterar a base curricular do ensino médio por meio de uma medida provisória – diz respeito a ataques do governo de Michel Temer que, segundo eles, põem em risco o futuro de políticas públicas afetarão as próximas gerações. “Queremos barrar a reforma, mas não é só isso, lutamos contra a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que tira dinheiro da saúde e da educação, contra a reforma da Previdência... A saúde e a educação já são precárias e ainda querem tirar dinheiro”, afirma Larissa, do Olívio Belich. “O que a gente mais queria era o apoio das pessoas que vão perder com isso. Mas a maioria não consegue enxergar. Até porque as leis são escritas pro pessoal da elite. O pessoal mais carente não entende o que vai perder”, avalia Marina, do Teotônio. A desatenção da maioria das pessoas em não reconhecer o que está acontecendo com o país lembra um pouco o que ocorreu com movimentos globais, como a chamada Primavera Árabe e o ­Ocuppy, nos Estados Unidos. No livro Occupy (Editora Boitempo), o geógrafo britânico David Harvey, ao escrever sobre o que levou pessoas a tomar as ruas do coração financeiro dos Estados Unidos, diz que aquela luta é contra o que chama de Partido de Wall Street, que “domina muito do aparato estatal, do Judiciário, em particular a Suprema Corte, cujas decisões partidárias estão crescentemente a favor dos interesses venais do dinheiro, em esferas tão diversas, como a eleitoral, a trabalhista, ambiental e comercial”. Para Harvey, muitas pessoas decentes estão presas a um sistema que está podre. “Se querem um salário razoável, não têm outra opção além de render-se à tentação do diabo.” Ele observa que leis “coercitivas” da competição forçam os cidadãos a obedecer as regras desse “sistema cruel e insensível”. “O problema é sistêmico, não individual.” De acordo com o britânico,

os mais ricos acionam uma enorme variedade de opiniões de “especialistas” e colunistas espalhados na mídia que eles controlam. “Em um momento, só se fala da austeridade necessária a todas as outras pessoas para tratar do déficit e, em outro, propõe redução de sua própria tributação sem se importar sobre o efeito que terá sobre o déficit.” No Brasil, essa situação é exemplificada na discussão sobre a PEC 241, agora com o número 55 no Senado. A justificativa é de que para diminuir o déficit público serão congelados por 20 anos os investimentos em saúde, educação, desenvolvimento tecnológico, agricultura etc. Ao mesmo tempo, não há previsão de limitar o pagamento de juros da dívida pública brasileira, responsável por cerca de 90% desse mesmo déficit. São os mandamentos de Wall Street.

Poder da mídia

Alunos entrevistados não citam o geógrafo britânico, mas sentem na pele os efeitos da narrativa contra seu movimento. Após uma primeira tentativa de desqualificação, em que foram retratados como “manipulados”, “baderneiros”, “drogados” etc., passaram a ser denominados como aqueles que prejudicariam milhões de outros estudantes, que não poderiam fazer o Enem ou estudar para o vestibular. “Vêm pressionar a gente, dizendo que estamos prejudicando seus filhos, mas eles não deveriam estar estudando desde o começo do ano? Agora não vai adiantar nada”, diz Marina. A pressão também aumentou depois que numa briga entre dois garotos dentro de uma escola ocupada um deles foi assassinado. “Muitos pais agora estão contra pelo medo de que aconteça alguma coisa com a gente. Medo do que passa na Globo. A Globo só passa desgraça. As pessoas aceitam sem saber, sem tentar entender o que está acontecendo”, diz Maria. Os pais de Larissa apoiam, mas ficam chocados com o que veem na TV. “Hoje de manhã meu pai estava assistindo ao jornal e disse: ‘Nossa, como eles mentem’.” Quem está na ocupação desfruta o convívio. “Nesse tempo a gente ficou amigo de verdade. Antes estudávamos REVISTA DO BRASIL

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ATITUDE

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“VIVA AOS ESTUDANTES” Manifestação no Paraná: organização com regras

cipalmente, a Justiça. “Estamos sofrendo ameaças de invasão”, diz Paulo. “Se vierem, não vão vir desarmados, vai dar merda. A gente conhece a comunidade. Mas estamos preparados para qualquer coisa, psicologicamente e fisicamente. Mas não sabemos o que vai acontecer na hora.” Paulo falou numa sexta-feira, 28 de outubro. No domingo, 30, um dos colegas foi barbaramente agredido quando saiu da escola. Mesmo querendo continuar, os outros decidiram desocupar. Além das pessoas no entorno e da polícia, a pressão da Justiça aterroriza. Foram concedidas dezenas de liminares de reintegração de posse, mas os métodos vão muito além. Em Brasília, por exemplo, o juiz Alex Costa de Oliveira, da Vara da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios

PEDRO DE OLIVEIRA/ALEP

FOTOS MAÍRA KALINE (ESTUDANTE DE COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL UTFPR)

na mesma escola e nem nos conhecíamos direito. Se via no corredor, mas nem se falava. É uma união mesmo.” Ao contrário do que vem sendo divulgado, nas escolas visitadas pela reportagem os alunos falaram da organização e das regras adotadas. Todos se revezam para fazer limpeza, comida e manter a segurança – como nas experiências do ano passado em São Paulo, depois Goiás, Rio de Janeiro, Ceará... É proibido que meninos e meninas durmam no mesmo quarto, ou que se consuma bebida alcoólica ou droga. “Há a questão de limpeza, arrumação, deixar organizado, comer e tapar as panelas, horário de comer e de dormir. Adolescente é meio difícil, quer ficar direto no celular, mas a gente tem um horário de dormir porque tem de acordar cedo”, diz Maria. Ela conta que na escola há distribuição de leite do governo para a população e eles têm de abrir o portão para o rapaz que faz a entrega e para os funcionários responsáveis pela distribuição. No Teotônio Vilela, os primeiros dias foram difíceis, mas depois se organizaram. “Na primeira semana, a gente tinha para comer pão, salame e mortadela. A gente ficou magro aqui. Chegamos a passar fome. Depois abrimos a cozinha e, quando começamos a cozinhar, precisa ver nossa alegria, ver o alho, a cebola fritando, comer um arrozinho”, afirma Paulo. “Os pais vêm, alguns universitários também cozinham para a gente, a gente mesmo faz.” Além de doar alimentos e cozinhar, estudantes universitários, professores e diversas outras pessoas foram às escolas para contribuir com debates, workshops, aulas abertas, oficinas. Teve oficina sobre direito à cidade por alunos e professores de Arquitetura, acompanhada pela reportagem da RdB na escola Professor Nilo Brandão, no Canguru, também em Curitiba. Além de rodas de capoeira, de circo, aulas de xadrez, pingue-pongue, Português, História, Geografia, preparatório para o vestibular, entre outras atividades. Se há apoio, a pressão também é grande. Vai de diretores, professores, comerciantes do bairro, outros alunos e, prin-

FEZ CALAR OS DEPUTADOS Ana Júlia: voz em defesa de um país mais justo – baseado não em teorias revolucionárias, mas no que determina a Constituição – virou símbolo das lutas atuais


FRÉDI VASCONCELOS/RBA

“Algumas pessoas falaram que o PT estava fazendo nossa cabeça, coisa assim. Mas a gente veio por conta própria. Fizemos assembleia e os alunos decidiram” Maria, Colégio Estadual Olívio Belich, de Curitiba

FACEBOOK OPCUPA PARANÁ

ATITUDE

“O que a gente mais queria era o apoio das pessoas que vão perder com isso. Mas a maioria não consegue enxergar. Até porque as leis são escritas pro pessoal da elite. O pessoal mais carente não entende o que vai perder Marina, Colégio Estadual Teotônio Vilela, de Curitiba

(TJDFT), autorizou o uso de técnicas de tortura para “restrição à habitabilidade” das escolas, com objetivo de convencer os estudantes a desocupar. Um juiz, por ironia da vara da infância e juventude, manda impedir o contato dos jovens com amigos e a família, restringir a entrada de alimentos e autoriza o uso de “instrumentos sonoros contínuos, direcionados ao local da ocupação, para impedir o período de sono” dos adolescentes. Alunos que estavam ocupando o Centro de Ensino Médio Dona Filomena ­Moreira de Paula, na cidade de Miracema (TO), também foram retirados à força pela PM acionada pelo promotor de Justiça do ­Ministério Público Estadual (MPE). Foram levados para a delegacia, alguns algemados, sem mandado judicial. Em Chapecó (SC), há relato de invasão de policiais

em uma ocupação com fuzis em punho. Além dessas práticas que passam por cima das leis e dos direitos humanos, os estudantes ainda enfrentaram a atuação de grupos que agem à margem do Estado. Com práticas que lembram a forma de atuar das milícias fascistas dos anos 1930, 1960 e 1970, organizações como o Movimento Brasil Livre (MBL) arregimentam recursos, estrutura e apoiadores para “desocupar escolas”. Isso já aconteceu em Brasília e no Paraná. No início do ano, práticas semelhantes, associadas a pessoas do crime organizado e milícias, ocorreram em São Paulo e no Rio de Janeiro.

O que vem depois

A Primavera Árabe, as manifestações de junho de 2013, o Occupy Wall Street, a ocupação das escolas no ano passado

e no início deste ano e as deste outubro têm, pelo menos, um fator em comum: trazem para a arena da disputa política novos atores desatrelados de partidos ou movimentos sociais tradicionais. Na apresentação do livro Ocuppy, feita por Henrique Soares Carneiro, o historiador destaca o caráter espontâneo de rebeliões contra as estruturas políticas convencionais, o que mostra a necessidade de um novo projeto que articule uma representação dos anseios de transformação e ruptura. Argumenta também que existe uma participação política protagonizada pela nova geração, por meio difuso de propagação da informação, via internet, sobretudo as redes sociais. E que esse despertar para uma nova euforia política, num mundo dominado pelos ideais do individualismo, e pela carência de projetos coletivos para o futuro, causa essa profunda indignação, que pode ser o germe de uma revolução. Ao mesmo tempo em que esses novos atores agem, as forças dominantes hegemônicas se rearticulam, absorvem ou repelem movimentos por mudanças. Um sopro de esperança está no aparecimento de jovens que pela primeira vez participam da disputa política por uma sociedade melhor. É emblemática a forma como a estudante Ana Júlia, de 16 anos, cala deputados na Assembleia Legislativa paranaense. Sua voz em defesa de um país mais justo – baseado não em teorias revolucionárias, mas no que determina a Constituição – virou símbolo das lutas atuais. Mas o que acontecerá daqui por diante? A resposta pode estar nas palavras de outra jovem, também de 16 anos, ouvida pela revista. “A PEC 241 pode passar, a gente pode ser derrotado, mas a gente sabe o que está tentando. O povo brasileiro está sendo roubado, literalmente, mas a gente está fazendo nossa história.” Tanto está que a onda de rebeldia ultrapassou a praia dos secundaristas e banhou o meio universitário. No momento que em que esta reportagem era concluída, estudantes ocupavam campi em Brasília, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Em todos os casos, universidades públicas, ameaçadas pela PEC 55. REVISTA DO BRASIL

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EDUCAÇÃO

Desmonte em curso

Na última década, dobrou o número de campi e de vagas nas universidades federais, especialmente nas regiões mais carentes. Um avanço que a PEC 55 deverá sucatear Por Cida de Oliveira

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população de Chapecó (SC), Realeza e Laranjeiras do Sul (PR), Cerro Largo, Erechim e Passo Fundo (RS) viu sua reivindicação começar a ser atendida entre 2011 e 2014, quando foram construídos 35 prédios da tão esperada Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Com R$ 280 milhões de investimentos, em quatro anos foram postos em funcionamento 43 cursos de graduação e 12 de mestrado para 8.500 alunos com as melhores notas no Enem. São em sua maioria filhos de agricultores, egressos da escola pública, moradores de uma região que recebia recursos federais apenas para obras nas fronteiras. A vocação agropecuária e a busca por desenvolvimento regional sustentado são contempladas em cursos de engenharia, na ênfase à agroecologia na produção de alimentos e no cooperativismo. E o de medicina, com foco preventivo, é o primeiro criado no país no âmbito do programa Mais Médicos. A UFFS é um dos símbolos do processo de ampliação e desenvolvimento da rede federal de ensino superior iniciado em 2005, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Seguiu interior adentro, abrindo portas para os filhos de trabalhadores, tirando o atraso e diminuindo as desigualdades regionais. Segundo dados do Ministério da Educação (MEC), ao longo de 83 anos, entre 1919 e 2002, foram construídas 45 universidades federais nas capitais ou grandes cidades. E nos últimos 11 anos, 24

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outras 19, porém no interior do país, ajudando a reduzir a demanda reprimida por ensino superior gratuito. A necessidade de ampliação da rede, em atendimento ao Plano Nacional de Educação (PNE) do período, fez com que essas primeiras 45 construíssem novas unidades em regiões carentes. O resultado, segundo balando do MEC, é que entre 2003 e 2014 o número de campi passou de 148 para 321, o número de cursos de graduação presencial foi ampliado de 2.047 para 4.867 e as vagas, de 113.263 para 245.983. As matrículas subiram de 500.459 para 932.263, principalmente no Norte, com 76% de aumento na oferta, e no Nordeste, com 94%. A democratização do acesso foi acompanhada por políticas de auxílio à permanência do estudante na universidade. O vice-reitor da UFFS, Antônio ­Andrioli, conta que desde que a instituição começou a funcionar, há sete anos, 90% dos alunos são egressos da escola pública, que necessitam de auxílio para moradia, transporte e alimentação inclusive no curso de Medicina. Ao contrário da lógica nacional, ali a ampla maioria dos estudantes não é de filhos de médicos, mas de trabalhadores da agricultura. Por isso, recebem até R$ 520 mensais, um investimento que totaliza R$ 9 milhões ao ano. “Demandas futuras, como a inclusão da população indígena para além das cotas, vai exigir mais recursos porque aqui essa população tem auxílio especial, que pode chegar a R$ 900. E queremos tam-

bém ampliar auxílio de apoio pedagógico e incluir quilombolas e outras populações tradicionais da nossa região que ainda não conseguem acesso ao ensino superior. Tanto que estávamos propondo um campus dentro de uma comunidade indígena”, conta Andrioli. Assim como toda a rede federal de ensino superior, a UFFS viu sua situação financeira enfrentar cortes orçamentários no ano passado, e a situação poderá se agravar com o fantasma da PEC 55, se o Senado confirmar a aprovação da Câmara. “Antes tínhamos os recursos e as empresas demoravam para entregar as obras. Agora são elas que nos cobram e por isso atrasam. Falta terminar o hospital universitário em Realeza, um bloco de salas de aulas em Chapecó e um em Passo Fundo”, diz. Mesmo assim, Andrioli avalia que sua situação é melhor do que a de muitos outros reitores. Dos 38 prédios planejados, falta concluir apenas três. Mas um projeto de 2009, de um prédio exclusivo para a reitoria, deve ser engavetado, assim como os planos de ampliar cinco cursos por campus e, depois, construir cinco novos campi, juntando neles todas as áreas do conhecimento.

De volta aos 90

“Vínhamos de um contexto em que o Brasil assegurou recursos para que atingíssemos uma meta, que considero moderada, de ter 20% dos jovens de 18 a 24 anos na universidade até 2020. E achávamos que seria possível com os recursos do pré-sal. Agora, vivemos outro cenário, sem conseguirmos ampliar as vagas. O desafio agora é manter os cursos, concluir os concursos, decidir internamente sobre os cursos abertos com financiamento de outros programas federais agora extintos”, relata Andrioli. “O cenário que visualizamos é que dificilmente os estudantes terão acesso à universidade pública. Estamos voltando à política que imperou no país na década de 1990. À frente do MEC estão as mesmas pessoas de antes, que sucatearam a educação nos anos 1990.” O tom se repete com a diretora de Universidades Públicas da União Nacional dos Estudantes (UNE), Graziele Monteiro. “Era um tempo em que as universida-


EDUCAÇÃO

GOVERNO QUE FECHA ESCOLAS Fronteira Sul (UFFS): mesmo as mais antigas estão em risco

DIVULGAÇÃO/UFFS

des estavam sucateadas. Faltava dinheiro para coisas básicas, como pagar luz e água”, conta. De acordo com ela, superado o sucateamento, políticas de apoio à permanência ganharam a dimensão principal. “A nova universidade que construímos corre risco de acabar. Há ameaça de cortes de vagas principalmente em cursos de licenciatura, mais populares, na extensão. Com o congelamento do orçamento trazido pela PEC, é a volta a uma era de desmonte da universidade pública. O risco é de fim da popularização da educação pública de qualidade no país.” A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) defende justamente a consolidação da expansão universitária federal. Em aula magna na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), no final de setembro, a presidenta da entidade, Ângela Maria Paiva Cruz, reitora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), destacou o aumento de cursos noturnos, a revisão da estrutura dos programas e a atualização dos projetos pedagógicos e das políticas de democratização do acesso e de assistência estudantil. Segundo ela, “a cara da universidade federal passou a ser a cara do Brasil”. Segundo um estudo recente da Andifes, 66,19% dos alunos matriculados têm origem em famílias com renda média de até 1,5 salário mínimo. Se consideradas apenas as regiões Norte e Nordeste, esse percentual atinge 76%. Os docentes, com queixas sobre as dificuldades de trabalhar numa rede em expansão com suas mais variadas implicações, temem agora a total precarização do trabalho. “Já estava difícil. Estamos com salários defasados, perdas em torno de 20%, e muitos professores ainda contratados temporariamente”, avalia o primeiro-secretário do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Francisco Jacob Paiva da Silva. E vai piorar, segundo ele, quando os cursos começarem a ser extintos e a infraestrutura e laboratórios sucatearem. “Defendemos mais investimentos, melhores condições, mais vagas, e recebemos a PEC. Temos de pressionar contra porque se trata do desmonte, da estagnação, da desesperança.”

Na mira da PEC A partir de 2003, foram abertas 19 novas universidades, com 173 campi, permitindo 431.804 novas matrículas. A proporção da democratização do acesso: 66,19% dos alunos matriculados são de família com renda média de até 1,5 salário mínimo, que devem deixar de estudar depois da PEC 55. Além das 45 universidades mais antigas, estão na mira a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e outras 18 criadas recentemente NORTE Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unidesspa) NORDESTE Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) Universidade Federal do Cariri (UFCA) Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob) Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) Universidade Federal Rural do Semiárido (Ufersa) CENTRO-OESTE Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) Universidade Federal do Tocantins (UFTO) SUDESTE Universidade Federal de Alfenas (Unifal) Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) Universidade Federal do ABC (UFABC) SUL Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) Universidade Federal do Pampa (Unipampa) Universidade Federal de Ciências da Saúde e Porto Alegre (UFCSPA) REVISTA DO BRASIL

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AMBIENTE

DE NOVO, A SERVIÇO DO CAPITAL Os poucos avanços na legislação dos últimos 20 anos podem desaparecer. Governo Temer promove a maior ofensiva ambiental desde a ditadura Por Maurício Thuswohl

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as últimas duas décadas, em que pesem retrocessos em alguns temas ou as polêmicas suscitadas pelo processo de renovação do Código Florestal, a legislação avançou no que diz respeito a proteção de florestas e biodiversidade, assim como aumentou em todos os biomas brasileiros o número de parques e outras unidades de conservação. Esses avanços, no entanto, correm sério risco. O governo Michel Temer, desde sua efetivação, orienta a maior ofensiva contra a legislação ambiental brasileira desde o fim da ditadura. A partir de 12 de setembro, o Brasil tornou-se oficialmente signatário do Acordo de Paris, documento que tem como principal objetivo estabelecer metas de redução das emissões de gases de efeito estufa para que o aumento da temperatura global seja limitado a 1,5 grau Celsius acima dos níveis industriais até o ano de 2050 (leia mais na edição 116). A posição de vanguarda, no entanto, parece ter sido adotada apenas para consumo externo, já que no Congresso uma série de medidas promete flexibilizar a legislação ambiental brasileira. A bancada ruralista, após emplacar dois ministros de peso no governo Temer – Blairo Maggi, na Agricultura, e Osmar Terra, no Desenvolvimento Social e

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Agrário –, quer aproveitar o momento para tornar mais palatável às empresas nacionais e internacionais a legislação nacional em temas como biodiversidade, mineração, demarcações de terra, direitos indígenas, transgênicos e licenciamento ambiental. O alicerce das mudanças é o Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), aprovado na Câmara, que prevê uma série de privatizações e concessões de empreendimentos de infraestrutura à iniciativa privada. “Essa proposta institui uma governança de camarilha, centralizando decisões e ações em um grupo restrito em torno do presidente”, diz o deputado Nilto Tatto (PT-SP). Secretário-executivo do PPI, o dirigente peemedebista Moreira Franco afirma que o programa tem o objetivo de “dar maior segurança jurídica aos investidores” e “garantir celeridade aos empreendimentos”. Na seara ambiental, adverte o deputado, isso significa que “a regra principal passa a ser licenciar rapidamente e a qualquer custo”. Na visão do governo, a desejada maior celeridade nos projetos do PPI só será conquistada se for possível “destravar” o processo de licenciamento ambiental dos grandes empreendimentos. Temer incumbiu o Ministério do Meio Am-


AMBIENTE

GOLPE NA FLORESTA Jatobá, árvore em processo de extinção, vai ao chão no Pará: governo quer agilizar os processos de licenciamento ambiental

biente (MMA) de elaborar um projeto único com esse fim, apresentado à Câmara ainda em outubro. A proposta elaborada pelo ministro Sarney Filho – para quem “o Brasil não pode mais correr o risco de ter obras paralisadas pela demora dos órgãos ambientais ou pelos questionamentos do Ministério Público na Justiça” – tem itens como a redução do prazo para análises dos pedidos de licença prévia e realização de estudos de impacto ambiental de 15 meses para um ano. Em relação à licença de instalação, a redução pretendida pelo governo é de oito para seis meses. As consultas públicas realizadas pelos órgãos ambientais na internet também seriam interrompidas. Antes mesmo de formalizar suas propostas, o governo já sofria pressões de ambientalistas e do Ministério Público Federal. Em 6 de outubro, os procuradores enviaram ao MMA uma nota técnica com sugestões de modificações no projeto, feitas a partir da análise dos grupos de trabalho do MPF para Grandes Empreendimentos e Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. A nota destaca problemas como ausência de diálogo e de transparência. Em seminário realizado em setembro na Câmara, o MPF alertou sobre a ameaça. “Estamos vinculados aos princípios da precaução, da participação, da vedação ao retrocesso e do poluidor-pagador. Não há como fazer mudanças legislativas tentando se afastar desses princípios, porque estaremos nos afastando do Estado constitucional”, disse Fabiana Schneider, procuradora da República.

PAULO FRIDMAN/PULSAR IMAGENS

Agenda regressiva

Outros projetos atualmente em trâmite no Congresso, se aprovados, poderão desmontar a política ambiental construída no Brasil nas últimas duas décadas. No que diz respeito à biodiversidade, a maior ameaça é o Projeto de Lei do Senado (PLS) 620/2015, elaborado por Marcelo Crivella (PRB-RJ), ex-ministro REVISTA DO BRASIL

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JOSÉ CRUZ/AGENCIA BRASIL

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GOLPE NAS RIQUEZAS MINERAIS A expansão da mina de ouro em Paracatu (MG) chega aos limites da cidade: projeto que tramita na Câmara pode facilitar ainda mais a atividade de mineração e libera para exploração reservas naturais de cobre, carvão, fosfato e zinco

da Pesca, e relatado por Benedito de Lira (PP-AL). A proposta altera a Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos e a Lei da Aquicultura e Pesca para dispor sobre o licenciamento da instalação de parques e áreas aquícolas situados em águas de domínio da União nos lagos de hidrelétricas, açudes e barragens e que ocupem até 0,5% da área de superfície do respectivo corpo de água. O PLS 620 está em análise pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). “Nas entrelinhas, esse projeto fragiliza os dispositivos de controle sobre as atividades do setor pesqueiro e permite que essa atividade aconteça sem a concessão de licença pelo órgão competente. Isso abre as portas para a introdução de espécies exóticas, uma das maiores ameaças à biodiversidade dos peixes nativos”, diz Pedro Aranha, do Fórum Brasileiro de ONGs sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (FBOMS). 28

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Proposta já aprovada na Câmara e que aguarda a apreciação do Senado, o Projeto de Lei 4.148/2008, de Luis Carlos Heinze (PP-RS) e relatado pelo atual ministro da Saúde, Ricardo Barros (PP-PR), pretende alterar a lei de rotulagem de transgênicos. O projeto desobriga as empresas de inserir o já tradicional símbolo do triângulo amarelo com a letra “T”, que informa aos consumidores a existência de transgênicos nos produtos, mantendo a obrigação apenas para os produtos que ultrapassarem a marca de 1% de transgenia em sua composição final. A rotulagem, segundo a proposta, não seria mais obrigatória para “indicação da presença de DNA ou proteína resultante da modificação genética”. No Senado, esse PL será relatado na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária pelo ruralista Cidinho Santos (PR-MT), suplente de Blairo Maggi. O Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) criticou a

escolha. “O agronegócio é um setor que se posiciona aberta e publicamente contra a rotulagem de transgênicos. Não é adequado que um senador ligado ao agronegócio seja responsável por avaliar qualquer proposta relativa ao tema”, diz Ana Paula Bortoletto, pesquisadora do Idec. Por enquanto, a rotulagem dos produtos transgênicos, independentemente do teor de ingredientes geneticamente modificados neles contidos, é garantida por uma decisão liminar do ministro Luiz Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF). O governo, no entanto, deu entrada em setembro em um pedido de reconsideração da liminar ou envio do processo para a 1ª Turma do STF, composta pelos ministros Luís Roberto Barroso (presidente), Luiz Fux, Marco Aurélio Mello e Rosa Weber. Em uma turma com cinco ministros, um processo se decide em três votos, metade da maioria exigida no pleno.


AMBIENTE

Direitos indígenas

O retrocesso também ameaça direitos indígenas. Na Câmara, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, elaborada por Amir Sá (PRB-RR) e relatada por Osmar Serraglio (PMDB-PR), traduz uma das principais bandeiras ruralistas ao propor que o Congresso Nacional, e não mais o Executivo, passe a dar a última palavra sobre a demarcação de terras indígenas. A proposta já passou por comissões e está pronta para ir ao plenário. Se aprovada, seguirá para o Senado. A PEC 215 é fortemente denunciada pelas entidades que compõem a Mobilização Nacional Indígena, e 48 senadores já assinaram um manifesto por seu arquivamento. Considerados complementares à PEC 215, os Projetos de Lei 1.216/2015, de autoria de Covatti Filho (PP-RS), e 1.218/2015, do deputado Victorio Galli (PSC-MT), regulamentam o artigo 231 da Constituição e o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Ambos determinam que somente possam ocorrer expropriações em terras que tenham sido homologadas nos primeiros cinco anos após a promulgação da Constituição de 1988. Outra ameaça aos direitos indígenas é a PEC 76/2011, do ministro B ­ lairo ­Maggi, relatada pelo senador Valdir ­ Raupp (PMDB-RO). Pronta para votação em plenário, a proposta trata do “aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e

Facilitadores

GOLPE NO CONSUMIDOR Ricardo Barros, ministro da Saúde, quer desobrigar as empresas que usam transgênicos a colocar a letra “T” nos rótulos

a lavra das riquezas minerais em terras indígenas”. Embora o texto fale em “ouvir as comunidades afetadas”, os críticos são contundentes. “A proposta tem o único intuito de abrir as terras indígenas às grandes hidrelétricas”, afirma Maurício

Guetta, advogado do Instituto Socioambiental (ISA). A ofensiva promovida pelo governo Temer sobre os direitos indígenas foi denunciada em setembro durante reunião do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Um evento paralelo intitulado “Direitos Indígenas: perspectivas em tempos de retrocesso e violência no Brasil” foi organizado por entidades como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o Conselho Indigenista Missionário ­(Cimi) e a Voz das Mulheres Indígenas. “Os povos indígenas já se sentiam ameaçados nos outros governos, mas isso piorou muito”, critica Sonia Guajajara, coor­denadora da Apib. Já o desejo do governo de aprovar um novo Código de Mineração ainda este ano pode se materializar na aprovação do PL 37/2011, do deputado federal Weliton Prado (PMB-MG), relatado por Laudívio Carvalho (SD-MG). O projeto está com a Comissão Especial de Mineração da Câmara, e pode seguir a qualquer momento para votação em plenário. A mineração também faz parte do desejo de privatização manifestado pelo governo Temer, e quatro áreas para exploração de cobre, carvão, fosfato e zinco foram incluídas no PPI. O PL 37/2011, de interesse das grandes mineradoras, pretende simplificar procedimentos de grande impacto e traz poucas salvaguardas ambientais, sociais e trabalhistas para as populações e áreas afetadas”, afirma o ISA.

Ministros, deputados e os projetos “urgentes” e liberalizantes FOTOS AGÊNCIA BRASIL, AGÊNCIA SENADO E CÂMARA DOS DEPUTADOS

Moreira Franco: licenciamentos ambientais rápidos e “a qualquer custo”

Blairo Maggi e Osmar Terra: legislação mais liberal para temas como biodiversidade, mineração, demarcações de terra, direitos indígenas, transgênicos e licenciamento ambiental

Ricardo Barros: desobrigar as empresas que usam transgênicos de inserir o símbolo do triângulo amarelo com a letra “T”

Weliton Prado: novo código de mineração, incluindo quatro áreas para exploração de cobre, carvão, fosfato e zinco

Valdir Raupp: aproveitamento dos recursos hídricos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas

Covatti Filho: expropriações só podem ocorrer em terras homologadas nos primeiros cinco anos após a Constituição de 1988

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Ao Cerrado, com carinho

Vivência entre educadores e estudantes no Espaço Chico Mendes, em Brazlândia (DF), difunde a importância do equilíbrio ambiental e o papel do homem na sustentabilidade Por Hylda Cavalcanti 30

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FOTOS SERGIO AMARAL/RBA

m tempos de iniciativas pela preservação do planeta e, contraditoriamente, de contínuas agressões ambientais, uma pergunta se repete entre pesquisadores, pais, educadores e também empresários: o que está errado no esforço de conscientização do ser humano? Na busca de respostas, professores da rede pública e privada do Distrito Federal decidiram usar uma propriedade do sindicato da categoria, o Sinpro-DF, para unir o agradável – uma chácara de 66 hectares na cidade-satélite de Brazlândia – ao útil: criar um polo de educação ecológica.


EDUCAÇÃO

ESPAÇO PRIVILEGIADO O professor Heráclito Sette Silva ensina aos alunos técnicas de extração do mel

O Espaço Educador Chico Mendes, idealizado e mantido pela entidade, funciona há um ano e meio, em uma antiga fazenda do século 17. A microrregião rural, a 45 quilômetros do Plano Piloto de Brasília, é conhecida pelo plantio de morangos. E agora experimenta possibilidades de estimular a interação em aulas de Geografia, Biologia e orientações sobre manejo sustentável. A área integra uma reserva ambiental reflorestada pelo sindicato e que tem proporcionado novos olhares sobre a vegetação nativa, o Cerrado. Ali tudo é diferente, como o teto das

construções, feito com bambus, e praticamente tudo pode ser reaproveitado e reciclado. “Já pensou a alegria que é para os alunos aprender enquanto plantam mudas dentro de uma estação ecológica? Ou ter a oportunidade de ver e reconhecer cada árvore in loco durante as aulas?”, diz o professor Jefferson Soares. Ele trabalha na rede pública do governo distrital (GDF), participou de um curso de capacitação e está se organizando para levar grupos de estudantes. Como já faz a também educadora Ivanete Pedreira. “O local permite interagir mais nas aulas, realizar atividades lúdicas e REVISTA DO BRASIL

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EDUCAÇÃO

RECONHECENDO AS ESPÉCIES Trilha das árvores: vegetação típica do cerrado e plantações desenvolvidas há mais de 100 anos

vivências que não são possíveis na escola. Além da área verde, existem vários prédios que permitem ao educador fazer um roteiro de passeios e discussões ao final”, afirma. Os alunos aprovaram. “Meu pai falava muito no jeribá, mas eu não tinha ideia de como era. Só depois que vi a árvore de perto descobri que existem várias delas num parque perto da minha casa”, conta Adriana Maranhão, 12 anos, aluna do fundamental. “O lugar chama a atenção de quem quer trabalhar de forma sustentável. Ainda estou em dúvida sobre que curso fazer na faculdade, mas penso muito em Engenharia e Arquitetura e nunca tinha visto de perto um telhado verde. Saí do passeio conhecendo alternativas para quem quer abraçar uma dessas profissões”, diz o estudante do ensino médio Joaquim Andrade, 16 anos.

Centro de formação

O espaço era usado até junho do ano passado como centro de formação do sindicato. Durante os fins de semana, continua sendo área de lazer para os associados. Abriga vegetação típica e plantações desenvolvidas há mais de 100 anos. São comuns, 32

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por exemplo, árvores como copaíba, tapirira e jeribá (também chamada “palmeira do cerrado” e chamada em outros locais de jerivá, gerivá ou geribá), entre outras espécies, devidamente identificadas em duas trilhas – a das Águas e a das Árvores –, além de bacias de águas correntes vindas de nascentes. A sede e demais ambientes da chácara são parte de um projeto arquitetônico coordenado por professores da Universidade de Brasília (UnB). No local existe um centro de referência, um segundo centro, de formação, e uma oca – destinada a cirandas, reuniões, aulas e salão multiúso. Todas as edificações ficam próximas, interligadas por meio de uma praça. Bom aproveitamento de luz natural, teto verde para reduzir a temperatura ambiente, reservatórios apropriados para captação de água de chuvas, combinados com o suporte profissional, tudo oferece múltiplas possibilidades para o desenvolvimento de atividades educativas. Segundo a diretora do Sinpro Rosilene Corrêa, a revitalização do espaço era sonho antigo da entidade. A ideia era possibilitar essa integração entre professores, alunos e meio ambiente, por intermédio de experiências práticas. E acabou se expan-


EDUCAÇÃO

ESTUDO DO MEIO Alessandra, Marcos e Rosângela: integração maior para absorção do conhecimento adquirido em sala de aula

PROFESSORES, ALUNOS E MEIO AMBIENTE Rosilene Corrêa: revitalização do espaço era sonho antigo do sindicato

dindo com a oferta de cursos de capacitação para professores, inclusive de universidades. “O local que usávamos para a realização de seminários e outros eventos ganhou uma funcionalidade mais interativa e trouxe resultados muito positivos para todos nós”, afirma. A coordenadora pedagógica Alda Ilza Lima destaca a diversidade das aulas. “Chegam por aqui alunos de Biologia e Geografia para fazer um passeio com os professores e conhecer de perto o bioma. Universitários promovem atividades de reflorestamento e reconhecimento de práticas agroecológicas. Um dia desses, tivemos uma atividade de tratamento de abelhas para retirada de mel”, diz. O professor Heráclito Sette Silva, que integra a Associação de Meliponicultores do Rio de Janeiro (AME-Rio), lembra a importância de prender a atenção dos alunos para mostrar as técnicas de extração do mel. “Nada melhor do que um espaço onde tudo isso possa ser mostrado de perto e com segurança.”

a eles suporte para suas aulas e contribuir para a criação de um mundo mais conscientizado”, afirma o diretor da entidade Carlos Cirane. “Na verdade, o que queremos é que esse tipo de ensino, fora da sala de aula e mostrando ao vivo a natureza, vire moda.” Para Carlos, esse é o projeto mais ambicioso do Sinpro, por incorporar tecnologias ecológicas disponíveis e contribuir não somente para a escola, mas para toda a comunidade de Brasília. “Oxalá do Brasil inteiro.” Rosilene acrescenta que educadores não podem mais se portar apenas como espectadores diante dos desafios da sustentabilidade. “Temos de mostrar aos alunos, principalmente crianças e adolescentes, que todos temos ligação com o ambiente e o quanto isso influencia a nossa vida. Quando saímos do ventre da mãe biológica e é rompido o cordão umbilical, passamos a ficar ligados pela respiração a um segundo cordão, invisível, ligado ao planeta. As pessoas esquecem disso”, ressalta. Rosângela Ferreira, 32 anos, e Marcos Pereira, 19, alunos do curso de Controle Ambiental, já frequentaram a chácara várias vezes. “Aqui estamos em plena floresta, há uma integração maior para absorção do conhecimento adquirido em sala de aula”, destaca Rosângela. “O sentido de aprendizado é bem melhor”, diz Marcos. A colega Alessandra Gonzaga de Souza, 20 anos, concorda: “As técnicas de preservação, a identificação das espécies, o espaço para as aulas, tudo nos faz ter uma aula de verdade”.

Projeto ambicioso

A equipe procura receber em média 50 alunos por turno, de segunda a sexta-feira. Turmas programadas por professores de escolas públicas e privadas, assim como de universidades, fazem as inscrições no Sinpro. Mais de mil alunos já percorreram algum roteiro levados por seus professores. “O objetivo é oferecer essa oportunidade aos professores, dar

Oficinas para professores Profissionais de educação têm recorrido a oficinas específicas no local com objetivo de se familiarizar com a proposta e conhecer as possibilidades educativas do espaço. As oficinas são gratuitas para associados do Sinpro e grupos da rede pública. Para instituições privadas de ensino, organizações não-governamentais e institutos socioambientais, são cobradas pequenas taxas para ajudar na manutenção da área, que variam conforme o perfil da utilização. O conteúdo do projeto não chega a ser pioneiro. Existem experiências similares pelo país afora, mas chama a atenção o fato de ser iniciativa de um sindicato de trabalhadores. O pedagogo e mestre em Educação Ambiental José Eduardo Santana, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), elogia. “Apesar de as notícias

relacionadas ao meio ambiente fazerem parte da pauta diária dos meios de comunicação, muitas vezes são mostradas de forma a serem responsabilizados países e governos, sem que se leve à certeza de que todos nós temos parte nisso”, observa. Segundo ele, embora seja necessário intensificar a cobrança a governantes e empresários pelos desastres ambientais, atos de preservação e conscientização precisam ser consolidados – é uma tarefa importante para os educadores. “Ações desse tipo ajudam a formar uma escala global de preservação do planeta”, afirma. “Sem falar que dá perspectivas para as escolas sem muita infraestrutura de conseguir levar os alunos para uma opção diferente de aula.” REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Nenhum passo para trás

RICARDO MATSUKAWA

Para a pensadora Djamila Ribeiro, é preciso resistir ao desmantelamento de políticas públicas. Mas a esquerda precisa ampliar o debate Por Maitê Freitas

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oi o pai de Djamila Ribeiro que a batizou com o nome africano, cujo significado é “beleza”. Filha de um estivador comunista, sua base educacional, em Santos, litoral paulista, incluiu xadrez e uma boa dose de formação política. Para a mestre em Filosofia Política, feminista e atual secretária municipal adjunta de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, é momento de resistir ao retrocesso e consequente desmantelamento de políticas públicas. “Mas é imprescindível que a esquerda brasileira entenda de uma vez por todas que não dá para se fazer um debate sério sem pensar a questão racial como principal”, acrescenta. “Queremos ser as pessoas que pensam essas políticas, como protagonistas.” Formada na segunda turma de Filosofia da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), com iniciação científica e mestrado, tornando-se referência em estudos sobre a pensadora e ativista francesa Simone de Beauvoir, Djamila vê alguns avanços nas reivindicações históricas do movimento negro brasileiro. Pouco ainda, porém. Também há uma lacuna no meio acadêmico, aponta: “Pautam a questão de classe desvinculada da questão de raça”. Representatividade no ensino, importa?

A representatividade é extremamente importante para construção da nossa subjetividade. A partir do momento em que você vive numa sociedade racista, na qual os nossos saberes são hierarquizados e não legitimados, é como se a gente não existisse ou produzisse conhecimento, e isso é uma das mortes simbólicas, dentre as várias mortes que o Estado acomete contra a população negra desde a morte física à morte simbólica, na qual faz parecer que nós não temos saberes e a nossa história não é ensinada nas escolas. Em geral, o caminho acadêmico para os alunos negros é hostil e solitário. Foi assim com você?

Eu acho que é um caminho hostil e solitário quando você vai estudar algo que vai contra a epistemologia dominante, quando somos minorias nesses espaços de formação do conhecimento. Sermos poucos deflagra o quanto a sociedade é racista e naturaliza essa ausência. A ausência de negros nas universidades não é questionada sequer pelas pessoas brancas. Elas não se questionam o porquê de quem está dando a aula serem pessoas brancas e quem está limpando, negras. A naturalização desses lugares acaba sendo, também, uma das violências do racismo, aumentando a hostilidade e a solidão do aluno negro, por ser ele uma minoria que tenta pautar uma produção de saber representativa.

Os alunos negros têm uma pauta em comum ou é possível transitar pelo universo acadêmico sem pautar as questões referentes a negritude e identidade?

Claro que não são todas as pessoas negras que estão nas universidades que pautam as nossas produções de saberes. Mas para nós que pautamos é difícil encontrar bibliografia, tem de se fazer o trabalho dobrado, cursar as disciplinas, estudar e lutar para que esse saber seja legitimado, encontrar um orientador que esteja disposto e oriente mesmo não conhecendo o tema. É um ambiente hostil e solitário, sobretudo, para as mulheres negras que buscam estudar a produção de saberes de autoras negras. Como foi sua trajetória escolar?

A minha trajetória caminha junto com essa outra educação e formação que o meu pai dava para gente. Meu pai era estivador, em Santos, por isso estudei num colégio para filhos e netos de estivadores. O que me fez ter uma boa educação no ensino fundamental. Fora isso, meu pai era do Partido Comunista, eu tive acesso a outras atividades que completavam os meus estudos. Frequentava a União Cultural Brasil-União Soviética, aprendi a jogar xadrez, tive formação política, meu pai me levava para manifestações e desde muito cedo conversava com a gente sobre o que é ser negro. Você teve professores negros durante a sua formação?

Não tive nenhum professor negro no ensino médio e no fundamental. Nem no curso de Filosofia na Unifesp. Eu fui ter um professor negro quando fiz algumas disciplinas em Ciências Sociais e História. A partir de 2002, o debate das ações afirmativas, cotas, demarcação de terra quilombola passa a pautar a sociedade e o governo. O que avançou de lá para cá?

É inegável que nos últimos anos houve avanços. Eu mesma sou fruto de um campus criado em 2007 e que implementou as cotas. Em 2001, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) foi pioneira em implementar as cotas, em 2004 a Unb, e em 2012 a lei de cota foi aplicada nas universidades federais e nos processos seletivos do serviço público. Houve avanços para garantir o acesso da população negra a determinados espaços, mas muito pouco perto daquilo que é necessário. Mas é inegável que houve avanços importantes daquilo que foram e são reivindicações históricas do movimento negro. Por que a Universidade de São Paulo, a maior da América Latina, não tem cotas? REVISTA DO BRASIL

É necessário lutar não só para ampliar o acesso do estudante negro à universidade como pela melhoria do ensino de base. Cotas não devem ser permanentes, mas devem existir enquanto houver desigualdades NOVEMBRO 2016

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A USP não aderir às cotas significa reforçar o quão elitista é, o quanto ela resiste em fazer mudanças essenciais e necessárias. Se esse Estado nos violenta e nos aparta desses espaços, é obrigação desse Estado criar mecanismos para que estejamos nesses espaços. Essa resistência da USP mostra o quanto ela é racista e o quanto se acredita que a educação de qualidade deve ser algo para poucos e para pessoas privilegiadas, ou seja, para pessoas brancas. O movimento negro estudantil tem voz no meio acadêmico?

Se formos pensar nos movimentos estudantis dos centros acadêmicos nas universidades, ainda não existe um debate aprofundado e sério sobre a temática racial. Pautam a questão de classe desvinculada da questão de raça, sem se aprofundar na temática racial. Existem coletivos de estudantes negros universitários que fazem este recorte étnico-racial. Na USP, a Ocupação Preta tem feito um trabalho de intervenções importantes e mostrado o quanto a instituição é excludente. No movimento estudantil, eu valorizo o movimento negro estudantil, que tem feito discussões importantes, colocando a questão racial como nexo prioritário. Sem a questão racial não tem como fazer uma discussão e se ter avanço no combate às desigualdades. Nos últimos anos, alguns movimentos sociais passaram a ter a voz ampliada na esfera pública, como o movimento feminista negro. Questões desse movimento tiveram algum avanço no combate às desigualdades?

Quando uma pessoa branca que estudou em escolas boas, comeu bem e tem acesso a idiomas passa na USP não é porque é genial, é porque teve condições para isso. A meritocracia é um mito, e escamoteia o racismo 36

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Historicamente, muitas mulheres vêm pautando estas questões. Essa geração é herdeira dessas mulheres que vieram plantando e abrindo os caminhos. É muito importante sabermos de nossas histórias, de onde viemos. Como diz Jurema Werneck (médica, engenheira, comunicadora, escritora e ativista): “Nossos passos vêm de longe”. Esses caminhos abertos por essas mulheres foram e são importantes para que nós (mulheres negras) ganhássemos mais espaço e com o advento das redes sociais a gente consegue amplificar esses discursos. Meninas cada vez mais novas começam a pautar essas questões em seus espaços, ter acesso a essa história, a essas autoras e conseguem se posicionar de forma mais estratégica e participativa. É possível pensar as ações afirmativas e uma reforma na estrutura de ensino brasileiro?

É importantíssimo pensar numa educação pública de base de qualidade. Pensar ações afirmativas e pensar a melhoria do ensino de base não são ações excluREVISTA DO BRASIL

dentes, ao contrário. Como demorará muito tempo para termos uma educação de base de qualidade, nós não podemos condenar outras gerações de pessoas negras à exclusão e à falta de acesso ao ensino superior. É necessário lutar para manter e ampliar não só o acesso e a permanência do estudante negro na universidade, como concomitantemente continuar lutando pela melhoria do ensino de base. As cotas não devem ser permanentes, mas devem existir enquanto houver desigualdades. As cotas colocam em xeque a meritocracia. A quem serve a meritocracia num país como o Brasil?

A meritocracia é um grande mito, no qual as pessoas não querem entender que existe um grupo, uma maioria, que enriqueceu o outro grupo, a minoria. Existe um grupo branco que tem privilégios e enriqueceu às custas da opressão e exploração do grupo negro. O fato de uma pessoa branca que sempre estudou em escolas boas, comeu bem e tem acesso a idiomas passar num vestibular como o da USP não é porque ela é especial, mas porque ela teve condições para isso. Ela não é genial. Insistir num discurso meritocrático é escamotear o racismo e o privilégio do grupo branco. Você uma vez falou que “estávamos aprendendo a surfar”. E agora, qual é a perspectiva?

Nós tivemos alguns avanços, algumas poucas conquistas que foram importantes. Contudo, agora estamos diante de um cenário de retrocessos e cortes de políticas públicas, com a PEC 241 (a Proposta de Emenda à Constituição que agora, no Senado, tem o número 55). No momento em que estávamos num crescente de conseguir algumas ações que dizem respeito a uma reparação histórica para população negra, a gente vive o retrocesso dessas ações. É como se dissessem “Chega!”, quando o momento deveria ser de consolidação e amplificação desses direitos. Diante desse retrocesso, quais são os próximos passos?

O momento é de resistir, não aceitar o desmantelamento de políticas que foram importantes à população negra. Temos de seguir avançando, não dá para compactuar com esse retrocesso. Mas é imprescindível que a esquerda brasileira entenda de uma vez por todas que não dá para se fazer um debate sério sem pensar a questão racial como principal. Nós não queremos ser apenas as beneficiárias dessas políticas, mas queremos ser as pessoas que pensam e propõem essas políticas, como sujeitos, como protagonistas, já que historicamente fomos apartados desses espaços.


CIDADANIA

Mais que uma

CASA DANILO RAMOS/RBA

VIDA NOVA Maria José: “Faz só cinco meses, mas já melhorou tudo”

Beneficiários da faixa de menor renda do programa Minha Casa, Minha Vida contam suas histórias e mostram que o sentimento de realização é bem maior que o sonho da moradia Por Rodrigo Gomes

“S

ó de me deitar à noite e não ter de pensar nos R$ 950 que seriam pagos no aluguel já faz muita diferença. Hoje minha filha pode fazer e pagar com o trabalho dela a faculdade de design gráfico, sem se preocupar que vai faltar pro aluguel. Eu posso levar minhas netas para passear, posso pensar em móveis pra minha casa. É viver num sonho. Nem caiu a ficha ainda”, conta a merendeira Maria José Cardoso da Silva, que trocou o Ceará por São Paulo há 30 anos. Desde maio, ela mora no apartamento 26 do

Conjunto Habitacional Iracema Eusébio, do programa Minha Casa, Minha Vida, no centro de São Paulo. “Faz só cinco meses, mas já melhorou tudo”, diz. Até o início do ano, Maria José pagava aluguel na Mooca, na zona leste paulistana, onde vivia com as três filhas em um quintal com mais cinco famílias. Antes, morava com o marido em uma pequena casa na periferia de Guarulhos, na região metropolitana, que foi vendida depois de se separarem. O dinheiro, no entanto, era insuficiente para dar entrada num novo imóvel. “Fomos para o aluguel. Só que fica impossível você junREVISTA DO BRASIL

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tar algum dinheiro, ganhando pouco e pagando muito. Achava que ia ficar pra sempre assim, por que a gente não consegue entrar em financiamento de casa. Daí, em 2008 eu conheci o movimento e fui pra luta”, lembra. O movimento é a Unificação das Lutas de Cortiço e Moradia (ULCM). E não foi uma casa “ganhada”, como muitos acreditam. Foram oito anos participando de reuniões entre famílias e o poder público, indo a manifestações e participando de ocupações em prédios na região central. O edifício onde hoje está o conjunto habitacional pertenceu e abrigou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Para receber as famílias, contempladas pela modalidade Minha Casa, Minha Vida Entidades, o edifício passou pelo processo de retrofit, uma reforma estrutural que modifica a destinação do local. São 72 apartamentos em 13 andares, com elevadores e monitoramento por câmeras. As unidades têm 30, 43 ou 51 metros quadrados. Maria José conseguiu uma de 30. O tamanho não é problema para ela, que hoje vive com a filha caçula, Samantha.­“Agora nós temos condições de planejar. Vamos pensar em cada ambiente, cada móvel, cada decoração. Esperei muito, agora vai ficar do jeito que eu penso. Só pelo acabamento, os azulejos, já é lindo”, afirmou. O apartamento tem poucos móveis, o essencial para a vida de mãe e filha. O orgulho se completa pelo fato de morar ao lado do Teatro Municipal. “Olha só a vista que eu tenho da minha janela. Todo dia eu olho o teatro e penso que nunca imaginei isso pra mim.” A prestação adequada às condições socioeconômicas da família faz toda a diferença. Na Faixa 1 e na modalidade Entidades do programa, que atende famílias com renda de até R$ 1.600 per capita, o valor da prestação não pode ultrapassar o limite de 5% da renda familiar – nem do teto de R$ 270. Em contratos de aluguel, até 30% da renda pode ser comprometida. Com isso, a merendeira sentiu um impacto significativo: queda de R$ 900 para cerca de R$ 100 no gasto mensal com a moradia. “Na vida do pobre, um dinheiro desse faz uma diferença que, meu Deus...” Na Faixa 1, o beneficiário pode ter 38

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subsídio de até 90% do valor da moradia. O governo federal, por meio da Caixa Econômica Federal, investe R$ 76 mil em cada unidade habitacional. O governo estadual ou municipal, dependendo do convênio, mais R$ 20 mil. O morador paga o restante em até dez anos. Na capital paulista, a gestão do prefeito ­Fernando Haddad (PT) efetivou uma parceria com o governo estadual (PSDB) para incrementar com mais R$ 20 mil por unidade os empreendimentos construídos na cidade.

Déficit histórico

O Brasil tem uma história longa de valorizar e estimular a aquisição da casa própria. No entanto, as oportunidades, sobretudo para a população de baixa renda, sempre foram escassas. Entre 1930 e 1964, houve um ciclo de obras financiado pelos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) de algumas categorias de trabalhadores. Os cadastros para moradia nos municípios são conhecidos pela longa espera, muitas vezes sem conclusão. Em 2009, no segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criado o Minha Casa, Minha Vida. A Faixa 1 do programa e a modalidade Entidades levaram não só à conquista da moradia, mas a uma melhoria em cadeia na vida das pessoas, com mais espaço no orçamento para investir em educação, lazer, aquisição de bens e uma reviravolta na autoestima. Cinco andares acima de Maria José vive a representante comercial Maria Verônica­ de Souza Nascimento. São conterrâneas. As trajetórias de vida foram distintas. ­Verônica não tem filhos, e desde que chegou em São Paulo, há 19 anos, sempre morou na região central. Mas o impacto do programa na vida é semelhante. “Agora eu estou pagando pela minha casa e com melhores condições de vida. O aluguel penaliza muito a gente, é um dinheiro mal gasto. Tenho poucos móveis ainda, porque quero me planejar bem, fazer tudo com calma. Já coloquei um espelho grande no banheiro, porque sempre sonhei com isso e quis fazer logo”, diz. Antes, Verônica era casada e morava em um uma casa de um cômodo, em um

O ALUGUEL PESA MUITO Verônica: “Agora eu estou pagando pela minha casa e com melhores condições de vida. Tenho poucos móveis ainda, porque quero me planejar bem, fazer tudo com calma. Já coloquei um espelho grande no banheiro, porque sempre sonhei com isso e quis fazer logo”


DANILO RAMOS/RBA

CIDADANIA

cortiço na Bela Vista, em que várias famílias dividiam um único banheiro. O aluguel de R$ 600 consumia um terço da renda familiar. “Durante um tempo eu fiz bicos vendendo cerveja aqui pelo centro, fora do horário de serviço, porque a situação era muito difícil”, conta. Em 2008, ela se associou ao movimento. O ex-marido, porém, não acreditou. Parte da família dela também não. Hoje, a prestação da casa própria é de R$ 70. “Isso é muito legal. O aluguel não tem essa preocupação com a pessoa. A vida financeira melhorou e posso dizer que vivo bem.” “Se essa faixa acabar, vai prejudicar

muita gente. Quem ganha pouco não tem como juntar nada, nem pode ingressar em financiamento de banco. Tem muita gente ainda esperando uma oportunidade como essa”, afirma Verônica, que diz nunca ter sequer tentado adquirir uma casa por financiamento. “Não é pra mim.” Hoje, avalia a possibilidade de fazer faculdade, depois que terminar de mobiliar a casa nova.

Programa suspenso

Em dezembro de 2014, o programa Minha Casa, Minha Vida atingiu a marca de 3,76 milhões de moradias contratadas ou

construídas. Os investimentos chegaram a R$ 244 bilhões. A modalidade Entidades respondeu por cerca de 2% do total. Na zona urbana, o programa é dividido por três faixas de renda mensal: até R$ 1.600 (Faixa 1), até R$ 3.100 (2) e até R$ 5 mil (3). Na área rural, as faixas são anuais: até R$ 15 mil, até R$ 30 mil e até R$ 60 mil. A nova contratação – terceira versão do programa – deveria ter sido lançada em 2015. Após vários adiamentos, o Minha Casa­ Minha Vida 3 foi lançado em março pela presidenta destituída Dilma Rousseff (PT), com meta de construir mais 3 milhões de moradias. Dois meses depois, o presidente Michel Temer (PMDB) suspendeu o programa. Em agosto, anunciou a contratação de 40 mil unidades, mas até agora nenhuma contratação foi efetivada. “Vai ser um problema muito grande. Nosso movimento tem mais 3.800 famílias necessitando de moradia. Fora as outras organizações e as pessoas que não são ligadas a movimento nenhum. É gente que chega a passar necessidade, porque o aluguel é muito pesado. Esse programa não pode parar”, defende a trabalhadora autônoma Ivete Leão dos Santos, coordenadora da União Nacional por Moradia Popular em Salvador. Ela foi beneficiada com um apartamento pelo programa Minha Casa, Minha Vida, no bairro de Cajazeiras, região norte da capital baiana, onde vive com o marido e uma filha. Ivete já havia experimentado os efeitos colaterais positivos, quando passou de contar moedas no final do mês para fechar as contas da família e pôde entrar no curso de Serviço Social. “Na verdade, posso dizer que a realização de um sonho levou à realização de outro. Não ter o peso de um aluguel ou prestações altas me deu possibilidade de estudar”, afirma. O empreendimento, com quatro andares, construído em 2013, abriga 20 famílias. A unidade tem 44 metros quadrados, com dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço. “É um prédio lindo. O apartamento não deixa nada a desejar para um desses financiados por banco. É bem acabado, bem planejado”, descreve Ivete, que batalhou cinco anos REVISTA DO BRASIL

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Depois que Rei Domingos foi se embora O tambu emudeceu Santa Cruz chorou bastante O batuqueiro e a cidade entristeceu Rei Domingos vive na nossa lembrança Pra nós Rei Domingos não morreu

Batuque no

TAMBU Tradição de origem africana, o batuque de umbigada reúne a comunidade negra durante a Festa de São Benedito em Tietê, interior de São Paulo Por Maurício Sérgio Dias (texto) e Adriano Ávila (fotos)

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Tem um tambor Tem um tambor Tem um tambor Dentro do peito Tem um tambor Tem um tambor Tambor que bate Batuque bate que bate Tambor que bate O toque de reunir Todos irmãos De todas as cores No quilombo No quilombo No quilombo Carlos de Assumpção

iz o mestre Antonio Candido de Mello e Souza que a cultura caipira de origem, rural e coletiva, não existe mais. Entretanto, seus vestígios ainda podem ser vistos, sentidos e ouvidos por vários locais do território que ele denomina de Paulistânia – vasta região que circunscreve os estados de São Paulo, Paraná, Minas, Goiás e Mato Grosso. Uma África está viva em grande área do interior paulista. Na cidade de Tietê, a 150 quilômetros da capital paulista, existe uma comunidade afrodescendente que apresenta aspectos bem característicos. A Festa de São Benedito, que ocorre todo último final de semana de setembro – passou agora por sua 148ª edição –, tornou-se referência para a cultura negra no estado. É ali que ocorre uma das maiores manifestações da tradição caipira: o batuque de umbigada. Expressão cultural que remonta sua origem aos tempos da escravidão, tem em Tietê, Capivari e Piracicaba suas principais áreas de ocorrência. Como é comum às histórias de base oral, o início do batuque de umbigada se confunde com a vinda da população escrava para a região. Ali o sacro e o profano se associam na explicação das origens. A festa de São Benedito é um dos marcos dessa história. Nascida com a edificação da igreja pela comunidade, em 1868, a festa do santo negro padroeiro sempre uniu as comemorações religiosas e as manifestações populares. Carlos Alberto de Assumpção, 64 anos, é uma das antigas lideranças da Irmandade de São Benedito, tem um olhar instigante sobre o diálogo entre a festa do padroeiro e o batuque de umbigada. Para ele, as duas expressões sempre caminharam juntas: “Quando ainda não existiam os sinos na igreja, era o tambu sete léguas que chamava aos momentos de comemorações religiosas”. Tambu é o tambor principal que burila a rítmica do batuque. Aquele que Carlos chama de sete léguas tinha praticamente o dobro do tamanho dos tambus aqui fotografados. Em uma época de poucos prédios e vastos campos, seu som atingia os rincões mais profundos. “No meu modo de entender”, diz ele, “o toque do tambu deveria ter muitas variações, da mesma forma como os sinos em algumas cidades mineiras; cada toque dizia sobre um determinado acontecimento.”

Alegria viva, cheia de gente

Não é à toa que Tietê, com pouco mais de 40 mil habitantes, é um centro de referência cultural, produtor de personalidades: Cornélio Pires, Marcelo Tupinambá, Itamar Assumpção­ e Camargo Guarnieri. Carlos de Assumpção – primo do personagem recém-citado – é um dos mais valorosos poetas negros do Brasil. Dono de uma poesia ritmada e musical, em sua palavra mora o toque do tambu. O que mais impressiona o forasteiro que chega ao território tieteense é que as expressões culturais populares, que em outros locais se mantêm com grande esforço, ali fluem com uma vivacidade generosa e pulsante. O batuque de umbigada mostra vitalidade. Acontece em um baile que vai até o sol REVISTA DO BRASIL

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raiar. Muita gente, de entupir o salão. Como o batuque atinge boa parte da região, pessoas de Piracicaba, de Capivari, da capital e de outros arredores se achegam para o baile. E não só da comunidade negra – muitos universitários, pesquisadores e os mais simples apreciadores aparecem para dançar. Pouco antes de o baile começar, a fogueira se arma do lado de fora do barracão. Os instrumentos de madeira e couro são colocados no entorno. A função é manter a película bem esticada para que a projeção sonora se mantenha firme. Como são instrumentos que não possuem recursos de afinação manuais, o calor cumpre a função de afinador. No decorrer do batuque, os tambores são substituídos: os mais aquecidos vão para o salão, os que perderam a tenacidade voltam para a beira do fogo. São vários instrumentos que animam o batuque. Como não existem instrumentos melódicos ou harmônicos, todos são percussivos. O maior e mais robusto é o tambu. É o que tece as variações rítmicas. O outro instrumento de couro é o quinjengue: parece um pilão ao contrário, o meio de seu corpo se afila, criando um som mais agudo. Para completar o time vêm as matracas: são duas varetas robustas, que quando batidas repetidamente no corpo do tambu produzem uma batida aguda e repetitiva, que serve como base sonora. O guaiá é um instrumento que cumpre a função de

Na oreia do meu amor Tem um brinco que alumeia Cada passo que ela dá Balanceia, balanceia

Graças a Deus Graças aos meus Orixás Graças aos meus ancestrais Ô, saravá São Benedito Que sol brilhou uma vez mais

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um chocalho – está espalhado em número significativo, nas mãos de vários bailarinos. Como é de se esperar, os batuqueiros são gente que entende do riscado. A batida é alucinante, variada e precisa. Mas diferentemente do que se pode pensar, os batuqueiros não são fominhas e se revezam, assim como os cantadores.

Umbigada pra valer

PESO ANCESTRAL Se a dança e os tambores dão nome ao encontro, quem guia o batuque é a voz, como a de dona Anecide

Eu saí de minha casa Esqueci do meu guaiá Eu num canto pra exibir Eu canto pra me alegrar

A dança, de fato, é um capítulo à parte. É, ao mesmo tempo, um bailado sensual e respeitoso – se dá aos pares, com situações de movimento coletivo. É a princesa do baile, que brilha e “balanceia”. O primeiro movimento de cada dança simula os movimentos de bailado das cerimônias de corte: homens se enfileiram, ombro a ombro, de um lado do salão, e as mulheres de outro, cada um defronte a seu par. Os homens caminham em fileira até seus pares e as cortejam, voltando logo após ao seu ponto de origem; logo depois, as mulheres repetem o movimento. Em seguida, se encontram no meio do salão e começam a dança. Os passos se dão em três movimentos: dois com passos cruzados, e no terceiro se dá a umbigada. Um encontro em que apenas as barrigas do casal se encostam. No momento do toque, o casal levanta suas mãos para demonstrar que não existe outra parte do corpo resvalando. Por isso se diz que é uma dança ao mesmo tempo sensual e altamente respeitosa, pois as mãos devem estar em um ponto em que sejam visíveis. Manter as mãos abaixadas no momento do encontro é entendido como sinal de desrespeito. Se a dança e os tambores dão nome ao encontro, quem guia o batuque é a voz. Todas as epígrafes, com exceção do poema assinado, são modas da umbigada. A saudade dos parceiros idos, o elogio ao passado, uma graça ao seu amor, a reverência aos antigos batuqueiros, são alguns temas conduzidos por vozes que remetem à ancestralidade. É o caso de dona Anecide e suas primorosas composições. Seu timbre, guardada a distância dos estilos, remete a Clementina de Jesus, por seu peso ancestral. Reverência explícita está na abertura deste texto, com uma música que fala do Rei Domingos, um dos mais antigos e célebres batuqueiros, fazendo referência ao bairro tradicional da Santa Cruz, lugar onde se realizam os batuques desde tempos imemoriais. Um bastião de toda essa memória viva é Herculano Marçal. Nascido em 1929, traz em si a memória do tambu. “Minha avó era escrava e foi uma das pessoas que trouxe pra cá a dança”, conta. O batuque aprendeu de berço: “Quando meu pai batucava, a turma conhecia de longe, por causa do jeito do seu repique. Eu aprendi desde pequenininho: comecei a bater nas lata, e um dia meu pai deu o tambu e disse ‘já pode tocar’. Daí em diante nunca parei”. Herculano é até hoje o regente dos encontros, com seu apito. “Antes batuque era todo final de semana. Aí do lado do rio tinha um terreiro que a gente tocava, o pessoal se ajuntava e ia até o raiar do sol”, lembra. Compositor e improvisador, tem uma vitalidade invejável. No último encontro, passou mais de seis horas regendo e cantando. Esperto e matreiro, todo cuidado com ele é sempre pouco. Como adverte em uma de suas modas, em alusão aos perigos: “Cobra criada no mato/ Ninguém sabe o que ela é/ Enrola pra dar o bote/ Urutu ou cascavé”. REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM ATRAÇÃO O museu funciona no prédio do antigo Colégio Atheneu Dom Pedro II, conhecido como Atheneuzinho, erguido em 1926

FEITO A MUITAS MÃOS Aberto há cinco anos, Museu da Gente Sergipana mostra a diversidade da produção popular. Na mesa, no campo, no comércio e na cultura Por Vitor Nuzzi 44

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o longo da Avenida Ivo do Prado, região central de Aracaju, estende-se o Rio Sergipe, que percorre mais de 200 quilômetros desde Nossa Senhora da Glória, no sertão sergipano, até desaguar no Oceano Atlântico, entre a capital e o município de Barra dos Coqueiros, do outro lado. Um pouco adiante, fica a Ponte do Imperador, na verdade um ancoradouro construído em 1860 para receber Dom Pedro II­ e sua comitiva. Mais à frente, estão os mercados municipais. É nesse perímetro

que se localiza o Museu da Gente Sergipana, que está completando cinco anos de instalação, após longo processo de restauração no prédio do antigo Colégio Atheneu Dom Pedro II, conhecido como Atheneuzinho, erguido em 1926. O museu já é uma das principais atrações do estado. Foi criado, segundo o então governador Marcelo Déda, para elevar a autoestima da população. “Para que possamos perceber a grandeza da contribuição que o menor estado do Brasil ofereceu à nação brasileira”, escreveu o governador, que morreu em dezembro de


VIAGEM

FOTOS MÁRCIO GARCEZ​/MUSEU DA GENTE SERGIPANA

INTERATIVIDADE Na área Nossos Leitos, em que os ecossistemas são projetados em 360 graus, o visitante é levado a um passeio de barquinho

HABILIDADE Na área Nossos Monumentos, o jogo de peão é associado a imagens

TECNOLOGIA É o primeiro museu de multimídia interativo do Norte e Nordeste

2013 e agora dá nome ao local. Segundo estimativa divulgada em setembro pelo IBGE, Sergipe tem pouco menos de 2,3 milhões de habitantes – 1,1% da população do país – e sua capital, 645 mil. A inauguração do museu coincidiu com a concessão, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), do título de Patrimônio Cultural da Humanidade à praça São Francisco, em São Cristóvão, uma das cidades mais antigas do Brasil e primeira capital do estado. Aracaju foi promovida em 1855.

Multimídia

Assim como o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, o da Gente ­Sergipana

se caracteriza pelo uso da tecnologia – apresenta-se como o “primeiro museu de multimídia interativo do Norte e Nordeste”. Não é coincidência. Seu curador é Marcello Dantas, ex-diretor artístico do congênere paulistano. “Esse encontro entre a tradição e as novas linguagens tem o poder multiplicador de criar consciência e afetividade sobre identidade para as próximas gerações”, diz Dantas, na apresenção. A interatividade é notada a cada passo. Logo depois da entrada, no átrio, o visitante anda sobre um mapa de Sergipe, dividido por territórios – agreste central, alto e médio sertão, baixo São Francisco... É possível escutar o sotaque dos habitan-

tes de cada um. Acima do mapa, pendurada, uma enorme rede de pesca armazena produtos típicos. Os nomes dados às áreas permanentes do museu enfatizam que os protagonistas, ali, são as pessoas: Nossos Pratos, Nossos Cabras, Nossas Festas, Nossos Leitos (em que os ecossistemas são projetados em 360 graus)... Os “cabras” que aparecem nas telas nem sempre são nascidos lá: Lampião era de Pernambuco, mas morreu no sertão de Sergipe, em 1938. Perto dos personagens históricos, há um “jogo da memória” interativo, para ligar, por exemplo, um objeto a um letra de música, ou a um verbete. Há várias mostras da produção local, em couro, paREVISTA DO BRASIL

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MÁRCIO GARCEZ​/MUSEU DA GENTE SERGIPANA

VIAGEM

INUSITADO Na instalação Josevende, diversos produtos no balcão e nas prateleiras mostram a variedade do comércio local, e é possível “negociar” o preço dos produtos com um vendedor virtual

lha ou madeira, instrumentos musicais, artefatos de pesca. Subindo a escada, a primeira parada é na instalação conhecida como Josevende. Diversos produtos no balcão e nas prateleiras mostram a variedade do comércio local, e é possível “negociar” o preço dos produtos com um vendedor virtual. Saindo da “feira”, a caminho do local em que conhecerá os ecossistemas da região, o visitante verá nas paredes, em letras grandes, nomes e expressões populares, com suas respectivas “traduções”. Tarimba é... Uma cama desconfortável.

Repente

Em um salão amplo, fica a midiateca, com o acervo do museu e publicações para consulta e pesquisa. Ali também está a “Renda do Tempo”, um painel com datas e fatos históricos, expostos em uma renda irlandesa, típica do artesanato local. Em 2008, a técnica, tendo como referência a cidade de Divina Pastora (a 40 quilômetros de Aracaju), foi reconhecida como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Insti46

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MICHAEL JACKSON E CONSELHEIRO No final da visita, há uma infinidade de folhetos pendurados nas paredes com histórias de diversos personagens

tuto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Quase no fim da visita, no andar de cima, também é possível criar um repente ou um cordel, nas cabines destinadas a essas manifestações culturais, em meio a uma infinidade de folhetos pendurados nas paredes, com histórias sobre Antônio Conselheiro, Ariano Suassuna e até Michael Jackson, entre muitos persona-

gens e fatos. Dá para gravar e mandar para o Youtube. Gerido pelo Instituto Banese (o banco público do estado), o museu organiza visitas guiadas, especialmente para escolas, mas é possível percorrer suas instalações sozinho. Há monitores em cada setor. O local tem ainda uma loja e um café – ambos “da gente”. Da abertura até setembro, o museu atingiu a marca de 395.622 visitantes. A maioria, como esperado, é de Sergipe, mas a procedência é variada. No ano passado, por exemplo, foram 45 mil sergipanos, 34 mil pessoas de outras regiões e quase 500 do exterior. Vem gente de todo canto para conhecer, ver e ouvir o que tanta gente já fez e faz. Museu da Gente Sergipana Avenida Ivo do Prado, 398, centro, Aracaju. Funciona de terça a sexta das 10h às 16h. Sábado, domingos e feriados das 10h às 15h. Fecha em 24, 25 e 31 de dezembro, 1º de janeiro, terça de carnaval, 7 de setembro e em dias de eleições. www.museudagentesergipana.com.br


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Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Os Herdeiros, de Cacá Diegues, 1970

IMAGENS DIVULGAÇÃO

Viva o cinema nacional Ana Esmeralda, como Hilda, em São Paulo, Sociedade Anônima, de Luíz Sérgio Person, 1965

Othon Bastos, como Corisco, em Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, 1964

O documentário Cinema Novo, que estreou no início de novembro, resgata a história de um dos mais importantes movimentos cinematográficos latinoamericanos. Dirigido por Eryk Rocha, filho de Glauber, o longa-metragem é um ensaio poético que mergulha na criação do movimento e na visão de mundo e de cinema de seus diretores. Trechos dos principais filmes

são costurados por declarações de Glauber, Cacá Diegues, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Walter Lima Jr. e Paulo César Saraceni. Mais do que resgatar a história do Cinema Novo, o filme acaba retratando a paixão daqueles artistas pelo cinema e seus sonhos para a transformação do Brasil em um país mais justo. REVISTA DO BRASIL

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HARALD SCHULTZ, 1964 (ETNIA WAURÁ)

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FOTOS DIVULGAÇÃO

Beleza e resistência

Música e educação Em 2015, 360 crianças de 8 a 11 anos, alunos do CEU Celso Augusto Daniel, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, fizeram aulas de criação musical instrumental. O resultado do aprendizado está no DVD A Música da Gente – 2ª edição, com composições e interpretações feitas pelos próprios alunos. As músicas foram feitas a partir de sons de garrafões de água, objetos do cotidiano, instrumentos musicais inventados e construídos e de sons dos próprios corpos. O álbum do projeto concebido e dirigido pelo educador, musicólogo e compositor Carlos Kater traz ritmos como samba, rock, maculelê, música eletrônica, funk e batucada. O DVD está à venda por R$ 15 no site www.carloskater.com/loja. 48

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Os adornos utilizados em diferentes culturas indígenas não são apenas “enfeites”. Eles podem simbolizar a identificação de etnias, resistência e, claro, embelezamento. A exposição Adornos do Brasil Indígena: Resistências Contemporâneas, em cartaz até 8 de janeiro, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, apresenta um conjunto de artefatos, fotos e filmes representativos de várias culturas indígenas de diferentes territórios. Com curadoria do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP) e do pesquisador Moacir dos Anjos, a mostra traz obras de, entre outros, Ailton Krenak, Carlos Vergara, Claudia Andujar, Delson Uchôa, Fred Jordão, Lygia Pape e Thiago Martins de Melo. De terça a sábado, das 10h30 às 21h30, e aos domingos e feriados, das 10h30 às 18h30, na Rua Paes Leme, 195, em Pinheiros, São Paulo, (11) 3095-9400. Grátis.


O Coletivo: intervenções de poesia, dança e percurssão

O Sarau das Pretas leva música, poesia e ancestralidade às periferias de São Paulo durante os meses de novembro e dezembro. O coletivo formado por cinco mulheres negras – as poetisas Débora Garcia, Elizandra Souza, Jô Freitas e Thata Alves e a percussionista Tayssol Ziggy – faz intervenções de poesia, dança afro e percussão, com o intuito de promover o protagonismo e o empoderamento das mulheres em defesa de seus direitos. A atividade faz parte da Caravana Juventude Viva, ligada à Coordenadoria da Juventude, da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. A programação completa pode ser conferida no Facebook do Sarau das Pretas: www.facebook.com/saraudaspretasSP. As atividades são gratuitas.

RENATO CANDIDO DE LIMA/DIVULGAÇÃO

Ancestralidade em sarau

Mostra de 1969 é revisitada

A mostra inaugural do Museu de Arte de São Paulo, A Mão do Povo Brasileiro, em 1969, é revisitada com a exposição homônima em cartaz até 29 de janeiro de 2017, no Masp. Originalmente concebida por Lina Bo Bardi, Pietro­Maria Bardi, pelo cineasta Glauber Rocha e o diretor de teatro Martim Gonçalvez, a mostra traz objetos e obras que propõem a “descolonização do museu” para repensar a entidade a partir de uma perspectiva de baixo para cima e as noções de arte e cultura popular. Trabalhos de Candido ­Portinari, Jonathas de Andrade, Lygia Pape e Thiago Honório ajudam o público a “compreender o significado histórico e inaugural do museu, para encontrar novos rumos e reforçar a presença da mão do povo no Masp”. De terça a domingo das 10h às 18h e quinta-feira das 10h às 20h. R$ 25, R$ 12 (meia-entrada) e grátis às terças-feiras.

Histórias de um novo amor HANS GUNTER FLIEG/INSTITUTO MOREIRA SALLES

Trabalho e arte popular

O disco de estreia da jovem dupla Qualquer Bordô conta, em 11 faixas, a história de amor entre a curitibana Carol Kozovits (vocal) e o aracajuano Tai Britto (vocal, violão, guitarra e piano). Ingênuo como as vozes dos dois, o álbum homônimo imprime a (curta) trajetória de vida juntos, suas aventuras, desejos e inquietudes com uma sonoridade que varia entre o folk, o pop e o rock. Mesmo Sem Saber, carro-chefe que abre o álbum, narra uma viagem de família. Ainda Estou Aqui foge do tom adocicado e fala sobre “o dia em que as feridas vão aparecer”. E a nostálgica Um Outro Tempo resgata o sentimento de vazio de quando um acordou e não encontrou o outro na cama. Preço sob consulta. REVISTA DO BRASIL

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LALO LEAL

A

As telas que nos cercam

teletela que permitiria ao governo mandar mensagens e vigiar o comportamento das pessoas, imaginada por George Orwell e descrita no livro 1984, lançado em 1949, ainda não se realizou totalmente, mas estamos chegando perto. Nossos hábitos de consumo já são ostensivamente acompanhados na internet. Basta clicar numa possibilidade qualquer de compra para chover em nossos aparelhos ofertas similares vindas de todos os lados. Mas isso é feito de forma quase explícita e, com pequena habilidade, podemos nos defender. O perigo maior que nos aproxima das previsões de Orwell está no bombardeio de mensagens veiculadas pela televisão – seja pelas tradicionais, seja por serviços audiovisuais específicos oferecidos, por exemplo, nos transportes públicos. Contra esses ataques praticamente não há defesa. Quantos de nós já tentamos ler um livro numa sala de espera de um consultório médico, num hospital ou num laboratório, e fomos impedidos pela concorrência do vozerio vindo da televisão, invariavelmente sintonizada na Globo? Ou, em menor escala, na Record? Outro dia, uma psicóloga, ao passar por esse tipo de experiência, dirigiu-se ao setor de reclamações de um hospital de São Paulo para pedir o desligamento dos televisores. Recebida a portas fechadas, a funcionária encarregada de ouvi-la temia receber uma grave reclamação contra um médico ou atendente e, por isso, muniu-se de toda a seriedade que o momento exigia. Ouvida a queixa com certa surpresa, aliviou-se e não deu muita bola. Afinal, televisores ligados em todos os cantos é tão natural que uma reclamação isolada não mudaria a situação. E ficou por isso mesmo. O incômodo de não poder ler ou simplesmente ficar sossegado, sem ser obrigado a ver e ouvir o que as TVs nos impõem é desagradável, mas ainda não é o pior. O que realmente nos aproxima das previsões de Orwell é o conteúdo das mensagens que nos bombardeiam de todos os lados. Naturalizam o consumismo, a frivolidade, o apelo à violência e, principalmente, a adesão ao conservadorismo político nivelando o público segundo os interesses dos setores hegemônicos da sociedade. Orwell previa que as rédeas desse sistema estariam nas mãos de um Estado totalitário, controlador através das telas da vida dos cidadãos. No caso brasileiro, as rédeas estão nas mãos dos grupos privados de comunicação, críticos ferozes dos governos populares e dóceis aliados dos conservadores, como é o caso do momento atual. Deles dificilmente escapamos porque, mesmo desligando os aparelhos de TV em casa, eles nos cercam no tá50

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xi, no ônibus, no metrô, nos bares, restaurantes, padarias e nas mais diferentes salas de espera. A dificuldade é tão grande que começa a despertar atitudes de enfrentamento indo além das reclamações pontuais, como a da psicóloga. Em Porto Alegre, a vereadora reeleita Sofia Cavedon (PT) apresentou à Câmara Municipal um projeto de lei definindo o tipo de emissoras que podem ser sintonizadas em ambientes de alguma forma relacionados com o poder público. Pela proposta, só televisões públicas ou comunitárias seriam admitidas em salas de espera de repartições públicas, bancos, unidades de saúde e assistência social, escolas e instituições conveniadas com a prefeitura. “Cada vez mais a programação das emissoras de televisão é voltada para temas como sexo, violência e conflitos pessoais e familiares. Uma criança que aguarda atendimento em um hospital conveniado com o SUS está exposta a assistir cenas de sexo, tiroteios e brigas, sem que os pais possam fazer nada”, justifica Sofia. Ainda assim, ler continuará difícil. Pelo menos deixaríamos de ser obrigados a aguentar, em esperas públicas, as Anas Marias e os Datenas da vida.


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