Rdb106

Page 1

MAIORIDADE PENAL Reduzir não promove a paz. Ao contrário

HISTÓRIA PREMIADA Reforma agrária em bom português

nº 106 maio/2015

RAPPIN HOOD Rap não é só militância, mas tem um propósito

www.redebrasilatual.com.br

TERCEIRIZAÇÃO É...

O FIM DO EMPREGO

Projeto aprovado na Câmara é um atentado ao trabalho decente. Resistência dos trabalhadores continua no Senado, no Planalto e nas ruas


MAIS PERTO DE VOCÊ

CANAL 44.1 HD DIGITAL EM TODA GRANDE SÃO PAULO

ASSISTA TAMBÉM EM Canal 2 Net: São Paulo (das 19h às 20h30) Canal 46: Mogi das Cruzes Canal 12 Net: Grande ABCD No site: tvt.org.br Satélite C3, frequência 3851, symbol rate 6247, vertical: em todo o Brasil


ÍNDICE

EDITORIAL

5. Na Rede

O movimento da educação em SP e outros destaques do mês

8. Trabalho

A dura resistência ao lobby empresarial pela terceirização

12. Política

LUIS MACEDO/CÂMARA DOS DEPUTADOS

O desafio da reforma política na luta contra o retrocesso

16. Cidadania

Pilatos lava as mãos e quer a redução da maioridade penal

22. Educação

Em bom português, uma história premiada da luta no campo

26. Entrevista

Deputados Paulinho e Eduardo Cunha: terceirização e redução da maioridade penal

Rappin Hood, os princípios e as possibilidades do hip hop

Basta de hipocrisia

34. História

Malcolm X enfrentou o ódio do Império a suas periferias

C

38. Mundo

A vida na Palestina é muito mais que um dia após o outro

SANDRO VOX/AMERICA RIO

Time em busca da primeirona

42. Esporte

America do Rio tenta recuperar seu lugar no país do futebol

Seções Cartas Marcio Pochmann

4 7

Lalo Leal

32

Emir Sader

33

Curta essa dica

48

Crônica: Eduardo Galeano

50

ampanhas empresariais em defesa do Projeto de Lei 4.330 alegam que ele estimulará a especialização, que trará segurança jurídica às empresas. E criará empregos. Para a maioria das organizações de trabalhadores, é o avesso de tudo isso. Locadoras de mão de obra passam longe de proporcionar treinamento e condições de trabalho que as empresas dão a seus contratados diretos. Tanto que a cada dez mortos por acidente de trabalho, nove são terceirizados. “Segurança jurídica”, oras, já existe. Está na CLT e nos acordos coletivos que conseguem melhorá-la. Se cumprir o que está escrito ali, não há insegurança. Mas quem não quer cumprir vive tentando mudar lei para legitimar suas manobras. Quanto ao emprego, o que os cria é economia aquecida, povo com poder aquisitivo para fazer planos, viajar, estudar, poupar. Se a finalidade da empresa é gastar menos, ao se liberar a terceirização de atividade-fim ela dará um pé no traseiro do máximo de funcionários que puder e porá terceirizados no lugar. Ou seja: se esse projeto passar, criará empregos mais precários. Antes, causará a extinção do trabalho decente. Repare que a principal liderança legislativa a acelerar a aprovação do PL 4.330, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, trabalha também para que a Casa ande com a proposta que reduz a maioridade penal. Se cadeia fosse sinônimo de paz, os níveis de violência deveriam ter despencado nos últimos 20 anos, quando a população carcerária passou de 145 mil para mais de 700 mil pessoas. Cunha tenta, ainda, votar uma reforma política que não cura a mais grave doença do sistema político: as doações empresariais em campanhas. O Congresso trabalha com a pauta da hipocrisia. O predomínio desse onda conservadora se deve, em parte, ao ódio à política promovido pelos meios de comunicação tradicionais; e em parte porque muita gente terceiriza seu senso crítico. Esquece até de em quem votou ontem, não tendo como aferir se errou agora para acertar amanhã. Depois de tantas conquistas nos últimos 30 anos, deveríamos ter aprendido que a defesa do trabalho decente, a ampliação de direitos, a construção de uma cultura de paz e o aprimoramento da democracia passam pela política. Aquela que se pratica na urnas. E hoje, necessariamente, se exercita nas ruas. REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

3


CARTAS ticas deveriam ser proibidas. ("Dilemas da cannabis", ed. 105) Charles Bukowski

www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Ilustração Retrorocket/Getty Images. Olga Leiria/RBA (Premiação). Jailton Garcia/RBA (Rappin Hood). Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 166.500 exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

4

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

Comunicações Caro ministro, esse debate sobre o "marco regulatório" já está esgotado. A verdade está escancarada, precisamos, urgentemente, dessa regulação. É inadmissível que uma país que se diz democrático tenha apenas seis famílias controlando toda imprensa. Se a atual situação política chegou onde chegou, é resultado dessa mídia conservadora e partidarizada que, aliás, é alimentada pelo próprio governo, é a vítima alimentando o algoz. Será que o governo gosta de apanhar? ("Tem de saber jogar em qualquer gramado", entrevista de Ricardo Berzoini, ed. 105) Odilon de Mattos Filho Maconha Há muito preconceito com relação a cannabis! Muitas pessoas são contrárias a qualquer forma de regulamentação. Preferem deixar do jeito que está! Deve ser uma reivindicação da sociedade uma política inteligente de drogas, com base na ciência e em dados empíricos (apesar de que a ciência é altamente manipulada quando interesses escusos estão em jogo). O LSD, por exemplo, possui utilidade terapêutica, não causa dependência física ou psíquica. Infelizmente há um monopólio da Anvisa, junto com as indústrias farmacêuticas, que ditam as regras do jogo. Muitas drogas vendidas em farmácia causam dependência física e psíquica e, em alguns casos, overdoses! Já as drogas sem propriedade medicinais ou terapêu-

Mercados de Recife Tudo se combina no bairro de Santo Antônio com seus monumentos neoclássicos, o Palácio do Campo das Princesas e do outro lado da Ponte Princesa isabel, o teatro, de 1850. De lá se avista o casario antigo da Rua da Aurora e o imponente prédio do Ginásio Pernambucano, tão importante quanto o Colégio Pedro Segundo no Rio de Janeiro. É um belo passeio. ("Tradição pernambucana", ed. 105) Marlos Pessoa Índios O melhor seria se os Xavante não precisassem de mutirão e tivesse um sistema público de saúde decente. Como não é esse o caso, há de se louvar a iniciativa dos médicos e outros profissionais. ("Os médicos da floresta", ed. 104) Martiniano Neto Herói americano O imperialismo absolutista é o mais letal de todos os tempos (“O mito do American Sniper”, Mauro Santayana, ed. 104). Roma, Rússia, Alemanha, nenhum desses e outros chegariam aos pés dos donos do mundo. Tenhamos a devida medida e proporção dos seus tempos. Matar ou não matar em um campo de guerra, com ou sem snipers, não faz disso o maior dos horrores, essa conta não é a maior. O que impera é ter o mundo a seu favor e ao seu uso. Se não mais servirem ou se dificultarem o caminho, não será preciso pedir licença, inventa-se um inimigo e aniquila-o. As armas são o último recurso. Antes implantam-se o desemprego, a violência, a miséria e a fome. Quem resistirá na fraqueza? Que esta parte do Sul possa proclamar o quanto antes a sua independência ainda, porque tem forças. Taciano Silva

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

MARLENE BERGAMO/FOLHAPRESS

redebrasilatual.com.br

Um bocado de gente na greve que não existe

Para Alckmin, não houve greve nem falta d’água Em vez de dialogar com os profissionais sobre a situação da educação pública em São Paulo, governo tenta politizar e desqualificar o movimento que alcançou todo o estado A greve dos trabalhadores na educação pública do estado de São Paulo completava 45 dias quando esta edição era concluída, em 30 de abril. E sem sinais de o governador Geraldo Alckmin (PSDB) admitir as razões apresentadas pela categoria – falta de condições de trabalho, de infraestrutura material e humana para educar, de espaço em salas de aula e até de segurança. Questionado sobre o movimento dos professores em suas aparições públicas, o governador, a exemplo do que faz com a crise hídrica, negava a existência de movimento, alegando tratar-se de um gesto político de poucos. Aprovada em 13 de março, em assembleia feita no encerramento de uma manifestação que reuniu mais de 60 mil pessoas no centro da capital, a greve liderada pela Apeoesp, o sindicato da categoria, teve início efetivo no dia 16 e atravessou o mês seguinte com mais de 60% de adesão e sem nenhum gesto do governo paulista de aceitar o diálogo. O movimento

obtivera, inclusive, uma vitória judicial, quando a juíza Luiza Barros Rozas, da 11ª Vara da Fazenda Pública, deferiu, em parte, liminar em ação da Apeoesp, autorizando os professores a entrar nas escolas nos intervalos, para conversar com colegas e informar sobre a greve. A categoria reivindica a equiparação de seu salário aos de outros profissionais com nível superior, conforme a meta 17 do Plano Nacional de Educação (PNE), e melhores condições de trabalho. O governo alega que os professores tiveram 45% de reajuste nos últimos quatro anos, ante inflação de 24%. A Apeoesp rebate. Segundo a presidenta da entidade, Maria Izabel Azevedo Noronha, a Bebel, o reajuste foi de 26%, pois a matemática de Alckmin inclui gratificações, que não podem ser consideradas nesse cálculo. Em assembleia no dia 30, a categoria decidiu manter o movimento. bit.ly/rba–apeosp REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

5


Foram muitas as alusões à sonegação

Descomemoração dos 50

Em tempos de discursos moralistas à flor da pele, a Rede Globo e sua história de desvios e manipulações parecem passar incólumes à crítica dos que vez ou outra vestem verde e amarelo para protestar contra a corrupção – sonegar (imposto e informação) pode. Mas no domingo 26 de abril, algumas centenas de pessoas de diversos movimentos sociais se manifestaram contra a emissora e seus 50 anos. Houve protestos em São Paulo, Rio, Minas, Brasília, Rio Grande do Sul e Pernambuco. “Meus filhos veem TV e a Globo, mas precisam saber que ela manipula”, disse Edson Vargas, que foi de bicicleta de Ribeirão Pires, na região do ABC paulista, com os dois filhos, de 12 e 10 anos, até a manifestação, na zona sul paulistana. “A Globo divide o poder com a mesma elite que comanda o país desde 1965”, afirmou Gabriela Guedes, do Levante Popular da Juventude. bit.ly/rba_globo_50

A prefeitura da capital paulista e o governo do estado acertaram detalhes para regular os bailes funks no município preferencialmente em áreas de campos de futebol, praças, parques ou Centros Desportivos Municipais (CDMs). A ideia é garantir o direito dos jovens a fazer as festas e, ao mesmo tempo, o sossego dos demais moradores. A proposta é que 11 territórios definidos tenham locais para realização de pancadões, mas que ocorram somente dois eventos mensais em cada território. “Os jovens têm perfeita consciência de que o pancadão incomoda a vizinhança. Por isso, têm participado das reuniões e feito sugestões de locais”, afirmou a vice-prefeita, Nádia Campeão. Os locais terão presença da PM e da Guarda Civil, ambulância, médico e bombeiros. Agentes de saúde vão aproveitar o espaço para conversar com os jovens sobre álcool, drogas e sexo seguro. bit.ly/rba_funk 6

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

O Ministério Público de São Paulo ainda não tem um posicionamento sobre o relatório da CPI das Universidades, da Assembleia Legislativa, apresentado em 10 de março. O MP-SP também não tem uma resposta concreta sobre eventual medida para investigar uma festa realizada em 5 de março, para recepcionar calouros de Medicina da Universidade Estadual Paulista, em Botucatu, na qual os veteranos aparecem fantasiados com roupas que remetem ao grupo racista norte-americano Ku Klux Klan (KKK). O MP-SP alega esperar apurações internas da Unesp para eventualmente tomar alguma medida a respeito. Os organizadores da festa de Botucatu, “Batizado da Medicina”, divulgaram em nota que os trajes não fazem alusão racista, apenas têm caráter tradicionalmente “misterioso” – no caso, o tema da fantasia escolhido foi de “Carrasco”. bit.ly/rba_kkk

Haddad em reunião com a Liga do Funk

CESAR OGATA/SECOM

Direito ao funk

MARCIA MINILLO/RBA

KKK: sem resposta


MARCIO POCHMANN

A retomada neoliberal

Depois de autorizar entrada de dinheiro estrangeiro na saúde e a formação de oligopólios no ensino privado, Legislativo tenta, com a lei da terceirização, fazer o país andar para trás do capital estrangeiro. A contenção no gasto público em todos os níveis imposta pela retomada do programa de austeridade fiscal permanente, assim como a possibilidade de haver novas rodadas de concessões no serviço público, pode apontar para uma nova fase de apequenamento do Estado no Brasil. Por fim, o atual vigor legislativo expresso pelo rápido avanço da pauta patronal e antilaboral estabelecida pela condução de votações sobre a terceirização e o Simples trabalhista. De um lado, o projeto de lei da terceirização tal como apresentado poderá representar o rebaixamento das condições de trabalho e remuneração dos empregados não terceirizados ao precarizado já vigente entre os terceirizados. Em síntese, o trabalhador terceirizado no Brasil recebe remuneração que equivale, em média, à metade da percebida pelo empregado não terceirizado. Além disso, a rotatividade do terceirizado é duas vezes maior que a do empregado não terceirizado. De outro lado, o encaminhamento das proposições estabelecidas em torno do projeto do Simples trabalhista poderá permitir redução sensível na proteção que o empregado assalariado possui por meio da Consolidação das Leis do Trabalho. Ou seja, a maior e mais profunda reforma neoliberal do trabalho que o Brasil conhecerá.

TOMAZ SILVA/AGÊNCIA BRASIL

A

pós sua hibernação por mais de uma década, o neoliberalismo vem registrando sinais recentes de seu reaparecimento. Para ser introduzido ainda no início dos anos 1990, durante a passagem do governo Sarney para o de Collor de Mello, o neoliberalismo contou com três condições fundamentais. A primeira, provocada pela recessão econômica no início da década de 1990, que buscou enfraquecer seus opositores, como os sindicatos, diante da inexorável elevação do desemprego e da redução no poder aquisitivo dos salários. A segunda condição foi revelada pelos constrangimentos impostos pela revisão do papel do Estado através das transferências de funções públicas ao setor privado viabilizadas pela privatização de empresas estatais e corte generalizado no gasto público. A terceira condição ocorreu constituída pela implementação de várias medidas de flexibilização das regras nas áreas financeira, comercial, produtiva e trabalhista. Essas três condições estruturadoras do neoliberalismo dos anos 1990 no Brasil encontram-se, guardada a devida proporção, retomadas no período recente, o que pode contribuir, ao que parece, para a reversão da posição governamental que até então se movia majoritariamente contrária. Inicialmente, pelo reaparecimento de um novo quadro recessivo, capaz de alterar a trajetória positiva de elevação no nível de emprego e de ampliação salarial. Na sequên­ cia, a abertura para o crescimento da presença do setor privado em paralelo à contenção do Estado em ­algumas atividades. Exemplo disso pode ser observado pela aprovação da legislação que incentiva a entrada de capital estrangeiro na saúde, responsável, até o momento, pela aquisição de quase meia centena de hospitais no país. Um movimento comparável localiza-se também na educação, com o estabelecimento de oligopólios privados no ensino superior e participação importante

NA RUAS Protesto contra projeto de terceirização: movimento sindical aponta retrocesso REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

7


TRABALHO

Batalha que não ac Há 11 anos, pressão do movimento sindical impede a legalização da terceirização indevida. Resistência ao Projeto de Lei 4.330, aprovado na Câmara, continua no Senado Por Hylda Cavalcanti e Paulo Donizetti de Souza

O

lobby empresarial pela legalização da terceirização de qualquer atividade profissional, prevista no Projeto de Lei 4.330, se fortaleceu com o conservadorismo do atual Congresso Nacional. Com a maioria da bancada patronal, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), conseguiu em poucas semanas levar a voto o projeto que tramitava há 11 anos. No entanto, entre o início e o final da votação, o placar mudou. O texto-base do projeto conseguiu 324 votos a fa8

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

vor e 137 contrários, em 8 de abril. Duas semanas dias depois, quando se concluiu a votação de emendas e destaques, acabou em 230 a 203. Essa diferença de votos pró-terceirização reduzida de 187 para 27 votos deu-se depois da reação de sindicatos e movimentos sociais, na comunicação com, suas bases, nas redes sociais e em protestos nas ruas – em que foram expostos ao público os deputados que votaram pelo fim do freio às terceirizações. Muitos parlamentares reviram seus votos. “Vou votar a favor da emenda que retira este item do texto (a terceirização de

qualquer atividade)”, disse Veneziano do Rêgo (PMDB-PB). As declarações foram reflexo de atos e passeatas como os que levaram, no mesmo dia de uma das sessões, em 15 de abril, milhares de pessoas às ruas em todo o país. Na ocasião, o presidente da Câmara suspendeu a votação de destaques, entre os quais um que retiraria a expressão “de qualquer atividade” para a liberação das terceirizações. Se de um lado lobistas do empresariado tiveram livre acesso às galerias e corredores do Legislativo – que durante as principais votações fechou as portas às


acabou

GERARDO LAZZARI/RBA

TRABALHO

Mas cresceu na sociedade a antipatia à matéria, que será transformada em mais pressão no Senado. Se para lá, onde o projeto deve ter andamento menos acelerado o empresariado volta suas fichas, os representantes dos trabalhadores fazem o mesmo. Caso o projeto passe como está ou volte a ser reformado pela Câmara, a pressão passará a ser pelo veto da presidenta Dilma Rousseff aos pontos mais nocivos aos direitos dos trabalhadores.

Histórico conturbado

Protocolado na Câmara em 26 de outubro de 2004, o PL 4.330 teve como autor o ex-deputado Sandro Mabel (GO). Passou por três comissões técnicas e, sem ser apreciado, foi arquivado em 2006. No ano seguinte, Mabel, empresário do setor alimentício, pediu a reabertura da tramitação, que prosseguiu até 2013. Houve muita discussão por parte dos parlamentares, inclusive com a participação das centrais – que já haviam criado, juntamente com especialistas do Direito e da Justiça do Trabalho, o Fórum Nacional Permanente em Defesa dos Direitos dos Trabalhadores Ameaçados pela Terceirização.

Naquele ano, em meio à onda de protestos que atingiu o país e colocou a classe política contra a parede, as centrais conseguiram nova vitória, ao fazer com que a discussão do PL fosse mais uma vez retirada de pauta. Em 2014, ano eleitoral, o então presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), falava em levar o assunto de volta ao plenário, mas só depois das eleições. Assim que tomou posse no comando da Casa, Eduardo Cunha cumpriu a promessa a toque de caixa. O principal argumento de Cunha foi de que os deputados tiveram tempo demais para analisar a matéria. Na verdade, segundo muitos líderes, aconteceu o contrário. “Se com deputados que estavam na Casa há mais de dez anos não se obteve consenso em torno do assunto, como fazer essa votação acontecer de forma tão célere numa Câmara que, hoje, é composta por novatos que tiveram pouco mais de um mês para se debruçar sobre o PL?”, contesta o líder do governo, José Guimarães (PT-CE). A resistência ao PL 4.330 também partiu do Judiciário. Em tom duro, o presidente da Associação Nacional

Como votaram os partidos na Câmara Partidos

MAIORIA NAS RUAS O movimento sindical faz sua parte e leva gente para as ruas: pressão decisiva sobre um Congresso amplamente patronal

delegações de sindicatos de todo o país –, nas ruas as manifestações tiveram seu peso. A estratégia do empresariado incluiu reuniões­, corpo a corpo diário com os deputados, distribuição de folhetos pelas mãos de belas moças louvando a terceirização e propaganda em horário nobre paga pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). A vitória na Câmara acabou chegando.

Bloco PMDB/ PP/ PTB/ PSC/ PHS/ PEN Bloco PRB/ PTN/ PMN/ PRP/ PSDC/ PRTB/ PTC/ PSL/ PTdoB DEM PCdoB PDT PPS PR Pros PSB PSD PSDB Psol PT PV SD Total

Total de deputados por partido ou bloco 152

Total de votos contra o PL da terceirização em 8 de abril 18

Total de votos contra o PL da terceirização em 22 de abril 30

38

9

15

22 13 19 11 34 12 32 34 53 5 64 8 16 513

2 12 5 3 6 3 9 2 2 5 61 0 0 137

4 12 17 5 11 9 16 6 10 5 58 2 3 203 REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

9


dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Paulo Schmidt, afirma que o projeto compromete o futuro do Brasil. “A aprovação desse projeto significa uma reforma trabalhista jamais pensada pelo mais radical dos liberais”, ressalta. Ele chama a atenção para o fato de que, caso não sejam estabelecidas regras claras para proibir a terceirização dos trabalhadores responsáveis pela execução de atividades-fim das empresas, o projeto levará a um cenário em que o Brasil poderá ter diversas empresas sem empregados. “Ao admitir a subcontratação, a proposta também poderá acabar permitindo a quarteirização e a quinteirização.” O presidente da CUT, Vagner Freitas, declarou várias vezes que o principal ­argumento dos defensores do projeto, dar “segurança jurídica” a empresas que contratam serviços terceirizados, esconde o principal objetivo: dar legalidade a contratações hoje consideradas “fraudulentas” nos processos que vão parar na Justiça. “Em resumo, querem aumentar lucros à custa de redução de salários e benefícios, piorar as condições de trabalho dos já terceirizados e colocar em risco os direitos dos mais de 30 milhões de trabalhadores que ainda têm contratos diretos com as empresas.” Segundo ele, a batalha travada nos últimos dias para que o pro-

GUSTAVO LIMA/CÂMARA DOS DEPUTADOS

TRABALHO

PROTESTO NA CÂMARA Os votos a favor do PL 4.330 caíram de 324 para 232. Agora, o enfrentamento se dará no Senado, onde o projeto terá novo fôlego para ser discutido

jeto não prosperasse na Câmara será estendida. “A luta é ininterrupta e envolve várias frentes de batalha.” Também se manifestam contra o projeto CTB, Nova Central, CSB e CSP-Conlutas, além de setores da UGT. Principal liderança da Força Sindical, o deputado federal Paulo Pereira da Silva (SD-SP), o Paulinho, presidente licenciado da central, é um dos parlamentares mais empenhados na aprovação do PL 4.330. Seu partido, o Solidariedade, também opera enfaticamente pelo impeachment da presidenta Dilma.

Para a CUT, o texto final do projeto aprovado pelos deputados é mais prejudicial aos trabalhadores do que o levado inicialmente ao plenário. Autoriza terceirização em todos os níveis e departamentos das empresas, eliminando a distinção entre atividades-meio e atividades-fim. Amplia a chamada “pejotização” (transformação de funcionários em pessoas jurídicas) e também as possibilidades para a contratação de associações, cooperativas, fundações e empresas individuais, aumentando os riscos de deterioração da qualidade das ocupações no país.

Prejuízos generalizados Um caso clássico de como a terceirização, se continuar do jeito como disposto no projeto, pode levar a retrocessos é a situação dos trabalhadores terceirizados no Terminal Químico de Aratu/ Tequimar, do Grupo Ultracargo, que no início de abril foi atingido por um grande incêndio em Santos (SP). O acidente não teve mortos, mas mostrou a fragilidade de um setor que utiliza muita mão de obra terceirizada, exposta a situações críticas em termos de segurança. “Nesses terminais privados, os tanques são sobrepostos e as empresas não possuem 10

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

brigadas de incêndio. Os terceirizados sofrem com a carência de cursos e equipamentos de segurança, ao contrário do que acontece com os que são contratados diretamente”, critica o engenheiro químico Fernando Carvalho, que tem mais de 20 anos de experiência na área. Pelas mesmas razões, das 350 mortes por acidentes de trabalho registradas na Petrobras desde 1995, quase 95% envolveram empregados de terceirizadas. “Isso derruba um dos argumentos dos defensores do PL 4.330, de que estimula as contratações de mão

de obra especializada”, diz o coordenador-geral da Federação Única dos Petroleiros (FUP), José Maria Rangel. “Em boa parte dos casos, terceirização é o oposto de especialização. Nenhuma empresa terceirizada tem condições de aplicar os mesmos programas de treinamento, capacitação e fornecer a mesma infraestrutura de segurança que a Petrobras. Um técnico em operação de petróleo passa por um programa de treinamentos de seis meses para assumir posição numa planta de processo”, observa Rangel.

O dirigente destaca ainda que os autores do projeto, ao defender a terceirização em todas as áreas das estatais e do serviço público, podem proporcionar também que a seleção de profissionais passe a driblar a obrigatoriedade dos concursos. “Uma empresa que ganha uma concorrência para fornecer mão de obra terceirizada tanto pode recrutar pessoas por indicação como quarteirizar o serviço para uma outra empresa. É a degradação do emprego e da qualidade do serviço”, afirma. “Isso não significa desqualificar os terceirizados, mas sim questionar as empresas que


MAIS PRESSÃO Vagner Freitas: “Não vamos esperar de braços cruzados”

Articulações

cutir melhor os projetos votados de forma apressada pela Câmara. Em outro campo, prometem ampliar as manifestações contra o texto. Por outro lado, sabe-se também que a bancada empresarial é numerosa e as entidades patronais também marcarão território. “Vamos travar uma guerrilha regimental para impedir a aprovação do projeto no Senado”, disse o senador Lindbergh Farias (PT-RJ). “Aqui o projeto passará por um tratamento adequado. Teremos um diálogo constante com as centrais e movimentos sociais, que por sua vez deverão programar novas mobilizações para ajudar a conscientizar os demais senadores contra

No Senado, o presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), tem dado declarações em que assegura que a tramitação do PL 4.330 será mais lenta, que a sociedade será ouvida e haverá amplos debates. Diz também que a regulamentação da terceirização não pode pôr em risco direitos trabalhistas. A conduta cautelosa de Calheiros é atribuída a conversas mantidas com o vice-presidente, Michel Temer, antes mesmo do final da votação na Câmara. Representantes das centrais já iniciaram conversas com senadores na busca de uma frente suprapartidária para disos contratam sem oferecer condições adequadas.” O risco se encaixa em diferentes setores. Entre os bancários, por exemplo, a situação já crítica tenderia a piorar. Estudos feitos por sindicatos da categoria estimam que para cada empregado direto do ramo financeiro existe outro terceirizado. “A diferença é que os terceirizados que realizam serviços bancários ganham 70% menos e trabalham muito mais”, diz a presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Juvandia Moreira. “Quando se diz que terceirização significa

especialização e geração de empregos, fica escancarada a falta de escrúpulos. Não há como terceirizadas prestarem serviços com a especialização que a normatização e a segurança bancária exigem. E não há como uma instituição financeira não passar a trocar bancários por terceirizados que custam 70% menos.” Segundo Juvandia, o modelo põe em risco também a segurança de clientes. Ela relata que o maior volume de reclamações contra bancos no Procon e no Banco Central vem de “cobranças indevidas”, e que essas cobranças estão hoje amplamente associadas

à terceirização. “Hoje, quando um cliente liga ou recebe ligação de um call center, não sabe que muitas vezes está falando com um prestador de serviço que oferece aplicação ou empréstimo sem qualquer conexão com a necessidade do cliente. O trabalhador terceirizado fala em nome do banco, tem acesso a senha, dados pessoais e movimentação financeira do cidadão. Quem trabalha para banco e fala em nome de banco só pode ser bancário, não terceirizado. Os bancos já operam na ilegalidade em muitos casos e querem uma lei para regularizar essa prática”, acentua.

SAMUEL TOSTA/FUP

DINO SANTOS/CUT

GUSTAVO LIMA/CÂMARA DOS DEPUTADOS

TOQUE DE CAIXA Eduardo Cunha apressou a tramitação na Câmara

o projeto aprovado pela Câmara”, acrescenta Tião Viana (PT-AC). No PSDB, partiu do senador Aécio Neves (MG), presidente da legenda, a orientação para que deputados que apresentaram uma emenda tirando terceirização de atividades-fim das autarquias e órgãos federais voltem atrás e mantenham a votação no texto original. Outro aliado da terceirização na atividade-fim é o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Armando Monteiro. Senador licenciado, Monteiro tem trânsito na Casa e é também presidente emérito da Confederação Nacional da Indústria (CNI). Sempre deixou claro que defende o projeto do jeito como está. O regimento comum do C ­ ongresso torna obrigatório o retorno da m ­ atéria para a Câmara após a votação do Senado, por ser originária de lá. “O momento, por tudo isso, é importante e delicadíssimo. Mostra o quanto o Senado­precisa se manifestar sobre o tema. E se manifestar bem”, destaca ­Lindbergh. Entre trabalhadores e representantes de centrais, a opinião geral é de que se o projeto final a ser aprovado pelo Congresso deixar brechas que prejudiquem ainda mais a situação dos trabalhadores, o próximo passo será a campanha pelo veto presidencial. “Mas sem esperar de braços cruzados. Até para garantirmos os vetos que venham a ser necessários, a pressão nas ruas será decisiva”, diz V ­ agner Freitas.

Rangel, da FUP: “Terceirização é o oposto de especialização” REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

11


BRASIL

Faltam os passos à

FINANCIAMENTO PÚBLICO Apoiadores de Dilma pedem Constituinte: a reforma política foi pouco discutida durante a campanha

FRENTE N

a terceira semana de abril, a imprensa anunciou que a oposição, enfim, iria anunciar seu pedido de impea­ chment da presidenta Dilma Rousseff. Parte do PSDB, com destaque para o líder do partido na Câmara, Carlos Sampaio (SP), afirmava haver elementos suficientes e que não era preciso esperar mais nada. No dia 28, o senador Aécio Neves segurava o time, afirmando que era preciso agir de forma articulada e responsável. O mês que passou parece ter visto um arrefecimento das manifestações antigoverno, o que foi visível no ato do dia 12. Ao mesmo tempo, tomou corpo o debate pela reforma política, o que já indica certa normalidade da agenda institucional. E as principais atividades de rua tinham como mote a crítica ao projeto de lei sobre terceirização. “O senador Aécio Neves baixará o tom em relação ao impedimento da doutora Dilma”, escreveu o jornalista Elio Gaspari em sua coluna de 26 de abril. “Resta saber o que colocará no balcão do PSDB. Desde que a doutora sequestrou-lhe a agenda econômica, Aécio transformou-se no trombone da orquestra, faz barulho com pouca melodia.” 12

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

Ao participar em abril de um debate no Sindicato dos Engenheiros de São Paulo, que tinha como tema justamente a importância da democracia, o ex-governador Cláudio Lembo observou que a imprensa havia parado de falar no tema. “As coisas estão se acalmando”, disse. Para ele, falava-se de “uma grande crise institucional, que não havia”.

Agenda positiva

O cientista político Fabiano Santos, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), acredita que a bola, agora, está com o governo. “Precisa mostrar uma agenda positiva e a capacidade de tocá-la”, disse, em entrevista ao jornal Valor Econômico. “Primeiro, administrar a crise econômica, aprovando o pacote de ajuste fiscal, que vai trazer dificuldades, mas vai permitir ao governo mostrar uma agenda mais palatável. Isso pode tirar parte do poder de manobra dos segmentos mais radicalizados da oposição.” Diretor do mesmo instituto, o sociólogo Adalberto Cardoso afirmou à Folha de S.Paulo que os defensores do impeachment querem, na verdade, impedir a continuidade do “processo de limpeza”

ICHIRO GUERRA/DILMA 13/FOTOS PÚBLICAS

Movimentos golpistas arrefecem e defesa da democracia e reforma política ganham espaço. Mas se a sociedade não conduzir o debate, o Congresso não mudará o financiamento de campanhas: ou seja, não mudará nada

representado pelas investigações contra a corrupção, uma antiga prática empresarial no Brasil. “O que vivemos hoje é parte de um processo de limpeza e, espero, de correção dessa herança histórica de conluio entre o público e o privado. As elites e vários agentes sociais não sabem separar o público e o privado. O Estado sempre funcionou a serviço das elites econômicas. Quando há um amplo combate à corrupção, o potencial de crise é muito


BRASIL

grande. O que a Lava Jato está expondo é a forma como o capitalismo se organiza no Brasil." Para o sociólogo, a operação mexe “com profundos interesses” empresariais e políticos. “Aqueles que estão clamando pelo impeachment estão querendo impedir que essa limpeza continue. A história recente mostra que há um certo viés na ação anticorrupção, principalmente no Paraná. Só petista ou próximo ao PT vai

para a cadeia. Há uma profunda revisão do que é o nosso capitalismo, e o agente desse processo é o governo. Nenhum outro governo jamais fez isso. Está agindo sobre o coração do capitalismo brasileiro, que é inteiramente corrupto. É essa imbricação entre o público e o privado que está sendo desvendada hoje. Infelizmente, pelo viés antigovernista dos agentes da PF, não se investigou nada da época do FHC”, afirma Cardoso.

“Artificial e sem fundamento”

O advogado Marcello Lavenère Machado estava à frente do processo que culminou com o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, em 1992. Em 1º de setembro daquele ano, Lavenère, à época no comando da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Barbosa Lima Sobrinho, apresentavam o pedido de impedimenREVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

13


BRASIL

14

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

LUCIO BERNARDO JR./ CÂMARA DOS DEPUTADOS

Iniciativa popular

“GOLPE PARTIDÁRIO” Lavenère vê o movimento pelo impeachment sem fundamento político nem jurídico

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a OAB: um sistema proporcional “mais justo”, paridade de gênero (igual número de candidatos entre homens e mulheres) e valorização dos mecanismos de consulta popular, como referendos e plebiscitos, previstos no artigo 14 da Constituição.

LUIS MACEDO/CÂMARA DOS DEPUTADOS

to à Câmara dos Deputados. O advogado afirma que as circunstâncias atuais são muito diferentes. “Naquela ocasião, a matriz das irregularidades era o presidente da República. O que eu noto agora é diferente. Existem casos de corrupção em alguns lugares, especialmente na Petrobras, e há um esforço para se chegar à presidente da República e até a um ex-presidente. Em 1992, não havia viés partidário. As denúncias partiram do irmão do presidente. Agora é um ato politico das oposições, que querem mudar de alguma forma o resultado das eleições no ano passado”, afirma Lavenère, chamando de “golpe partidário” o movimento atual. “Uma proposta de impeachment artificial, sem fundamento político nem jurídico.” Ao ponderar sobre a dificuldade de se fazer previsões sobre a situação política, o advogado acredita que uma iniciativa partidária não tende a prosperar. Lembra novamente de 1992, quando conta ter sido procurado por quatro parlamentares, dois senadores e dois deputados, de legendas distintas, com o pedido para que assinasse o pedido de impeachment de Collor. Alegavam não ter credibilidade suficiente. Por isso, Lavenère avalia que se algum partido da oposição quiser levar à frente essa bandeira, a tendência é que caia na vala comum. “Impeachment não se faz pelo desgosto de um partido.” Representante de uma coalizão de mais de uma centena de organizações que se mobiliza pela reforma política, Lavenère diz haver um risco real de que, sem reação popular, seja feita uma anti ou pseudoreforma. Especialmente com o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), chancelando o financiamento empresarial de campanhas – “a fonte de corrupção”, como define o advogado. “Vai depender dessa pressão, da organização da sociedade, da opinião pública, dos veículos de comunicação”, afirma Lavenère. Para ele, quem defende a manutenção do financiamento privado “ou está muito mal informado ou não quer que a corrupção acabe”. Ele destaca outras três propostas da coa­lizão, que inclui entidades como a

CAMINHOS TORTUOSOS Eugênio Guilherme Aragão: “Quando parte da sociedade faz acenos ao autoritarismo, festejar a democracia é preciso”

“O Brasil precisa de uma urgente reforma política, não apenas em campo eleitoral”, afirmou o cardeal Odilo Pedro Scherer, ao jornal O São Paulo, da Arquidiocese. “Há diversas propostas de reforma política. A CNBB ajudou a elaborar uma dessas, transformada em projeto de iniciativa popular. Esse projeto de lei, para o qual estão sendo coletadas assinaturas, é fruto de um consenso entre muitas entidades da sociedade. Observo que é uma proposta suprapartidária”, disse o cardeal. “Não será um projeto de lei perfeito, mas ele pode e deve ser aperfeiçoado pelo Congresso Nacional.” No ato do dia 12 de abril, manifestantes voltaram a se reunir na Avenida Paulista, em São Paulo, em menor número do que em 15 de março, para pedir – com variados graus de ênfase – a derrubada de Dilma. Alguns voltaram a reivindicar “intervenção constitucional militar”. O perfil daquele público foi analisado a partir de uma pesquisa organizada pelos professores Pablo Ortellado, da Universidade de São Paulo (USP), e Esther Solano, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). A maioria tinha renda acima de­ R$ 3.900 e ensino superior completo, era de cor branca e dizia “confiar pouco” na imprensa – mas metade “confiava muito” na revista Veja, tradicional porta-voz da atual oposição. Refletindo um clima de boataria e de desinformação, mais de 60% acreditam na intenção do PT de implementar um “regime comunista” no Brasil e mais de 70% embarcavam na repetidamente desmentida informação de que um filho do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seria sócio da Friboi, maior empresa do setor frigorífico no país. No mesmo dia, a poucos quarteirões dali, entidades e pensadores se reuniam para refletir sobre o momento político, fazer críticas – mais ponderadas – ao governo e discutir alternativas. Um dos presentes afirmou: “A democracia, como valor, tem de ser inquestionável”. Dezesseis dias depois, um debate em São Bernardo do Campo para lembrar a greve de 1980 dos metalúrgicos do ABC também desta-


BRASIL Quem foi à Avenida Paulista em 12 de abril 53% homens 47% mulheres 73% com renda acima de R$ 3.940 48% com renda acima de R$ 7.880 68,5% com ensino superior completo 77% de cor branca

52% confiam muito na revista Veja 64% acham que o PT quer implementar um “regime comunista”

MARCIA MINILLO/RBA

58% confiam pouco na imprensa

Fonte: pesquisa coordenada pelos professores Pablo Ortellado (USP) e Esther Solano (Unifesp)

cava a importância de se retomar a normalidade institucional após duas décadas de ditadura.

ZÔ GUIMARAES/FOLHAPRESS

Só no voto

“ESTADO A SERVIÇO DAS ELITES” Adalberto Cardoso: “Os defensores do impeachment querem impedir a continuidade do processo de limpeza”

O subprocurador da República Eugênio José Guilherme de Aragão, por exemplo, disse que o país vive dias difíceis. “Quando parte da sociedade o­ usa caminhar por caminhos tortuosos, fazendo acenos ao autoritarismo, festejar a democracia é preciso”, afirmou. “Quem quiser governar o Brasil vai ter de passar pelo voto do povo e ganhar a eleição”, acrescentou o secretário-geral da CUT, Sérgio Nobre. Além das críticas ao projeto da terceirização, a defesa da democracia foi um dos motes das manifestações do 1º de Maio. Em termos históricos, o sociólogo Adalberto Cardoso vê um momento único no Brasil, sem paralelo com o período de João Goulart, sem conspiração militar. “É único também porque nunca tivemos instituições democráticas tão sólidas. Temos um Judiciário autônomo

como nunca tivemos, um Parlamento que é representativo do que é o Brasil, que é conservador. Temos uma crise desse tamanho – com perda da capacidade do PT de liderar o centro político e sob pedidos de impeachment – e ela não está desestabilizando o sistema político. Pelo contrário, a crise reforça os aspectos virtuosos da nossa democracia. Isso também é uma novidade.” Aos 77 anos, Marcello Lavenère lembra de sua condição de ativista e integrante da campanha “O petróleo é nosso”, nos anos 1950 (“Corri muito da polícia”), e afirma convicção com a melhoria institucional no Brasil. “A partir da nossa Constituição de 1988, o país tem passado por um processo de aperfeiçoamento da democracia”, afirma, citando o movimento pelas eleições diretas, o impeachment de Collor, o Plano Real (no governo Itamar Franco, assinala) e 12 anos de governos que buscaram melhorar as condições sociais da população. “Não estamos num paraíso, mas não demos nenhum passo atrás.” ­ REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

15


CIDADANIA GENTE DO BEM No Rio de Janeiro, grupo discute e protesta contra a redução da maioridade penal

Hipocrisia não combate violência Se a redução da maioridade penal for aprovada, as expectativas de oportunidades – fundamentais para a cultura de paz – serão ainda mais frágeis Por Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes 16

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

J

osé Ferreira tem 26 anos. Trabalha desde os 17, hoje como operador de estacionamento em Interlagos, na zona sul de São Paulo, região onde também vive com a atual mulher e a enteada de 7 anos; o filho de 6, do primeiro casamento, mora em Minas Gerais. “Vou voltar a estudar e a fazer faculdade. O trabalho e o amor da família fazem o homem crescer”, acredita. Sua vida é a de cidadão comum, mas já esteve muito perto de não ser. Há dez anos, “levado por um impulso”, com um grupo de amigos da mesma idade, cometeu um ato infracional e foi apreendido. Sentença: oito meses de liberdade assistida, cumpridos no Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), de sua região.


TOMAZ SILVA/AGÊNCIA BRASIL

CIDADANIA

Precariedade Em todo o país, 89% dos centros de medida socioeducativa têm parcerias com escolas. Mas 38% desses centros não conseguem acordos para oferecer cursos profissionalizantes aos jovens e 76% não têm apoio psicopedagógico, segundo estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2012.

“Esse período teve importância fundamental na minha vida. Eu estava iludido com o poder da criminalidade. Ali percebi do que sou capaz e onde eu posso chegar. Muitos jovens chegam ali sem apoio da família e da sociedade e se sentem úteis somente para o crime”, relata Ferreira. Ele não tem dúvida sobre a necessidade de pagar pelos erros. “Tem que ter punição sim, não importa a idade. Mas só punir não resolve. O jovem precisa ver que o mundo é mais. Tem de ter perspectiva e oportunidade.” No período da medida, ele teve acesso a atendimento psicológico, atividades culturais e a uma série de cursos, entre os quais de vidraceiro, oferecido pela União Brasileira de Vidros, e de auxiliar administrativo, pelo Senai. Também participou de reuniões e debates com finalidades terapêuticas. “Passei a ver a vida de forma diferente. Percebi o meu potencial”, afirma. Dali em diante, tomou novo rumo. Mas seu destino poderia ser outro se tivesse ido parar em uma prisão de adultos. O pintor Elias Gonçalves de Oliveira, de 43 anos, sabe o que isso quer dizer. Hoje é casado, tem um filho de 11 anos e trabalha como autônomo, “sempre que aparece alguma coisa”. Parou de estudar aos 15 para trabalhar na feira e, aos 19, “quis aproveitar uma oportunidade de fazer uma grana”. Ficou quatro anos preso. “Inferno. Perdi a conta de quantas vezes dormi sentado, ou não dormi, porque nem para sentar dava. Tensão todo dia, muita treta. Tinha muito pouco o que fazer, fiz um curso de panificação que não serviu para nada”, resume. Depois de cumprir a pena, Elias percebeu que a punição não estava encerrada. “O sistema prisional é que nem uma chaga. Nunca sai de você. Toda vez que procurar trabalho, precisar de um documento, vão te olhar como bandido.” Emprego não encontrou mais. Desistiam dele, assim que pediam atestado de antecedentes, até que ele próprio passou a desistir. Após um ano e meio sem trabalho, voltou ao crime. E novamente foi detido. Mais três anos e meio de reclusão. “Achei que a vida estava perdida.” Ao sair, reencontrou a madrinha que não via havia uma década. Foi morar

em outro bairro com ela e conseguiu um trabalho como ajudante em um mercado local. Fez amizade com um pintor e aprendeu a profissão. “É só com Deus. O sistema não te deixa brecha. Se cair acabou. Só se aparecer um anjo”, diz, em referência à madrinha. O rumo encontrado por José Ferreira depois de oito meses de medida socioeducativa poderia ter-lhe custado dez anos de vida, como custou a Elias, se a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos já estivesse em vigência. Ou poderia não ter sido encontrado jamais, porque nunca se sabe o que o sujeito vai virar numa penitenciária convencional, à mercê do crime organizado, do preconceito, sem oportunidade de estudar, de se capacitar profissionalmente e de buscar um lugar no mercado de trabalho com a “ficha limpa”. Ainda assim, a Câmara dos Deputados discute uma proposta de emenda constitucional com a finalidade de reduzir a maioridade. A PEC 171 está sendo analisada por uma Comissão Especial na Câmara. Se passar dali, vai a duas rodadas de votações no plenário, onde precisa de aprovação por três quintos dos parlamentares (308 deputados). Uma vez aprovada, segue para o Senado, onde requer o mesmo expediente: passar pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e por duas votações, nas quais precisa dos votos de no mínimo 54 dos 81 senadores. “Reduzir a maioridade penal interessa apenas à chamada bancada da bala, que é a corporação dos deputados que defende os interesses da área de segurança e o endurecimento das leis. É o mesmo grupo que se insurgiu contra a proibição do uso de armas no Brasil, porque para eles interessa esse mercado”, avalia o professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Roberto da Silva, ele próprio um ex-interno da antiga Fundação para o Bem-Estar do Menor (Febem).

Boas práticas

Apostar na articulação com parceiros e no atendimento humanizado dos jovens tem sido o segredo das unidades de ressocialização bem-sucedidas do país. É assim na unidade Terra Nova da Fundação Casa, em Itaquaquecetuba, município da REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

17


região metropolitana de São Paulo. Lá somam-se gestão engajada, Judiciário ágil, prefeitura participativa e uma comunidade que tomou a responsabilidade pelos jovens para si. E os resultados aparecem: dos 74 que passaram pela unidade no ano passado, apenas dois reincidiram. “Nós nos preocupamos menos com os números e mais com as respostas que obtemos dos jovens. Depois que saem, fazem questão de nos ligar para dizer o que estão fazendo, se conseguiram emprego, se terminaram a escola e até para pedir conselho. Semana passada, um deles veio pedir uma impressão de documentos requisitados no emprego novo. Nós nos tornamos uma referência”, avalia o diretor da unidade, Fernando Lopes, enquanto exibe uma coleção de desenhos, cartas e pinturas que ganha de presente dos meninos. A participação da comunidade faz a diferença. Frequentemente, empresários da região promovem encontros para discutir o mercado de trabalho e orientar os adolescentes. Alguns acabam contratados. As famílias participam ativamente da vida dos internos.“Trazemos artistas das periferias para conversar com eles. Pessoas que também foram vítimas de privações e que encontraram na arte uma saída. Existem muitos caminhos”, garante Lopes. “Quando cheguei aqui não sabia ler nem escrever, agora já estou conseguindo. Sonho em terminar a escola e estudar Mecatrônica, que conheci em um curso daqui”, conta MB, de 13 anos. Empenhado nas aulas de reforço, ele frequenta a biblioteca e gosta especialmente das atividades de arte-educação. No dia em que a reportagem visitava a unidade, 23 de abril, seria exibido o clássico Fahrenheit 451, filme do diretor francês François Truffaut, inspirado em romance de 1953, do norte-americano Ray Bradbury. LW prefere o basquete. Passa todo o período de lazer na quadra treinando arremessos, ao som de clássicos do rock. Cada cesta é comemorada com um dos educadores da unidade, que joga e se diverte com ele. “Não sabemos nem sequer o que eles fizeram para estar aqui. O que nos interessa é o que vão fazer daqui para frente”, afirma a coordenadora pedagógica da unidade, Érika dos Santos. 18

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

FOTOS DANILO RAMOS/RBA

CIDADANIA


CIDADANIA

Ciência x discurso

A COMUNIDADE ASSUMIU O PROBLEMA Na unidade Terra Nova da Fundação Casa, em Itaquaquecetuba, os jovens estudam, praticam esporte, brincam e têm cursos profissionalizantes: os resultados aparecem e praticamente não há reincidência

Os jovens permanecem na unidade em média por oito meses. Assim que chegam são matriculados na escola e passam a ter rotina puxada, preenchida com atividades, reforço escolar e cursos profissionalizantes. Atualmente são oferecidos cursos de 50 horas de Lancheiro, Chapeiro, Pintura e Decoração em Madeira para os 33 internos. No dia a dia, há espaços para uma das atividades fundamentais da adolescência: lazer. É nessa hora que muitos têm pela primeira vez a oportunidade de brincar. “A maioria não sabia nem sequer brincar. Muitos vêm de famílias nas quais eram os responsáveis pelos irmãos mais novos. Brincar é fundamental para aprender”, diz o encarregado técnico da unidade, Jean Alessandro. Em geral, os internos chegam depois de

Em todo o país, 43% dos adolescentes que cometeram atos infracionais acabam retornando às unidades de medidas socioeducativas, a maioria no Nordeste (54%) e no Centro-Oeste (46%). No sistema carcerário adulto, o índice chega aos 70%, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No estado de São Paulo, a Pastoral Carcerária mostra que apenas 8% dos detentos no sistema carcerário adulto têm acesso a alguma forma de educação; 12% exercem atividade remunerada; o serviço de saúde é frágil, com quadro técnico incompleto, casos de graves doenças e de óbitos decorrentes de negligência; em celas onde cabem 12 pessoas, aglutinam-se mais de 40. “Certamente, o sistema socioeducativo no Brasil é melhor de que o sistema carcerário dos adultos”, afirma a presidenta da Fundação Casa de São Paulo, Berenice Maria Gianella – que já se posicionou contrária à redução da maioridade penal e a favor do endurecimento de penas para os adultos que cooptem crianças e adolescentes em crimes. Berenice defende ainda a ampliação do tempo de internação para adolescentes que cometem crimes hediondos. “Apesar dos vários programas sociais do Brasil, ainda não se consegue manter os meninos o tempo todo na escola, oferecer ensino de qualidade, proporcionar cultura e lazer. Quando sai da medida so-

cioeducativa, o jovem volta para o mesmo mundo onde estava antes, vulnerável à criminalidade, apesar de todo o trabalho de conscientização dos jovens e da família”, diz Berenice. A instituição pretende criar, até julho, um programa de acompanhamento de egressos. A ideia é ter um profissional, ligado às prefeituras, que acompanhe os internos depois de retornar a suas casas. A Fundação Casa conta com 148 unidades, espalhadas na capital e no interior. Nelas, jovens de 12 a 21 anos incompletos cumprem medidas socioeducativas de privação de liberdade e semiliberdade. Apesar de enfrentar uma série de problemas, que vão de superlotação a falta de articulação com outras políticas, houve avanços desde que a instituição passou a oferecer um modelo diferente do sistema carcerário, há quase nove anos: em 2006, na época da Febem, 29% dos jovens reincidiam (hoje são 14%) e as rebeliões caíram de 80 em 2003 para apenas uma em 2009. “A Fundação recebe esses meninos com déficit em todas as áreas: moradia, alimentação, saúde, educação, qualificação profissional e socialização. Ela não tem como suprir a deficiência de todas as agências anteriores que falharam”, diz Berenice. INTERESSES OCULTOS Roberto da Silva: “Reduzir a maioridade penal interessa apenas à chamada bancada da bala”

DANILO RAMOS/RBA

sofrer diversas violações de direitos, com os laços escolares e familiares completamente rompidos. Muitos não têm certidão de nascimento. Na unidade, serão socializados pela primeira vez. “Apostamos tudo no respeito e na valorização das pessoas, dos profissionais e dos meninos que estão aqui. Acreditamos na recuperação deles e nos empenhamos nisso”, afirma o diretor Fernando Lopes. “A melhor parte é quando percebem do que são capazes e passam a dar valor a si próprios. Fazemos questão de mostrar que é um espaço onde eles são ouvidos e respeitados. É uma resposta diferente das que eles tiveram até agora, marcada apenas por violência e privações.”

REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

19


CIDADANIA

Lavam-se as mãos

O número de adolescentes em conflito com a lei que cumprem medidas socioeducativas no país por atos graves não é tão grande quanto querem fazer supor os defensores da redução da maioridade penal. Ao todo, 108.554 cumpriam algum tipo delas, segundo o Censo do Sistema Único de Assistência Social, Ministério de Desenvolvimento Social, de 2012. O número equivale a apenas 0,18% dos 60 milhões de brasileiros com menos de 18 anos. Deles, somente 13,3% tinham praticado crimes contra a vida. A prática de roubo respondeu por 38,6% dos casos e o tráfico de drogas, por 27%. “A mesma sociedade que pede a redução da maioridade penal não assume sua responsabilidade com os adolescentes. Não aceita o jovem no seu convívio, para estudar, trabalhar. Querem apenas que ele desapareça”, observa o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (Condeca), de São Paulo. “Em muitos bairros, a população se une para impedir a instalação de unidades de

NOVA CHANCE José Ferreira passou uma temporada no Cedeca: “Muitos jovens chegam ali sem apoio da família e da sociedade e se sentem úteis somente para o crime”

Demagogia e desinformação Argumentos de parlamentares em defesa da redução da maioridade penal não têm sustentação nos fatos “O ECA protege os menores em “Reduzir a maioridade penal faz justiça e diminui a criminalidade” O Brasil investiga pouco e resolve pouco. Segundo levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público, de 2012, cerca de 80% dos inquéritos de homicídio são arquivados, sem solução. A falta de investimentos em inteligência e ações de prevenção contribuem com a impunidade.

conflito com a lei. Ninguém pode dizer que um jovem de 16 ou 17 anos mata, assalta ou comete estupro sem saber o que está fazendo. Ele sabe que a legislação o deixa impune” O Estatuto da Criança e do Adolescente não contempla apenas direitos e prevê punição ao menor de 18 anos que cometer ato infracional: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação. Todas podem ser aplicadas a partir dos 12 anos.

“O problema da violência está na vagabundagem. Um garoto com menos de 16 anos é proibido de ter carteira assinada e emprego fixo. Se tivesse, muitos dos que estão no mundo da criminalidade não estariam” A legislação proíbe qualquer tipo de trabalho para menores de 14 anos. O trabalho a partir dessa idade é permitido na condição de aprendiz, em atividade relacionada à qualificação profissional. Acima dos 16 anos o trabalho é autorizado, exceto no período noturno e em condição insalubre, desde que não atrapalhe os estudos. 20

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

“Países desenvolvidos, como Alemanha, Estados Unidos e França, têm políticas melhores do que o Brasil, por adotarem responsabilidade penal com 12, 14 ou 16 anos” No Brasil, a responsabilidade penal se dá a partir dos 12 anos, sendo um dos países que responsabiliza mais cedo, com um dos sistemas mais rígidos entre 53 países. Na França, um sistema semelhante é aplicado aos adolescentes entre 13 e 18 anos. Até os 16 anos, se for demonstrado que o adolescente tem discernimento, pode ter diminuição da pena. Na faixa de idade seguinte (16 a 18), fica a critério do juiz. A maioridade só se dá aos 18 anos. Na Alemanha, o Sistema de Justiça Juvenil começa aos 14 anos. Mesmo após os 18 anos, uma avaliação de discernimento pode determinar a aplicação das regras do sistema. Somente após os 21 anos a competência é exclusiva da Justiça comum. Nos Estados Unidos, a responsabilidade se inicia aos 10 anos e a partir dos 12 já é possível condenar à pena de morte, em alguns estados. No entanto, o país começa a rever o aumento dessa idade.


GERARDO LAZZARI/RBA

CIDADANIA

“É inconcebível que não aconteça nada com jovem que comete estupro ou que ele passe por medida socioeducativa” O crime de estupro é considerado grave e punido com restrição de liberdade de até três anos. Após o cumprimento da pena em instituição fechada, o adolescente ainda poderá cumprir medidas de semiliberdade e de liberdade assistida, por tempo definido pelo juiz, até o limite de três anos cada. De forma cumulativa, o adolescente pode ficar até nove anos cumprindo medidas. “Segundo estudos, teremos 37 mil adolescentes assassinados até 2016 e a maioria está envolvida com o crime. Envolvidos porque eles estão à sombra da impunidade” Um estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) realmente indica que, seguindo o ritmo atual, 37 mil jovens podem perder a vida vítimas da violência no país. No entanto, a pesquisa não aponta se esses jovens têm envolvimento com o crime.

internação ou de centros de medidas socioeducativas.” Os jovens são os que acabam ficando com as “penas” mais rígidas, já que a progressão no sistema socioeducativo depende da análise da execução de seu plano individual, pela equipe multidisciplinar, e da aceitação dessa avaliação por um juiz. O adolescente em restrição de liberdade, por exemplo, não sabe quanto tempo ficará internado, dentro do limite de três anos. Isso depende de sua adesão e realização das atividades previstas no plano de ressocialização. Para um adulto a progressão está relacionada com o cumprimento da pena e também com condições prévias. Para alguém que comete homicídio, por exemplo, a pena pode variar de 6 a 30 anos. Mas se for réu primário e com bons antecedentes, pode cumprir somente um sexto da pena. Para o militante da União de Núcleos de Educação Popular para Negros e Classe Trabalhadora (Uneafro) Douglas Belchior, parte do apoio à PEC 171 vem de um apelo popular construído da ausência do senso de Justiça, auxiliado por setores da imprensa tradicional que estimulam o sentimento de vingança como espetáculo, sem nenhum compromisso em resolver o problema da violência. “Esses argumentos de aumento da violência dos jovens, de impunidade, não se sustentam. Precisamos sair desse lugar-comum de dizer que não existe punição e que a lei não funciona”, afirma. Os argumentos dos defensores da redução da maioridade penal colocam adolescentes na condição de agentes da violência e da criminalidade, como deixam claro as sessões da Comissão Especial que analisa a PEC 171 na Câmara. Mas até o presidente da comissão, André Moura (PSC-SE), que insiste que a medida vai contribuir para melhorar a situação, admite que “a redução da maioridade não é a solução”. Douglas Belchior defende que o Estado deve primeiro ser capaz de efetivar integralmente as políticas públicas para crianças e adolescentes antes de propor maior rigidez nas punições. “Defendemos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). O ECA é internacionalmente

reconhecido como uma das melhores legislações do planeta. O problema é que o Estado brasileiro e os governos estaduais nunca se empenharam em transformar o texto em realidade.” Além disso, os jovens não são os grandes algozes, como fazem parecer os discursos inflamados pela redução da idade penal. “É exatamente o contrário. Existe um enorme aumento da violência contra o jovem. Sobretudo os pobres, negros, das periferias urbanas”, argumenta o pesquisador da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), Julio Jacobo Waiselfisz, autor do Mapa da Violência. Das 56 mil pessoas assassinadas no Brasil em 2012, pelo menos 30 mil eram jovens entre 15 a 29 anos – desse total, 77% eram negros. Waiselfisz ressalta que a aprovação de leis sob forte clamor popular é ineficaz. A promulgação da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990) tinha esse apelo. No entanto, a população carcerária no Brasil só aumentou com a medida, passando de 148 mil em 1995 para cerca de 715 mil detentos no ano passado. Se a PEC 171 for aprovada, as expectativas de oportunidades – remédio fundamental para a redução da criminalidade – vão ficar ainda mais frágeis, como avalia o advogado e membro do Condeca, Ariel de Castro Alves. “Como é uma emenda à Constituição, abre um precedente perigoso. As leis que determinam o que é ou não legal para crianças, adolescentes e adultos se referenciam na idade penal”, explica. Em outras palavras, a redução afetaria irremediavelmente também a proteção de adolescentes em relação à exploração sexual, condições degradantes de trabalho, consumo de bebidas alcoólicas e até sua permanência em instituições de abrigo. Sendo criminalmente imputável, se tornaria inócuo dizer que uma adolescente de 16 anos foi aliciada sexualmente. Ou que não possa comprar bebidas alcoólicas. A Lei 12.015, de 2009, que endureceu a punição por corrupção de menores também pode perder força. “Existe o entendimento de que o menor de 18 anos é vulnerável e por isso precisa da proteção do poder público, da família e da sociedade. Com a redução da maioridade, esse entendimento fica prejudicado”, alerta o advogado. REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

21


CIDADANIA

22

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL


CIDADANIA

O Ã Ç A C U D E A PELA RAIZ Prêmio recebido por estudante em assentamento no interior do Paraná mostra a importância da formação e da comunidade Por Vitor Nuzzi

Valdirene com a professora Flávia: história de alegria e conquistas

FOTOS OLGA LEIRIA/RBA

N

ão é fácil chegar ao Assentamento 8 de Abril, em Jardim Alegre, na região norte do Paraná. Ao sair da estrada, o visitante encara quilômetros de um caminho de terra esburacado e sinuoso, que nos dias de chuva, segundo contam, se torna uma passagem quase intransponível – os moradores reivindicam melhorias na estrada e restabelecimento de três linhas de ônibus cortadas pela prefeitura. Imagine para quem pega o ônibus todos os dias para dar aulas. Ou para assistir aulas. Mas a vista do vale ajuda. E, com toda a dificuldade de acesso, a escola é um centro de referência para aquela comunidade, formada por 555 famílias, cada qual no seu lote, com 622 estudantes no total. É também exemplo do desenvolvimento que o local obteve nos dez últimos anos. Em dezembro, o assentamento ganhou notoriedade porque uma estudante de 15 anos, Valdirene Prestes dos Santos, foi premiada na Olimpíada da Língua Portuguesa, no gênero “memórias literárias”, por um texto sobre a história do assentamento, resultado de um movimento iniciado em abril de 1997 (na data que dá nome à área), com uma longa ocupação na então Fazenda Corumbataí, à beira da BR-466, entre Jardim Alegre e Ivaiporã. Uma briga que

chegou a bater às portas do Supremo Tribunal Federal, com uma reclamação do antigo proprietário, e que acabou em 2004, depois da compra da área pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Paranaense da cidade de Ponta Grossa e segunda de quatro irmãos – os demais são meninos –, Valdirene colheu depoimento de sua avó Elena Vieira e relatos de pessoas que participaram das ações para narrar a trajetória da ocupação e do assentamento. Os sustos, os tiros, as alegrias da conquista. Com uma preocupação de dar forma mais literária ao texto, descrevendo sensações. A olimpíada teve várias fases, regionais e estadual, até chegar à última, reunindo estudantes de todo o país. “A história é muito presente na vida dos alunos”, diz a professora Flávia Figueiredo de Paula Casa Grande, que orientou Valdirene em sua redação e a acompanhou na entrega do prêmio, em Brasília. “Qualquer criança sabe, alguns mais, outros menos.” Há uma preocupação geral no sentido de não se esquecer como aquela terra foi obtida. “Tem aluno que nasceu em barraco de lona. Eles acabam vivenciando o que é ser sem-terra.” O assentamento 8 de Abril, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ocupa uma área extensa, de 14 mil hectares. Corresponde a quase 40% REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

23


CIDADANIA

FOTOS OLGA LEIRIA/RBA

“A escola era um barracão”, lembra a professora Carla. Hoje, o colégio tem 622 alunos

do total de Jardim Alegre, município com 12 mil habitantes, a 380 quilômetros de Curitiba. Depois da compra pelo Incra, em 2004, pondo fim a um longo período de conflitos, começou a ser feita a distribuição de lotes e a ser formatada a organização dos assentados. Uma trajetória que traz muitas lembranças – algumas engraçadas, como a de um avô de uma aluna que, assustado ao ouvir tiros, saiu do banho do jeito que estava. Outras tristes, como a da morte da mãe de um estudante. Tudo remete à terra e ao movimento.

Segredo

“Eu esperava algo melhor, não pensava que seria complicado começar a fazer parte de um momento social”, conta Valdirene, no início de seu texto, cujo título é Um Segredo Revelado. Uma história que também é dela e não aparece nos noticiários, mas que agora seria contada. “Não havia energia elétrica, usávamos vela. Não havia água encanada, buscávamos em um riozinho”, descreve. 24

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

Ela também fala sobre a comemoração com a notícia da conquista definitiva da terra: “Pássaros voando sem cessar entre uma quina e outra dos barracos pareciam estar fazendo parte da festa”. No salão de reuniões, os músicos. “Lá fora, os grilos tritinavam e as cigarras cantavam cada vez mais alto, acompanhando nossa alegria!” No final de 2013, a reinauguração da escola estadual do assentamento, que leva o nome de José Martí, foi motivo de festa e orgulho para a comunidade. Logo na entrada, se destaca um mosaico com frase atribuída ao político e revolucionário cubano: “Só o conhecimento liberta”. A antiga sede ficava em uma casa simples, a quilômetros dali. Em breve, deve começar a funcionar o prédio da Escola Municipal do Campo José Clarismundo Filho (primeiro prefeito de Jardim Alegre), bem ao lado – por enquanto, ela fica nas mesmas instalações da estadual. Do outro lado da rua de terra, há uma Unidade Básica de Saúde (UBS). “A escola era um barracão”, lembra a

professora Carla Orzekovski, coordenadora do setor de mulheres no assentamento e no MST do Paraná, lembrando dos tempos iniciais – quando, conta, as pessoas cavavam buracos no chão para escapar dos tiros. “Era uma borracharia que tinha na fazenda”, relata, feliz com a “formosura” da Escola Estadual do Campo José Martí, toda nova, com suas 17 salas e um entra-e-sai de jovens. “Professor é formador de consciência”, diz Carla, catarinense de Cantagalo que fez Magistério com apoio do MST e preserva a história do 8 de Abril, área antes ocupada extensivamente por gado. “A gente não queria boi, queria terra”, resume.

Futuro

Em uma dessas salas estuda Valdirene, que passa uma hora dentro do ônibus no percurso do lote até a escola. Alguns alunos levam duas horas, conta a menina, que tem três irmãos: Gustavo, 17 anos, Mateus, 13, e Marcos, 10. Gosta de ler, especialmente crônicas – e cita uma biografia da


CIDADANIA

escritora Patrícia Galvão, a Pagu, entre um dos livros que mais gostou. Também escreve poesias, gosta de compor e tocar violão. À tarde, de volta das aulas, ajuda a família a cuidar da casa e do lote, onde mora com irmãos, pais (Gustavo e Irene) e avós maternos (Elena e Vanil). Ela é daquelas alunas atentas na sala de aula – e também se cobra muito em relação ao seu aprendizado. Vai bem em Português e gosta “bastante” de Artes. Segundo ela, em Ciências “este ano está meio complicado”. Há cinco anos na região, a professora Flávia vê na presença dos moradores do assentamento um diferencial importante em relação a escolas em áreas urbanas, onde também deu aula. “Os pais participam.

Tudo o que envolve a comunidade a escola está no meio. Sempre que tem alguma coisa, as pessoas se envolvem”, diz. Na cidade, ela diz ter pegado “turmas bem complicadas”, com problemas de disciplina, uso de drogas e falta de participação das famílias. “Chamava a família, ninguém vinha para conversar sobre o comportamento do aluno. Você podia chamar o ano inteiro, o pai e a mãe não apareciam. Passava mais tempo lidando com questões de disciplina.” Ali no assentamento, naturalmente, também existem problemas. Mas Flávia diz que o comportamento dos alunos é mais tranquilo. “Eles são muito críticos, desde pequenos.” Os vencedores da Olimpíada ganharam

medalhas e notebooks – um livro reuniu os textos. As escolas receberam computadores, que no caso do Assentamento 8 de Abril começaram a ser instalados no mês passado, na biblioteca da escola, pertinho da futura agrofloresta e da quadra. “Preocupada com o estudo e com o futuro”, como diz sua professora, Valdirene pensa em cursar Direito. “Para entender melhor o mundo”, explica. “Por que tá terrível, né?”, completa, sorrindo. Mas antes pretende cursar Psicologia, para tentar entender as pessoas. “Quero saber lidar com elas.” A ideia também é se preparar para quando tiver filhos. E o que a deixa brava? “Quando quero fazer alguma coisa e não consigo”, diz a menina.

Produção com organização “A gente acorda no clarear do dia e vai atrás do leite”, diz Cleide Teixeira Lopes ao descrever o início de sua rotina diária no lote onde mora com Nereu. Ali, eles cuidam de 34 cabeças de gado, produzem milho, abóbora, moranga, alface, almeirão, chuchu, mandioca, “todo tipo de fruta”. Uma parte da produção vai para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do governo federal, para distribuição em escolas, hospitais e creches, entre outros locais. O que sobra é vendido no comércio da região. Eles mesmos fazem a ração das vacas, usando mandioca, cana e milho. Cleide e Nereu são catarinenses – ela de Concórdia, ele de Itá. O filho, Carlos Alberto, de 14 anos, vai para a escola, onde também treina vôlei, e ajuda no serviço. São mais de seis quilômetros do lote até a José Martí. “Eu posso dizer que aqui sou feliz”, afirma Cleide. “O que a gente planta, dá.” O leite é o forte da economia do 8 de Abril, conta Valdemar Batista da Silva, o Nego, da coordenação do assentamento, há 15 anos no local e ele mesmo um filho de assentado. “É o que dá a renda

mensal. Dá para dizer que 90% do assentamento estão envolvidos na atividade do leite.” Apenas a Cooperativa de Comercialização Camponesa Vale do Ivaí (Cocavi) pega em torno de 10 mil litros por dia. Dos 27 sócios iniciais, a cooperativa tem agora 250, diz o seu presidente, Digerson Santos da Silva. Outra cooperativa, em Arapongas, também no norte do estado, processa o produto, em forma de bebida láctea, iogurte e queijo. É a Cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária União Camponesa (Copran), criada em 1997 e que há pouco mais de dois anos inaugurou a sua agroindústria, com a presença da presidenta Dilma Rousseff (PT) e do governador Beto Richa (PSDB). A Copran fica no Assentamento Dorcelina Folador, homenagem a uma ex-prefeita de Mundo Novo (MS) e líder sem-terra, assassinada a tiros em 1999. Só a produção mensal de leite no Assentamento 8 de Abril supera 1 milhão de litros por mês. Na recente safra de soja, plantada entre outubro e novembro e colhida agora, foram 112 mil sacas (de 60 quilos cada). O milho

Cleide Lopes ordenha suas vacas duas vezes ao dia: o leite é o forte da economia do 8 de Abril

já começou a ser colhido, e a previsão é atingir 190 mil sacas. Também se estima a venda de 2.500 cabeças de gado para frigoríficos e compradores autônomos. Contando tudo, entre compras e vendas, Nego calcula que o assentamento movimente R$ 1,5 milhão por mês. “Sem contar quanto emprego cria”, acrescenta. Ele acredita que a produção irá se concentrar mais no leite. “O pequeno agricultor está olhando que a atividade

(agrícola) é um plantio de risco. Tem veneno, custo de frete. A tendência é ir cada vez aumentando mais o leite.” O Assentamento 8 de Abril é dividido em 11 brigadas, com 50 famílias cada. Periodicamente, todas se reúnem para discutir questões como produção e escola. A professora Carla Orzekovski ressalta a importância da organização para o funcionamento do local no dia a dia. “Se não fosse organizada da forma que foi e é, jamais seria assim.” REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

25


ENTREVISTA

Há 20 anos no movimento hip hop, 14 como radialista, e prestes a lançar um disco após dez anos de hiato, Rappin Hood mantém-se ativo nos constantes desafios dos cenários musical e social da periferia Por Carla Furtado

O rap nunca dormiu 26

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL


ENTREVISTA

R

appin Hood é rapper, radialista, apresentador, produtor musical, ativista social. A inovação e a tradição andam juntas para o músico, que abriu espaço no cenário nacional com a canção Sou Negrão, lançada com seu grupo Posse Mente Zulu, na ativa desde o início dos anos 1990 e sempre atento à temática social. A faixa, cantada com Leci Brandão, trata com leveza das pesadas questões da marginalização negra e faz mistura com o samba, uma revolução para o rap p­ urista de 2001, ano em que lançou seu primeiro disco, Sujeito Homem 1. Há 14 anos, ele comanda o programa de rap mais popular do rádio, o Rap Du Bom, na 105 FM. E nunca deixou de se dedicar a trabalhos sociais, como oficineiro do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cedeca), no bairro do Ipiranga, na capital paulista. A ousadia de explorar as possibilidades no hip hop sempre acompanhou a preocupação de não se afastar das raízes e do comprometimento do movimento. Sua estreia como radialista, com o programa A Voz do Rap, foi na rádio comunitária que ficava na favela de Heliópolis, onde mora. Aos 43 anos, Antônio Luiz Júnior, como só a família o reconhece, está em fase de gravação do álbum Sujeito Homem 3. Para ele, o hip hop já mostrou ser, ­como toda forma de arte, ferramenta com poder de abrir portas promissoras de oportunidades para a juventude. Mesmo sem lançar disco nos últimos dez anos, ­Rappin’ Hood não foi esquecido e, enquanto setores do país ­comemoram ter acordado, garante: nunca e­ steve ­dormindo. O rapper abomina pregações de golpe contra o governo Dilma. “Cobrar ­explicações sobre coisas erradas a gente vai continuar cobrando, mas eu ainda acredito que não joguei o meu voto no lixo.” Na noite em que foi entrevistado pela Revista do ­Brasil, Rappin fazia participação no show da iniciante banda de música jamaicana Ba Boom, no Sesc Belenzinho. A presença do rapper da velha-guarda foi definitivamente um dos pontos mais aclamados pelo público.

MAURICIO SANTANA/GETTY IMAGES

Como surgiu o apelido Rappin Hood?

Já tive muitos apelidos. De Antônio mesmo nunca me chamaram, era o nome do meu pai. Minha mãe me chamava de Júnior, Juninho. Quando eu comecei a frequentar a estação São Bento do Metrô, point dos veteranos do rap, em 1986, meu apelido era Ataliba, por causa do jogador do Corinthians. Diziam que eu parecia com ele. Mas lá já tinha um cara com esse apelido, um integrante do Região Abissal, da velha-guarda do hip hop paulistano. Aí eles começaram a me c­ hamar de Robin Hood do rap por causa das ­letras. Depois acharam um personagem, do filme Rappin, interpretado por Mario Van Peebles, que se chamava Rappin’ Hood. Agora já faz pouco mais de 20 anos que eu sou o Rappin’ Hood.

Você já estudou música, aos 14 anos ­aprendeu a tocar trombone e corneta. De onde veio a ­influência musical nessa época, foi de casa?

Na minha família não havia músicos, mas a música sempre esteve muito presente. Tinha um primo distante que tocava saxofone, mas eu nunca tive referências pessoais mais próximas que essa de músicos. Minha mãe consumia muita música e eu consumi junto com ela, ouvíamos muito em casa, de tudo. Até que eu tive vontade de fazer música, aprender como era, e ela me apoiou. E aí, ao mesmo tempo que fazia rap eu tocava trombone e estudava na fanfarra da comunidade. Foi um paralelo, mas o rap acabou predominando. Seu irmão Parteum também é artista, rapper, produtor e muito conhecido no mundo do skate. Como é a relação musical entre vocês?

Trabalhamos juntos sempre, desde o meu primeiro disco ele produz faixas. No próximo, que sai este ano, ele também está produzindo. Eu também participo dos trabalhos dele, nós já somos uma parceria formada. Tá tudo em casa, nos entendemos, fica mais fácil.

E como é sua relação com o mundo de skate, muito conectado com o do hip hop?

Minha relação com skate começou por causa do Parteum. Ele é um profissional na modalidade do street, já foi para fora do Brasil competir. Gosto muito do esporte, tem uma sintonia legal com o rap e o hip hop, os dois vêm das ruas. Eu me identifico, mas quando tentava andar tinha medo, e quem tem medo não vai ser um bom skatista, né? Ele já era mais atirado. Através dele eu tive a oportunidade de conhecer toda a nata do skate brasileiro: Bob Burnquist, Tarobinha, Alexandre Vianna, Rogério Mancha, Fábio Cristiano, César Girão, Fábio Bolota, Anchovinhas, Nilton Urina, Alexandre Tiziu... uma rapa. E isso nos abriu portas lá fora, por exemplo, quando o Rodrigo Teixeira, o TX, teve seu vídeo perfil na 411VM (lendária revista norte-americana de skate em formato de vídeo, da época das fitas videocassete), a música que usaram é a minha É Tudo no Meu Nome, do meu primeiro disco. Onde você mora hoje?

Continuo na mesma quebrada! Vila Arapuá, em Heliópolis. Mesmo procedimento, desde os meus 10 anos. Tenho uma identificação com a comunidade ali da quebrada. Agora que meu pai está aposentado, gosta de ter sua horta, plantar, e a família consome tudo! O rap na década de 1990 ressaltava o descaso do Estado com a juventude vítima de aids, drogas, tráfico, fome. O que mudou? Como vivem hoje as pessoas que inspiraram essas músicas? REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

27


ENTREVISTA

O Posse Mente Zulu continua firme comigo, o Johnny MC e o DJ Marco. A nossa identificação musical era essa, a gente gostava e gosta de tratar dos temas sociais. Agora estamos ­planejando fazer um disco novo, pode ser que nele isso mude um ­pouco, por ser uma nova fase da nossa vida, podemos também fazer ­música para divertir. M­as até aqui, todas as nossas criações ­focaram em algum ponto da vida social do povo. Muitos dos problemas ­ainda são pertinentes, só mudaram os nomes: antigamente a gente falava da Febem, hoje é Fundação Casa. Tinha uma música que a gente tocava, Caindo na Real, que falava dos hospitais lotados. Isso continua. As músicas continuam atuais.

Pode ser polêmico o que eu vou falar agora, mas o chamado funk eu também vejo como rap. É com batida mais acelerada, mas não é muito diferente do que o 2 Live Crew fazia muito antigamente, eles se chamam de MCs, não são diferentes de nós. O rap, o hip hop, tem vários estilos. Existe o rap gangsta, tem o underground, o romântico. O Sampa Crew, por exemplo, uma banda já antiga, e que tem um fã clube feminino enorme, faz rap romântico. O rap pode ser tudo, hoje é adulto no país e continua crescendo, a gente pode se atrever mais. Mas sem perder o compromisso, como diria Sabotage. Eu não posso fazer um disco que sejam 14 músicas de festa, tem que ter um certo equilíbrio no meu trabalho. Tenho que honrar com meu comprometimento. A geração atual não parece lidar com tanto ­compromisso como os rappers e fãs de antigamente...

É um novo momento! Eu nem cobro isso das novas gerações. Esses novos músicos do hip hop e do rap não têm que carregar isso nas costas, eles não têm a obrigação de ser militantes todo o tempo. Rap é música, eles estão fazendo música. Claro que para a minha geração do rap a militância era um ponto importantíssimo. Hoje eles podem se dar ao luxo de falar de todo e qualquer assunto. E não acho errado, é legal, é liberdade de criação. Ao mesmo tempo, não se pode esquecer de onde o rap veio, qual é o seu propósito. É importante não esquecer bandas como Public Enemy, as mensagens que eles nos mandavam, e nós, mais antigos, temos nosso papel nessa responsabilidade. No movimento hip hop, observamos visibilidade maior para o rap. Como você vê os outros elementos, o grafite, o papel do DJ e da dança de rua no Brasil?

O grafite é uma realidade no Brasil e grafiteiros brasileiros são uma realidade no mundo. Conhecemos muito o trabalho d’Os Gêmeos, que é lindo. Foi uma geração que começou com todo mundo junto lá no Largo São Bento. O grafite conquistou espaço no nosso país, é reconhecido como arte. A mesma coisa com a dança. Os b-boys, as b-girls, os DJs são reconhecidos, o cenário está bem forte. O que precisamos é nos manter, crescer, continuar trabalhando sem descaracterizar o movimento. Agora, esse é o grande desafio. 28

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

JAILTON GARCIA/RBA

A música das comunidades da periferia fica pouco no rap social puro e o propósito também mudou. O que ­você acha do funk e variações, como o ostentação?

Cobrar explicações sobre coisas erradas a gente vai continuar cobrando, mas eu não joguei o meu voto no lixo, eu votei em quem é melhor para mim e para o meu povo Ainda existe o preconceito de vincular esse movimento a algo de rua no sentido pejorativo, de marginais?

Ainda há quem pense assim. Mas a gente já ultrapassou as barreiras. O rap não está mais só na periferia, no gueto, está em geral. Se formos analisar, está em bairros nobres, está nos Jardins... Hoje em dia eu trombo um cara num Merça ouvindo minha música. O rap é uma realidade estabelecida e nós temos o objetivo de nos manter. Você hoje está no comando de um programa na 105 FM. Abre portas para novas caras do rap, recebe artistas nos estúdios e toca músicas de alguns não conhecidos pelo público que já ouve Emicida, Criolo, Rael. Como é ter autonomia para fazer isso em uma grande rádio? Não tem jabá?

Eu gosto muito de rádio, estou há 14 anos na 105 FM com o Rap Du Bom, antes fiquei na Rádio Heliopólis por sete anos, e antes ainda na College. Agora estou tentando juntar rádio e TV, estamos com um piloto pronto do programa Rap Du Bom para televisão, é um projeto para sair neste ano. Graças a Deus, tenho minha liberdade na rádio, não tem essa de jabá. Talvez esse seja o segredo da minha parceria com a 105 FM, o motivo de eu estar lá há tanto tempo. Tenho total liberdade para tocar o que eu quiser. Com a internet, mais pessoas têm voz e acesso à informação, mas se aprofundam menos. Como você vê isso?


ENTREVISTA

Os comunicadores têm que levar isso como um exercício para tornar seus veículos mais atraentes e disputar mercado com esse nicho do computador. Quem tem uma banda, um trabalho, um grupo novo, aproveita. No meu tempo não tinha, mano. Para arrumar uma base para cantar tinha que correr atrás dos discos gringos, que eram caros, era difícil. Para ter uma bateria eletrônica, programar uma batida, um beat, fazer uma base, era quase impossível, irmão! Hoje você tem o computador, produz a sua música, canta e grava – tudo nele –, e depois já põe no Soundcloud e aí divulga para todo mundo. Nós não tivemos Youtube, fomos para a rua fazer trabalho de formiga. A gente ralou para pavimentar essa estrada chamada rap nacional, irmão! Aproveita a internet, cara. Democratizou a música! Dez anos depois de lançar o disco Sujeito Homem 2, você planeja o volume 3. Como está?

Estamos no estúdio preparando. É continuação do trabalho, o público pode esperar mais rap do bom por aí, com produção do Parteum, e mais da minha parceria com o samba. Hip hop com samba é algo que eu comecei e gosto de fazer. Continuo trabalhando com o produtor (Wilson) Prateado e desta vez também com o Rildo Hora, que é um mestre lendário do samba brasileiro. É muito legal ter a visão musical de uma pessoa como ele, com mais de 70 anos, sobre o rap! Vêm parcerias musicais legais também: Djavan, Martinho da Vila, Emicida, Rael. O disco fica pronto em agosto, setembro, queremos lançar antes do Rock in Rio, porque vou cantar no festival junto com o Ira e com o Tony Tornado. Como você vê o atual momento político do país e como tem inspirado as novas canções?

Eu já soltei uma música sobre isso, inclusive com clipe, chamada Ó o Auê aí Ó, em janeiro. Eu sou um ativista, e o rap, o hip hop nunca dormiram. Disseram que o Brasil acordou. Não, não. A gente nunca dormiu. Falamos dessas questões há muitos anos. Para mim, tudo aquilo foi só uma continuação de algo que eu já venho falando. É bom ver o Brasil acordar, só que é bom saber para onde queremos ir também. A gente tem que saber na mão de quem nós vamos entregar essa bola porque, senão, não vai adiantar nada reivindicar. Eu acredito que o Brasil é um país que tem tudo para crescer mais ainda. Com a Dilma, conseguimos chegar à sétima economia do mundo. E eu acho que pode mais, pode ser Primeiro Mundo sim. O Brasil é um grande país, não só em território. O povo é bom, se houver um investimento na qualidade de vida do povo o p­ aís pode render muito mais, pode ser uma potência.

Estamos num novo momento de reivindicações que pedem o impeachment de um governo com projeto de país que você apoiou durante a eleição. O que tem achado disso?

Eu não sou filiado a nenhum partido, eu analiso pelo meu passado. Como eu e o cenário ao meu redor estávamos antes desse governo e como ficamos depois. Eu percebo que muitos jovens da minha comunidade tiveram oportunidade de fazer uma faculdade. Noto que houve um avanço na qualidade de vida do povo mais pobre, digamos que uma melhor divisão de renda em relação a quem tem muito, muito, muito. Era isso que eu buscava enquanto eleitor mesmo antes do governo Lula, antes do governo Dilma, então estou bem tranquilo. Cobrar explicações sobre coisas erradas a gente vai continuar cobrando, como eu fiz no clipe ali, mas ainda acredito que não joguei o meu voto no lixo, eu votei em quem é melhor para mim e para o meu povo. Um impeachment não vai nos beneficiar. O outro lado que quer assumir não beneficia em nada, não resolve o problema. Se eu achar que é necessário votar diferente da próxima vez, eu vou, isso é democracia. Mas no momento, eu ainda acredito nas pessoas que estão lá. Uma das revindicações de parte dos manifestantes é intervenção militar. O que pensa?

Isso para mim é piada. Voltar ao militarismo é loucura. Eu quero é liberdade de expressão, eu sou um rapper! Quero falar o que eu quiser, sobre quem eu quiser e não quero ser mandado embora do país porque eu falei a verdade. Se eu tiver que criticar a Dilma, eu quero criticá-la. Intervenção militar é para louco. E a intervenção militar nas favelas?

Sempre aconteceu intervenção militar nas comunidades. A Sabesp não sobe o morro, a Eletropaulo não sobe o morro, o que tem lá é gato. O único órgão do Estado que sobe o morro é a polícia, “fi”. Isso já é uma coisa antiga, cultural. A questão é essa: se você dá flores, você recebe de volta flores. Se você manda bala vai receber de volta bala. Põe cultura lá, educação, hospitais, trabalho. Aí não vai precisar de polícia. Um povo culto, que reivindica, que conhece seus direitos, educado, não precisa de repressão. Isso só é usado quando se quer calar o povo. Desde sempre que a polícia é o órgão opressor do sistema, do governo. Mas eu acredito que possam ser feitos trabalhos, pode ver que algumas UPPs funcionaram, outras não. Há um grande dilema, alguns dizem que lá fora existe a polícia comunitária, os caras trabalham junto com a comunidade. Aqui, infelizmente, a gente ainda não conhece isso.

Continuo na mesma quebrada! Vila Arapuá, em Heliópolis. Mesmo procedimento, tô lá desde os meus 10 anos. Tenho uma identificação boa com a comunidade ali da quebrada. Agora que meu pai está aposentado, gosta de ter sua horta, plantar, e a família consome tudo!

REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

29


ENTREVISTA

E sobre a redução da maioridade penal que está em debate atualmente?

Sou contra. Eu fui presidente, alguns anos atrás, do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, do Ipiranga, a Casa 10, fui oficineiro lá durante muitos anos. Acho que não adianta baixar a maioridade penal se não dão oportunidades para o povo. Se a diminuem, mas não dão estudo, cultura, educação, logo depois vão ter que reduzir de novo para 14 anos. Porque para o moleque que não tem oportunidades é assim: ele começa pedindo “Por favor, uma moeda”, daqui a pouco ele vai estar falando, com um tom de voz mais forte, “Pô! Arruma um qualquer pra mim!!”, mais um pouco e ele está com uma arma falando “Me dá isso aí!” É a realidade dura e crua. É fácil tomar essa atitude de reduzir a maioridade penal, difícil é arrumar o país, pôr faculdade na periferia, escolas técnicas, profissionalizantes. Parece que é mais difícil tratar o povo decentemente. Eu sou um universitário frustrado! Iniciei três faculdades e não terminei nenhuma. Primeiro foi Música, depois Educação Física e depois Administração, e todas eu parei no terceiro ano. Por incrível que pareça, a que eu gostaria de terminar é Administração! Eu fiz na Zumbi dos Palmares, que é praticamente para o público negro, embora existam muitos brancos lá. A USP, dentre outras universidades paulistas, não quer incluir cotas raciais nos seus processos seletivos. O que acha da política de cotas?

Eu sou a favor das cotas raciais, só que aqui no Brasil muitas pessoas querem descaracterizar o que são as cotas. As cotas não desmerecem o meu povo, elas são uma reparação por todo o mal que foi feito para ele, é diferente. Essa é uma discussão muito grande, mas o que eu tenho a falar para todo o povo negro, principalmente, é: busque, mano! Independente das cotas, vamos estudar, vamos trampar, vamos invadir o mercado de trabalho, as faculdades, as escolas. Buscar nosso progresso, nossa prosperidade, porque é isso que vale. Com ou sem cota racial a nossa cota é progredir, prosperar, entrar em tudo! A gente quer ter vagas nos trabalhos governamentais, nas empresas privadas, a gente merece. Nossos antepassados construíram esse país a duras penas e agora queremos nossos lugares por direito, é só isso. Suas raízes humildes o ensinaram a ser quem é? Apesar das condições injustas, isso teve um lado positivo? Ou preferia ter nascido num bairro de classe média alta?

Eu tive a sorte de ter um pai e uma mãe maravilhosos. Seu Antônio e dona Bete, mesmo com toda a dificuldade que um jovem pobre e negro tem, me ensinaram os valores. Isso é o mais importante, os valores como o respeito, a solidariedade, a dedicação. É o que me trouxe até aqui. O rap me ajudou muito também, o hip hop foi um caminho que se abriu no qual eu me encontrei! Era aquilo que eu estava esperando, tinha tudo a ver comigo. Ser uma pessoa que tem dinheiro não te muda. Conheço bandidos, caras que foram presos roubando, e que ti30

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

JAILTON GARCIA/RBA

Falando em faculdade, já fez alguma?

Sempre aconteceu intervenção militar nas comunidades. A Sabesp não sobe o morro, a Eletropaulo não sobe no morro, o que tem lá é gato. O único órgão do Estado que sobe o morro é a polícia nham boas condições de vida. Pessoas que não precisariam fazer aquilo. Não é a classe social, são valores. O cara que é rico também tem que aprender o que é respeito, o que é dedicação. Na hora que todos os valores forem passados para todos nós, teremos um mundo bem melhor. Nenhuma mudança vai ser feita por uma só parcela da sociedade, tem que partir de todos. Como passar esses valores para as novas gerações? ­Como você passa isso para seu filho Mártin, de 13 anos, por exemplo?

Existem coisas que realmente ainda são como antigamente, coisas que vêm de berço, ainda é aquele negócio bem delicado, de pai para filho, pela palavra e exemplo. Essa relação familiar é importante, para os valores serem passados dentro de casa. O que você ainda tem vontade de fazer no campo profissional?

Poxa, já fiz muitas coisas! Mas tem alguns músicos, monstros, que eu ainda gostaria de trabalhar. Estou esperando a oportunidade de gravar com pessoas como Jorge Ben Jor, Carlos da Fé, Alcione. Figuras de quem eu sou fã, com quem já tive a chance de cantar em show, mas ainda quero registrar em disco. Ainda faltam algumas coisas para conquistar. Colaborou Gisele Coutinho


LEITURA

Livro desconstrói mito da democracia racial em São Paulo: trabalhadores negros são excluídos de empregos com maior relevância econômica desde o início do período republicano Por Xandra Stefanel

“P

MARC FERREZ - “ESCRAVOS EM TERREIRO DE UMA FAZENDA DE CAFÉ, VALE DO PARAÍBA”, C. 1882

Uma cidade branca

TROCA Negros na lavoura do café: oligarquias eram “profundamente racistas”

recisa-se de uma boa lavadeira e engomadeira branca para lavar em sua própria casa.” “Lavadeira branca para senhor só.” “Lavadeira, que saiba engomar, branca, para casa de família.” “Precisa-se de perfeita cozinheira estrangeira, que durma no aluguel, tratar-se Av. Paulista, 60.” O racismo no início do século 20 no Brasil não era velado, como mostram esses anúncios publicados originalmente no jornal Diário Popular, entre 1912 e 1913. A escravidão no Brasil durou mais de 350 anos e marcou de maneira profunda a formação econômica, social, política e cultural do país – e seus efeitos perversos continuam até hoje. É por isso que o historiador Ramatis Jacino debruçou-se em pesquisas durante quatro anos, na tentativa de compreender as razões e os mecanismos da exclusão da mão de obra negra na cidade de São Paulo, o epicentro econômico e financeiro do país nas primeiras décadas da República. Resultado de trabalho que lhe deu o título de doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), o livro Transição e Exclusão – O Negro no Mercado de Trabalho em São Paulo Pós-Abolição – 1912/1920 (Nefertiti Editora, 226 págs.) constata que houve uma opção por “branquear” o mercado de trabalho por parte das elites, que ao privilegiar os imigrantes europeus negaram ao homem e à mulher negra ocupações valorizadas socialmente e mais bem remuneradas. “A ideia de pesquisar a exclusão do negro no mercado de

trabalho ao final do período escravista surgiu durante a minha graduação, quando pensei em buscar as razões da atual discriminação que homens e mulheres negras vivenciam no mercado de trabalho e na sociedade”, afirma Jacino. O autor comprovou que mesmo atividades historicamente consideradas “ocupações de negros” – serviços domésticos, comércio de rua, atendimento a saúde e demais atividades até então consideradas desprezíveis para brancos – começaram a ser disputadas pelos imigrantes europeus. Estes eram favorecidos por “ações administrativas” protagonizadas pelos setores abastados da cidade e até mesmo pela legislação que, implícita ou explicitamente, proibia que homens e mulheres negras ocupassem certas vagas. As razões para esse “branqueamento” do mercado de trabalho, segundo o pesquisador, são as opções ideológicas das elites daquele período, em especial das oligarquias cafeeiras paulistas. “Por serem profundamente racistas, compreendiam que o crescimento e a modernização do país pressupunha o ‘branqueamento’ do seu povo. Os efeitos desse ‘branqueamento’ são econômicos, pois homens e mulheres negros ainda estão condenados aos trabalhos mais insalubres, mais mal remunerados e mal valorizados socialmente; são sociais, pois os descendentes de escravizados continuam marginalizados; são políticos, pois estão sub-representados nos espaços de poder; e são culturais, uma vez que a extraordinária contribuição cultural dos descendentes de africanos permanece desprezada, demonizada, criminalizada ou, na melhor das hipóteses, tratada como ‘folclore’”, lamenta Jacino. REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

31


LALO LEAL

Uma nação altiva

Cubanos recebem visitantes sem arrogância nem submissão. Sua altivez no relacionamento turístico se estende também à preocupação com a consolidação da soberania, em um mundo claramente hostil

C

uba vinha recebendo, em média, 2,5 milhões de turistas por ano. No primeiro trimestre de 2015, já chegam a 1 milhão. Isso sem que ainda tenham sido restabelecidos voos regulares com os Estados Unidos. Do Brasil, apenas uma agência de viagens coloca por ano em Cuba cerca de mil visitantes. A tendência é que em pouco tempo a ilha do Caribe, pouco maior que Pernambuco, receba tantos turistas quanto todo o Brasil. Essa indústria foi implementada nos anos 1990 como forma de enfrentar a crise decorrente do fim do campo socialista combinado com o bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos, em vigor desde 1962. Se de um lado a política contribuiu para aliviar agruras econômicas, de outro trouxe para dentro do país hábitos e comportamentos diversos dos padrões igualitários de vida adotados pelos cubanos. No entanto, em uma visão impressionista, circulando alguns dias por Havana é possível perceber que a contaminação turística não tirou dos cubanos a altivez cunhada numa longa história de lutas em busca da soberania. Turistas são assediados por ofertas de serviços e produtos como em qualquer outro destino semelhante existente no mundo. Mas tanto esses cubanos como principalmente aqueles que atuam em hotéis, restaurantes e lojas tratam os clientes de igual para igual, sem arrogância, mas nunca com submissão. Comportamento semelhante e decorrente da própria postura da nação, capaz de enfrentar da mesma forma os desafios impostos ao país há mais de meio século pela maior potência bélica do mundo, situada a poucos quilômetros. A altivez não se resume ao relacionamento turístico. Revela-se cada vez mais na discussão dos problemas internos. A universalização dos serviços públicos de educação e saúde, bem como a garantia de uma cesta básica de alimentação para todos, já não bastam. Passa-se a discutir a qualidade desses e de outros serviços, e as formas de colocá-los em prática. 32

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

Entre elas está a abertura mais recente de alguns setores da economia para prestadores de serviços “por conta própria”, como restaurantes e transportes de passageiros, dentro de limites estabelecidos em lei. Se a construção do socialismo cubano não foi fácil, sua consolidação em um mundo claramente hostil requer extraordinária habilidade política. Trabalho que inclui tanto as medidas internas mencionadas como a busca do reatamento de relações diplomáticas com os Estados Unidos, sem no entanto deixar de censurá-los por sua atitude belicosa diante da Venezuela. Tudo isso, muitas vezes, passa despercebido pelo turista, especialmente o brasileiro de classe média que vai a Cuba e mede o país com sua régua capitalista. Pode ser pedir muito, mas seria interessante que antes de viajar folheassem o livro do professor Florestan Fernandes Da Guerrilha ao Socialismo: A Revolução Cubana. Diz ele, em trecho ressaltado no prefácio pelo professor Antonio Candido: “Pela primeira vez, na história da América Latina, uma revolução nacional deixaria de dissociar o elemento nacional do elemento democrático e, ao vencer, a ideia de nação arrasta com ela a construção de uma ordem social inteiramente nova e socialista”. Entender essa nova ordem é fundamental, com seus avanços e recuos, erros e acertos. A leitura e a reflexão de trechos como esse tornariam a viagem mais proveitosa, acrescentando às praias e aos mojitos uma experiência de crescimento intelectual e espiritual inigualável. Sem falar da riqueza melódica a acompanhá-los por toda a parte. À semelhança do Buena Vista Social Club, brotam conjuntos de músicos e cantores que, aos 70, 80 anos, seguem levantando as plateias com suas vozes e ritmos, ao lado de conjuntos jovens de jazz com fortes sabores latinos. Vidas que pulsam entre a defesa das conquistas obtidas e a busca de condições de vida mais confortáveis. Compreender esse desafio é tarefa fundamental para apoiar um processo histórico inédito no continente, onde a solidariedade busca se sobrepor ao individualismo.


TRABALHO

EMIR SADER

A França, da esquerda à direita Nas últimas décadas, um movimento geral – político e ideológico, sobretudo – levou o país a representar o polo mais conservador da Europa

WWW.MARINELEPEN.FR

E

ntre as derrotas que a esquerda sofreu na Europa, aquela que tem dimensões históricas é a passagem da França de polo mais progressista a mais conservador do continente. Engels havia classificado o país como o “laboratório de experiências políticas”, onde os fenômenos históricos se davam de maneira mais radical e expressiva – de que 1789, 1848, a Comuna de 1789, eram exemplos –, que tiveram continuidade no século 20 com o governo de Frente Popular nos anos 1930 e com as barricadas de 1968. Nas últimas décadas, houve um movimento geral – político e ideológico, sobretudo – conduzindo o país à condição de representar o polo mais conservador da Europa. Nesse processo, o aspecto mais revelador foi a transformação da classe trabalhadora francesa, anteriormente esteio da classificação de Engels. Até algumas décadas atrás, os trabalhadores franceses eram, invariavelmente, ou socialistas ou comunistas. Desde já mais de duas décadas, a classe trabalhadora francesa vota majoritariamente pela extrema-direita francesa (no que ela é acompanhada por outro segmento expressivo da sociedade francesa – os jovens). Além das transformações históricas gerais – em especial o fim da URSS, a conversão da social-democracia ao neoliberalismo, entre outros –, teve papel determinante a instrumentalização, pela direita francesa, do afluxo dos imigrantes ao país. Desde a alegação – falsa – de que colocariam em risco o emprego dos trabalhadores franceses até a de que ocupariam lugar nas escolas e nos serviços sociais deles, seu uso foi fulminante para acionar o potencial chauvinista existente em todas as sociedades francesas. O resultado foi uma virada monstruosa de posições do setor que havia sido o lastro maior da força histórica da esquerda francesa. Essa guinada passou a sustentar a ascensão da Frente Nacional, dirigida pela milionária família Le Pen – primeiro Jean-Marie Le Pen, hoje aos 86 anos, cinco vezes candidato à presidência, sucedido por sua filha Marine, candida-

LAÇOS DE FAMÍLIA Depois de Jean-Marie Le Pen, a França tem sua filha Marine à frente da extrema-direita

ta em 2012. Um fenômeno de proporções gigantescas e catastróficas para a esquerda do país, que não soube encarar o tema da imigração e outros afins, do que se valeu a extrema-direita para promover essa transformação impressionante. Hoje, a França encara de novo a possibilidade que já se havia dado em 2002, uma disputa presidencial em 2017 em que a esquerda pode estar ausente, colocando frente a frente a direita (então liderada por Jacques Chirac) e a extrema-direita (naquele ano com Jean-Marie Le Pen derrotado no segundo turno, agora com Marine em ascensão). Em comum, os dois momentos têm governos frustrantes dos socialistas – de Leonel Jospin naquele momento, de François Hollande agora – que levam o PS a uma nova crise profunda, depois de ter eleito uma grande maioria parlamentar há apenas dois anos. Em 2002, a esquerda se viu na dura contingência de apoiar Jacques Chirac para impedir a vitória do pai de Marine Le Pen. Agora, pode ter de vir a apoiar Nicolas Sarkozy, para tentar impedir a vitória da sucessora. Triste circunstância para uma esquerda que tinha uma trajetória histórica formidável e hoje se vê reduzida a alternativas que podem de novo excluí-la do segundo turno das eleições presidenciais, após a confirmação, nas eleições regionais de março, de sua redução a terceira força política do país. REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

33


HISTÓRIA

A voz rouca dos

guetos Para Malcolm X, sonho americano foi erguido sobre o pesadelo dos negros. Seu assassinato, há 50 anos, eliminou um ícone da resistência ao racismo e um projeto alternativo à “democracia” norte-americana Por Cida de Oliveira

34

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL


HISTÓRIA

E

FOTOS MICHAEL OCHS ARCHIVES/GETTY IMAGES E TIME LIFE PICTURES/GETTY IMAGES

m uma manhã fria de novembro de 1929, homens encapuzados da organização racista Ku Klux Klan jogaram gasolina e atearam fogo no sobrado da família Little, no subúrbio de Lansing, no estado norte-americano de Michigan. As lembranças das chamas consumindo a casa rapidamente e os gritos desesperados marcariam a memória do pequeno Malcolm, na época com 4 anos, conforme contaria em autobiografia, lançada em 1965. Dois anos depois, seu pai, Earl Little, um pastor batista que além de religião pregava a luta contra a discriminação racial, foi espancado até a morte e teve o corpo colocado numa linha de bonde, sendo esquartejado. Episódios assim eram constantes entre a população negra dos Estados Unidos numa época em que não podia votar, frequentar escolas ou outros espaços públicos e muito menos havia lei para impedir linchamentos e enforcamentos de negros em árvores, como denunciou Billie Holiday (1915-1959) na canção Strange Fruit. E forjaram o caráter radical de Malcolm, amadurecido na prisão por assalto a mão armada. Com a internação psiquiátrica da mãe, após o assassinato do pai, ele foi separado dos irmãos e ingressou na criminalidade. No ginásio, quando disse querer ser advogado, ouviu do seu professor preferido que o Direito não era realidade para negros, e sim atividades braçais, como a marcenaria. Seu ódio contra os brancos foi cristalizado com a doutrinação por seguidores de Elijah Muhammad, criador e líder de uma seita chamada Nação Islâmica (NOI, da sigla em inglês). Consistia de uma releitura muito particular do Islamismo, sob medida para fazer seguidores principalmente entre os presidiários negros. Pregava o ódio, até mesmo a violência se preciso fosse, aos brancos, considerados demônios, e fundamentava a ideia de Malcolm, que sonhava com uma pátria para os negros. “Tenho o direito de me defender, mesmo que, para isso, tenha de usar armas”, dizia. Leitor voraz e autodidata, fez o ensino médio por conta própria nas celas. Estudou diversas áreas do conhecimento, inclusive retórica, e se revelou grande pregador, ouvido até pelos carcereiros. “Criou na prisão uma nova Nação do Islã. Em 1954,

ATITUDE Na cadeia, Malcolm conheceu a NOI. Estudou e virou pregador. Foi acolhido e respeitado pelos grandes líderes de sua época REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

35


HISTÓRIA

quando saiu em liberdade condicional, a NOI tinha 400 seguidores. Em 1965, quando foi assassinado, tinha atraído 400 mil”, diz o escritor Jeosafá Fernandez Gonçalves, autor do livro prestes a ser lançado O Jovem Malcolm X (Editora Nova Alexandria). “Em dez anos, transformou o grupo na maior força política negra engajada, maior que a liderada pelo pastor batista Martin Luther King. Falava a mesma língua dos operários, sem-teto, prostitutas, viciados, que saíam dos becos e guetos e se transformavam em ‘soldados’ da NOI”.

Contra a guerra

Para esse “exército”, Malcolm recrutou o boxeador Cassius Clay, que lutava também contra o racismo. Um dos melhores esportistas do século 20, ele se converteu, adotou o nome de Muhammad Ali e se recusou a lutar na Guerra do Vietnã: “Nenhum vietcongue me chamou de preto, por que eu lutaria contra ele?”. A amizade dos dois esfriou quando o líder rompeu com a NOI. Lapidado pela leitura incessante, o ex-traficante e assaltante extrapolava os limites do fanatismo de Elijah, que não comportava mais em sua consciência. Passou a viajar pela África e Europa, sendo recebido por líderes e chefes de Estado, mas tratado como negro norte-americano – e não africano, como sonhou. Foi à Meca. Viu gente de todas as raças cultuando um mesmo Islã, ortodoxo, que nada tinha a ver com aquele pregado pela NOI. Estudiosos contam que o rompimento foi bilateral. De um lado, o criador da Nação do Islã corroído pela inveja de sua cria, corrompido em seus valores e interlocutor secreto das estruturas racistas que dizia combater. De outro, uma liderança em consolidação, aberta e sensível, para quem a fé que o livrou da criminalidade era uma seita fanática que funcionava para 400 seguidores em pequenos cultos nas prisões e salões dos arredores da cidade. Com as posições passadas a limpo, deixou para trás o papel de boca nervosa da NOI contra os demônios em pele branca. “Quando comprova o envolvimento de Elijah com jovens da seita, com quem tinha filhos, Malcolm se desliga e passa a ser caçado dentro da própria NOI”, conta Gonçalves. E fora da Nação do Islã também. Apoiador de todas as revoluções africanas, tivessem elas o caráter que fosse, se aproximou de lideranças como Gamal Abdel Nasser (1918-1970), que presidiu o Egito entre 1956 e 1970, a então República Árabe Unida. Nasser ofereceu um cargo no seu governo para proteger a vida em risco do amigo nos Estados Unidos. Outro foi Fidel Castro, que contou com seu apoio na Revolução Cubana, com quem esteve no famoso encontro num hotel do Harlem, em Nova York, durante uma visita do comandante à sede da Organização das Nações Unidas (ONU). E até mesmo o pastor Martin Luther King, que comandava um rebanho de classe média e tinha a simpatia dos brancos devido à sua doutrina religiosa inspirada na não violência do líder indiano Mahatma Gandhi (1869-1948). Passou então a ser visto como traidor da doutrina de Maomé, porque estaria frequentando cultos protestantes, e como comunista. 36

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

Socialismo

“É de Malcolm a célebre frase ‘não existe capitalismo sem o racismo’”, diz o historiador Vladimir Miguel Rodrigues, professor e autor do livro O X de Malcolm e a Questão Racial Norte-Americana (Editora Unesp). Na autobiografia, o líder não afirma essa suposta simpatia pelo socialismo. Porém, seu discurso dialoga com a esquerda ao criticar o capitalismo. “Chegou a afirmar que o homem branco americano não é um racista, mas o ambiente político, econômico e social americano, que acalenta uma psicologia racista no branco.” Rodrigues acredita que, mesmo sem ter estudado a fundo o marxismo, Malcolm buscou na história, na sociologia e na economia a explicação para o racismo e para a situação de inferioridade do afro-americano, que vendia barato, quase de graça, sua força de trabalho para os brancos, detentores dos meios de produção. O caráter atribuído a Malcolm de comunista, libertário, violento, pacifista, muçulmano radical negro, tocou mais que as multidões de oprimidos que paravam para ouvir suas pregações. Chegou mais tarde às periferias de outros países, às quebradas de São Paulo. “No princípio eram trevas/ Malcolm foi


BETTMANN/CORBIS/LATINSTOCK

HISTÓRIA

TRANSFORMADOR No Harlem, em 1963, a plateia negra e pobre acompanha pregação de Malcolm: conteúdo libertário iria contagiar a periferia esquecida de vários países

Lampião/ Lâmpada para os pés negros de 2010/ fãs de Mumia Abu-Jamal, Osama, Sadam/ Al-Qaeda, Talibã, Iraque, Vietnã/ Contra os boys/ Contra o GOE/ contra a Ku Klux Klan”, canta o rapper Mano Brown em Mente de Vilão. E inspira jovens negros que encontram no Islã, crescente nas periferias brasileiras, que não se identificam com a pregação das igrejas evangélicas neopentecostais. Como X, os jovens desamparados, vítimas da violência buscam resgate e a vida nova que creem começar com um novo nome, adotado durante a conversão. Como o X de Malcolm no lugar de Little, um protesto contra a identidade africana roubada ainda na África, pelos caçadores de escravos.

Inimigos

Polêmico entre os negros por defender a força, era odiado pelos brancos e visto com desconfiança pelos muçulmanos negros por dividir espaço e poder com o líder Elijah. A lista de inimigos crescia à medida que enxergava a justiça acima da cor,

da religião e do espaço. E que a luta por ela deveria ser travada onde nasceu e cresceu, por meio da articulação entre pobres e excluídos, fossem brancos ou pretos. “Ele caminhava para a organização de uma força política de base operária contra o liberalismo americano, transformando-se em alternativa política que assustava o Departamento de Estado americano e inspirou a criação dos Panteras Negras”, conta Jeosafá Gonçalves. De orientação marxista, os Panteras eram um partido político criado na Califórnia, que articulava luta de classes com luta racial. Reivindicava indenização pelos anos de escravidão em que foi formada a riqueza da potência. Defendia a luta armada e por isso tornou-se ameaça à segurança interna no país. Perdeu expressão ao longo dos anos 1970 e 1980 devido a prisões e disputas internas. Em plena Guerra Fria, os americanos consolidavam a opção pela eliminação de alternativas políticas. Articulou-se o assassinato do então presidente John F. Kennedy, em novembro de 1963. Liberal, de cujas doutrinas nasceram os golpes de Estado na América Latina, Kennedy tinha firmado compromisso com uma legislação para os negros e foi visto como fraco em relação a Cuba e por ter permitido a ascensão do movimento pelos direitos civis e dos Panteras. O serviço secreto norte-americano, segundo Vladimir Rodrigues, foi eliminando as lideranças negras, numa tendência de conservadorismo que chegaria ao ápice na década de 1980, com Ronald Reagan. Não havia espaço para ideias progressistas. Para Gonçalves, a história mostra articulações entre Nação do Islã, CIA e Departamento de Estado norte-americano, que a mando de Elijah e com o amém das autoridades do governo assassinaram Malcom em fevereiro de 1965. Ele completaria 40 anos em maio. O negro que em 1954 deixava a prisão, esperança dos companheiros de cela, negros e pobres, afirmou que o sonho americano era construído sobre o pesadelo dos negros. A consciência social e política avançada caminhava para uma aliança com Martin Luther King. “Seria a base operária de Malcolm com a classe média de Luther King, sobretudo negra. Por isso King foi calado três anos depois. Estavam liquidadas as alternativas”, diz o autor. As ideias de Little, no entanto, não desceram com ele à sepultura. Malcolm foi responsável direto pela aprovação da Lei dos Direitos Civis Estados Unidos, em julho de 1964. Proposta por Kennedy, pôs fim aos sistemas estaduais de segregação racial, que permitiam linchamentos de negros. Na esteira da lei vieram ações afirmativas, como as cotas em universidades, que já não existem mais enquanto competência federal. Mas o debate persiste. Para os brancos, as cotas já duraram o suficiente para corrigir distorções e reduzir as desigualdades. Os negros, porém, ainda ganham menos. E como acontece no Brasil, são as maiores vítimas da atuação policial. Eric Garner, 43 anos, morto em julho do ano passado em Nova York, depois de receber uma “gravata” de um policial branco que acabou absolvido. E o jovem Michael Brown, 18 anos, assassinado em agosto passado, em Ferguson, Missouri, por um policial branco igualmente inocentado. A luta de Malcolm continua. REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

37


MUNDO Em meio a abusos e violações de tratados por Tel-Aviv, ignorados por organismos internacionais, palestinos pregam boicote comercial como meio de conter ação expansionista de Israel em seu território Por Leonardo Severo e Luiz Carvalho

Na Palestina, existir é

RESISTIR E

m uma casa no bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém, Nabeel al-Kurd, 71 anos, vive com a família de 12 pessoas. Quando chegou, há seis décadas, refugiado da Jordânia, não imaginou que seria também um estranho no próprio lar. No dia 2 de agosto de 2009, centenas de soldados e policiais israelenses cercaram sua residência desde as primeiras horas da manhã. Com armas, cachorros e cavalos, estavam ali para despejar. Apesar da solidariedade da vizinhança árabe, que se mobilizou contra a ação, não houve nem sequer sombra de negociação. A parte da frente da casa foi confiscada pelo governo que, imediatamente, a cedeu a uma família de colonos israelenses. As autoridades de Israel justificaram a medida punitiva com o pretexto de que o morador, palestino, não tinha autorização para reformar ou construir em seu próprio terreno. De acordo com Nabeel al-Kurd, pela forma como Israel costuma postergar indefinidamente tais solicitações, sob as mais diversas alegações, o pedido às autoridades nunca seria atendido. E, caso 38

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

fosse, não chegaria antes da sua morte. Histórias como a dele expõem a relação entre Israel e Palestina em um cenário de ocupações patrocinadas pelo governo, restrição ao direito de livre circulação e as mais variadas formas de violência. Para líderes políticos como o ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela, morto em 2013, não há definição melhor do que apartheid, termo utilizado para definir a segregação dos negros pelos brancos na África do Sul. No processo de expansão israelense, a tomada das casas caminha junto com a construção de colônias em territórios palestinos e de pontos de verificação, os chamados checkpoints. São mais de 500 fixos e outros tantos em pontos-surpresa para tornar a vida mais difícil e o trajeto mais longo. A ocupação tem um ponto central: Jerusalém, onde apenas 13% do território estão com os palestinos. Quem controla a cidade também controla a política. Para a Palestina, o sonho de ser a capital do Estado. Para Israel, a capital una, indivisível e judia. Palestinos moradores na cidade correm o risco constante


MUNDO Líbano

Síria

MAR MEDITERRANEO CISJORDÂNIA Jerusalém

FAIXA DE GAZA ISRAEL Jordânia

MAHMOUD ILLEAN/DEMOTIX/CORBIS/LATINSTOCK

de revogação do direito à residência. Como não são considerados cidadãos israelenses, estão vulneráveis à ação do Estado e podem ser impedidos de morar na cidade se casarem e resolverem morar com alguém de fora. Qualquer documento produzido pela Autoridade Palestina precisa ser submetido à chancela de Israel, de carteiras de identidade a registros de nascimento. No caminho entre Ramallah e o Vale do Jordão é fácil identificar de qual lado da estrada estão as residências palestinas. Basta procurar pelas construções rudimentares, especialmente quando comparadas à sofisticação das colônias israelenses. Outro ponto de referência são os reservatórios pretos sobre prédios e casas para guardar a água presente nas torneiras dos israelenses, mas em falta ao menos dois dias por semana nas moradias dos palestinos. Quem tem veículo com placa amarela, aquela que identifica os carros de Israel, segue por uma malha viária de ótima qualidade construída para servir exclusivamente aos colonos dentro da terra palestina. Quem tem a placa branca e quiser se arriscar

MURO DA VERGONHA Jovens atiram pedras em direção ao checkpoint de Qalandia, entre as cidades de Jerusalém e Ramallah, separadas pelo muro erguido por Israel

pelo mesmo caminho pode ser preso por até seis meses. Um terço da população masculina palestina, o equivalente a 800 mil pessoas, já passou pelas prisões, onde há até mesmo crianças. Em Fasayel, uma das vilas no Vale do Jordão, uma sinalização em inglês adverte: “Esta estrada leva a uma vila palestina. A entrada é perigosa para cidadãos israelenses”. Mas lá dentro o que se vê são famílias que resistem reconstruindo as casas destruídas. Mais de 1.700 pessoas vivem no local onde as crianças aparecem aos poucos. De acordo com a organização humanitária Solidariedade ao Vale do Jordão, pelo menos mil famílias palestinas perderam suas moradias na região entre 2011 e 2014. Daniel Murph é francês e vivia em Nanterre antes de se mudar para Fasayel para implementar um projeto de fabricação de tijolos ecológicos. Apesar de se preparar para um cenário difícil, o que viu, conforme relata, foi assustador. “Tem minas nas montanhas, o exército israelense destrói as vilas o tempo todo e o mais chocante é como o povo israelense sofre lavagem cerebral e compra essa ideia de apartheid com a desculpa da segurança.” REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

39


MUNDO

RIEGER BERTRAND/HEMIS.FR/ALAMY/LATINSTOCK

OCUPAÇÃO Assentamento israelense na Cisjordânia: tensão permanente

Sem carteira assinada nem direitos básicos, jovens e mulheres do campo, os segmentos mais frágeis da pirâmide no mercado de trabalho em qualquer lugar do mundo, são submetidos a condições degradantes. Caso de Saleh Ali, que aos 23 anos ganha 18 shekels (pouco mais de R$ 13) por dia para colher uvas em uma colônia israelense. Quando não trabalha, não tem salário. Para cada sete horas de trabalho, meia hora de descanso, uma rotina que já dura seis anos e manterá até o corpo não aguentar mais. Aí será o momento de contar com os filhos vindouros. “Um trabalhador israelense ganha sete vezes mais para fazer o mesmo trabalho”, diz o jovem de 15 anos, que teve de parar os estudos para trabalhar. A ativista Niveen Brahme, também moradora na vila, diz que muitas famílias não têm outra solução a não ser permitir que o filho trabalhe, porque não há escolas nem com quem deixá-los. “A relação com Israel é de dono e escravo. E o mais doloroso é que muitos trabalhadores vivem isso na terra dos próprios antepassados.” A representante da Coalizão pelos Direitos Palestinos em Israel, Ingrid Garadot, lembra que a Organização das Nações Unidas (ONU) estabelece normas em caso de ocupação de territórios. Segundo ela, o país ocupante não pode confiscar terras, propriedades, bens nem trazer a própria população para o território ocupado. Israel viola todas as normas, garante. Livre de sanções, os israelenses colocam em prática também a estratégia de recontar a história a partir dos livros didáticos 40

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

nas escolas. “A Autoridade Palestina não tem autorização para estar na Jerusalém Oriental, mas foi acertada a inclusão de livros e currículo com a história da Palestina. Porém, desde 2011 Israel tenta mudar isso também, arrancando páginas e cobrindo partes dos textos que se referem à cidade como capital dos palestinos”, diz Ingrid. Ela afirma que a falta de informações transparentes para a sociedade prejudica medidas importantes para o fim da ocupação israelense. “Enquanto o conflito entre Israel e Palestina for visto

LEONARDO SEVERO

Tratados desrespeitados

DOLOROSO Niveen: “A relação com Israel é de dono e escravo”


MUNDO

como guerra entre Hamas e fundamentalistas islâmicos, Israel poderá usar muita força. Por isso, é importante falar de colonialismo e apartheid. Há opressor e oprimido, e não dois lados em guerra.”

Crimes de guerra

Os novos tempos não exibem sinal de paz. Durante a campanha eleitoral deste ano, o primeiro-ministro eleito em Israel, Benjamin Netanyahu, disse que não haverá um Estado Palestino sob seu governo. Para o assessor do negociador-chefe da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Javier Abu Solana, mais do que ter lado nesse conflito, é preciso lutar pela humanidade, pelos direitos humanos e contra a violação sistemática do Direito Internacional. Um novo respiro nessa luta vem da adesão da Palestina ao Tribunal Penal Internacional da ONU, que poderia julgar Israel por crimes de guerra. “O grande problema é a cultura da impunidade, porque Israel viola o Direito Internacional sistematicamente, e a única coisa que vemos são declarações a respeito. Poucos países, como o Brasil, têm feito ações de reconhecimento do Estado da Palestina da fronteira de 1967”, diz. A política de dois pesos e duas medidas encontra eco nas principais agências internacionais de notícias e dos grandes meios de comunicação. Todos os correspondentes na região estão em Tel Aviv, a capital de Israel, e isso reflete na circulação da informação. Passou “batido”, por exemplo, que 125 ativistas de movimentos sociais em Gaza foram impedidos pelas autoridades de Israel que controlam as fronteiras de embarcar para a Tunísia, onde participariam do Fórum Social Mundial (FSM), em março. O constrangimento afetou recentemente uma delegação bra-

sileira em missão de paz à Palestina, ainda em março – da qual fizeram parte os autores desta reportagem, a serviço da CUT também no FSM. Dois dos membros da delegação, por terem sobrenome árabe, foram barrados pelas autoridades israelenses por “razão de segurança”. O médico Mustafa Barghouti, deputado palestino e um dos fundadores do movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel, acredita que é por meio do crescente isolamento internacional do sionismo, conjugado com a asfixia econômica das empresas israelenses, que seu país será livre. Não faltam motivos e denúncias sobre crimes. Israel mantém 120 assentamentos ilegais, bases militares às quais ninguém tem acesso e um muro da segregação com 850 quilômetros de extensão, três vezes mais longo e duas vezes mais alto do que o antigo muro de Berlim. Em 2004, o bombardeio de Israel à Faixa de Gaza, um território palestino de 360 quilômetros quadrados e 1,8 milhão de habitantes, área das mais densamente povoadas do mundo, fez com que 91 famílias desaparecessem completamente. “Temos claro que a Palestina não pode resistir sozinha e que países como o Brasil, a África do Sul e a Índia são importantes. Aceitar que fechem acordos de livre comércio com Israel significa aceitar financiarem a ocupação”, conclui Barghouti.

Hebrom é uma das cidades habitadas mais antigas do mundo e, desde 1967, teve o desenho de suas ruas tomado por baionetas e algumas centenas de colonos. Atualmente, cerca de 170 mil palestinos são obrigados a conviver em bairros centrais por detrás dos checkpoints. O jornalista e pesquisador Ahmad Jaradad, do Centro de Informação ­Alternativa, serve como um guia e descreve como a população convive diariamente com a dificuldade em circular. “Mesmo se for algo de doença grave, a pessoa antes precisa informar a Autoridade Nacional Palestina, que, por sua vez, precisa pedir autorização a Israel para a locomoção. Assim, muitas pessoas acabam tendo de socorrer os familiares carregando nas costas, porque

é mais rápido do que aguardar por Israel”, relata. Diferente de outras cidades palestinas, em Hebrom os colonos estão dentro das cidades, especialmente nos pontos mais altos. Isso fez com que os comerciantes de uma rua com pequenas lojas que vendem produtos locais tivessem de colocar redes cobrindo o local para se proteger contra pedras e lixo atirados por israelenses. Além de estrangular as fronteiras, a ocupação sionista busca também asfixiar a economia: Hebrom produz uvas, vestuário e pedras para construção; Ramalah, oliveiras; Jericó, laranjas, limões e batatas; e Gaza, uma cesta de vegetais, frutas e peixes. Mas quando Israel impede o fluxo de produtos, os preços disparam.

LEONARDO SEVERO

Apartheid econômico

PRISIONEIROS Rua de Hebrom: ao fundo, muro e guarita israelenses REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

41


ESPORTE

SANDRO VOX/AMERICA RIO (25/03/2015)

DECISÃO Goleiro Felipe entra em campo com Tia Ruth, torcedora símbolo do America

42

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL


ESPORTE

GRANDE de novo

America do Rio de Janeiro, xodó de torcedores ilustres e apaixonados, tenta recuperar seu espaço nobre na elite do futebol carioca e no bairro onde cresceu Por Maurício Thuswohl

FOTOS ARQUIVO AGÊNCIA

O GLOBO

E

ram 47 minutos do segundo tempo quando o meia Jessé, do Sampaio Corrêa, chutou à queima-roupa, de dentro da área, para aflição do público. Havia 726 pessoas no estádio Giulite Coutinho, em Édson Passos (Mesquita), Baixada Fluminense, na noite de 15 de abril. A fração de segundo que durou o “silêncio ensurdecedor” da torcida do America foi interrompida pelo barulho da bola no corpo do goleiro Felipe, defesa que garantiu o 0 x 0 e a classificação do time rubro para a semifinal do primeiro turno da Série B do estadual do Rio de Janeiro. Dono da camisa que no passado já foi de Pompéia, País e Ado, o arrojado Felipe seria candidato a herói. Na semifinal contra o Americano, bastariam dois empates para ir à final. Mas depois de um 0 x 0 na primeira partida, o time de Campos levou a melhor ao fazer 3 x 2 aos 46 do segundo tempo. A luta do America pelo retorno à elite ficou para o segundo turno. Fundado em 1904 e outrora conside-

rado o quinto time grande do Rio de Janeiro, o America Football Club foi sete vezes campeão estadual (1913, 1916, 1922, 1928, 1931, 1935 e 1960), em uma época na qual os times cariocas, ao lado dos paulistas, figuravam entre os melhores do mundo. O time viveu uma prolongada decadência dentro e fora das quatro linhas. Esta culminou com a queda para a segundona carioca em 2011 e, no ano seguinte, a ameaça de perder na Justiça a bela e agora abandonada sede social do clube, localizada na Rua Campos Sales, na Tijuca, zona norte, região onde o America cresceu – após um breve início no bairro da Saúde – e sempre teve a maior parte de seus torcedores. Conhecida pelo grito de “Saaaangue!”, que por tantas vezes ecoou com força no Maracanã, a torcida americana passou a temer o pior ao ver a força vital do clube se esvaindo esportiva e financeiramente. Mas uma série de fatores contribuiu para que em 2015 a esperança volte a correr nas artérias dos americanos. Com

MEMÓRIA No Alto: America 2 X Fluminense 1, Maracanã, 1960: o America tornase o primeiro campeão do estado da Guanabara. Após o gol da vitória, Jorge é sufocado pelos companheiros, enquanto Wilson Santos salta de alegria No meio: America 3 x 3 Botafogo, 1960: arrojada defesa de Manga, lançando-se aos pés de Nilo, enquanto Nilton Santos dá cobertura à meta alvi-negra. Veem-se ainda João Carlos caindo e Pampolini atrás do meia esquerda rubro Ao lado: Torneio Internacional da Liga de Nova York (EUA), 1963: o America bate o Hajduk, da Iugoslâvia, por 3 x 2. Antes do início do encontro, a tradicional troca de flâmulas entre Amaro e o capitão do Hajduk REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

43


ESPORTE

a posse no ano passado de uma nova diretoria, encabeçada pelo presidente Léo Almada, foi organizado um grupo de “torcedores ilustres”, no qual pontifica o ex-jogador e agora senador Romário (PSB), que sempre se confessou torcedor do America. Esse grupo ajudou a montar um time que mescla jovens promissores e jogadores que já atuaram por times grandes, tendo como meta o retorno à Série A do estadual.

Perdas

ARQUIVO/AGÊNCIA

O GLOBO

Fora de campo, foi anunciada uma parceria com a iniciativa privada para demolir as estruturas da sede social e construir uma nova e moderna sede no mesmo local. O espaço será dividido com um shopping. Um grupo de trabalho composto por representantes de todos os poderes do clube foi montado para tratar da parceria. Segundo a diretoria, 16 empresas já manifestaram interesse em assumir a reforma da sede e receber a concessão de exploração comercial de parte do espaço por 40 anos, período durante o qual um percentual do lucro do empreendimento deverá ser repassado ao America. A ideia dos dirigentes é aproveitar essa receita para montar times competitivos e, dentro de alguns anos, voltar à elite do campeonato brasileiro, além de pagar a dívida do clube, que segundo Almada, estaria em torno de R$ 60 milhões, valor que pode ser considerado pequeno se comparado às dívidas dos quatro grandes clubes cariocas. “Poderemos equacionar nossas dívidas e o terreno continuará sendo do clube. Esse acordo de parceria é a única forma de salvar o America”, resume o presidente. A decisão sobre a empresa ou empresas que formarão a parceria será conhecida em julho, mas o fechamento do negócio é dado como certo. Os torcedores americanos sabem que há um contexto histórico de perdas que faz com que a possível reconstrução da sede da Rua Campos Sales justifique emocionadas comemorações. Um dia, a sede histórica teve também um cam44

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

ÚLTIMA CONQUISTA Os craques do título de 1960: Nilo, João Carlos, Antoninho, Quarentinha e Calazans

po de futebol, casa do America na conquista de seus sete títulos estaduais. O estádio, que após ampliações chegou a ter capacidade para 25 mil pessoas e foi palco de jogos com casa cheia durante décadas, acabou demolido em 1961, quando o America, então o clube com mais sócios da região, decidiu ampliar suas dependências sociais. Com a venda de um dos maiores craques de sua história, o volante Amaro, para a Juventus da Itália, naquele mesmo ano, o America comprou o estádio Wolney Braune, no bairro vizinho do Andaraí, com capacidade para 5 mil pessoas. Em 1993, já atolado em problemas financeiros, o America vendeu o terreno do estádio do Andaraí, que hoje abriga um shopping. Desta vez, o golpe na torci-

da seria grande. Após sete anos sem casa para jogar, foi inaugurado em 2000 o estádio Giulite Coutinho. Com capacidade para 13 mil pessoas, o estádio, no entanto, jamais ficou lotado, certamente por estar localizado em outra cidade, a dezenas de quilômetros da região onde pulsa o coração da torcida americana. Essa distância e o terrível momento dentro de campo criaram um círculo vicioso que fez muito torcedor do America desistir de acompanhar o time de perto.

Público e glórias

Na atual temporada, o maior público a assistir a um jogo do America em seu estádio foi de mil pessoas, antes de o time chegar à semifinal. A direção do clube sonha com a volta da fiel e apaixonada torcida, e lançou em março o programa Coração Vermelho para atrair sócios-torcedores ao Giulite Coutinho. “Se contarmos os custos de confecção dos ingressos, ambulância, luz e quadro móvel, o prejuízo nos jogos com pouco público pode chegar a R$ 10 mil”, diz o vice-presi-


SANGUE Elenco do America tenta chegar às finais da 2º divisão do estadual do Rio. Sonho foi adiado aos 46 do segundo tempo do jogo contra o Americano

dente de Administração, Ricardo Baptista. Com o objetivo de reconquistar a torcida, a diretoria decidiu investir em uma nova subestação para adequar a iluminação do estádio aos padrões exigidos pelas transmissões de tevê. Quando o time estiver de volta à Série A do estadual e habilitado a disputar novamente a Copa do Brasil e a Série D do Brasileirão, o passo seguinte previsto

SANDRO VOX/AMERICA RIO (25/03/2015)

ESPORTE

pela diretoria é aumentar a visibilidade da marca America no mercado publicitário. Público existe: segundo uma pesquisa realizada pelo Ibope em 2010, a torcida americana corresponde a 0,5% da população do Rio de Janeiro. Com os torcedores computados em outros estados, segundo o instituto de pesquisa, trata-se de um contingente de 200 mil pessoas. Em 1960, ano do último título estadual, com um time que tinha Amaro, Nilo e Quarentinha, a torcida americana correspondia a 6% da população do estado. No esporte, assim como na política, lembrar o passado de glórias é sempre uma boa estratégia para aglutinar simpatizantes. Ciente disso, no dia 4 de abril o America fez festa antes da partida contra a Portuguesa, válida pelo estadual, para homenagear a família Antunes, dos irmãos jogadores Nando, Antunes (in memoriam) e Edu. Este último, considerado o maior craque da história americana, é também diretor executivo de Futebol do clube. Zico, o mais novo do clã, embora jamais tenha jogado pelo America, também foi homenageado, já que atualmente as categorias de base do clube treinam no CFZ, administrado pelo chamado Galinho de Quintino. Duas rodadas antes, o homenageado foi Cesar, artilheiro do Brasileirão de 1979, vestindo a camisa rubra. O canto de cisne do America no cenário do futebol nacional aconteceu em 1986, quando o clube chegou em terceiro lugar no Brasileirão, eliminado na semifinal pelo São Paulo de Careca, Pita, Oscar

e Bernardo – time que acabaria campeão. Antes, o America havia eliminado o Corinthians nas quartas-de-final. Naquele time se destacavam o meia Renato, o então novato Jorginho (lateral-direito da seleção tetracampeã em 1994) e o zagueiro Donato, que fez fama no La Coruña, da Espanha, e chegou a jogar na seleção daquele país. No segundo jogo da semifinal contra o São Paulo, no Maracanã, um público de 85 mil pessoas empurrou o time rubro no insuficiente empate em 1 x 1, já que o time paulista havia vencido o primeiro confronto por 1 x 0. No ano seguinte, por questões meramente políticas, o America não foi incluído no recém-formado Clube dos Treze e, mesmo tendo sido o terceiro colocado no ano anterior, foi afastado da primeira divisão do Campeonato Brasileiro. Ali teve início a derrocada de um dos mais tradicionais clubes do país. O atual time do America, dirigido pelo técnico Arturzinho, tem como destaques, além do goleiro Felipe, o meia Léo Rocha e o atacante Fábio Saci, e também os experientes Wagner Diniz (ex-Vasco e São Paulo), Somália (ex-São Caetano e Fluminense) e Jean (ex-Flamengo). A meta traçada pela diretoria do clube incluiu a realização de uma pré-temporada, algo que não acontecia há muito tempo, e de 15 amistosos, com 12 vitórias, dois empates e apenas uma derrota. “O trabalho está fluindo e o time vem evoluindo. Precisamos agora confirmar isso com a volta à primeira divisão”, diz Arturzinho.

Torcedores notáveis Um time de torcedores notáveis na cultura e na política é também testemunho das glórias do America. O amor pela camisa rubra foi ou é compartilhado por gente como Heitor Villa-Lobos, Noel Rosa, Francisco Alves, Oscarito, Dona Ivone Lara, Tim Maia, Lamartine Babo, Virginia Lane, Afonso Arinos, Marcelo Cerqueira, Silvio Caldas, Ary Fontoura, Arnaldo Niskier e João Cabral de Melo Neto, entre outros.

No dia a dia da segunda divisão do campeonato estadual, são outros os heróis que não deixam cair por terra o pavilhão rubro. O símbolo maior é Ruth Rodrigues, de 90 anos, que se tornou célebre ao distribuir rosas para árbitros, jogadores e torcedores adversários. Tia Ruth, como é carinhosamente chamada pela torcida americana, acompanha até hoje os jogos do time e apoia entusiasticamente a proposta de reforma da sede

da Rua Campos Sales. “Vamos voltar à primeira divisão e logo estaremos disputando o título carioca novamente. Agora eu tenho fé, a reforma da sede será a salvação do America”, afirma, repetindo, sem saber, o mesmo termo utilizado pelo presidente do clube. Outro exemplo de abnegação e amor pelo clube vem de Célio de Souza Ferreira, de 63 anos, que organiza um blog que virou ponto de encontro virtual

entre torcedores. Seu Célio, como é conhecido, virou ídolo da torcida americana depois que decidiu transmitir por conta própria jogos do time, munido de uma câmera, um microfone e um notebook conectado à internet, muitas vezes acompanhado de um amigo comentarista. “Se tiver uma dúzia de torcedores ouvindo minha transmissão, já estou satisfeito”, brinca. “O America é uma paixão muito grande. É paixão antiga.” REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

45


VIAGEM

O portal do deserto

NICOLAS THIBAUT/PHOTONONSTOP/LATINSTOCK

Em Tozeur, no sul da Tunísia, um encontro com o imaginário, dos oásis às cenas dos livros e dos filmes criados à beira do Saara Por Flávio Aguiar

A

cidade de Tozeur, no sul da Tunísia, é conhecida como um dos portais do deserto do Saara. É cercada pelo oásis que leva o mesmo nome, o principal da região. Ali se produzem e exportam as melhores tâmaras do mundo. Para ir a Tozeur, vindo da Europa, chega-se primeiro a Túnis, a capital. De Túnis a Tozeur pode-se ir de trem, avião e vans, ou então alugar um carro. As estradas são pavimentadas e seguras. O voo dura de meia a uma hora, conforme a aeronave. No caminho, paisagens áridas do pré-deserto são visões já impressionantes. Em Tozeur, a visita ao oásis que circunda a cidade é obrigatória. De preferência, a bordo de uma das carroças de aluguel, cujos donos pertencem a uma cooperativa local e sabem tudo da cidade. As tamareiras são o centro de um ecossistema e de uma organização social de grande complexidade. Além de conter e proteger uma fauna considerável, a posse das plantações segue um regime de concessão familiar de terreno. Seus usuários pagam uma taxa pela água, fornecida por meio de um sistema de irrigação de origem secular, e atualmente reforçado por poços artesianos, dado que a demanda aumentou consideravelmente. A colheita de tâmaras se faz em novembro, e manualmente, subindo-se no tronco das palmeiras. Não há como mecanizar nada ali: um trator no oásis seria o mesmo que um tanque de guerra numa lo46

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL

ja de porcelana. A polinização também se faz manualmente: as tamareiras se dividem em machos e fêmeas, e o plantador deve colher o pólen nas primeiras e levá-lo até as segundas. Há ali um segundo nível de plantio, de árvores frutíferas: figos, peras, laranjas, limões, bergamotas, bananas. Por fim, na base de tudo, há as hortaliças, com legumes e verduras. Tozeur tem um mercado variado, cujo centro é um prédio antigo em frente à praça principal, onde se encontram lojas de produtos tradicionais de um mercado: carnes, frutas, legumes, verduras, pães. Lojas e restaurantes se espalham ao redor, com artesanato, quinquilharias de todo o tipo. Pode-se comprar um pedaço de carne (de boi, carneiro, cabrito, bode, galinha, dromedário e até peixe; não espere encontrar porco, carne que os muçulmanos reprovam) e pedir para assá-lo nos restaurantes ao lado. A tapeçaria é um dos pontos altos da região, de origem bérbere ou nômade, com motivos estilizados a partir da natureza regional. É sofisticada e de beleza impressionante. Em torno do mercado há restaurantes populares muito simpáticos. A comida ali é boa e barata, mas padece das limitações da região: não há muita variedade. O forte são as variedades de cuscuz, com legumes e saladas de acompanhamento. Não espere encontrar bebidas alcoólicas. Em toda a cidade só encontramos um restaurante que as servia.


VIAGEM

Em Nefta, um dos cenários de Guerra nas Estrelas

MAREMAGNUM/GETTY IMAGES

ROBERT HARDING WORLD IMAGERY/ALAMY/LATINSTOCK

MAREMAGNUM/GETTY IMAGES

Tapetes e cerâmicas no centro histórico, a Medina de Tozeur

Como toda cidade da região e do mundo árabe, Tozeur tem seu centro histórico, a Medina. Mas na maioria das cidades – Túnis inclusive – as Medinas se transformaram em centros quase que exclusivamente comerciais, para turistas. Em Tozeur, não. A Medina ainda guarda sua característica basicamente residencial, e seu perfil tradicional, com os tijolos de adobe castanho, suas fachadas tradicionais, suas mesquitas de origem árabe ou otomana e traços da presença romana e dos judeus. Estar no entorno de Tozeur significa abrir-se para o deserto. As paisagens do deserto são muito variadas. Há constante alternância entre rochas, dunas, colinas, montanhas muito altas e os extraordinários oásis de tamareiras, sempre às margens de olhos d’água ou rios. Os chotts, planícies de terreno salgado, que durante as poucas chuvas do ano viram lagos que depois ressecam, são um dos pontos altos desses passeios. O mais famoso é o Chott El Jerid, enorme, onde se pode fotografar até miragens. Outros pontos de atração são as cidades em ruínas (Chebika e Tamerza), destruídas por chuvas torrenciais de 22 dias em 1969. As construções de adobe seco derreteram, e hoje são atrações fantasmas. Ali ainda se avistam cenarios de filmes famosos. O cânion e as dunas (em Meza) de O Paciente Inglês, desfiladeiros de Em Busca da Arca Perdida (primeiro de Indiana Jones) e da cidade no deserto de Guerra nas Estrelas, que ficou para trás (em Nef-

Chott El Jerid, uma planície de terreno salgado

ta) depois da filmagem e hoje pode ser visitada como se fosse algo de tradição secular. Pode-se testemunhar a paixão bérbere pelos cavalos ricamente ajaezados, e passear encarapitado num dromedário. No verão local, a temperatura pode beirar os 50 graus centígrados durante o dia. Então, a melhor época para visitar Tozeur é no outono ou no inverno, entre novembro e março, mesmo sabendo que faz muito frio, apesar de o sol brilhar o tempo todo. À noite, a temperatura cai para 5 graus ou menos, e durante o dia não passa dos 15 na sombra. Álcool em lugar público é coisa rara. Comprar vinho e cerveja, só num cubículo escondido atrás do supermercado da cidade. Há um bairro de hotéis de luxo na cidade. E hotéis mais modestos no centro. O proprietário do Mondher Ben Soltane, nos proporcionou um passeio pela Medina, guiado por uma verdadeira comissão de professores universitários – uma aula sobre a história da região. Conhecemos o sincretismo muçulmano, que na região conta com santos e o culto dos Marabouts (lugares onde viviam homens sábios). É possível passear de carro alugado ou com os jipões 4x4 das agências. Mas quem tiver a oportunidade de fazer amizade com um chofer de táxi, e tratar os preços individualmente com ele, pode gastar menos. E, com sorte, encontrar um que conheça bem a região e chegue onde os jipões não vão. REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

47


curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Causos urbanos

EDUARDO BERNARDINO/DIVULGAÇÃO

Quem frequenta as palestras do escritor Ferréz conhece Bolonha, Mauro Maurício, Nêgo Jaime, Júnior, Dona Néia e Sebastião, heróis e antiheróis que o autor criou para histórias curtas que apresenta em eventos e saraus realizados pelas periferias. Agora, eles fazem parte do livro Os Ricos Também Morrem (Ed. Planeta, 192 págs.), um apanhado de causos urbanos do cotidiano rude das cidades. Com linguagem ágil, próxima à do rap, o principal nome da literatura marginal brasileira traz à tona sua crítica habitual: as injustiças e a desesperança moram ao lado e não do outro lado do Atlântico. R$ 30.

Cena de Entre Saltos

Sarau feminista A Casa das Rosas, em São Paulo, sedia as duas últimas edições do Sarau do PI: Literatura Feminina Contemporânea, com leitura de textos, shows musicais e apresentação do documentário Entre Saltos. A série de quatro eventos é promovida pelo Coletivo PI, grupo que realiza intervenções urbanas efêmeras utilizando nas suas criações a linguagem teatral, dança, performance e artes visuais com foco na cultura e no empoderamento feminino. O objetivo dos saraus é debater sobre questões ligadas à construção de gênero e dar visibilidade à produção de mulheres no campo das artes e da literatura. Dias 30 de maio e 20 de junho, às 21h30, na Avenida Paulista, 37. Grátis.

Semana do Brincar De 24 a 30 de maio, várias cidades brasileiras recebem atividades que celebram a Semana Mundial do Brincar. “Para ter criatividade, resiliência e coragem é preciso brincar!” é o tema da sexta edição do evento, realizado pela Aliança pela Infância. As atividades pretendem reunir crianças de todas as idades, condições físicas e culturais para incentivar a prática do brincar de forma coletiva, em espaços públicos e privados. Além das atividades lúdicas, o evento deve promover rodas de conversa, palestras e mobilizações para fomentar reflexões sobre a importância de brincar na infância. Confira a programação completa em http://aliancapelainfancia.org.br 48

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL


TUCA MAYER E ROBERTO PONTES/DIVULGAÇÃO BEDELGEUSE. “MORE THAN YOU THOUGHT”

Descobrir: se liga

A exposição Se Liga – Arte, Ciência e Imaginação, Imaginação em cartaz até 25 de maio no Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro, mistura conhecimento e diversão em um diálogo entre arte e ciência para crianças de todas as idades. Instalações, pinturas, fotografias, videoarte, colagens, conteúdo educativo e interativo compõem a mostra em que artistas brasileiros e estrangeiros apresentam as conexões entre essas duas facetas do conhecimento humano. A proposta é oferecer uma espécie de “laboratório divertido”, em que, por exemplo, matemática complementa história, poesia combina com física e o cinema é inspirado pela biologia. De quarta a segunda, das 9h às 21h, na Rua Primeiro de Março, 66, no 2º andar do CCBB, no centro do Rio, (21) 3808-2020. Grátis.

Sons de Lenine O cantor e compositor recifensecarioca Lenine lançou no final de abril seu sexto disco solo de inéditas. Carbono traz 11 canções feitas com novos e antigos parceiros. Castanho, resultado de parceria com Carlos Posada, abre o disco com uma atmosfera interiorana, pantaneira e sertaneja, conduzida pela viola de Ricardo Vignini. O poema-canção À Meia Noite dos Tambores Silenciosos, de Lenine e Carlos Rennó, ganhou arranjos de Leitieres Leite & Orkestra Rumpilezz, com toques de maracatu, Ilu e Opanijé. Esta faixa homenageia uma cerimônia realizada nas segundas-feiras de carnaval em Recife, quando todas as nações de maracatu se encontram e celebram suas divindades ao som do mesmo toque. O álbum é uma reverência à música brasileira.

Para toda hora

Música para cantar no banho, para curtir a preguiça, curar saudade, superar um fora... Um grupo de amigos aficcionados por listas de música categorizava e trocava suas seleções musicais. Da brincadeira, nasceu o site Seis Músicas, em que criam playlists temáticas e compartilham em várias redes sociais. Os temas e as canções são bem ecléticos e, muitas vezes, divertidos. Em outubro de 2014, por exemplo, quando explodiu uma onda de preconceito contra os nordestinos, eles lançaram Seis Músicas Para Amar o Nordeste. A lista tinha Elba Ramalho cantando Leão do Norte, Alceu Valença gingando com a Morena Tropicana, Otto interpretando Filha e Maria Bethânia exigindo Não Mexe Comigo, enquanto Reginaldo Rossi fabulava A Raposa e as Uvas e Lenine pedia Paciência. Para ouvir, basta acessar www.seismusicas.com.br. Grátis. REVISTA DO BRASIL

MAIO 2015

49


EDUARDO GALEANO

A desmemória

Um registro do escritor uruguaio sobre o “esquecimento” das origens e do significado do 1º de Maio nos Estados Unidos

C

do; mas nos Estados Unidos o primeiro de maio é um dia como qualquer outro. Nesse dia, as pessoas trabalham normalmente, e ninguém, ou quase ninguém, recorda que os direitos da classe operária não brotaram do vento, ou da mão de Deus ou do amo. Após a inútil exploração de Heymarket, meus amigos me levam para conhecer a melhor livraria da cidade. E lá, por pura curiosidade, por pura casualidade, descubro um velho cartaz que está como que esperando por mim, metido entre muitos outros cartazes de música, rock e cinema. O cartaz reproduz um provérbio da África: Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador. Crônica publicada originalmente em O Livro dos Abraços (Editora L&PM, 1989), de Eduardo Galeano (3/9/1940-13/4/2015)

C.BUNNEL E CHARLES UPHAN/GRAVURA HISTÓRICA-1886

hicago está cheia de fábricas. Existem fábricas até no centro da cidade, ao redor de um dos edifícios mais altos do mundo. Chicago está cheia de fábricas, Chicago está cheia de operários. Ao chegar ao bairro de Heymarket, peço aos meus amigos que me mostrem o lugar onde foram enforcados, em 1886, aqueles operários que o mundo inteiro saúda a cada primeiro de maio. — Deve ser por aqui – me dizem. Mas ninguém sabe. Não foi erguida nenhuma estátua em memória dos mártires de Chicago nem na cidade de Chicago. Nem estátua, nem monolito, nem placa de bronze, nem nada. O primeiro de maio é o único dia verdadeiramente universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem todas as histórias e todas as geografias, todas as línguas e as religiões e as culturas do mun-

50

MAIO 2015

REVISTA DO BRASIL


Previna-se das armadilhas da desinformação. Acompanhe aqui a cobertura dos principais fatos no país e do mundo. E siga nas redes sociais nosso jornalismo crítico, cidadão e transformador

www.redebrasilatual.com.br


Sua onda de informação, cultura e diversão. As notícias que as outras não dão Reportagens ao vivo, entrevistas, noticiário local, nacional, internacional e programas especiais. Economia, política, mundo do trabalho, cultura, direitos humanos e movimentos sociais. Dinâmico, plural e democrático. Sem preconceitos e sem discriminação.

www.redebrasilatual.com.br/radio


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.