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ECONOMIA EM BAIXA São Paulo perde força na gestão tucana

RELAÇÕES DELICADAS Amorim e as histórias de nossa política externa

RICARDO BERZOINI Marco regulatório só sai com diálogo

nº 105 abril/2015 www.redebrasilatual.com.br

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Dia 10 de maio acontece a 15ª Corrida e Caminhada GRAACC. Venha correr pela cura de crianças com câncer. Participe!

Vamos correr?

Beatriz, paciente do GRAACC, em 2014

Beatr iz h

Caminhada

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Fotos: Gustavo Scatena

Corrida 10K

10 de maio InscrIçõEs www.GRAACC.oRG.BR

oje

Contribuição

Organização

Realização


ÍNDICE

EDITORIAL

6. Na Rede

Fatos que foram notícia no mês que passou

10. Política

As reformas que o país ainda precisa fazer

16. Economia Locomotiva paulista derrapa no trilho

20. Política externa Amorim e o Brasil falando para o mundo

26. Comunicações DANILO RAMOS/RBA

Berzoini: diálogo para mudar sistema

30. Saúde

A polêmica sobre uso de componente da maconha

Manifestação das centrais no dia 13 de março: o futuro próximo é motivo de preocupação

34. Turismo

Como fazer o país atrair estrangeiros?

Hora de ouvir e reagir

40. História

Box de artesanato no Mercado São José

42. Viagem

Mercados públicos na paisagem de Recife

Seções Cartas

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Mauro Santayana

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Lalo Leal

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Marcio Pochmann

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Curta essa dica

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Crônica: Luiz Ruffato

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JESUS CARLOS/IMAGEMGLOBAL

Um museu inesperado na Ilha da Madeira

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o mês passado, era dito neste espaço que o governo ajudaria se convencesse os movimentos sociais de sua disposição de cumprir o programa vitorioso nas eleições de outubro de 2014. Os últimos meses passaram com a velocidade de minutos, o Planalto sofreu um rápido desgaste, e aos protestos legítimos das ruas se somaram os oportunistas de plantão, ainda sem aceitar o resultado das urnas e tentando virar o jogo no tapetão. É óbvio que existe uma crise, política e econômica. E que levará tempo para mudar esse cenário. Reconhecer os erros e o momento ruim é o primeiro passo. Buscar saídas é o segundo. Para isso, como sempre se insistiu, é preciso que o governo abra a janela e escute o que está se falando nas ruas. O que se fala entre murmúrios insatisfeitos, no dia a dia, e aos gritos, em manifestações. Também é preciso ter clareza de que no meio dos protestos – justos, repita-se – há falsos interessados nos problemas da sociedade. Duvidosos defensores da democracia. E antigos governantes dando receitas que eles mesmos não aplicaram e criticando situações que eles próprios vivenciaram. No final de março, mesmo com turbulências nas relações entre governo e Congresso, apareceram sinais de que o país pode começar a dar alguns passos no sentido de superar as dificuldades. Aumentaram as conversas, as interlocuções, uma agenda se esboça. Ao mesmo tempo em que a equipe econômica reafirma que o ajuste fiscal é necessário, o Executivo parece escutar mais o chamado setor produtivo, empresários e trabalhadores. É preciso discutir o que fazer para retomar o crescimento. Falta muito. Há de se enfrentar campos minados representados pelos arautos da catástrofe, inclusive na mídia. Que a Justiça puna os comprovadamente envolvidos em escândalos. Mas, sobretudo, o governo precisa reagir, admitir que errou, absorver as críticas, mostrar convicção, recuperar o ambiente de confiança e ouvir. Também é óbvio, mas às vezes se esquece que a conta tem de ser paga por quem pode pagar. REVISTA DO BRASIL

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CARTAS www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Montagem com foto ilustrativa de Getty Images. Wilson Dias/Agência Brasil (Amorim) Gerardo Lazzari/RBA (Berzoini) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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Orquestra de Cordas É um grande projeto e merece apoio do governo, de empresas e da população em geral. (“A música não pode parar”, ed. 103) Taynara Sales Venezuela Como sempre os EUA sempre articulando um golpe de Estado para promover seus interesses. Meu total apoio a Maduro, que vem demonstrando fidelidade ao ideal socialista e à continuidade do governo chavista! A criação de comunas é uma estratégia inteligente para a mitigação dos efeitos da crise e deve ser vista como um processo importante na manutenção do nacionalismo e da vida comunitária! (“Mulheres na guerra econômica”, ed. 104) David Mitos Os efeitos da segunda guerra mundial estão no nosso cotidiano, na inteligência anglo saxônica, na ascensão fascista na Europa e nos EUA. O Império americano só faz guerras, bombardeios e criar instabilidade. A sua negação da legalidade internacional, o seu desrespeito por governos que se lhes opõe, a sua ganância por recursos naturais, têm de ser combatidos com medidas firmes de contra-inteligência, diplomáticas, econômicas. (“’Não matarás.’ O mito do American Sniper”, ed. 104) Riobaldo

Comparar impérios de milênios atrás com os EUA é tolice. Temos que considerar os aspectos sociais de cada época, assim como o envolvimento da sociedade na “política”. Não bato palmas a nenhum dos “snipers”, seja soviético ou americano. Matar não enobrece ninguém, independente do motivo. (...) O mundo não aceita mais guerras, e menos ainda o povo americano. (...) Sou humanista, e acredito que erros grotescos podem ser reparados. A longo prazo tudo se endireitará. Maurício Palhano

Crescimento São dos grandes problemas que se encontram as grandes soluções. O mundo precisa comer e nenhum país do mundo tem tanta facilidade de produzir alimento do que o Brasil. Criar aqui a fábrica de alimentos congelados ou desidratados para a humanidade. Explorar não, produzir com estudos aprimorados a melhor, mais nutritiva e mais saborosa forma de se alimentar. Para a África ou para a Alemanha seria a melhor opção. Desenvolver isso a longo prazo, aliás a prazo eterno, melhorando e melhorando. Precisamos usar a nossa agricultura, o nosso potencial de produção, a nossa diversidade em um bom projeto. (“O crescimento volta quando?”, ed. 104) Carlos Morelli Agrotóxicos Excelente entrevista, não são somente os agrotóxicos os inimigos da saúde física e financeira, mas a política da ganância administrativa. (“Tem veneno até na pinga”, ed. 104) Higia Faetusa Estado O texto ajuda a recuperar um momento importante da história brasileira. Mas parece que ainda temos muito a avançar. Muito por descobrir. (“O Estado em três tempos”, ed. 104) Fabio

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


MAURO SANTAYANA

O juiz supremo Da Justiça, o que principalmente se espera é bom senso

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uando suas decisões afetam não apenas o réu e sua vítima, mas centenas, milhares de cidadãos, o promotor deve acusar e o juiz, julgar, com a mente e o coração voltados para o que ocorrerá, in consequentia. Nos últimos anos, a nação tem tido, na área de obras públicas, bilhões de reais em prejuízo. E isso não apenas devido a falhas de gestão – que, com a exceção dos Tribunais de Contas, não devem ser analisadas pelo Judiciário – ou de casos de corrupção, alguns com mais de 20 anos. Houve também a paralisação – a caneta – de grandes obras de infraestrutura. Belo Monte, a terceira maior hidrelétrica do mundo, em construção na Amazônia em um momento que o país precisa desesperadamente de energia, teve suas obras judicialmente suspensas por dezenas de vezes, o que também contribuiu para que se somassem meses, anos de atraso ao seu prazo de entrega; e também para a multiplicação de seus custos. O mesmo ocorreu com Teles Pires e Santo Antônio, com a refinaria Abreu e Lima e com a transposição do São Francisco. Em todos esses empreendimentos foram encontrados problemas de algum tipo, mas justamente por isso, é preciso que o Ministério Público e o Judiciário busquem outro meio de sanar eventuais falhas e punir irregularidades, que não seja, a priori, a imediata paralisação das obras. Afinal, ainda é melhor obras com problemas, que podem ser eventualmente corrigidos, do que nenhum projeto ou iniciativa desse porte, em setores em que o país esteve praticamente abandonado, durante tantos anos. Uma das soluções, para se evitar esse tipo de atitude drástica, poderia ser a de que se nomeasse interventores que pudessem investigar irregularidades e fiscalizar, in loco, em cada obra, o cumprimento das determinações judiciais. Declarações bombásticas e precipitadas também não ajudam, quando se trata de projetos essenciais para o desenvolvimento do país nos próximos anos. No contexto da Operação Lava Jato, centenas de

milhares de trabalhadores e milhares de empresas já estão perdendo seus empregos e arriscando-se a ir à falência, porque o Ministério Público, no lugar de separar o joio do trigo, com foco na punição dos corruptos e na recuperação do dinheiro – e de estancar a extensão das consequências negativas do assalto à Petrobras para o restante da população – age como se preferisse maximizá-las, anunciando, ainda antes do término das investigações em curso, a intenção de impor multas punitivas bilionárias às companhias envolvidas, da ordem de dez vezes o prejuízo efetivamente comprovado. Outro aspecto a considerar é a interferência indevida, em esferas da administração pública que não são da competência do MP, como foi o pedido de paralisação, no mês passado, das obras de ciclovias que estão em execução pela prefeitura de São Paulo. Não cabe ao Ministério Público, em princípio, julgar, tecnicamente, questões viárias. E menos ainda, limitar o debate e a busca de consenso, em âmbito que envolve a qualidade de vida de metrópoles como a capital paulista, uma das maiores do mundo. A não ser que haja uma mudança constitucional que faça com que venham a ser escolhidos por meio das urnas – e mesmo que viesse a ocorrer isso – é preciso que o Ministério Público e o Judiciário tenham especial cuidado para que alguns de seus membros não passem a acreditar – e a agir – como se tivessem – com base na meritocracia – sido ungidos por Deus para tutelar os outros poderes, e, principalmente, o povo. Aos juízes e ao Ministério Público não cabe interferir, de moto próprio, nem tentar substituir o Legislativo ou o Executivo, na administração da União, dos Estados e municípios, que devem recorrer ao Supremo Tribunal Federal sempre que isso ocorra, assim como cabe ao STF coibir, com base na Constituição, esses eventuais excessos. Em uma democracia, todo o poder emana do povo. É ele que comanda. É ele que, em última instância, executa. É ele que, indiretamente, legisla. É ele que, a cada dois anos, julga, por meio do processo eleitoral, segundo o rito político. A sua sentença é o voto. O eleitor é o Estado. E o juiz supremo. REVISTA DO BRASIL

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redebrasilatual.com.br

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

CLEONES RIBEIRO/ARQUIVO – PORTAL SESCSP

Vozes caipiras

Inezita: autêntica representante da cultura popular

A hora dos ricos

Em vez de taxar no andar de baixo, como quer Levy, por que não os ricos, como sugere Piketty? O debate é proposto pelo professor da USP Paulo Feldmann, em referência ao ministro da Fazenda e ao economista francês, autor do best-seller O Capital no Século XXI. Thomas Piketty vê como medida adequada a taxação de fortunas, medida que o Brasil resiste a implementar. Outra ideia é aumentar o imposto sobre heranças, hoje um tributo estadual. Tudo somado, seria possível alcançar recursos equivalente ao tamanho do ajuste fiscal. “Essa mudança não criaria um problema sério na economia, não faria com que a classe média sofresse novamente e não mexeria nas políticas sociais”, diz Feldmann, para quem “chegou a hora de mexer com os mais ricos”. http://bit.ly/rba_ricos 6

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EDISON TEMOTEO/FUTURA PRESS

Polícia mata alegando resistência MOACYR LOPES JUNIOR/FOLHAPRESS

Paulo Feldmann: taxar o andar de cima

Apenas quatro dias depois de completar 90 anos, a apresentadora, cantora, folclorista e pesquisadora Ignez Magdalena Aranha de Lima, popularmente conhecida como Inezita Barroso, morreu em São Paulo, no Dia Internacional da Mulher. Foi a segunda perda do mundo caipira em uma semana, já que pouco antes havia morrido o cantor José Rico, que fazia dupla com Milionário. Com mais de 80 dicos gravados e à frente do programa Viola Minha Viola, da TV Cultura por mais de 30 anos, Inezita formou um reduto de defesa e divulgação da cultura popular. Como cantora, ela ganhou fama com músicas como Moda da Pinga e Lampião de Gás. Mas também foi a primeira a gravar Ronda, clássico composto por Paulo Vanzolini, em 1953. http://bit.ly/rba_inezita

Sem resistência

A Rede Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) encaminhou representação à Procuradoria-Geral da República, para que o decreto que ampara os chamados autos de resistência (registros de morte em confronto com a polícia) seja considerado inconstitucional. De 2009 a 2013, foram mais de 11 mil mortes causadas por intervenções policiais. Relatório aponta crescimento de 97%, de 2013 para 2014, no número de mortes em São Paulo registradadas como autos de resistência. “A declaração da ilegalidade pode mudar a situação de milhares de jovens brasileiros, principalmente os negros”, diz o coordenador da Educafro, frei David Santos. “O auto de resistência é a rainha das provas”, afirma o advogado Renato Ferreira, para quem o instrumento “banalizou a ação dos maus policiais”. http://bit.ly/rba_autos


GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO/FOTOS PÚBLICAS

Trabalhadores fecharam 91,5% dos acordos salariais com aumento real

Negociações salariais O ano de 2014 mostrou resultados positivos nas negociações

salariais, mesmo com baixo crescimento e inflação em alta. De acordo com o Dieese, de 716 acordos pesquisados, 91,5% foram fechados com aumento real (acima da inflação), ante 86,2% em 2013. A média dos ganhos nos reajustes foi de 1,39 ponto percentual, tendo como base o INPC, e também superou o ano anterior (1,22). O instituto destaca o “cenário de incertezas” deste ano. http://bit.ly/rba_dieese

Estado fora da lei

JOSÉ A. TEIXEIRA E MARCO CARDELINO/ALESP

A Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo, denominada Rubens Paiva (ex-deputado que foi sequestrado, torturado e morto em 1971), entregou o seu relatório final, divulgado na internet (www.verdadeaberta. org). O colegiado pede desmilitarização da polícia, reforma do Judiciário e punição a torturadores, entre outras medidas, chamando a atenção para a atualidade de certos temas, especialmente em relação ao desrespeito às comunidades mais pobres. Para a comissão, “o Brasil continua a ser um Estado fora da lei no tocante aos direitos humanos”. O colegiado lamentou a dificuldade de obter acesso a arquivos (que deveriam ser públicos) relacionados ao período da ditadura civil-militar (1964-1985). E insiste na reabertura de investigações sobre a morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, em 1976. Nesse ponto, contesta a decisão da Comissão Nacional da Verdade, que aceitou a versão de acidente. As comissões convergem na avaliação de que o trabalho apenas começou. http://bit.ly/rba_verdades

Comissão da Verdade de São Paulo entrega relatório

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Canal 44.1 HD digital: Grande São Paulo. Canal 2 Net: São Paulo (das 19h às 20h30). Canal 46: Mogi das Cruzes. Canal 12 Net: Grande ABCD. Satélite C3, frequência 3851, symbol rate 6247, vertical: em todo o Brasil. No site: tvt.org.br

ADONIS GUERRA/SMABC

TVT

CANAL 44.1 Grana, Marinho, Breve, Juvandia, Lula, Rafael, Berzoini e Nobre na celebração do novo canal

Digital e diferente TVT entra em nova fase, ampliando potencial de espectadores

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restes a completar cinco anos, a TVT estreou a sua versão digital. Com novo transmissor, instalado na avenida Paulista, a emissora amplia em 50 vezes o potencial de espectadores, que chega a 20 milhões, o universo da Grande São Paulo. Com várias possibilidades e desafios, que em breve devem se espelhar em novidades na grade da programação. A mudança teve um lançamento solene e festivo, com a presença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, dos prefeitos Luiz Marinho (São Bernardo do Campo) e Carlos Grana (Santo André), do presidente da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Nelson Breve, e dos presidentes dos sindicatos dos Bancários de São Paulo (Juvandia Moreira) e dos Metalúrgicos do ABC (Rafael Marques), parceiros na Fundação Sociedade, Comunicação, Cultura e Trabalho, responsável pela TVT. Um 8

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esforço para criar uma televisão de qualidade e que dê voz a setores tradicionalmente excluídos da mídia tradicional. “É uma luta social para transformar, para influenciar”, diz Rafael Marques, para quem a TVT “se propõe a fazer coisas novas e levar a linguagem do trabalhador”. “Nossa democracia só se consolidará quando a gente tiver a democratização dos meios de comunicação”, reforça Juvandia, citando também a reforma política. “Temos de construir nossos próprios veículos”, afirma o secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre. “Quando a gente vai zapear a televisão, vê que as universidades estão lá, e é importante que estejam. As igrejas estão lá, e têm todo o direito. Portanto, o movimento sindical tem todo o direito de ter seu espaço.” Lula pediu “qualidade e seriedade”. E destacou a importância da inovação. “Vocês têm de ter a preocupação de não fazer a mesmice.”


LALO LEAL

A luta por espaço para o rádio e a TV

A regulação do espectro para acabar com privilégios é tarefa imprescindível e urgente para o jogo democrático

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isputas por territórios são contínuas na história da humanidade, dos tempos pré-históricos aos dias de hoje. A maioria sangrentas, muitas tornaram-se eternas, documentadas por historiadores ou romanceadas por grandes escritores. São territórios visíveis, quase sempre delimitados por fronteiras precisas, muito claras, pelas quais só se passa munido de autorização de quem as controla. Criam-se Estados nacionais e organizações multilaterais para dar um mínimo de estabilidade a esse tipo de posse, o que não exclui a permanência constante de disputas em várias regiões do planeta. Mas se no caso da terra a luta por sua ocupação é visível a olho nu, existe uma outra disputa territorial, igualmente feroz, que passa despercebida. Trata-se da conquista de porções do espectro eletromagnético, um espaço invisível ao olhar humano, tão ou mais valioso quanto inúmeros pedaços de terra. Seu valor advém da possibilidade de permitir que nele trafeguem ondas radioelétricas capazes de transportar sons e imagens ao redor do mundo através do rádio, da TV, da telefonia. Carregam mensagens comerciais, políticas e religiosas cujos valores são determinados, em última análise, pelo mercado. Dessa forma, para que essas mensagens se realizem enquanto mercadoria é necessária a utilização de um bem público, escasso e finito. O espectro, por mais que a tecnologia avance com a multiplicação do seu uso graças a digitalização, tem um limite. Ocupá-lo, portanto, é um grande privilégio. Cabe ao Estado, em nome da sociedade, regulá-lo para tornar o seu uso democrático. Infelizmente no Brasil, contando com a histórica tibiez dos governos, vale a lei dos mais fortes, os grandes grupos de mídia, donos de praticamente todo o espaço. Há, no entanto, exceções que confirmam a regra. Uma delas é a obtenção de uma pequena fatia do espectro por uma organização independente do mercado: a TVT, TV dos Trabalhadores. Sua trajetória forjou-se nas greves do ABC do final dos anos 1970, quando os trabalhadores perceberam

as distorções contidas nos noticiários das redes comerciais. Começou como uma produtora de vídeo, tornando-se depositária da importante memória daquela época. Faltava, no entanto, o canal para levar diretamente ao público uma visão mais honesta dos acontecimentos. Para isso era necessária a tal fatia do espectro, conseguida após 23 anos de luta, período no qual foram negados cinco pedidos de concessão, quatro no governo José Sarney e uma no de Fernando Henrique Cardoso. O tempo decorrido entre o pedido inicial e a outorga evidencia o nível acirrado da disputa. O próprio Lula, responsável pelo pedido inicial, quando deputado federal, e autor da concessão enquanto presidente da República, contou durante a festa de inauguração do canal digital da TVT, em março, das dificuldades enfrentadas para colocar em prática sua decisão. Entre a assinatura da outorga feita por ele e sua efetivação passaram-se cinco anos, numa demonstração de que a luta pelo espaço trava-se dentro da própria burocracia governamental. A regulação do espectro para acabar com privilégios é tarefa imprescindível e urgente para o jogo democrático. Para isso, basta dividi-lo em três partes atendendo aos sistemas de rádio e teledifusão estabelecidos pela Constituição: uma para o sistema público (canais públicos e comunitários), outra para o sistema privado (emissoras comerciais) e a terceira para o sistema estatal (canais dos poderes do Estado). Caberia ainda ao Estado, como ocorre em vários países, criar o “operador de rede”, pelo qual trafegariam os sinais de todas as emissoras. A elas caberia apenas a produção de conteúdos, ficando o “operador” com a incumbência da transmissão. Isso desobrigaria emissoras não comerciais de arcar com um custo que, muitas vezes, inviabiliza a sua própria existência. A vitória obtida pela TVT, ainda que o território ocupado seja pequeno, é uma importante cabeça de ponte para que a luta em busca da democratização do espectro siga em frente, acabando com o uso privado e privilegiado desse importante bem público. REVISTA DO BRASIL

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POLÍTICA

DEMOCRACIA É CON Manifestações pressionam governo. Governo anuncia medidas. E o país tenta avançar, sem ceder a tentações de retrocesso político

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DANILO RAMOS/RBA

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m antigo hábito da política estabelece certa “trégua” aos governantes em seus 100 primeiros dias de gestão. No caso de Dilma Rousseff, que chega a essa marca em 10 de abril, não houve calmaria. Uma combinação de erros de gestão, medidas impopulares, situação econômica difícil e sanha oposicionista, ainda com inconformismo pela derrota eleitoral, deixou o governo na defensiva. No final do mês passado, o Planalto anunciou medidas de combate à corrupção e acenou com diálogo, mas ainda enfrenta impopularidade e uma reação turbulenta com o Congresso. Fora e dentro do governo, a avaliação é de que o Executivo terá de se comunicar melhor e ouvir mais. “No momento, qualquer coisa que o governo faça é ruim. O governo não está pautando a discussão, é uma reação. Perdeu a hora de sair a público”, diz o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo (USP). Por outro lado, acrescenta, até por esse motivo não custa nada tomar iniciativas. “Se tiver sangue-frio e souber fazer nos meios adequados, adequar crítica, calúnia, aí tem boa chance de recompor”, avalia. Cabe ao Executivo reorganizar seu diá­ logo com a população, afirma Janine. E ter paciência. “Rearticular a comunicação, mas não é chamando um marqueteiro. O governo tem de ter a convicção interna de


POLÍTICA

NQUISTA SEM VOLTA GERARDO LAZZARI/RBA

LONGE DAS CÂMERAS Na chuvosa sexta-feira, 13 de março, a Av. Paulista ficou repleta de manifestantes

REPRODUÇÃO

MIAMI IS HERE Em São Paulo coube todo tipo de reivindicação

GERARDO LAZZARI/RBA

SÓ EM UMA DEMOCRACIA Ana Eliza Setúbal, da família controladora do Itaú, e sua camisa “indecorosa”

PROTESTOS Manifestações do dia 15 também revelam insatisfação REVISTA DO BRASIL

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O JOIO E O TRIGO André Singer: É preciso que o jornalismo perceba que pode causar um dano importante se dissolver instituições das quais a democracia brasileira necessita

A VELHA E BOA LUTA DE CLASSES Luiz Carlos Bresser-Pereira identificou um fenômeno que ele chama de “ódio coletivo da classe alta, dos ricos, contra um partido e uma presidente”

que tem de prestar contas à sociedade. Vai ter de insistir muito nisso. Não falando, não justificando, ela (Dilma) deu espaço para crescer um descontentamento, absolutamente descontrolado.”

mais conservadoras. Essa tendência tem que ser respeitada, mas, ao mesmo tempo, tem que ser notada. É preciso que o jornalismo perceba que pode causar um dano importante se dissolver instituições das quais a democracia brasileira necessita”, afirma, citando o PT, alvo dos protestos. “Não há interesse em dissolver o PT, nem o PSDB e diria, nem o PMDB, que são os três maiores partidos da democracia brasileira. É importante que o jornalismo se dê conta de que é preciso separar o joio do trigo.” Assim, ele identifica riscos originados pelo “ódio” constatado em algumas manifestações. “Não vejo, do lado dos que estão no campo do PT, um ódio equivalente ao PSDB, nem nunca vi. Havia, e há, divergências. Se o PSDB voltar ao governo, suponho que o PT vai fazer uma oposição dura, como o PSDB faz. Isso é da natureza da democracia. Uma coisa é oposição dura, outra é você querer eliminar o adversário do campo. Vejo que, às vezes, há certa tendência a alimentar um ódio político que é malsão, que não é saudável para a democracia brasileira”, diz Singer. Observadores de mídia e analistas viram na cobertura da Globo um estímulo à participação no 15 de março, contra o governo. O jornalista Rodrigo Vianna, do blog Escrevinhador, escreveu que a emissora usou “o seu poder de agitação” para chamar a manifestação. “A Globo foi a central de operações do dia 15.” Para ele, foi um “Diretas já às avessas”, para insuflar a população conta Dilma. Em 1º

Ódio

As manifestações de março contra o governo tinham e têm motivações legítimas, mas incluíram uma carga extra de raiva. O que levou a jornalista Laura Capriglione a questionar: “O que leva pessoas educadas, profissionalmente bem colocadas, gentis no trato pessoal, a comparecer a um ato público contra a corrupção e para lá levar cartazes, faixas e rimas podres de cunho sexista e de ódio contra a presidente Dilma Rousseff ?” Ela faz referência ainda a uma “indecorosa” camiseta com estampa de uma mão com quatro dedos, vestida, entre outras pessoas, por Ana Eliza Setúbal, mulher de Paulo Setúbal, da família controladora do banco Itaú. “Teve grosserias para todos os gostos e estômagos.” O cientista político André Singer, em entrevista à Rede Brasil Atual, chamou a atenção para a importância da mídia nesse processo. “Há um papel fiscalizador da mídia, apesar de todos os defeitos que ela possa ter, que é imprescindível. Tem que existir, e a democracia tem que ser forte o suficiente para enfrentar as denúncias, quando elas têm fundamento. Por outro lado, existe a questão de que a grande mídia tem uma tendência ideológica legítima, porém real, para posições 12

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PEDRO FRANÇA/AGÊNCIA SENADO (24-03-2015)

MARCOS SANTOS/USP IMAGENS

FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

POLÍTICA

O BARATO SAI CARO Manifestação em Brasília contra o financiamento privado de campanhas eleitorais: várias entidades defendem verba exclusivamente pública para os partidos a fim de diminuir a corrupção

“PODEMOS TIRAR, SE ACHAR MELHOR” Redator da agência de notícias Reuters deixa a cargo dos superiores retirar referência de corrupção no período FHC


REPRODUÇÃO/TV CULTURA

POLÍTICA

“É SÓ FALSIDADE” Janio de Freitas: “Um só motivo para tanta indignação exibida: golpismo”

de abril, haveria uma manifestação para lembrar os 50 anos da Globo, com a avaliação de que a emissora foi beneficiada pela ditadura. Ainda no terreno midiático, março reservaria um episódio curioso. A agência britânica Reuters publicou no dia 23 uma entrevista com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que trazia críticas ao seu sucessor, o também ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas o texto incluía uma referência negativa a FHC, seguida de uma observação, em parênteses: “Podemos tirar, se achar melhor”. O comentário indicava a possibilidade de ser suprimido justamente um trecho sobre corrupção no governo tucano. A Reuters disse que a frase foi publicada “inadvertidamente” e posteriormente retirada, lamentando “qualquer confusão causada pelo engano”.

Sem diálogo

Mais uma vez, as redes sociais foram cenário de confrontos. Até a cantora Pitty sofreu ataques, ao escrever: “Pressionar qualquer governo por melhorias sim, marchar ao lado de extremistas de direita, fanáticos religiosos e saudosos da ditadura JAMÉ”. Lembrou que não defendia o PT e disse ter recebido “um jogo de ódio irracional”, “diálogo zero, só ofensas preconceituosas”. Um internauta sugeriu que ela “voltasse para a cozinha” após “terminar o mimimi”. Ela respondeu: “Pois eu não volto pra cozinha, nem o negro pra senzala, nem o gay pro armário. O choro é livre (e nós também)”. Insuspeito, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira (governo FHC), em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, identificou um fenômeno que ele chama de “ódio coletivo da classe alta, dos ricos,

contra um partido e uma presidente”. Para o economista, esse ódio “decorre do fato de que o governo revelou uma preferência forte e clara pelos trabalhadores e pelos pobres”. Na visão de Bresser-Pereira, Dilma teria chamado Joaquim Levy para a Fazenda por questão de sobrevivência. “Ela tinha perdido o apoio na sociedade, formada por quem tem poder. A divisão que ocorreu nos dois últimos anos foi violenta.” Defensor de um “pacto desenvolvimentista que una trabalhadores, empresários do setor produtivo, burocracia pública e amplos setores da baixa classe média”, Bresser-Pereira não vê espaço para iniciativas relacionadas a impeachment. “A democracia está consolidada e todos ganham com ela, ricos e pobres. O Brasil só se desenvolve quando tem uma estratégia nacional de desenvolvimento”, afirma.

Indignação

Para o analista político Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), há agravante em relação aos protestos de 2013, quando, segundo ele, muitos foram as ruas na condição de eleitor, contribuinte, usuário de serviço público e consumidor. “Mas ele não se se manifestou como assalariado, porque o emprego e a renda estavam crescendo. Ele continua indignado, agora como assalariado.” Dois anos atrás, o governo tinha margem fiscal para fazer concessões ao empresariado e condições de investir. “O REVISTA DO BRASIL

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POLÍTICA

glio sobre a correção da tabela do Imposto de Renda e garantiu a renovação, até 2019, da política de renovação do salário mínimo. À questão social, vieram se somar as implicações da Operação Lava Jato, que atinge uma empresa-chave da economia brasileira. Por esse motivo, centrais e movimentos sociais que saíram às ruas em março defendiam a continuação das investigações e punição de envolvidos no escândalo, mas de forma a preservar as atividades da Petrobras e de empresas que atuam no setor. A corrupção é um problema que atinge não apenas um partido e se espalha pela sociedade, lembra Janine. “O problema é que agora está no campo da esquerda.” Mesmo assim, ele avalia que há um espaço para começar a mudar essa situação, desde que com um discurso sincero. “A batalha não está perdida”, diz o filósofo. “Para quem elegeu a Dilma e para quem se preocupa com o bem do Brasil, a questão é esse mandato ir até o fim com um governo bom, uma gestão de qualidade.” Janine ressalta a importância, espe-

O tema da reforma política voltou à baila em março, defendida principalmente pelos movimentos sociais. A questão é qual reforma. “Chegou a hora de vencer as escaramuças dos interesses sombrios e renovar a democracia brasileira. A crise que se aprofunda não é meramente econômica. Ela é, sobretudo, política”, afirma a articulista Maria Inês Nassif, em artigo na Carta Maior que lembra os 30 anos do fim da ditadura brasileira. Ela defende uma proposta de reforma que una “as forças progressistas” e seja “capaz de salvar a política do cativeiro a que foi jogada pelo poder econômico”. Esse é um ponto crucial para o bispo de Jales (SP), dom Luiz Demétrio Valentini, integrante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. “Com tantos 14

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episódios, envolvendo grandes empresas, ficou evidenciado o vínculo da corrupção com as doações de empresas para financiar campanhas eleitorais”, escreveu em artigo publicado na página da Conferência Nacional dos Bispos do Brasi (CNBB). Mas ele também chama a atenção para ameaças conservadores. “Tanto mais, como cidadãos herdeiros de uma lição histórica, que ainda serve de advertência, precisamos estar atentos a possíveis manobras golpistas. Não podemos repetir a experiência de 64, que levou para a ditadura, da qual saímos a duras penas depois de vinte anos, e dela ainda restam alguns resíduos tóxicos.” A Fundação Ulysses Guimarães, vinculada ao PMDB, apresentou proposta que inclui fim da reeleição,

Indignação

O jornalista Janio de Freitas, articulista da Folha, vê sinais de “golpismo” no comportamento da oposição, ao mostrar “exibida indignação” com práticas do governo opostas ao discurso de campanha. “É só falsidade. Oposição honesta, se não

SANDRA CODO/IEA, USP

Reforma política: qual?

cialmente neste momento, de falar com franqueza e mostrar uma boa gestão. “Nenhum governo cumpre tudo o que gostaria de cumprir ou o que prometeu. A questão é como se explica”, observa o professor. Para ele, embora “a bola da vez” possa ser o PT, as críticas e protestos se estendem aos partidos de oposição e ao Congresso. Mas ele também considera que nos últimos anos houve melhorias institucionais no combate à corrupção. “Do ponto de vista prático, o PT municiou a Polícia Federal, pôs no Supremo juízes independentes. São dados que não vêm a público. Acho que o PT fez uma grande obra ética, que é a redução da miséria, que não é vista como um insulto ético.” Falhou, em sua visão, ao concentrar a inclusão social pelo ângulo do consumo. “Virou uma coisa de fôlego curto.”

FELLIPE SAMPAIO /SCO/STF

quadro é muito mais dramático do que naquela ocasião. O ajuste tem de passar, mas não escolhendo só o trabalhador para pagar essa conta’, diz o diretor do Diap, que vê o governo, neste momento, “na retranca”. Também para ele, faltou comunicação e clareza para mostrar que o país passaria por um momento difícil. “Terminada a campanha, tinha de ir preparando o terreno.” Os primeiros problemas vieram com a decisão de editar medidas provisórias restringindo acesso a direitos trabalhistas e previdenciários, ainda no final do ano passado. Impopulares por si, as MPs, agora em discussão no Congresso, onde devem sofrer alterações, foram anunciadas sem qualquer discussão prévia com as centrais sindicais. A reação foi ainda pior porque parte dos dirigentes apoiou a reeleição da presidenta. Diante da resistência generalizada, o governo acena, embora ainda não tenha apresentado propostas, com medidas como a taxação sobre grandes fortunas (leia texto na edição anterior e na página 6 desta edição). Também cedeu parcialmente no imbró-

Toffoli: limitar número de partidos. Hoje são 32

Janine: “Forte chance de ser uma coisa acessória”

mandato de cinco anos e manutenção do financiamento privado, mas incluindo também modalidade pública. “Temos a obrigação de não falharmos neste momento”, declarou o vice-presidente da República, Michel Temer,

ressaltando que “o Congresso é o senhor absoluto dessa matéria”. O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Dias Toffoli, defende uma cláusula de barreira, a fim de limitar o número de


REPRODUÇÃO YOUTUBE

for imbecil, não tem como não estar satisfeita com a adoção de política econômica e medidas antissociais que são autenticamente suas, e de sua conveniência. E satisfeita ainda com a derrota final dos que a repudiaram nas urnas. Um só motivo para tanta indignação exibida: golpismo”, escreveu em sua coluna na edição de 22 de março. “As negativas de adoção do golpismo feitas pelos oposicionistas vociferantes são apenas falsidade política.” Para a CUT, houve em 15 de março manipulação do “legítimo apelo popular de combate à corrupção”, particularmente em São Paulo. Isso permitiu que surgissem propostas antidemocráticas, “que todos os setores comprometidos com a sociedade devem combater”. Ao mesmo tempo em que admite descontentamento na sociedade, a central alerta para a importância de evitar manobras que busquem o retrocesso político. As entidades sindicais insistem em um ponto: o governo deve ouvir mais os movimentos sociais e apresentar medidas na direção da retomada do crescimento, mantendo políticas de distribuição de renda. A voz das ruas, mas sem desvios de rota na democracia.

Queiroz: “Não será uma tarefa fácil promover a reforma”

partidos políticos. Atualmente, existem 32 registrados, e 28 têm representação no Congresso, seis a mais do que na legislatura anterior. “É mais fácil criar um partido do que apresentar um projeto de iniciativa popular”, afirmou,

DANILO RAMOS/RBA

POLÍTICA

COMUNICAÇÃO Manifestantes contestaram noticiário

durante debate. Ele também é favorável à fixação de um teto de gastos para campanhas eleitorais, incluindo um limite nominal por parte das empresas. “A democracia no Brasil é sustentada por grupos empresariais.” “Não será uma tarefa fácil promover uma reforma política moralizadora, que valorize os partidos e aproxime os representantes dos representados”, alerta Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Diap. “A falta de educação política e os custos da participação só serão superados com mudança cultural dos eleitores e principalmente das lideranças políticas e partidárias. Enquanto as pessoas não souberem o que são, para que servem, o que fazem e como funcionam as instituições, não haverá representação política

autência, com participação e controle político e social. As escolas, os partidos, a imprensa, ninguém cuida desse aspecto”, acrescenta o analista, defendendo a importância de os eleitores se informarem sobre o papel das instituções. Por enquanto, o professor Renato Janine Ribeiro vê mais palavreado em torno do tema. Ele vê uma “forte chance de ser uma coisa muito acessória, que atenda a interesses paroquiais”. “O PT defende o financiamento público, o Temer apresentou uma proposta mais elaborada e com mais suporte político, o Cunha (o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do PMDB-RJ) a gente nem sabe qual é a proposta direito, os tucanos falam em voto distrital.” Cunha já afirmou que a reforma será votada até o

final de maio. A Casa criou uma comissão especial sobre o tema. Enquanto isso, movimentos sociais insistem em uma campanha por uma Constituinte exclusiva para mudança do sistema político e na defesa do fim do financiamento privado de campanhas. A respeito desse tema, se aguarda com expectativa que o Supremo Tribunal Federal retome o julgamento de uma ação direta de inconstitucionalidade, impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil. O julgamento começou há mais de um ano. Já teve seis votos a favor da ação. E foi interrompida em abril do ano passado, quando o ministro Gilmar Mendes pediu vista. A demora fez nascer um movimento, nas redes, denominado “devolve, Gilmar”. REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA

A V I T O M O C O L EM MARCHA LENTA Ao paralisar investimentos, estado de São Paulo acentua problemas conjunturais e reduz o ritmo de sua produção, que cai desde a última década Por Cida de Oliveira

N

ão foi à toa que São Paulo passou a ser chamada de locomotiva do progresso. O estado que saiu na frente no processo de industrialização responde hoje por um terço da economia brasileira. Maior produtor industrial, com cerca de 30% do parque fabril em seu território, é dono da maior rede de comércio e serviços e detém a segunda maior produção agropecuária. Sedia ainda grandes universidades, como USP, Unicamp e Unesp, institutos de pesquisa onde é desenvolvida grande parte da pesquisa científica nacional, e o coração do setor financeiro e empresarial brasileiro. No entanto, sua produção econômica parece enfrentar declínio. Conforme 16

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aponta o IBGE, entre 2002 e 2010 o estado perdeu 2,5 pontos percentuais de participação no Produto Interno Bruto (PIB) nacional, e mais 0,5 ponto percentual entre 2010 e 2011. O desempenho industrial é o principal responsável. Em 2011, na chamada indústria total – segmento que inclui transformação, extrativismo mineral, construção civil e serviços industriais de utilidade pública (SIUP), como água e energia elétrica, encolheu 7,9 pontos percentuais em relação a 2002. O comércio paulista também ficou menor: passou de 34% em 2002 para 31,2% em 2012. A mesma pesquisa mostra que em igual período, outros estados viram sua produção crescer, inclusive a da indústria total, aumentando a participação no bolo da

produção nacional. Alguns com avanços apenas na indústria total, melhorando sua presença no conjunto, como é o caso do Rio de Janeiro, Goiás e Mato Grosso do Sul. No comércio, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Pará, Rio Grande do Norte, Piauí e Tocantins.

Mapa do PIB

O recuo paulista e o crescimento da economia nos estados do Norte, Nordeste e Centro-Oeste modificaram o posicionamento das regiões no mapa do PIB brasileiro. Ainda segundo o IBGE, enquanto o Sudeste caiu de 56,7% para 55,2% em 2012, o Nordeste subiu de 13% para 13,6%. O Centro-Oeste foi de 8,8% para 9,8%. A participação foi de 16,9% para 16,2% no


ECONOMIA

Sul e de 4,7% para 5,3% no Norte. Para especialistas, os números permitem diversas interpretações. Uma delas é que algumas políticas públicas, sobretudo federais, já mostram efeitos, no sentido de estimular o desenvolvimento de regiões excluídas ao longo da história. Tanto é que conforme a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), também do IBGE, entre 2002 e 2008 o consumo das famílias do Norte e Nordeste cresceu mais que a média nacional. Enquanto famílias nortistas aumentaram seu consumo em 11% e as nordestinas em 7,6%, a média nacional ficou em 7,4%. Essa variação ajuda também a explicar o crescimento da atividade comercial nessas regiões.

DIOGO MOREIRA/A2 FOTOGRAFIA/GOVERNO, SP

Desigualdade

TUDO PARADO Alckmin e um trem da Alstom, que remete a caso ainda por apurar: números revelam desaceleração

Além dos resultados desses primeiros e tímidos passos rumo à redução das desigualdades regionais, os números revelam a desaceleração da locomotiva. O fato preocupa especialistas, atentos tanto às taxas como aos números absolutos a elas relacionados. “A redução nos dados paulistas preocupa porque, mesmo que pequeno, em termos percentuais, um percentual sobre um grande número relativo, que é a riqueza produzida em São Paulo, significa muita coisa na economia nacional”, diz a coordenadora do grupo de pesquisa em Economia, Indústria, Trabalho e Tecnologia na pós-gra-

duação da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, Anita Kon. Segundo ela, um polo econômico, como é o estado, é o que mais sofre os impactos de uma conjuntura desfavorável. “Há perdas de investimentos, na produção e na geração de postos de trabalho, o que compromete a economia regional como um todo e também a nacional, devido à sua importância.” Para o coordenador de atendimento sindical do Dieese, Airton Santos, vários aspectos marcam essa conjuntura desfavorável. Um deles é o precoce processo de desindustrialização no país. A indústria brasileira, que não chegou a completar seu ciclo, deixando de incorporar tecnologia de ponta suficiente para fabricar produtos sofisticados, de alto valor agregado, começa a encolher, perdendo espaço no PIB nacional para o setor de serviços, que emprega mais mão de obra, porém com salários mais baixos. “Essa indústria atrasada, pouco produtiva e pouco competitiva devido a fatores macro e microeconômicos, é a base da economia paulista”, aponta. A esse “complicômetro”, como ele costuma dizer, somam-se a chamada guerra fiscal entre os estados, que oferecem incentivos para atrair empresas, empregos e investimentos. Em julho passado, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) levou ao Supremo Tribunal Federal (STF)

Participação de São Paulo nas atividades econômicas do país (em %) Fonte: Contas Regionais do Brasil – 2012/IBGE * Inclui extrativismo mineral, transformação, construção e serviços como água e energia elétrica

A maior economia do Brasil vem puxando para baixo o PIB nacional 43,5 37,6 31,3

n 2002 n 2011 n 2012

41,8 40,8 34

29,8

32 31,2

34,1 33

34,6

33

32,6 32,1

13,5 12,1 11

Indústria total*

Indústria de transformação

Comércio

Serviços

Agropecuária

Participação do PIB paulista no PIB nacional REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA

uma série de ações em que pede a inconstitucionalidade de leis do Tocantins, Maranhão, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Distrito Federal e até mesmo Minas Gerais – na ocasião governada pelo colega tucano Antonio Anastasia, agora senador. Alckmin se queixa que leis aprovadas nesses estados ferem princípios constitucionais referentes às ordens política, administrativa, tributária e econômica. E

alega potenciais prejuízos para a economia paulista. A lei de Anastasia, a propósito, permite que o governador mineiro conceda benefícios fiscais por meio de decreto, sem precisar do aval da Assembleia Legislativa.

Na China

Há ainda aspectos locais, como o chamado custo São Paulo, baseado principalmente na cobrança de pedágios caros

nas rodovias paulistas, que encarece os custos de toda a produção. Há menos de um ano, durante CPI dos Pedágios da Assembleia paulista, o presidente do Sindicato das Empresas de Transporte de Cargas de São Paulo e Região (Setcesp), Manoel Sousa Lima Junior, afirmou que um caminhão de cinco eixos que faz uma viagem de ida e volta de Ribeirão Preto a São Paulo 24 vezes no mês, ao longo de 32 meses terá deixa-

Águas de março não encerram crise Por Rodrigo Gomes

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Apesar de aparente melhora, o sistema Cantareira não recuperou nem o volume morto

FAGNER ALVES/CÓDIGO19/FOLHAPRESS

A Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) sofreu em março teve três derrotas na sua forma de gestão da crise: a Justiça Federal mandou reduzir a retirada de água do Sistema Cantareira, a Justiça do Trabalho suspendeu as demissões de trabalhadores e o Tribunal de Contas do Estado (TCE) mandou refazer o edital de licitação para a transposição das águas do rio Paraíba do Sul, que abastece o estado do Rio de Janeiro, para o Cantareira. Para a Justiça, ficou demonstrado que a gestão do Sistema Cantareira pela Sabesp vem sendo de alto risco, como alegaram os MPs. A companhia manteve retiradas de água maiores do que as recomendadas por vários meses. Com isso, o volume útil do sistema estava previsto para se esgotar em outubro, mas acabou em julho do ano passado. E a primeira cota do volume morto devia durar até 30 de novembro, mas se esgotou 20 dias antes. Agora, a estatal deve fazer planejamento semanal, considerando o volume de água que entra no sistema para determinar o quanto pode ser retirado e usando sempre as piores estimativas. Essa decisão converge com preocupações de especialistas e ativistas de meio ambiente. Desde 1º de fevereiro, quando o nível dos reservatórios do Sistema Cantareira atingiu 5%, contando duas cotas do volume morto, boas notícias têm

sido recebidas pela população da região metropolitana. As chuvas foram mais intensas em fevereiro e março, superando a média histórica. A quantidade de água represada aumentou para 17,1%. o que levou o governador Geraldo ­Alckmin (PSDB) a declarar, ainda em 20 de fevereiro, que não havia mais “nenhuma previsão de rodízio” de água. Porém, prestes a iniciar o período seco, a situação do conjunto de reservatórios de água que abastecem a região ainda é pior do que a de 2014. Metade deles tem menos água do que tinham há um ano. Apesar da aparente melhora, o Cantareira não recuperou nem metade do primeiro volume morto.

“Medidas de contenção de gasto de água devem ser não só mantidas, como intensificadas. No mínimo, este ano será tão estressante como foi o ano passado”, alertou Marussia Whately, coordenadora da Aliança pela Água, rede de ONGs e movimentos sociais que propõe ações para enfrentar a situação. Por outro lado, a principal medida apresentada por Alckmin para enfrentar a seca – a transposição do Paraíba do Sul – também enfrenta problemas. O TCE mandou a Sabesp refazer o edital de licitação. Em decisão de 18 de março, o plenário do tribunal considerou que o documento contém restrições excessivas para a

participação das empresas, o que poderia impedir a ampla concorrência. Para completar, no dia seguinte (19), a Justiça do Trabalho mandou a Sabesp suspender centenas de demissões que vinham ocorrendo desde janeiro. Segundo o secretário estadual de Saneamento e Recursos Hídricos, Benedito Braga, a companhia passa por uma crise financeira, por ter reduzido a quantidade de água oferecida à população e ter concedido os descontos na conta para quem reduzisse o consumo (bônus). A partir de 1º de abril, a Sabesp teria de rever, com o sindicato da categoria, a situação dos demitidos.


GABRIELA BILÓ/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

ECONOMIA

DANIEL CYMBALISTA/PULSAR IMAGENS

PARA FAZER SOFRER Importante obra de mobilidade urbana, Metrô paulista pouco avança, e déficit no transporte prejudica a população

FALTA LUZ Usina Ilha Solteira. São Paulo não investe em ampliação da produção desde 1997, quando CPFL e Cesp foram privatizadas, por isso tem de comprar de outros estados

do nas cabines de pedágio R$ 350 mil, o mesmo valor pago pelo caminhão. E reclamou também que, além do pedágio, as concessionárias cobram por serviços extras, muitas vezes não executados, negociando valores adicionais como se fossem duas empresas privadas. Sai bem mais barato comprar da China, chegou a comentar Lima Junior. Para complicar mais, segundo o técnico do Dieese, faltam alternativas ao transporte rodoviário. As ferrovias paulistas estão sucateadas, a hidrovia paralisada e o porto carece de investimentos.

“Ele se exime de atuar quando deveria ter postura mais propositiva, mais atraente, encontrar caminhos para minimizar os impactos macroeconômicos”, diz. “Sem contar a questão hídrica, agravada pela falta de planejamento para lidar com a queda no padrão de chuvas. Com a seca dos reservatórios e crise no abastecimento, muitas indústrias começam a deixar o Estado.” Pouco comentada, outra crise que se abate sobre o estado é a de energia elétrica. Desde 1997, quando a Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) e a Com-

panhia Energética de São Paulo (Cesp) foram privatizadas, já no governo tucano, não foram feitos investimentos para a ampliação da produção. De acordo com a Federação dos Urbanitários do Estado de São Paulo, o governo, que já não tinha investido, vendeu tudo e não cobrou das concessionárias o cumprimento dos editais. Localizadas no rio Paraná, entre os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, as usinas de Jupiá e Ilha Solteira compõem um complexo hidrelétrico construído entre 1965 e 1978, em plena ditadura. Foram privatizadas a partir de 1997 – e não receberam mais investimentos. Além disso, não investiu em fontes alternativas, como energia eólica, com grande potencial em regiões como Botucatu e São José dos Campos, entre outros, em termelétricas e em tecnologias para extração de energia do bagaço de cana, por exemplo. Com isso, o jeito tem sido comprar energia de outros estados. Segundo o próprio Balanço Energético do Estado de São Paulo 2014, da Secretaria Estadual de Energia, entre 2004 e 2013, a produção paulista de energia subiu de 76.865 GWH (gigawatts) para 80.091 GWH – um aumento de 4,19%. No mesmo período, a importação, também em GWH, passou de 48.208 para 90.885 – 88,52% a mais – para atender a um consumo que partiu de 111.982 para 153.147, correspondente a 36,76% de aumento. O economista Claudio Dedecca, do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Cesit-Unicamp), entende que é cedo para dizer se o estado de São Paulo anda para trás. Mas destaca que os sucessivos governos paulistas que vieram depois da redemocratização no país, em 1985, caracterizam-se pela falta de projeto e de planejamento. “O estado abandonou também a produção de conhecimento. As universidades e os centros de pesquisa padecem de grave crise financeira e de investimentos, que caem a cada ano”, afirma. Embora evitem em falar em freio, os economistas são unânimes. Se a velocidade da locomotiva continuar diminuindo, o trem da economia brasileira dificilmente vai avançar. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Sem medo de ser grande Ex-chanceler Celso Amorim lembra, em livro, momentos marcantes da diplomacia brasileira e da projeção do país no cenário internacional Por Vitor Nuzzi

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ENTREVISTA

WILSON DIAS/AGENCIA BRASIL

A

ntes de entrar na diplomacia, em 1963, com 21 anos, o jovem Celso Luiz Nunes Amorim ensaiou uma carreira cinematográfica. Apaixonado pelo tema, chegou a ser diretor do Grupo de Estudos Cinematográficos, o GEC, da União Nacional dos Estudantes. Trabalhou com Leon Hirszman em Pedreira de São Diogo (1962), um dos episódios do Cinco vezes Favela, e com Ruy Guerra, no clássico Os Cafajestes (1962). “Naquela época, final da década de 50 e início da década de 60, o Brasil era parte, digamos, de um movimento geral de renovação e de maior consciência em relação aos problemas do país. E isso me atraiu muito, como veículo”, lembra, citando uma passagem que, involuntariamente, juntou seus dois principais interesses. “Se você notar a cena final de Os Cafajestes – não fui eu que bolei isso –, o personagem do Jece Valadão está se afastando do carro enguiçado – como a vida dele toda está enguiçada, o livro é mais pra existencialista do que político propriamente, embora o Ruy também tivesse muita consciência política – e no fundo tem o noticiário, que fica sempre alto, apesar de ele estar se afastando do carro... Muita gente achava que devia ir baixando, não, o noticiário fica alto para contrastar com a realidade. E a principal notícia é o San Tiago Dantas em 1962 na conferência de Punta Del Este. É uma coincidência, mas interessante.” O ex-chanceler San Tiago Dantas já atraía o interesse do futuro diplomata, que se interessava por política externa. Por caminhos diversos, Celso Amorim deixou a vida levá-lo, como cantou Zeca Pagodinho, e tornou-se chanceler em mais de um governo. Acaba de lançar o livro Teerã, Ramalá e Doha: memórias da política externa ativa e altiva (editora Benvirá), em que narra episódios importantes sobre a atuação brasileira no exterior nos anos Lula. Ele evita fazer julgamentos. “Eu posso dizer o que aconteceu. As avaliações históricas não cabe a mim fazer. Faço algumas especulações, mas não seria correto e provavelmente seria muito enviesado.” Mas reafirma algumas convicções, como a defesa de maior aproximação com países “similares”, na América Latina e África, sem necessariamente ser pró ou anti Estados Unidos. Amorim também faz ressalvas à mídia, com suas críticas à política externa. “Eu acho que não é só ideológico, é uma questão de ver o Brasil menor.” O senhor entrou na diplomacia no período da Guerra Fria. Um ano depois, veio o golpe. Como isso influenciou a sua formação?

Naquela época foi um baque muito forte, também psicológico. Eu não tinha uma militância partidária

propriamente, embora tivesse simpatias, relações na área artística, com outras pessoas também mais ligadas ao Centro Popular de Cultura. Inicialmente, eu não sabia nem como me orientar. Achava que ia ser muito ruim ser diplomata de um governo... Mas você vai se adaptando, tem família, filhos... Mas todo o meu planejamento inicial de vida, se é que posso falar assim, era no sentido de estudar, ter um curso de pós-graduação no exterior, e com isso poder sair do Itamaraty. Mas a vida pode mais do que a gente, né? Por circunstâncias burocráticas muito complexas de explicar, acabei ficando um ano menos do que esperava poder ficar em Londres. Fui para Washington, trabalhei na missão brasileira da OEA (Organização dos Estados Americanos), depois minha vida tomou outro rumo, totalmente diferente. Continuei a vida acadêmica, fui um dos cofundadores do departamento de relações internacionais da UnB (Universidade de Brasília) Fiquei sempre com essa dualidade, trialidade, interesse acadêmico, artístico, e a carreira. Anos depois (em 1979), o senhor foi para a Embrafilme.

Foi um momento muito importante da minha vida, muito difícil, um grande treino para funções que eu viria a ter no futuro. Muito envolvido no momento político que o Brasil vivia. Confiei na abertura, apostei na abertura, paguei um precinho, mas valeu a pena. Porque eu financiei o Pra Frente Brasil (1982), que foi considerado provocativo, digamos, apesar da abertura. E eu tive de sair da Embrafilme. Por causa do filme?

Sem a menor dúvida. Naquela época, o Golbery (do Couto e Silva, general e político brasileiro) falava das sístoles e diástoles. Vários filmes que íamos produzindo as pessoas achavam que iam dar problema. Por exemplo, o filme do Leon Hirszman, Eles não usam Black-Tie, mas que ele chegou a querer dar o nome de Segunda-feira, greve geral, foi bem na época das greves do Lula, justamente... Acho que o episódio do Riocentro, o Golbery chamaria de uma sístole no governo. Houve um refluxo autoritário. Tanto que o próprio Golbery saiu nessa época. Fui instado a sair, sob pressão, ou teria sido demitido e aí não poderia nem voltar à carreira diplomática. Depois, com outros percalços, acabei voltando para o Itamaraty. O senhor fala no livro que o Brasil tem uma “relação especial” com os Estados Unidos. Essa relação teve muitas idas e voltas. Um período de um alinhamento quase automático à política norte-americana, depois uma fase de “demonização”. E hoje? REVISTA DO BRASIL

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Complexa, porque são os maiores países do continente americano. Obviamente, os Estados Unidos, não porque são maus, não têm como Estado interesse de que tenha alguém nem para desafiar, mas que possa contrabalançar a hegemonia que eles tinham. O Brasil sempre era o país potencialmente que podia ter esse papel. Mesmo durante o governo militar, o Brasil manteve uma política bem independente. Foi o primeiro a reconhecer Angola, antes de Cuba, que era um governo acusado de ser comunista. Tivemos uma política de abertura em relação à Palestina, pela primeira vez. O governo Geisel também reconheceu a República Popular da China. Claro que era tendência mundial, mas ele foi rápido. Mesmo assim, não esteve isento de conflitos. Os Estados Unidos, principalmente, depois que o Carter foi eleito, se opôs muito ao programa nuclear e também teve uma política muita ativa na área de direitos humanos, incomodou os que governavam na época. Sempre foi uma certa oscilação. Acho que não há razão nenhuma pra gente pensar que o Brasil tem de ser pró-americano, antiamericano, tem de defender o seu interesse, o seu povo, e na medida do possível, e eu acho que é, ser solidário com outros países similares, a começar da nossa região, da América do Sul, da América Latina, africanos. Há muita gente nos Estados Unidos hoje, em posições de destaque, que reconhece que o Brasil tem de ter um tratamento diferenciado mesmo, que não pode ser visto só no conjunto da América Latina. Houve um relatório interessante em 2011, do Council on Foreign Relations dos Estados Unidos (recomendando uma revisão da política norte-americana em relação ao Brasil), até me motivou a escrever um artigo para a CartaCapital, sobre o complexo de vira-latas, como os de fora nos veem com mais importância. Eles querem que o Brasil tenha uma projeção internacional, porque isso ajuda a manejar alguns problemas. Eles sabem, hoje em dia, que não podem impor sozinhos a liderança deles, têm de trabalhar com alguma pluralidade. Por outro lado, não querem que a hegemonia seja desafiada. Enfim, é ambivalente. Na parte comercial, por exemplo, os embates iniciais na OMC (Organização Mundial do Comércio), na Alca, foram muito fortes. Mas isso não impediu que passado algum tempo, o representante comercial Bob Zoellick (ex-vice-secretário de Estado e ex-presidente do Banco Mundial), que disse que o Brasil devia negociar com a Antártida, me ligasse: ‘Estou querendo montar um grupo pequeno de países que possam ter influência, e o Brasil é fundamental’. E nós conseguimos fazer negociações da Rodada (Doha, sobre comércio mundial) andarem, até que em 2008 houve outros problemas. O senhor faz algumas críticas em relação ao presidente Obama e fala de uma relação franca, até, entre os presidentes Bush e Lula...

O Bush era muito direto, e o Lula também é muito direto. Não têm subterfúgios. No primeiro encontro que eu presenciei, em junho de 2003, já como presidente, a primeira coisa que o Bush disse foi: ‘Nós divergimos em vários pontos, mas vamos trabalhar naquilo que a gente concorda e pode fazer juntos’. Foi uma coisa muito pragmática, foi criado um grupo de energia, 22

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Temos uma parceria estratégica com a China, mas acho que temos de problematizar a nossa relação com o Mercosul(...) O Brasil tem de defender o seu interesse, o seu povo, e ser solidário com outros países similares, a começar da nossa região sobre desenvolvimento econômico, coisas muito práticas que resultaram numa melhora da relação. Em termos políticos delicados, como o grupo de amigos da Venezuela, claro que tinha oscilações. Nós tivemos uma cooperação e eles, de certa maneira, confiaram muito na maneira de o Brasil agir, que na época resultou no referendo, o Chávez ganhou... Enfim, equilibrou a relação de alguma forma. Eu tive um excelente diálogo com a Condoleezza Rice (secretária de Estado do governo norte-americano na gestão de George W. Bush), a ponto de termos sido um dos três únicos países em desenvolvimento, não islâmico, a ser convidado para aquela grande conferência de Anápolis (em 2007, sobre a relação dos Estados Unidos com o Oriente Médio). A própria relação com a OMC. O Brasil se tornou um ator tão importante, não pelo peso, que oscilou em torno de 1% do comércio internacional. Mas o peso do Brasil era de não só determinação da diplomacia, não só meu, dos diplomatas em geral, tanto que um deles (Roberto Azevêdo) agora é diretor-geral da OMC, mas também a capacidade de articulação com outros países. O Brasil liderou o movimento do G20 com participação de outros, liderou o movimento que juntou o G20 com o G90, e isso foi responsável pelo resultado –, que ainda não se con-


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cretizou, porque a Rodada tem que acabar –, mas o passo realmente fundamental, que foi a decisão de eliminar os subsídios de exportação com data certa, graças a essa união. Uma vez veio aqui uma missão de parlamentares japoneses, o Roberto Azevêdo que me contou. Um deles disse, ‘Eu quero entender uma coisa: in world trade, Japan big, Brazil small, in WTO, Brazil big, Japan small (no comércio internacional, Japão grande, Brasil pequeno. Na OMC, Brasil grande, Japão pequeno).’ Como pode? (risos) É a força da diplomacia, se você não ficar com medo de defender suas posições. Houve um diálogo mais duro com a Hillary (Clinton, ex-secretária de Estado norte-americana), que de certa parecia torcer pelo fracasso (das negociações com o Irã)...

Não posso julgar a Hillary Clinton, essas coisas oscilam. Há pouco tempo agora, já nessa negociação do Obama, do Irã, até pouco tempo antes do livro ter sido terminado, a Hillary não tinha se manifestado a favor do acordo com o Irã, já fora do governo. Mostra que não tinha grande entusiasmo. Depois apoiou, não sei com que entusiasmo. A verdade é que senti uma diferença de tom. O Obama foi quem se aproximou do Lula e, resumidamente, disse lá, ‘eu preciso de amigos que possam falar com países que eu não posso, estendi a mão e não fui correspondido’. A Hillary sempre teve uma posição mais reticente... É uma questão de como você coloca ênfase. A história da xícara meio cheia e meio vazia. A Hillary via sempre meio vazia, digamos assim. Claro que o Irã não facilitou, sempre querendo flexibilizar um pouco mais, um pouco mais. Isso serviria como pretexto ou de motivo para pessoas como a Hillary Clinton, não estou questionando os motivos dela, achassem que eles queriam nos enganar. Já o Obama, mesmo depois de essas dificuldades todas, nos mandou uma carta reiterando quais eram os objetivos, que se fossem alcançados aquilo contribuiria para ganhar confiança para alcançar outras negociações. Fomos lá, conseguimos exatamente o que está na carta do presidente Obama, e aí, antes que fosse possível pensar um pouco mais, a Hillary, não com essas palavras que estou dizendo, ‘não li e não gostei’. Poucas horas depois, ela falou não. Não lembro que palavra usou, revelando uma certa contrariedade, e disse: ‘Nós vamos continuar defendendo as sanções’. E com isso, se perderam três, quatro anos. Não é que o acordo seja igual àquele. É mais amplo, é diferente. Só que o ponto de partida é muito pior do que seria quatro ou cinco anos atrás. O Irã tinha 2 mil quilos de urânio levemente enriquecido, mais ou menos. E hoje tem 7, 8 mil. Se é verdade que aquilo daria pa-

ra fazer bomba, e eu não acho, hoje daria para fazer quatro. Está negociando numa posição menos favorável. E também teria poupado a população iraniana de sanções, de efeitos econômicos desfavoráveis. Tem gente que acha até que cada vez que entram as sanções, em vez de solucionar, reafirma o desejo do Irã de ter um programa nuclear. O maior desencontro nesse período com os Estados Unidos foi a deposição do presidente de Honduras (Manuel Zelaya, em 2009)?

Acho que em várias questões tivemos diferenças. A própria Declaração de Teerã não deixa de ser. Um pouco depois da declaração e de eles terem adotado sanções e nós votado contra, não foi um gesto pequeno, o Brasil, pela primeira vez, votou contra uma resolução que foi aprovada... Porque tinha de fazer isso, senão desacreditava o próprio trabalho que havíamos feito. Nós e a Turquia votamos contra. Achamos que obviamente o que aconteceu lá (Honduras) foi ilegítimo, ilegal, e não podíamos tolerar uma situação decorrente de uma deposição de um presidente que saiu com uma carabina encostada na testa. Mas, mesmo com isso, nunca paramos o diálogo. Eu não acho... Não posso dizer, os Estados Unidos são um país muito complexo, muita gente atuando em linhas diferentes. Mas digamos, como política do Departamento de Estado, não creio que foi naquele momento derrubar o Zelaya. Mas uma vez que caiu, eles tiveram uma posição muito menos condenatória do que se fosse o contrário, se tivesse caído um líder mais à direita e um golpe mais à esquerda. Seriam os primeiros a condenar. Quatro dias antes da votação do Conselho de Segurança sobre sanções ao Irã, o senhor escreveu que “a arrogância dos P5 (grupo formado por China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia), inclusive China e Rússia, que negociaram isenções de seu interesse exclusivo, terá prevalecido sobre os esforços pacifistas de dois outsiders (referência a Brasil e Turquia)”. Como é a relação com esses parceiros de Brics?

Gasto boa parte dessa narrativa sobre a Declaração de Teerã para tentar explicar, compreender, o comportamento da Rússia e da China. Há interesses nacionais que pesam muito. Primeiro, uma grande preocupação com qualquer coisa que diga respeito a outros países se tornarem nucleares, mesmo que não esteja provado que eles querem ter arma nuclear. Segundo, interesses estratégicos. Terceiro, que houve na época também interesses econômicos. Na realidade, de alguma forma, a Rússia e a China, sobretudo a Rússia, se beneficiaram das sanções. Havia sanções unilaterais

Que é um complexo de vira-lata, sim (sobre a mídia). Mas o complexo de vira-lata serve a algum interesse ou é uma mera fixação?

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dos Estados Unidos, e eles isentaram empresas russas de algumas dessas sanções, e isso possibilitava a eles assumir um mercado que podia ter sido de outros países. Então, pesou também esse interesse econômico. Para a China, era importante continuar recebendo o petróleo iraniano, e as sanções unilaterais, que eram as mais pesadas, abriram essa porta. Do ponto de vista lógico, em termos da não intervenção, de direitos internacionais, não seria razoável que a China e a Rússia tivessem apoiado as sanções. Era, aliás, a expectativa que tínhamos, de apostar nisso. Erramos a aposta naquele momento. Mas eu costumo dizer o seguinte, tem aquela frase: na história, o erro é o momento da verdade. O fracasso ali, se é que se pode chamar de fracasso, rendeu frutos mais tarde. Porque mostrou que, sim, era possível negociar. Ao contrário do que diziam algumas pessoas, como a secretária de Estado. Mostramos que com paciência, com confiança, não sendo impositivamente, era possível persuadi-los a ver que o melhor caminho era de uma negociação. Principalmente depois da Guerra Fria, outros países se tornaram agentes importantes. O senhor acha que os países desenvolvidos, os impérios, ainda resistem a aceitar esses novos parceiros?

Bom, isso é justamente o sentido da frase que você leu. Mas eu não digo “foi”, mas “terá sido”, entra alguma noção hipotética nisso... Acho que há uma certa resistência. Varia de país para país, também não diria que todos ajam da mesma maneira, nem que não haja flutuações em relação ao tema... Acho que num caso como esse dois países-membros não permanentes (do Conselho) vão a Teerã e conseguem um acordo que os P5, junto com a Alemanha, não conseguiram, é um pouco desafio à ordem estabelecida Não sei, é uma questão quase psicológica. Acho que os outros fatores são mais importantes. Mas levanto isso como uma hipótese também. Ainda há muito imperialismo nas relações internacionais? É um clube ainda muito fechado?

Essas palavras muito carregadas eu prefiro evitar, mas evidentemente há uma luta permanente por uma hegemonia, às vezes com matizes diferentes. Óbvio que, depois da Guerra Fria, parecia que os Estados Unidos iam ter uma hegemonia absoluta, hoje sabem que não pode ser assim. Pode ser o sócio maior do clube, mas têm de compartilhar as decisões. Às vezes compreendem, às vezes parece que não compreendem. Mas como é que vai se comportar a China daqui a 20, 30 anos? Temos uma parceria estratégica, mas acho que na nossa relação com a China temos de problematizar a nossa relação com o Mercosul. É uma relação estratégica, mas a China quer entrar aqui e tomar todos os nossos mercados? O que é que vale? Em certos momentos é a solidariedade de países em desenvolvimento, como na questão do clima? E na hora do comércio e outras coisas é o salve-se quem puder? É uma relação complexa a ser resolvida. Como houve no passado com outros. Mas, para o Brasil, interessa um mundo mais multipolar, é uma tese subjacente de todas as narrativas. Mais do que as narrativas, das ações que são narradas. 24

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Óbvio que, depois da Guerra Fria, parecia que os Estados Unidos iam ter uma hegemonia absoluta, hoje sabem que não pode ser assim. Pode ser o sócio maior do clube, mas não o único, e tem de compartilhar as decisões

O senhor faz comentários sobre a mídia. Acha que a mídia tem conhecimento sobre o tema, faz críticas justas?

É muito difícil generalizar... Mas a mídia é um personagem importante. O que mais chama a atenção é a diferença de avaliação da mídia brasileira, por exemplo, da mídia internacional... Ações que eram valorizadas (fora), aqui eram colocadas em segundo plano e até criticadas. A facilidade com que eram compradas teses... Isso aconteceu em relação a Teerã, ao Oriente Médio. As teses que eram às vezes colocadas por alguns setores dos países mais ricos, que, às vezes não eram nem aceitas pela mídia daqueles países, aqui viravam verdade absoluta. Desde a oferta agrícola da União Europeia, como na questão do Irã, do nosso relacionamento com países árabes. Você vê o seguinte, para pegar uma coisa atual: porto de Mariel. Estavam falando mal sem parar. Os Estados Unidos foram lá e começaram a ter uma relação com Cuba, esse assunto sumiu. A própria Declaração de Teerã. Uma revista brasileira publicou uma foto minha, não com ele, mas do lado do Ahmadinejad (Mahmoud Ahmadinejad, ex-presidente do Irã), como se fôssemos grandes inimigos de Israel, o que é um absurdo. Fui cinco vezes a Israel, sempre com o melhor diálogo possível. Claro que divergi de muita coisa, mas


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nunca rompendo o diálogo, a ponto de o ministro agora reeleito, o Netanyahu, ter pedido ao presidente Lula para intermediar uma tentativa de conversa com a Síria sobre as colinas de Golan. Havia uma relação de confiança. Voltando ao Ahmadinejad, nunca tivemos afinidade especial com o Irã, fizemos isso para resolver um problema que ameaça a paz e a segurança internacionais. Acho que essa falta de percepção, aí você pode especular. Não quero entrar nos detalhes, estudei um pouco sociologia de política, mas não é minha função, se é por causa de interesses, se é por falta de informação, se é uma mistura das duas coisas às vezes, se é uma precipitação de dar a notícia de uma maneira mais sensacional... Veja bem: essa questão com a mídia existe no mundo inteiro. Mas chama a atenção. Para mim, já foi dito por um embaixador estrangeiro: ‘Nunca vi uma mídia tão hostil ao governo como é no Brasil’. A qualquer governo. Um pouco ideológico...

Pode ter... Meus amigos do PT às vezes não concordavam muito comigo quando eu dizia isso. Mas eu acho que não é só ideológico, é uma questão de ver o Brasil menor. Que é um complexo de vira-lata, sim. Mas o complexo de vira-lata serve a algum interesse ou é uma mera fixação? No governo Fernando Henrique, em um dos momentos eu era embaixador em Genebra quando houve disputa com o Canadá em torno da Bombardier e a Embraer. Houve o episódio da vaca louca. Claro que (o Canadá) não relacionou uma coisa com outra, mas quando levou pancada num dos aspectos da questão entre a Embraer e Bombardier, resolveu acusar o Brasil de ter vaca louca. Sabia que não tinha nenhuma razão aquilo. Pedi para convocarem uma reunião do comitê fitossanitário. Falei criticando, algumas delegações nos apoiavam... Manchete de um grande jornal brasileiro no dia seguinte: ‘Brasil criticado na OMC’. Uma reunião que nós convocamos, que nós criticamos, fomos apoiados por quatro ou cinco países, e o único país que falou mal do Brasil foi o país que era criticado... Isso foi no governo Fernando Henrique. Acho que no governo Lula isso piorou, esse antagonismo, esse viés ideológico também pesou. Mas acho que há uma preocupação de evitar que o Brasil se sobressaia, passe dos seus limites... Esses gestos todos foram apreciados. E aqui, não, a visão foi totalmente contrária. Não houve, no pós-Lula, certa desmobilização da política externa para a África e América Latina?

Não creio que tenha havido desmobilização como política. Houve diminuição de intensidade por motivos diversos. Isso é perfeitamente recuperável. O

ministro Mauro Vieira já anunciou que realizará nas próximas semanas visita a cinco países africanos. É um recomeço. Mas é claro que, em algum momento, será necessário reativar os contatos em nível de chefe de governo. E a OEA, perdeu relevância? É melhor apostar em organismos como Mercosul, Unasul, Celac?

Não diria que a OEA se tornou irrelevante. Orgãos sobre direitos humanos e condição da mulher, por exemplo, são ainda valiosos. A OEA também é o grande foro, em que os países da América Latina e Caribe dialogam com os dois países desenvolvidos nas Américas. Mas é importante que nesse diálogo os países da ALC apresentem frente unida, para que o diálogo seja frutífero. Evidentemente, essa unidade não ocorre de forma idêntica em todos os níveis (Mercosul, Unasul e Celac). Mas quanto mais for possível obter posições comuns, mais efetivo será o diálogo. Mas o papel político da OEA tende a se reduzir frente a essas outras entidades, cujo processo de institucionalização ainda deve desenvolver-se. É muito importante, por exemplo, que o CDS (Conselho de Defesa da União de Nações Sul-Americanas) assuma progressivamente o papel que tem sido exercido pela JID (Junta Interamericana de Defesa) e que a Escola Sul-Americana de Defesa sirva de contraponto ao Colégio Interamericano. Em determinado momento, o senhor comenta um momento difícil nas relações com a Argentina, e, curiosamente, fala que a situação poderia estar melhor se o papa fosse argentino...

Sabe que eu mesmo, relendo essa nota, fiquei surpreso? É verdade que havia morrido o papa e falavam vários nomes, antes de ser escolhido o cardeal Ratzinger. Puxa vida, é difícil a gente agradar, estamos fazendo o possível para não criar um problema para a Argentina, mas sempre encontrando muita dificuldade. Aí fiz essa especulação. Tinha o problema do Conselho de Segurança. A gente sabia que era um fato que erradamente, na minha opinião, mas compreensivelmente se você for olhar a história, de certa forma poderia, digamos, de alguma forma afetar a autoestima não digo dos argentinos em geral, mas acho que sobretudo na chancelaria, que guardava valores muito de antes, era visto como uma diminuição da Argentina... E tinha também umas diferenças na OMC. O que a gente pode fazer para ver se agrada? ... Depois eles vieram apoiar com muita força, o (Néstor) Kirchner foi o primeiro secretário da Unasul. Então, essas coisas não são permanentes. Era uma coisa muito momentânea, muito conjuntural. O que se pode fazer mais? Só se o próximo papa fosse argentino! (risos) Só que nunca podia imaginar que tinha acertado o alvo.

Achamos que obviamente o que aconteceu lá (Honduras) foi ilegítimo, ilegal, e não podíamos tolerar uma situação decorrente de uma deposição de um presidente que saiu com uma carabina encostada na testa. Mas, mesmo com isso, nunca paramos o diálogo

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Tem de saber jogar em qualquer gramado Ministro Ricardo Berzoini acredita que caminho para atravessar período difícil do país é chamar todos os partidos e elaborar uma agenda mínima. Inclusive para a comunicação Por Eduardo Maretti e Paulo Donizetti de Souza

“O

timista, mas não ingênuo”, como diz, o ministro das Comunicações, Ricardo Berzoini, observa que os desafios são maiores diante de uma base aliada heterogênea. “É preciso ter capacidade de identificar quais os pontos de convergência para uma agenda para 2015, um ano difícil, porque temos restrições orçamentárias”, afirma. Esta agenda, construída com todos os partidos, está longe de ser o único desafio. Para o ministro, é preciso enfrentar questões delicadas, como a CPI da Petrobras e a Operação Lava Jato, com transparência. Diante de um momento turbulento, Berzoini observa que é hora de reposicionar o governo. “Não dá para jogar bem só em gramado bom”, diz, recorrendo à metáfora esportiva. A regra vale para o tão esperado debate sobre o marco regulatório da mídia, um tema “artificialmente sectarizado”, na visão do ministro. “Tem muitas visões diferentes. Precisamos pensar qual a forma de termos um diálogo construtivo com todos que defendem posições diferenciadas sobre esse tema, para construir um projeto que seja viável de ser aprovado.” Quanto à relação do Executivo com o Legislativo, esse ambiente conflituoso, que beira a hostilidade, o senhor é otimista no sentido de recompor uma base de sustentação para discutir o Brasil daqui para a frente?

Sou otimista, mas não sou ingênuo. Qual é a característica da base do governo? É muito heterogênea. Essa base de 2015 é mais pulverizada e diferenciada do que a de 2014, ou de 2011. Tem que se fazer um esforço redobrado, tem mais partidos na Câmara, tem mais pulverização. A maior bancada, que é a do PT, é menor que a anterior. A segunda maior bancada, do PMDB, também é menor. No Senado, não houve muita mudança, mas na Câmara houve. É preciso ter a capacidade de identificar quais os pontos de convergência que se pode usar para estruturar uma agenda programática para o ano de 2015, que é um ano difícil, porque temos restrições orçamentárias. Este é um ano em que tem que se discutir ajuste, votações de medidas que são muitas 26

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vezes encaradas como restrição a questões previdenciárias, como o seguro-desemprego. Nós temos que saber trabalhar nesse cenário. Não dá para jogar bem só em gramado bom. Tem que saber jogar bem em qualquer gramado. O desafio é esse, reposicionar o governo. Recompor significa chamar todos os partidos, para construir uma agenda mínima para atravessar esse período. Enfrentar a questão da CPI da Petrobras e da Operação Lava Jato com um comportamento muito visível, para a população e para o mundo político, de que não há nem interesse em jogar a responsabilidade para ninguém, nem interesse em fazer nada por debaixo do tapete. Queremos tudo passado a limpo. É possível, com o PMDB e com os demais partidos da base. É possível. Mas o PT precisa compreender, falo me incluindo nisso, que nessa coalizão não se pode pensar que, quando se tem uma proposta, por ser da base, tem que apoiar. Não é assim. Nós temos que dialogar, consultar e construir. O PT foi um dos principais alvos do embate midiático que vem desde o mensalão, que carimbou no partido a pecha de corrupto. Por outro lado, vive um distanciamento da sua base social. O que é necessário para que o PT recupere a liderança e o protagonismo político?

A resposta para essa pergunta passa por Ortega y Gasset e Caetano Veloso: “Eu sou eu e minhas circunstâncias” e “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Não se lida, na política, com o abstrato. A política é o mundo da realidade. Quando se está em um sindicato que tem cinco movimentos políticos na diretoria, se trabalha naquele cenário, às vezes, com contradições de concepção política. Quando se está em um partido que tem muitos grupos internos, muitas correntes políticas de opinião, ou até grupos de interesse, você também faz política, da mesma maneira. É a mesma coisa na política nacional. Nós temos um papel para o partido, que é de direção partidária para organizar ações e políticas, de acordo com a ideologia. Nós temos pessoas do partido nos movimentos sociais que têm identidade com a representação social e que têm que exercer a sua política, de acordo com a sua representatividade social. Temos gente, no


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O PT precisa compreender, falo me incluindo nisso, que nessa coalizão não há nenhum partido que seja hegemônico amplamente

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Parlamento e no governo, que é para fazer a convivência política com partidos de orientação político-ideológica diferentes do PT, que estão unidos, no governo, por um programa que propõe desenvolvimento para o país, atendimento de reivindicações salariais e de emprego para os trabalhadores, a melhoria das condições educacionais e de saúde do país. Ou seja, nós temos que saber que o PT não precisa ficar limitado – como partido e como movimento social – pelas contradições e condições de governo. Ele pode se expressar. Eu dizia isso quando era ministro da Previdência e a CUT cobrava posições, em relação à reforma da Previdência. Dizia que a CUT não tem obrigação de concordar comigo, porque estou exercendo um papel de governo. Assim como em temas de hoje, por exemplo, a necessidade de promover um ajuste fiscal, que é necessário para o país, não posso cobrar da CUT que apoie. Mas o partido precisa ter consciência de que faz parte de uma coalizão de governo, e a nossa atuação tem que ser de grande responsabilidade. Há uma sensação de que uma parte importante de pessoas do PT alcança espaços, seja no governo ou no partido, aparentemente, como sendo um fim em si mesmo.

Isso tem que ser absolutamente afastado. É obvio que esse risco existe, Gramsci já falava sobre isso, no começo do século passado. Temos que ter, sempre, a coragem de lembrar que estamos no governo não por um fim em si mesmo, não o poder pelo poder, ou o espaço administrativo pelo espaço administrativo, mas para promover políticas que beneficiem aqueles que têm identidade conosco, para promover mudanças alinhadas com a nossa visão ideológica de sociedade. Objetivamente, nós lidamos dentro de espaços determinados. O espaço que a população brasileira conferiu, através do voto popular, de representação no Congresso Nacional, foi esse. Uma composição extremamente pulverizada e diferenciada. O povo não deu 300 deputados para o PT. Deu 70. A decisão da população é essa, de um governo que tem a base partidária fragmentada e com posições políticas diferenciadas. Em meio a esse embate polarizado – corrupção de um lado, economia meio paralisada de outro – como o Ministério das Comunicações pode contribuir para construir esse novo ciclo que o Brasil pretende entrar?

Nós temos uma missão, que foi estabelecida durante a campanha eleitoral, que é viabilizar o acesso à internet, com qualidade e preços acessíveis, para a maior parcela possível da população brasileira. Significa implantar fibra ótica no Brasil, ter a maior rede possível interligando as grandes cidades do país, avançando para as cidades médias e, se possível, para as pequenas e, simultaneamente, para as regiões de difícil acesso, o lançamento de um satélite, no ano que vem, que já está em construção, e deverá permitir o acesso por satélite para regiões de difícil acesso para a fibra ótica. Temos o desafio de implantar fibra ótica subaquática em vários rios da Amazônia e também de assegurar que o acesso à internet que mais cresceu, no Brasil, no último período, que é o acesso por telefonia celular, seja de qualidade 28

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Precisamos pensar em qual é o interesse público e qual a forma de termos um diálogo construtivo com todos que defendem posições diferenciadas sobre a regulação da mídia, para construir um projeto que seja viável de ser aprovado e com custo acessível. Capitaneado pela Telebras, em parceria, evidentemente, com o setor privado. Estamos desenhando algumas engenharias de financiamento que passam por parcerias público-privadas. Simultaneamente a isso, temos um grande diálogo com as operadoras para ampliar a cobertura do 3G e do 4G. Para se ter uma ideia, o acesso à internet por 3G e 4G cresceu quase 700% no governo Dilma. Cresceu mais nas regiões Nordeste e Norte. Há uma avaliação mundial de que o futuro da internet é móvel. A internet fixa vai ter um papel importante, ainda, especialmente para o transporte de dados. Mas o acesso tende a ser, cada vez mais, via smartphones, tabletes e notebooks, com mobilidade. Estamos desenhando estratégias para que isso seja viável, do ponto de vista de termos operadoras fortes, com capacidade de responder a esse desafio, que é o investimento em infraestrutura, investimentos de muitos bilhões de reais, para manter essa infraestrutura atualizada e ampliar a cobertura, e, simultaneamente, ter preços que o povo possa pagar. Por outro lado, temos uma política muito específica para a TV digital. O cronograma para o desligamento do sinal analógico é até 2018. Nós temos que garantir que todas as pessoas, ou a imensa maioria, tenham acesso ao sinal.


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E o marco regulatório da mídia...

O governo entende que a melhor maneira de contribuir para fomentar esse debate é não apresentar uma proposta agora. Não sair com uma formulação do governo. Tem muitas visões diferentes, na sociedade. É um tema que é artificialmente sectarizado, artificialmente antagonizado, quando precisamos pensar em qual é o interesse público, qual o interesse nacional e qual a forma de termos um diálogo construtivo com todos que defendem posições diferenciadas sobre esse tema, para construir um projeto que seja viável de ser aprovado. E não construir um projeto, simplesmente, para a veleidade de um ministro, ou de alguns, para apresentar ao Congresso sem que haja viabilidade para a tramitação. O ministério vai fomentar esse debate, organizar alguns espaços e estimular que entidades da sociedade civil, movimentos sociais, entidades empresariais e entidades do setor também organizem os seus debates, para que a gente possa, em um prazo razoável, que não quero fixar, ter um afunilamento das contradições e divergências, para poder buscar um entendimento sobre essa matéria. Existe um plano para a banda larga que dependa menos das operadoras e mais da capacidade do Estado em impulsionar essa universalização?

O desenho que estamos estabelecendo é justamente esse. Não estamos buscando estabelecer algo para que haja dependência exclusiva das operadoras. Vai ter uma ação de governo e as operadoras serão chamadas a participar. Mas, independentemente da participação das operadoras, temos que ter a capacidade de enfrentar esse desafio, que é um desafio de Estado. Nem de governo; é um desafio de Estado. O Brasil tem, ainda hoje, problemas de abastecimento de água, e reduzimos muito os problemas de abastecimento de energia elétrica através do Luz para Todos, mas ainda têm bolsões que são mal assistidos. E são insumos que são pagos. A banda larga vai se tornar tão essencial para a vida quanto a água e a energia elétrica. Ela é uma política para ser adquirida. Pode-se criar políticas específicas para garantir o acesso gratuito, em situações específicas, mas, no geral, será adquirida. Mas é preciso garantir que haja um preço razoável, com custo razoável. A questão da infraestrutura é a fase inicial. Precisamos ter infraestrutura para fazer com que a fibra ótica chegue. E 1 mega não queremos considerar mais como banda larga. O acesso a essa era digital da informação pode até antecipar, em parte, a democratização do acesso à informação.

E reduz, violentamente, o custo das famílias. A família não precisa se deslocar para ter acesso a serviços públicos, para marcar uma consulta, ter acesso a uma biblioteca física, acesso à agência bancária, aos serviços de saúde. As pessoas economizam tempo e dinheiro e têm mais conforto. Essa é uma política pública fundamental. O governo está se preparando, inclusive, para colocar toda a sua relação com o público em base digital para, a exemplo do Imposto de Renda – um caso de sucesso mundial –, ou da urna eletrônica – outro caso de sucesso mundial –, podermos ter o governo como um todo como um caso de sucesso mundial, com um governo digital. É óbvio que isso tem um custo elevado, e a maneira de financiar exige a busca de parceria público-privada. Sobre o marco regulatório, a primeira Conferência Nacional de Comunicação, em 2009, que ouviu vários setores da sociedade, não seria uma referência para um início de debate? Não seria o caso de uma segunda?

Melhor do que uma segunda Confecom, que é um evento precedido de vários outros, é dizer o seguinte: está lançado o debate. Vamos debater com todos que quiserem debater. Vamos ouvir quem quiser ser ouvido, quem quiser falar. E vamos falar para quem quiser nos ouvir. Fomentar esse debate e tirar o bicho-papão. Não tem bicho-papão. Os Estados Unidos têm uma regulação, com viés americano. O Canadá tem, com viés canadense. A Inglaterra tem, com viés de Sua Majestade, a rainha, e do governo. Aliás, o processo na Inglaterra foi interessante porque todos os grandes partidos abriram mão das suas disputas para construir uma legislação que fosse a expressão da vontade do país, naquele momento, da crise que ocorreu por conta daquele tabloide (News of the World). Essas legislações nacionais refletem as discussões do seu país. Em alguma delas houve o enfrentamento com um sistema oligopolizado tão forte?

Em todas elas, com certeza. A verdade é que o setor quer liberdade total, mas a Constituição já deixa claro, no artigo 220, que a liberdade de expressão é cláusula pétrea, mas combinada com outras cláusulas pétreas da Constituição. Tem que respeitar os direitos humanos, a imagem das pessoas, a intimidade. Essa é uma questão histórica do jornalismo: até onde você é invasivo, até onde se vai além daquilo que se pode fazer, como aquele rapaz que, recentemente, invadiu o condomínio de um parente do Lula para fazer uma reportagem, que, na cabeça dele, achava que seria o furo da vida dele. Ele está cometendo uma ilegalidade.

Está lançado o debate (sobre a regulação da mídia). Vamos debater com todos que quiserem debater. Vamos ouvir quem quiser falar. E vamos falar para quem quiser nos ouvir. Fomentar esse debate e tirar o bicho-papão. Não tem bicho-papão. Os Estados Unidos têm uma regulação. O Canadá tem. A Inglaterra tem

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Dilemas da

CANNABIS Uso de componente para tratamentos reacende debate sobre cultivo domiciliar e combate ao tráfico Maurício Thuswohl 30

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final, a Cannabis sativa é ou não uma boa droga? Ainda aprisionada em uma redoma de argumentos morais, ideológicos e, às vezes, técnicos, a discussão sobre a maconha está novamente povoando corações e mentes desde o início do ano, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu reclassificar um dos componentes da planta – o canabidiol ou

CBD – da categoria das substâncias proibidas para a categoria dos medicamentos de uso controlado. A decisão atendeu a uma antiga reivindicação de pacientes que encontraram na substância algum alívio para problemas como epilepsia, espasmos e mal estar pós-quimioterápico, entre outros, mas eram obrigados a importar o produto de forma legal. Paralelamente, no Rio de Janeiro, uma série de prisões de pessoas que foram fla-


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gradas cultivando pés de maconha em suas residências reacendeu o debate sobre a legalidade do cultivo para consumo próprio e as incongruências das políticas públicas de combate ao tráfico de drogas. Na opinião de muitos consumidores, plantar a erva em casa é uma forma de não alimentar a cadeia econômica do tráfico de drogas armado, mas essa inciativa ainda esbarra na atual Lei de Drogas, que dá brechas para que, uma vez flagrados, os plantadores caseiros sejam autuados como traficantes. O primeiro caso de prisão no Rio aconteceu em 29 de janeiro, com um casal de professores no bairro Humaitá, zona sul da cidade. Temendo a invasão de sua casa por ladrões, eles telefonaram para pedir socorro à Polícia Militar. Os policiais, quando chegaram, não encontraram nenhum ladrão, mas depararam com 50 pés de maconha plantados no jardim. Levado para a delegacia, onde foi autuado por tráfico de drogas, o homem, que é doutor em biofísica e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), alegou em vão que a produção serviria apenas para consumo próprio. Naquele mesmo dia aconteceu o segundo caso de prisão, efetuada pela PM em uma casa no Alto da Boa Vista, trecho próximo à Floresta da Tijuca, no local com o sugestivo nome de Estrada da Paz. Desta vez, após denúncia anônima, foram encontrados 19 pés de maconha no jardim, além de 44 mudas plantadas em vasos dentro de uma estufa montada no armário da casa de um homem de 30 anos, formado em Administração. Embora tenha declarado que plantava para consumo próprio, ele também foi levado à delegacia, autuado por tráfico e encaminhado ao Complexo Penitenciário de Gericinó, na zona oeste.

MARCELO CASAL JR./ABR

“Lei estúpida”

Em 22 de fevereiro, um terceiro caso jogou mais lenha na fogueira. No município fluminense de Miguel Pereira, um músico de 28 anos, denunciado pela própria sogra, foi pego em flagrante com quatro pés de maconha em casa e, assim como os antecessores, foi preso e autuado por tráfico de drogas, apesar de se

declarar apenas usuário. A diferença é que este plantador caseiro resolveu revelar sua identidade. André Teixeira Leite, o MC Cert, é vocalista da banda Cone Crew Diretoria, e aproveitou sua popularidade para levantar a discussão: “Nós repudiamos o tráfico de drogas, a ineficiente política de tratamento aos viciados e principalmente a prisão de usuários. Hoje fomos vítimas dessa lei antiga, estúpida e ineficaz, igual a quase todas as demais existentes no Brasil”, diz a banda, em nota pública. Mesmo que não seja ineficaz, a atual Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) é contraditória no que diz respeito a pessoas que plantam maconha para consumo próprio. Em seu artigo 28, a lei determina que “a quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependências físicas ou psíquicas serão aplicadas medidas como advertência sobre o perigo do uso de drogas, prestação de serviços comunitários e/ou comparecimento a cursos educativos”. Já o artigo 33 da mesma lei, ao tratar de tráfico, diz que “incorre nas penas de reclusão de cinco a 15 anos de prisão quem semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas”. Na prática, com essa dupla leitura da lei, o enquadramento do “criminoso” depende única e exclusivamente do julgamento subjetivo dos policiais que efetuam a apreensão ou prisão.

“Política de avestruz”

Para a socióloga Julita Lemgruber, a sociedade brasileira precisa abrir definitivamente o debate sobre a Lei de Drogas. “Esses usuários estão querendo plantar sua própria maconha e não procurar um fornecedor, não ser peça de uma engrenagem criminosa, afinal a comercialização da maconha está criminalizada. O Brasil insiste numa política de avestruz, de não querer ver a realidade que está à sua frente”, diz. Na avaliação da socióloga, o Brasil está “perdendo o trem da história” no que REVISTA DO BRASIL

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Conceito de crime

Essa subjetividade, avalia o delegado, permite ações como as recentes prisões de plantadores caseiros de maconha. “Se a pessoa tem dez pés de maconha em casa com o objetivo de venda ou se tem para consumo próprio, do ponto de vista da natureza está fazendo a mesma coisa, que é guardar dez pés de maconha. Quem vai dizer que aquele que tem a maconha para venda é um criminoso hediondo e aquele que tem para uso próprio é um doente que precisa de tratamento é a lei, que é uma construção política. Quem define o que é 32

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INSTITUTO SOU DA PAZ

diz respeito à legislação sobre drogas. “É tão óbvio isso, é só a gente olhar para o que os países vizinhos estão fazendo. Veja o exemplo do Uruguai, onde a maconha foi legalizada inteiramente. Mesmo na Argentina, que em grande medida tem uma política também repressiva, o uso de drogas já está descriminalizado há muito tempo e as pessoas podem ter até quatro plantas em casa. Há vários países que estão aceitando não só essa ideia dos clubes canábicos como também que é evidente que se essa questão for olhada de um determinado ponto de vista, veremos que não é a droga em si que gera violência, mas a forma como a gente quer lidar legalmente com a questão.” Integrante da organização internacional Leap (Law Enforcement Against Prohibition), formada por agentes da lei de diversos países que defendem a legalização da produção, comércio e consumo de todas as drogas como um marco para resolver os problemas ligados à violência do tráfico, o delegado Orlando Zaccone, da Polícia Civil do Rio de Janeiro, diz que a distinção entre traficante e usuário é uma construção política. “Já houve momentos da legislação brasileira em que o usuário não respondia por crime nenhum, já houve momentos em que ele respondia pelo mesmo crime do traficante, e hoje você tem uma distinção que dá tratamento médico ao usuário e tratamento criminal ao traficante. Na verdade, isso tudo é uma construção política, porque do ponto de vista da natureza não existe nenhuma distinção entre a conduta do traficante e a do usuário.”

DANIEL MARENCO/FOLHAPRESS

SAÚDE

CONTRA A PROIBIÇÃO Orlando Zaccone: “Tudo é uma construção política, porque do ponto de vista da natureza não existe distinção entre a conduta do traficante e a do usuário”

DENTRO DA LEI Julita Lemgruber: “Esses usuários estão querendo plantar sua própria maconha e não procurar um fornecedor, não ser peça de uma engrenagem criminosa”

crime e quais são as condutas criminosas é o Congresso Nacional”, afirma Zaccone. Militante da descriminalização das drogas e principal organizador da Marcha da Maconha, o vereador Renato Cinco (Psol-RJ) faz um pedido público pela liberação daqueles plantadores caseiros que foram presos. “Defendo a libertação de todos os presos políticos da guerra às drogas, especialmente aqueles que estão indevidamente enquadrados na lei. O usuário que faz o autocultivo não pode passar nem um dia preso, tem que assi-

nar o termo circunstanciado e ser liberado ainda na delegacia”, diz. “Algumas pessoas, com o objetivo de se afastar do mercado ilegal de drogas, de não colaborar financeiramente com o comércio das drogas, vêm optando pelo autocultivo da maconha. A lei brasileira de 2006, em seu artigo 28, estabelece que quem faz cultivo de substância ilícita para uso próprio incorre nas mesmas penalidades do usuário. No entanto, temos observado o empenho da polícia, que gasta recursos para perseguir os usuários que


fazem o plantio da sua maconha. No momento, nós temos pelo menos cinco pessoas presas no Rio de Janeiro, acusadas indevidamente de tráfico de drogas porque estavam produzindo a própria maconha. Não sabemos de onde saiu essa prioridade”, acrescenta o parlamentar. Uma das pessoas a quem Cinco se refere é o ativista Flávio Dilan, o Cabelo, que está preso desde fevereiro após a polícia ter encontrado 39 pés de maconha em sua casa no município de Petrópolis, na região serrana do Rio. A prisão de Cabelo, que é ex-dirigente do movimento estudantil e muito conhecido na esquerda carioca, também tem impulsionado a retomada da discussão sobre o plantio de maconha para uso próprio. Com mais um ingrediente: Cabelo, que sofre de epilepsia, afirma fazer uso das plantas para produzir o óleo da Cannabis que ajuda a impedir suas crises. Neste óleo está o canabidiol, liberado pela Anvisa, e outras dezenas de substâncias ainda ignoradas pela agência reguladora. “Queremos a regulamentação do uso medicinal da maconha, como acontece em diversos países, para que as pessoas tenham acesso à planta como um todo e a um tratamento fitoterápico completo que envolve a utilização de dezenas de princí-

IRIRS ZANETTI (CONE CREW NO FESTIVAL OURO PRETO 2014)

MARCELO CAMARGO/ABR

SAÚDE

PLANTADOR CASEIRO MC Cert (esq.): “Hoje fomos vítimas dessa lei antiga, estúpida e ineficaz, igual a quase todas as demais existentes no Brasil”

pios ativos e não apenas de um princípio ativo”, diz Cinco, ressaltando que, mesmo tendo sua importação liberada, o canabidiol (ou CBD) ainda é muito caro.

Potencialidades

A discussão sobre a possibilidade de ir além da liberação para uso medicinal de uma única substância presente na maconha também já está em pauta entre médicos e cientistas. Para o biomédico Renato Filev, que é pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde estuda o papel funcional e terapêutico do sistema canabinóide nos transtornos mentais, e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, afirma que o ideal seria que se utilizasse as “diversas potencialidades” da Cannabis. “Há indicativos de que os componentes utilizados em conjunto tenham melhores resultados. É para este estudo mais amplo que devemos caminhar”, diz. Um dos pioneiros no Brasil nos estudos sobre as diversas aplicações medicinais da Cannabis, realizados desde 1978, o médico Elisaldo Carlini, ex-presidente da Anvisa, é outro a considerar a liberação do CBD uma medida restrita. O veterano de 84 anos, no entanto, afirma que a decisão da Anvisa é importante por abrir espaço

para maiores avanços: “Não se trata mais de sensibilizar, mas sim de criar um ambiente para a produção da maconha medicinal, para fins de pesquisa, no Brasil”. As restrições de acesso ao canabidiol, mesmo liberado, tornam inevitável que essa discussão seja associada à polêmica sobre o plantio residencial de maconha para consumo próprio. “As recentes decisões da Anvisa e do Conselho Federal de Medicina mostram como a maconha ainda é vista pela nossa sociedade e por nossos médicos como um tabu. A decisão do CFM é limitada àquilo que a grande imprensa quis sensibilizar”, comenta Filev. Julita Lemgruber diz que a liberação do CBD “aconteceu após a mídia dar uma visibilidade muito grande à questão da epilepsia refratária, graças às crianças que apareceram no filme Ilegal”. Para ela, a discussão centrada no CBD, no entanto, é insuficiente: “Há moléstias que não se tratam só com CBD, se tratam também com o THC (tetraidrocanabinol, principal princípio ativo da maconha). Então, sem dúvida nenhuma a Anvisa vai ter que muito em breve rever a sua decisão, porque senão a gente vai tapar o sol com a peneira. As coisas só valem para crianças que têm epilepsia refratária? E as outras moléstias? E o pessoal que faz quimioterapia e precisa dar conta de todos os distúrbios provocados por ela? E o pessoal que têm esclerose múltipla, que tem fibromialgia? Há uma série de moléstias para as quais o uso do CBD puro não vai resolver”, argumenta. Para Orlando Zaccone, a questão da descriminalização está também na raiz da discussão sobre a utilização medicinal da maconha. “Se tivessem sido regulamentados produção, comércio e consumo da Cannabis, a questão do uso do canabidiol estaria resolvida. Sem contar que aí a gente observa um problema de mercado porque, embora se autorize a importação desses medicamentos à base de canabidiol, ainda não há a regulamentação da produção do canabidiol no Brasil. Obrigatoriamente nós temos que importar, dando incentivo à indústria estrangeira em detrimento da indústria nacional.” REVISTA DO BRASIL

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TURISMO

HELDER LIMA

FLAVYA MUTRAN/AGÊNCIA PARÁ

50% DE OCUPAÇÃO Mesmo com natureza exuberante, a Ilha de Marajó é um destino pouco lembrado por brasileiros e estrangeiros

O desafio de seduzir os estrangeiros Apesar da diversidade de atrativos, Brasil ainda não se mostra à altura de seu potencial. Mas número de visitantes cresce Por Helder Lima

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TURISMO

C

Vaivém Desembarques internacionais no país 2013

9,46 milhões

Desembarques domésticos no país 2012

2013

85,47 milhões 88,94 milhões Fonte: Ministério do Turismo

CARLOS MACAPUNA/GETTY IMAGES

2012

9,36 milhões

om as belas praias, a natureza deslumbrante, as culturas de raiz e, sobretudo, um povo acolhedor e comunicativo, sem contar a gastronomia de personalidade, o Brasil é um país de grande potencial turístico. Isso é o que todos sabem ou ouvem falar desde os tempos em que a visão de que aqui seria o país do futuro transformou-se em epíteto nacional, graças ao livro Brasil, País do Futuro (1941), do judeu-austríaco Stefan Zweig. Fugindo do nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, Zweig se fixou em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro, e se encantou com o que viu por aqui, tecendo uma obra de caráter ufanista, alvo de críticas em razão desse aspecto, mas sem deixar de marcar a cultura de forma única, pois não se conhece outro caso de título de livro que tenha virado clichê de uma nação. Mas apesar da propensão ao ufanismo, o que permite supor (erroneamente, diga-se) que o país saiba vender sua imagem lá fora, e de todas as qualidades culturais e geográficas, o turismo ainda não se tornou uma atividade que atraia o estrangeiro de modo favorável à atividade econômica. Um exemplo de potencial inexplorado é dado pelos turistas da China. De 100 milhões de chineses que viajaram pelo mundo em 2014, apenas 60 mil, ou seja, mero 0,06%, escolheram o Brasil como destino. Outro dado que aponta o turismo sem exercer maior atratividade para os estrangeiros é a balança comercial do setor. O déficit nessa balança, em 2014, foi de US$ 18,69 bilhões, incluindo as compras das famílias brasileiras lá fora. O fato é que o turista internacional deixou aqui, no ano da Copa, US$ 6,91 bilhões, enquanto os brasileiros mandaram US$ 25,6 bilhões para fora, ainda que neste ano o quadro tenda a mudar por conta da alta do dólar, repercutindo a retomada da economia norte-americana e o aprofundamento da crise brasileira. No entanto, há também dados positivos na perspectiva de uma atividade estratégica que corresponde a 3,7% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Com o esforço em promoção do turismo desde que o ministério da área foi criado, em 2003, no primeiro governo Lula, o país subiu de 4,1 milhões de estrangeiros recebidos por ano para 6 milhões em REVISTA DO BRASIL

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TURISMO Balança comercial do turismo Receita com turistas estrangeiros no Brasil (em US$ bilhões) 5,70 6,55 6,64 6,71 6,91

2010 2011 2012 2013 2014

Gasto de turistas brasileiros no exterior (em US$ bilhões) 16,42 21,26 22,23 25,34 25,60

Fonte: Ministério do Turismo

2014, com uma média de ganho anual de 200 mil turistas estrangeiros. Para os próximos anos, o setor deve crescer ao ritmo de 10% ao ano, avaliam representantes da área – por causa, em parte, do legado da Copa, que repercute pelos menos até a realização do próximo evento, e da realização das Olimpíadas no ano que vem, no Rio de Janeiro.

Muito lenta

Nesse contexto, o ministro do Turismo, Vinicius Lages, tem dito que rever a atuação e o papel do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) é fundamental para alavancar o setor e aumentar a atratividade para estrangeiros nos próximos anos. “A Embratur é hoje uma agência de promoção do Brasil, uma autarquia que está enferrujada na sua capacidade de cuidar da própria governança”, disse ele em janeiro, fazendo referência à falta de interação com o setor privado. “O esforço, o investimento feito, é incipiente.” “Como a Embratur está hoje, uma autarquia, é uma instituição muito lenta para vender o Brasil lá fora, ela é muito amarrada pela legislação e isso impede uma maior articulação com os agentes econômicos”, acrescenta o ministro. Ele também considera que o crescimento experimentado pelo setor não tem sido suficiente para explorar o potencial do país como polo de turismo. “Nós temos um crescimento muito tímido ao longo dessa última década, 200 mil turistas a mais por ano é muito pouco, e temos que trabalhar também em outras frentes como a da facilitação das viagens.” Lages deixa claro que há um pacote de iniciativas a serem tomadas para revigorar a promoção do país no exterior. A facili36

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tação de viagens a que ele se refere é uma delas: significa desburocratizar o caminho de quem deseja vir ao Brasil, e ao mesmo tempo articular a oferta de destinos pelas companhias aéreas, que obviamente têm suas rotas de interesse em função da rentabilidade das passagens, e com isso muitas vezes não atentam para vários mercados turísticos. “Tanto as companhias brasileiras como as de outros países são parceiras fundamentais para que nós possamos ter uma aliança na estratégia de promoção. Nos interessa encher os voos, como também ter maior frequência de voos e diversificação dessa oferta”, diz. Outra medida será resolver a contradição que se mostra pelo quadro funcional da autarquia, cujo papel principal é a promoção do país lá fora. São apenas 13 representantes no exterior, para um total de 300 funcionários – portanto, a maioria vivendo no Brasil. “Quer dizer: a nossa presença (no exterior) é insignificante para um país continental que tem um potencial enorme e pode atingir números muito maiores”, diz o ministro. Indagado sobre como será equacionada essa questão, ele afirma considerar fundamental a “presença física” dos brasileiros com os agentes de mercado desses países emissores de turistas. “Precisamos requalificar a relação com esses mercados.” Segundo o ministro, a definição dos agentes será feita segundo a estratégia mercadológica. “Nós vamos dimensionar, dependendo do mercado em questão. No norte-americano, podem caber dez e não dois, e no mercado europeu 20. São exemplos, assim como no mercado latino-americano ou no próprio mercado asiático. Então, esse dimensionamen-

ARROJO É PRECISO Feira de turismo da Embratur: aumentar o foco e a presença

to nós vamos fazer combinado com as outras ferramentas.” Vencer o isolamento da promoção do turismo e pegar carona em outras frentes de negócios que também se esforçam pela promoção do mercado brasileiro será o centro da estratégia da Embratur no novo desenho de atuação que o ministro está buscando. “A Embratur existe para cuidar da promoção do turismo, enquanto a Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos), por exemplo, cuida de outros setores. Mas quando você promove a exportação de café, de automóveis, do audiovisual, da moda brasileira, e mesmo de alimentos, você está promovendo o Brasil; então, os esforços que os países fazem são muito claros nessa direção”, argumenta. “Eu tenho que aproveitar e pegar carona para poder vender o Brasil turístico, porque, na verdade, essa produção de alimentos é feita em um determinado idioma, ela representa a nossa diversidade de paisagens, e da riqueza cultural do Brasil. Creio que hoje esse iso-


BRUNO CAMPOS/PCR/FOTOS PÚBLICAS

FRANK SENFTLEBEN/EMBRATUR

TURISMO

SÓ MAR E PRAIA A diversidade cultural e de paisagens do Brasil é pouco explorada

lamento da produção do turismo perde a possibilidade de sinergia de recursos.” A combinação de ferramentas do ministro, voltadas à inteligência comercial, passa também pela requalificação da presença da Embratur em feiras. Mas nesse caso o ajuste fiscal promovido pelo governo já mostra repercussão e uma dificuldade a mais. “A gente já esteve presente no passado em quase 50 feiras por ano, mas este ano vamos só em 15. Tem uma questão orçamentária, claro, e nós fizemos um enxugamento em função da necessidade de rever o nosso orçamento. Por isso, vamos às 15 principais feiras do mundo”, afirma o ministro. Ele também diz que pretende resgatar a presença em feiras por meio do esforço combinado de recursos com outros setores. “Eu só conto com recursos públicos, então (neste ano) eu só posso estar presente em 15 feiras e, mesmo assim, com diminuição de áreas em feiras, diminuição do escopo de participação.”

Poucos visitantes

O presidente da seção nacional da Associação Brasileira de Agências de Viagem (Abav), Antonio Azevedo, que foi procurado, mas apenas se manifestou por nota de sua assessoria de imprensa, entende que a atuação da Embratur, dentro de um novo modelo organizacional, mais próximo do que seria uma agência de promoção turística, garantirá mais liberdade e agilidade às suas ações, devendo também ampliar a oferta de pacotes. Segundo a nota, “há muito a ser trabalhado pela Embratur também no que se refere à composição e apresentação da oferta de turismo, hoje ainda muito concentrada no segmento de sol e praia”. Para a Abav, há um “imenso potencial competitivo em segmentos que contemplem nossa diversidade cultural e a pluralidade de nossos macrossistemas ambientais”, em referência à atratividade do ecoturismo. Esse imenso potencial a que a Abav se refere é o que hoje torna o turismo um tanto desanimador em destinos brasileiros que, por sua condição de recursos, deveriam atrair mais visitantes. João Lima Pinheiro, que dirige uma pousada em meio à natureza exuberante da Ilha de Marajó, no Pará, e conhece a política REVISTA DO BRASIL

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MATTHEW LLOYD/GETTY IMAGES

POTENCIAL IGNORADO Apenas 60 mil dos 100 milhões de chineses que viajaram pelo mundo em 2014 escolheram o Brasil como destino

setorial na prática, pois já ocupou a secretaria de Turismo do município de Soure, um dos 16 abrigados pela maior ilha fluviomarinha do mundo, afirma que as taxas de ocupação que consegue alcançar em seu negócio são incipientes. “O turismo aqui é sazonal. É mais intenso em dezembro e janeiro, e depois no carnaval, mas na sequência vem a baixa

temporada até julho, que volta a ter movimento. Depois, até dezembro tem um pinga-pinga, mas o fato é que até hoje não conseguimos chegar a uma fase de pleno funcionamento. Aqui a baixa temporada é muito baixa e a alta não chega a ser tão alta; nossos maiores níveis de ocupação são de 50% da capacidade de leitos oferecida.” Os dois principais pontos de hospeda-

gem do turismo na ilha são os municípios de Soure e Salvaterra, que são as portas de ingresso do turista. Mas, ainda que o turismo seja incipiente, pois as estratégias no governo do estado do Pará na área de turismo até hoje não repercutiram em seu benefício, uma nova polêmica e ameaça ao turismo vêm tirando o sono dos profissionais que dependem dessa atividade. O governo estadual vem planejando construir um presídio em Salvaterra, o que pode afastar ainda mais o turista da ilha, acredita Pinheiro. “Se o presídio vier para cá será uma catástrofe, é o que tenho constatado em conversa com os clientes da pousada”, afirma. Ele também reclama que a prefeitura de Salvaterra concedeu o terreno para o presídio sem autorização da Câmara Municipal e que o processo já está adiantado, com licitação realizada. Como ao mesmo tempo o turismo é uma das principais atividades da ilha, os segmentos que dependem do turismo estão se mobilizando contra o presídio, com o movimento ‘Acorda Marajó’.

Profissionais apoiam mudanças Mesmo frente ao ajuste fiscal, que está submetendo todas as esferas do Executivo a revisões e cortes orçamentários, e à dificuldade de articulação histórica da Embratur para cumprir o seu papel, profissionais que atuam no mercado de turismo acham saudável a busca do ministro de repensar o papel da autarquia. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Turismólogos e Profissionais de Turismo (Abbtur), Elzário Pereira da Silva Junior, essa revisão da atuação institucional já foi tentada anteriormente, sem sucesso. Isso, no entanto, não invalida que o ministério busque tal objetivo. “A Embratur precisa mesmo passar por um choque de gestão. Não é o modelo institucional que vai melhorar sua atuação, mas sim a forma de atuação.” Silva lembra que o ex-presidente da Embratur Flávio Dino 38

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“até tentou dar esse choque, atuando em outras vertentes que não somente a promoção internacional”. Segundo ele, a imagem que se passa é que a Embratur existe para fazer promoção internacional, esse é seu papel essencial, “mas quando se trata de turismo tem outras articulações que podem ser desenvolvidas, como a intersetorialidade”, afirma, fazendo eco às declarações do ministro Lages. Para que esse objetivo seja alcançado, Silva entende que é preciso promover o país não apenas no âmbito do turismo. “Mas também dentro do mundo dos negócios, da agricultura, enfim, dos outros setores da economia”, destaca. “Toda vez que for algo do Brasil para fora, a Embratur teria que ir junto, aproveitar os eventos empresariais, pois embora seja evento de outro setor, é a imagem do Brasil, ou seja, a venda

da imagem do destino que precisaria estar mais intersetorialmente defendida.” Opinião semelhante tem o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (Abih), Enrico Fermi Torquato Fontes, para quem o atual modelo da entidade está esgotado. “É um modelo no qual ela não tem flexibilidade na busca de parceiros; o modelo faz com que se dependa somente de recursos públicos e isso em um país que está na ‘prateleira’ do mundo, com a Copa que realizou, enfim, você tem muitos outros interesses, que podem ajudar a alavancar o destino”, afirma. Fontes também acha que a Embratur não conta com um orçamento do porte do país, que tem dimensão continental. “Na realidade, o único objetivo da Embratur é divulgar o Brasil lá fora. O orçamento é ínfimo para o que é necessário, e com isso

ela não pode buscar parcerias, porque o modelo inviabiliza sua atuação.” Para que a intersetorialidade seja efetiva, Fontes acredita que dois ou três grandes parceiros ajudariam a colocar em prática o plano do ministério. “Você poderia ter também um cartão de crédito para o turista internacional aqui no país, enfim, tem vários interesses na formação de um destino turístico internacional, que não podem ser abordados em função do modelo atual da Embratur.” O presidente da Abih avalia que também falta peso político para o turismo dentro da esfera do governo federal. “Na prática, o turismo não é prioridade”, afirma, referindo-se aos cortes orçamentários que recaem no setor. “Os orçamentos anuais são ínfimos para se chegar ao consumidor final”, diz.


MARCIO POCHMANN

Tempo dos ricos e a elevação da renda No Brasil, a repartição da renda acumulada entre 2008 e 2011 ocorreu de forma menos desigual. As classes populares conseguiram capturar 45% do total da elevação da renda

A

crise de dimensão global que teve início em 2008 impôs, em vários países, a penalização das classes populares em oposição aos benefícios das classes intermediárias e superiores. O aumento no desemprego e a queda no poder aquisitivo da renda se mostrou intenso nos segmentos populares, ao passo que os segmentos da população de maior rendimento conseguiram se proteger rapidamente, permitindo, inclusive, avançar suas posições relativas sobre as demais classes sociais. Isso parece inegável em países como a França, cuja elevação acumulada da renda das pessoas ocorreu somente para os 50% mais ricos da população. O segmento intermediário de renda absorveu quase 32% da renda gerada no período, enquanto os 20% mais ricos apropriaram-se de 68% do ganho de renda acumulada entre 2008 e 2011. As classes populares francesas, constituídas por aqueles segmentos que representam 50% mais pobres da população, registraram perdas acumuladas

na renda no mesmo período de tempo. Nesse sentido, as classes populares foram aquelas penalizadas mais intensivamente a partir do início da crise de dimensão global desde 2008 na França. No Brasil, contudo, a repartição da renda acumulada entre 2008 e 2011 ocorreu de forma menos desigual. Enquanto as classes ricas representadas pelo segmento dos 20% das pessoas com maior rendimento no Brasil absorveram quase um quinto do aumento da renda ocorrido entre 2008 e 2011, as classes populares, representadas pelos 50% mais pobres do país, conseguiram capturar 45% do total da elevação da renda gerada no mesmo período. Por fim, as classes intermediárias, situadas entre o sexto, sétimo e oitavo decis da distribuição da renda, absorveram um pouco mais de 31% do adicional da renda pessoal gerada entre 2008 e 2011. Em tempo dos ricos como registrado em países desenvolvidos, o Brasil segue trajetória distinta, evitando a maior concentração da renda. As diferenças com a França parecem ser inequívocas.

Evolução da renda acumulada entre 2008 e 2011 no Brasil e na França (em %) 68,2 45 31,1

31,8 23,9

Classes intermediárias

Classes ricas

Classes populares n Brasil n França -49,9 Fonte: IBGE e Insee (elaboração própria) REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA MAGNO BETTENCORT/MUSEU DE IMPRENSA

Impressoras Heidelberg

As máquinas da Madeira

A

mil quilômetros da Europa e a 800 da África, o arquipélago da portuguesa Ilha da Madeira é um local de origem vulcânica, montanhoso e de temperatura agradável, a 90 minutos de voo a partir de Lisboa. Talvez seja conhecido de alguns pelo vinho da região. Os esportistas mais enfáticos devem lembrar que foi no Funchal, a capital, que Cristiano Ronaldo deu os seus primeiros passos e chutes. Há muito o que se conhecer na Madeira, que tem lá suas curiosidades, como na pequena cidade de Câmara de Lobos, ao lado do Funchal. 40

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Ali, numa curva, com direito a vista para o mar, fica o Museu de Imprensa Madeira, com pequenas e grandes preciosidades. São aproximadamente 40 máquinas como linotipos e impressoras, a mais antiga de 1886. O espaço, de 2 mil metros quadrados, abriga ainda exposições, conferências e outros tipos de eventos. Até janeiro, por exemplo, o MIM abrigou uma exposição sobre o cineasta Manoel de Oliveira. Estão previstas uma mostra, a partir de agosto, sobre rótulos de vinho Madeira do século 20, e outra, no final do ano, sobre a Primeira Grande Guerra, em parceria com o Museu Nacional de Imprensa, que fica na cidade do Porto.

Impressora Minerva, de 1886, é a peça mais antiga do museu

MUSEU DE IMPRENSA

Ilha portuguesa tem vários locais a explorar. E esconde um curioso e bem organizado museu da imprensa Por Vitor Nuzzi


Museu teve exposição sobre Manoel de Oliveira

Por falar em guerra e em Madeira, quem passou por Câmara de Lobos foi Winston Churchill, então primeiro-ministro inglês, em 1950. Foi descansar e pintar. A imprensa local registrou a presença em primeira página, conforme se vê no acervo do museu. Desde o primeiro jornal, lançado em 1821, são mais de 300 títulos. “Grosso modo, uma característica interessante dos periódicos publicados ao longo destes quase 200 anos é a de que são quase sempre muito politizados. Procuraram sempre afirmar e defender convicções muito explícitas e determinadas. Uns mais conservadores, outros mais liberais e alguns satíricos”, diz o diretor do museu, Lourenço Freitas, um ex-jornalista que durante dois anos coordenou o processo de coleta e recuperação do patrimônio que hoje compõe o acervo. O MIM foi aberto em setembro de 2013. Em um ano e meio, recebeu aproximadamente 5 mil visitas, sendo 800 de estrangeiros. “O percurso da imprensa

A Madeira é um arquipélago formado por quatro ilhas. Tem hoje 270 mil habitantes

MUSEU DE IMPRENSA

DAVID STANLEY/FLICKR/CC

Rotativa em destaque; acervo inclui 40 máquinas

Foram 74 visitas de estudo em um ano

MUSEU DE IMPRENSA

MUSEU DE IMPRENSA

HISTÓRIA

tem evoluído ao longo do tempo. Desde a descoberta de Gutenberg no século 15 até hoje, e o MIM reúne não só antiguidade e memória, mas também cultura e conhecimento. No primeiro ano de atividade recebemos 74 visitas de estudo, o que por si só revela o interesse que existe em saber que conhecimento encerra o museu”, comenta Freitas. A máquina mais antiga, fabricada em 1816,éumaimpressoraMinerva,daempresa norte-americana Golding&Company. Há outra de 1817, da alemã Augsburg, e uma máquina de composição mecânica de 1911, que pertenceu ao Diário de Notícias da Madeira, fundado há mais de 130 anos e ainda em atividade. O museu conta ainda com “um considerável patrimônio histórico tipográfico”, lembra Freitas. É um lugar onde pode se conhecer o processo de elaboração de jornais que funcionou até relativamente pouco tempo atrás. Um processo fabril e braçal. “Acredito que conforme o homem vai evoluindo, vai deixando atrás de si um

rastro que quando é reunido num museu permite mostrar no presente como era uma certa atividade no passado – e essa lição pode ser cultural, industrial ou sociológica”, analisa o diretor. Formado por quatro ilhas, o arquipélago tem hoje 270 mil habitantes, sendo 112 mil apenas na capital. A Madeira era um local estratégico para a navegação à América do Sul e à África. Tinha a economia baseada na agricultura e nas exportações – particularmente, um período de produção intensa de cana-de-açúcar, no século 15. Posteriormente, o vinho deu fama à ilha. Algumas crises levaram a amplos processos de emigração, já no século 19, e um dos principais destinos foi o Brasil – estima-se que aqui exista uma comunidade de 150 mil madeirenses. Embora não seja um roteiro turístico usual, até pela localização, apenas o seu visual já recomenda a visita. Andar pela orla muito bem cuidada e arborizada, conhecer o Jardim Botânico, conferir o curioso Mercado dos Lavradores e passear no teleférico valem por um bom começo. REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

TRADIÇÃO PERNAMBUCANA Nas dezenas de mercados públicos espalhados por Recife, prevalecem elementos próprios da cultura regional

Por Arthur Maciel Fotos Jesus Carlos/ Imagemglobal

A

regra é a mesma para todos os 30 mercados públicos de Recife. Abrir as portas às 6h, fechar às 18h. São portões de ferro robustos, como as sólidas estruturas das paredes. Mas cada um tem história, arquitetura e freguesia próprias. Afora os mercados centrais, São José e Boa Vista, que recebem público variado, de todas as camadas sociais e cantos da capital pernambucana, e também gente de fora, de outros estados e países, os mercados de 42

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VIAGEM

DE 1875 Com mais de 500 boxes, o Mercado de São José é um monumento tombado pelo Iphan e o mais antigo edifício pré-fabricado em ferro existente no Brasil

bairro possuem suas próprias confrarias. A Encruzilhada, por exemplo, teve seu mercado inaugurado no dia 9 de dezembro de 1950, no largo que leva o seu nome. É onde se encontra a melhor e a mais completa praça de alimentação entre todos os mercados públicos de Recife. Nela se reúnem a confraria portuguesa, a degustar bacalhau e polvo, culinária levada pelo compatrício Manuel José Alves, 75, oriundo da província tradicional de Trás-os-Montes e proprietário de O Bragantino. É um dos mais conhecidos e apreciados bolinhos de bacalhau da região. Ao lado se faz a conexão sertaneja, com uma galinha de capoeira (chamada de caipira no Sudeste), cozida com legumes e servida com pirão. Coma e deguste acompanhada de uma das 300 marcas de cachaça artesanal da Paraíba, do Ceará, da Bahia, de Pernambuco ou Minas Gerais, na cachaçaria Minha Deusa. “O mercado público, e isso vale para todos os mercados de Pernambuco, é símbolo da cultura nordestina. Aqui você encontra não somente os produtos característicos do nosso cotidiano, mas também as personalidades da nossa cultura” observa o empresário Luciano Oliveira, que juntou profissionais liberais e artistas numa associação chamada Parceiros dos Mercados. “Esse é um projeto de valorização da cultura do Nordeste. Os mercados simbolizam bem os nossos costumes”, opina o cantor João Lacerda, filho do também músico Genival Lacerda, e integrante do grupo.

Inspiração francesa

“Mercado é negócio hereditário”, conta a presidenta da associação comercial dos locatários internos e externos do Mercado de São José, Ceça Tavares, permissionária de três boxes. Ela segue os passos de pai e mãe, comerciantes que ganharam a vida vendendo aves vivas, perus, galinha de capoeira, codorna, ovos e farinha no mercado da Encruzilhada. Diferente dos pais, foi no ramo das ervas que a comerciante se especializou, fruto de outra herança de família. Os avós maternos, da nação dos índios Xucurus, ensinaram à neta o conhecimento medicinal e culinário sobre raízes e ervas que colhia nas terras do distrito de Passassunga, cidade de Bom Jardim, no agreste pernambucano. Ervas, mel, garrafadas para todos os males, em todos os mercados, no de São José tem em fartura. São três comércios primordiais nas dependências internas do São José. Carnes, peixes, crustáceos e frios num setor à direita da entrada principal. Artesanato de corda, couro, palha, madeira, barro, bordados, renascença, redes, em quase todos os cantos. Religiosos, com imagens, velas, missangas, oferendas, fantasias, produtos ligados à umbanda, em um canto menor, mas de presença marcante pelas formas e cores, e de muita vitalidade nas vendas. Nos boxes externos prevalecem as ervas, mel e garrafadas, tabacarias, grãos, amendoim, semente de guaraná e outras de origem amazônica, confeitarias e um sem fim de ambulantes, da feira livre a eletrônicos, papelaria e material escolar e de escritório, ferragens, panelas, coco, caldo de cana, pães e bolos, sorvetes e picolés, que compõem um movimento frenético. É o maior centro de comércio popular de Recife. Com mais de 500 boxes, o mercado é um monumento tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o mais antigo edifício pré-fabricado em ferro existente no Brasil, inaugurado em 7 de setembro de 1875. Toda a estrutura do mercado foi fabricada na França e trazida para ser montada na capital pernambucana. No ano de 1989 um grande incêndio destruiu mais da metade da área. Somente em 1994 foi REVISTA DO BRASIL

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concluída a restauração, e o mercado retomou seu lugar no cotidiano do bairro e de toda a cidade. A arquitetura é inspirada no Mercado de Grenelle, de Paris. Um monumento que privilegia o clima tropical, com iluminação natural e fluxo de ar contínuo, de forma que não se sente no mercado o calor que assola as ruas ao lado. Majestoso nas formas, na dimensão, na disposição do casario, e com riqueza de detalhes que impressiona. E tem um “parente” na cidade, que em muito se assemelha em matéria de arquitetura e pela força e tradição do comércio, o Mercado de Casa Amarela. A estrutura principal é claramente inspirada no Mercado de São José, embora de dimensões reduzidas. Foi originalmente erguido na avenida Caxangá, em uma área até então predominantemente rural. Em 1928, começou a ser desmontado e levado ao bairro da zona norte. Atrás fica um anexo, o primeiro a ser construído, e já dissonante da arquitetura original. Outros foram erguidos nas proximidades para abrigar o comércio informal que sempre ocupou os espaços públicos, como ruas e calçadas. Comparar as obras é deparar com as mudanças que passaram a marcar o espírito público. Um prédio de quase um século, que se mantém imponente no cotidiano social e histórico, com seus contornos traçados no ferro e em telhas inglesas, embora sempre carente de mais zelo. E seus anexos feitos nas últimas décadas, com telas de zinco e fiações expostas, construções mal engendradas e que só se mantém por conta da força de vontade da população. Afinal, é por um espaço livre para vender seus produtos que eles batalham. O bairro da Boa Vista possui o mercado mais antigo da cidade ainda em atividade, com sua construção sendo ordenada por uma portaria de 21 de outubro de 1823. A data da inauguração é imprecisa, mas em 1865 o mercado já constava do mapa. Construído para atender a próspera e nobre população do bairro da Boa Vista, o mercado registra em livros e teses e na memória do povo um compartimento de venda de escravos e também de açoite de ladinos (gatunos). Tais comerciantes são 44

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TELHAS INGLESAS O Mercado de Casa Amarela sofreu com o tempo. Foi erguido originalmente na zona rural, mas em 1928 foi desmontado e reerguido na zona norte da cidade, no bairro de onde ganhou o nome


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O MAIS ANTIGO Hoje o Mercado da Boa Vista é um disputado espaço gastronômico e ponto de encontro da cidade. No passado, foi ponto de venda de escravos

anônimos na contemporaneidade e no registro histórico e social. O Mercado da Boa Vista é um dos mais disputados espaços gastronômicos e de lazer da cidade, além de preservar em seus 64 boxes comércios tradicionais e presentes desde a mais tenra data, como carnes, frutas, verduras e mercearias, loja de artesanato e um salão de cabeleireiro. Possui arquitetura única entre os mercados do Recife, com seu largo corredor frontal repleto de pórticos e área interna composta de uma grande praça ladeada de boxes por todos os lados, formando um quadrado. O ambiente interno, com seus jambeiros, jaqueira, sapotizeiro e pau-brasil tecendo sombras sobre o pátio, há décadas inspira não somente os boêmios como também artistas, intelectuais e políticos, que fazem do Mercado da Boa Vista um ponto de encontro diário.

De presídio a Casa da Cultura Graciliano Ramos foi um dos presos da Casa de Detenção do Recife

Durante mais de um século, a imponente construção funcionou como a Casa de Detenção do Recife, principal presídio da cidade e referência do Brasil Império. Abrigou de assassinos a políticos e intelectuais, como o escritor Graciliano Ramos. E foi o destino de vários presos políticos, como o comunista Gregório Bezerra, preso pela primeira vez ali em 1917. Projetada pelo engenheiro recifense José Mamede Alves Ferreira, inaugurada em 1855 e concluída em 1867, é uma construção erguida para intimidar os ímpetos revolucionários que brotavam em todos os cantos de Pernambuco.

Após funcionar 118 anos como presídio, em 1973 foi determinado o seu fechamento. Três anos depois, o prédio passou a ser conhecido como Casa da Cultura de Pernambuco. Apesar do nome, funciona na prática como um mercado público, destinado ao comércio de artesanato. Com 8.400 metros quadrados de área construída, abriga dois enormes painéis do pintor pernambucano Cícero Dias, que representam as Revoluções Pernambucanas de 1817 e 1824. E possui 168 lojas, sendo um dos mais seletos centros comerciais públicos do estado e visitado predominantemente por turistas. REVISTA DO BRASIL

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CULTURA

A música mais nova do mundo vem do Amapá Há 17 anos na estrada, o grupo Senzalas se diz tão universal quanto Jobim e Beatles ao mostrar ritmos do estado e cantar belezas amazônicas Por Gisele Brito

“E

u acho que a nossa música é a mais nova que tem no mundo hoje”, repete Val Milhomem, compositor e cantor do grupo Senzalas. Formada em 1997, em Macapá, a banda mistura reggae, zouk e carimbó. E traz o marabaixo, ritmo tipicamente amapaense, com forte influência africana. O som não é exatamente novo. O marabaixo nasceu com a chegada dos primeiros escravos negros ao estado, no século 18, e as misturas da banda se difundiram com a MPA, a Música Popular do Amapá, no final dos anos 1980. É novo porque é desconhecido, admitem Val e seus parceiros Amadeu Caval46

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DANIEL KERSYS/DIVULGAÇÃO

Apresentação do grupo: mistura de estilos

cante e Joãozinho Gomes, todos pioneiros da MPA. Parte desse desconhecimento tem a ver com as limitações impostas pela indústria fonográfica e a mídia, que escolhem os modismos que vão martelar os ouvidos do Oiapoque (cidade amapaense) ao Chuí, no extremo sul. “A gente é bombardeado lá, como todo mundo é, pela mídia nacional. Globo e afins. Então se está na moda o arrocha, é o arrocha que vai para o Brasil inteiro. E a grande indústria que banca esses caras é a Som Livre, ligada à Globo, e que joga nas emissoras de rádio que têm contratos para fazer isso e faz tocar, tocar, tocar. E isso, na cabeça de qualquer povo, vira moda. Esse é o problema. O povo brasileiro começa a achar que música é só axé, sertanejo, arrocha, forró, que nem é mais aquele, já é meio pasteurizado”, lamenta Val. Em março, a banda fez três shows em São Paulo. Um deles, no Tom Jazz, teve a participação da cantora Leci Brandão, velha conhecida dos músicos. Os outros dois foram em Centros Educacionais Unificados (CEUs) no extremo leste da cidade, ambos com teatro lotado. “A apresentação no CEU São Mateus foi histórica para nós. Deu nó na garganta. Enchemos um teatro para 400 pessoas, que se conectaram de uma forma com músicas que eles nem conheciam. Foi muito marcante”, conta Amadeu. A viagem serviu para divulgar o segundo CD da banda, Tambores do Meio do Mundo. Lançado no Amapá em 2011, o nome faz alusão ao fato de a linha imaginária do Equador, que divide o planeta em dois hemisférios, passar pela capital do estado. Ganhar os palcos de São Paulo é importante para qualquer artista mas há muitas fronteiras a se quebrar antes disso no próprio Amapá, acreditam os músicos. “O santo de casa não faz milagre. Tudo depende de mídia. Já tivemos uma experiência que mostra bem isso. Uma música que a gente gravou, mas nem cantava, foi usada pelo governo do estado em uma campanha publicitária para mostrar a beleza, o povo daquela região. Hoje é uma espécie de hino do estado”, conta Amadeu sobre a canção Jeito Tucuju. O termo é um dos gentílicos possíveis para o povo do Amapá e faz referência a uma tribo indígena que ocupava o território. Os músicos também são fundadores do movimento Costa Norte, surgido no final dos anos 1980 para fortalecer a identidade do estado e divulgar trabalhos autorais. “As pessoas iam para o Rio, Bahia, Goiânia e as pessoas de lá perguntavam: ‘Qual é a cultura de vocês lá? Não tem artistas na sua terra?’”, conta Amadeu. Artistas, o estado tinha – e tem. Mas sem contar com a atenção do mercado fonográfico, os músicos apresentavam seu trabalho apenas esporadicamente, em festivais. “Daí a gente decidiu que ia levar aquela música para os barzinhos também. Porque a gente tocava todo tipo de música, menos a nossa. Fazia propaganda dos outros e não fazia a nossa.” Talvez pela temática, o trabalho do Senzalas seja insistentemente classificado como regional. Para Joãozinho, que diz não se incomodar com isso, não é. “Quando Tom Jobim canta o avião chegando ao aeroporto do Rio, não é regional. Quando os Beatles cantaram Penny Lane, que é uma alameda da Inglaterra, o mundo todo amou. Então ou tudo é regional ou tudo é universal”, provoca.


curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Documentarista brasileira viaja sozinha por cinco países e pela história de muitas mulheres. Tão Longe É Aqui, de Eliza Capai, traz o choque e o entendimento entre culturas diferentes

Viagem sem roteiro pela África

“O

uerida filha. Minha filha querida, pela primeira vez, cruzo o Atlântico. Do Brasil para a África. Sigo sozinha com uma mochila, uma câmera, microfone, fazendo umas reportagens. Nunca tinha embarcado para tão longe. Não planejei muito, saí sem roteiro. Eu quero dividir contigo o que fui encontrando.” Em 2010, às vésperas de completar 30 anos, a jornalista e documentarista brasileira Eliza Capai passou sete meses viajando sozinha pela África. O documentário Tão Longe É Aqui, lançado no mês das mulheres, é o resultado dessa imersão em um continente de histórias. O longa-metragem realizado por meio de financiamento coletivo é uma espécie de road-movie em que Eliza conta as impressões que ia tendo sobre a vida das mulheres que encontrou enquanto perambulava por Marrocos, Cabo Verde, Mali, Etiópia e África do Sul. “Muitas vezes, era difícil imaginar viver como aquelas mulheres com quem eu conversava. Pouco a pouco, a incompreensão que nascia do choque entre universos tão diferentes – poligamia, meninas com clitóris cortados, leis punitivas para o sexo antes do casamento – gerou uma crise: encarei meu próprio preconceito, minha própria cultura machista”, afirma a diretora, que durante todo o filme parece combater suas próprias noções pré-concebidas do que era ou deveria ser a África.

No Mali, um dos países mais pobres do mundo, conhecido pela prática da mutilação genital feminina e pelo direito (dos homens) à poligamia, Eliza se abate e se sente culpada. “Eu realmente detesto a arrogância de vir a uma outra cultura e dizer ‘Isso é bom. Isso não é bom’. Mas é difícil de compreender”, assume a uma de suas entrevistadas, que responde com uma serenidade majestosa. “Eu penso que é apropriado que cada sociedade faça sua própria análise. Não há modelo perfeito da situação da mulher. É verdade que as mulheres têm problemas – na África, assim como na Europa e no Brasil. As situações são diferentes e eu acho que chegou a hora de dar a palavra às próprias mulheres. A gente não pode emancipá-las por elas, assim como não pode querer o desenvolvimento da África sem a participação dos africanos”, rebate a malinesa Awa Meite. Vendedoras, meninas, professoras, camponesas, advogadas, mulheres com Aids, marcadas pelo divórcio em um país muçulmano, lésbicas. Pelo caminho, Eliza deparou com histórias de vida tão diversas quanto surpreendentes, que deixam claras as barreiras culturais entre a diretora e as entrevistadas, mas que, acima de tudo, evidenciam a cumplicidade entre mulheres. Afinal, todas sabem onde dói cada ferida, seja ela causada por palavras ou chibatadas. Tão Longe É Aqui pode ser assistido em www.taolonge.com REVISTA DO BRASIL

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Malala para crianças

A história da jovem paquistanesa Malala Yousafzai ficou conhecida no mundo todo quando, aos 16 anos, ela se tornou a mais jovem candidata a receber o prêmio Nobel da Paz por sua luta pela educação feminina. Depois do sucesso da autobiografia Eu Sou Malala, sua trajetória chega agora para o público infantil. Em Malala, A Menina que Queria Ir para a Escola (Cia. das Letrinhas, 96 págs.), a repórter brasileira Adriana Carranca traz suas percepções sobre a história da região onde a garota viveu e a definição dos termos mais importantes para entender a realidade desta menina que quase pagou com a própria vida por lutar contra o machismo e pelo direito de ir à escola. R$ 29,90.

FOTOS WILLIAM EGGLESTON/DIVULGAÇÃO

Anne Dorval vive o papel de Diane

Cores à americana Ser mãe A vida de Diane (Anne Dorval) está longe de ser um mar de rosas. Mãe solteira, ela tem de cuidar sozinha de Steve (AntoineOlivier Pilon), seu filho de 15 anos com sérios problemas de comportamento. Ao tirá-lo da instituição onde ele estava internado, em Montreal, ela assume a responsabilidade em tempo integral do garoto cujo humor oscila facilmente entre afeição extrema e violência desmesurada. Só a chegada inesperada da vizinha Kyla (Suzanne Clément) traz um equilíbrio momentâneo à situação. Amor e raiva, culpa e alívio, sonho e realidade, Mommy, quinto longa-metragem do ator e cineasta canadense Xavier Dolan, mostra as dificuldades e a dualidade uma mãe na educação de um filho violento. Lançado em DVD. 48

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Eram anos de Elvis Presley e Martin Luther King, em que as cicatrizes do passado escravocrata ainda sangravam o sul dos Estados Unidos com intensos conflitos raciais. Por outro lado, ali também estava a classe média, ávida para usufruir dos novos padrões de consumo. Foi esse furor pela modernização que o fotógrafo William Eggleston captou durante os anos 1960 e 1970. Suas imagens coloridas e vibrantes ficaram conhecidas em 1976, quando o artista expôs no MoMa, o Museu de Arte Moderna, em Nova York. Boa parte dessas fotos está em cartaz na exposição William Eggleston – A Cor Americana, até 28 de junho, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro. De terça a domingo, das 11h às 20h, na Rua Marquês de São Vicente, 476, Gávea. Mais informações: (21) 3284-7400. Grátis.


FOTOS JOSÉ VIEIRA/DIVULGAÇÃO

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Muitos Leminskis

Mais de mil objetos que retratam a vida e obra do poeta curitibano Paulo Leminski estão em cartaz até 3 de maio na Caixa Cultural São Paulo. Considerada a maior exposição já realizada sobre o autor, a mostra itinerante Múltiplo Leminski reúne livros, pinturas, poesias, vídeos, filmes e até a escrivaninha em que ele produziu boa parte de sua obra. Com curadoria da ex-mulher Alice Ruiz e das filhas

Aurea e Estrela Ruiz, a mostra revela as várias facetas de Leminski, que além de poeta, era músico, compositor, romancista, ensaísta, tradutor, publicitário e judoca. Depois de São Paulo, o acervo passa ainda pela Caixa Cultural de Fortaleza e do Rio de Janeiro. De terça a domingo, das 9h às 19h, na Praça da Sé, 111. Mais informações em www.multiploleminski.com.br. Grátis.

© SUCCESSION PABLO PICASSO/AUTVIS, BRASIL 2015

“Mulher sentada apoiada sobre os cotovelos”, pintado em 1939

Influências de Picasso A exposição Picasso e a Modernidade Espanhola, em cartaz até 8 de junho

no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, apresenta 90 obras que evidenciam a influência do pintor e escultor na arte moderna espanhola. A mostra apresenta o percurso de Picasso como artista e como mito até a realização de Guernica, além de sua relação com Miró, Dalí, Dominguez, Gris, Tàpies, entre outros artistas que também fazem parte da exposição. Em 24 de junho, Picasso e a Modernidade entra em cartaz no CCBB-RJ. Em São Paulo, de quarta a segunda-feira, das 9h às 21h, na Rua Álvares Penteado, 112, centro. Mais informações: (11) 3113-3651. Grátis.

Big band brasileira Cheio de influências da Tropicália, com pegada rock, pitadas de carimbó e de eletrônico, a banda Chá de Boldo lançou seu terceiro disco, Presente. Com 11 faixas, o álbum traz parcerias com Tatá Aeroplano e Iara Rennó, Marcelo Segreto, da Filarmônica de Pasárgada e a releitura de Jovem Tirano Príncipe Besta, de Negro Léo. De sonoridade um tanto experimental, o som da trupe capta o ouvinte da primeira à última música que, aliás, faz uma sátira ao tamanho da banda composta por 13 integrantes: “Uma banda grande é demais, não cabe no elevador, não cabe no camarim, não cabe no estúdio, não cabe nos jardins, não cabe no mercado”, brinca a letra de Uma Banda. Grátis para download em www.trupechadeboldo.com. REVISTA DO BRASIL

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LUIZ RUFFATO

Pink Floyd e eu (Para Helena Ruffato)

T

alvez por temperamento, nunca tive ídolos. Para idolatrar alguém ou algo torna-se necessário vestir os óculos da paixão, que nos veda a luz e impede o raciocínio. No plano individual, a paixão deseja a morte do objeto venerado, o “alguém”, que nos satisfaz apenas como projeção de uma ideia que construímos a respeito dele. No plano coletivo, agarramo-nos a “algo” que nos fortalece a sensação de pertencimento (clube de futebol, cantores populares, líderes religiosos, partidos políticos) e pregamos a aniquilação do outro diferente de nós. A idolatria age por exclusão, por isso mantenho-me distanciado de discursos arrebatados, que são, ao fim e ao cabo, fundamentalistas. Isso não significa, claro, que não tenho admirações, encantamentos, fascínios. Zico e Tostão permanecem para mim como exemplos de jogadores de futebol, por seu comportamento dentro e fora do campo. Torço para o Flamengo (tenho uma pequena coleção de camisas retrô, que inclui a utilizada no ano do meu nascimento) e releio sempre Machado de Assis, Balzac e Tchekov. Adoro meus gatos, Federico Felino e Sky, que não são deuses egípcios reencarnados, mas unhas afiadas que destroem os móveis do apartamento. Guardo algumas lembranças agradáveis da infância em Cataguases, mas reconheço minha cidade-natal pobre, feia, provinciana. E gosto imenso de Pink Floyd, cuja música me acompanha desde os 14 anos de idade. Era verão e eu não sabia que em três anos minha vida mudaria para sempre. Naquele momento, habitava o corpo franzino de um garoto triste que perdia o sono assustado com o coaxar das estrelas no céu imenso, apavorado com a possibilidade de o mundo sucumbir numa hecatombe nuclear – pela manhã, eu me olhava no espelho e sentia uma genuína vontade de morrer... Montava na bicicleta freio contra-pedal e atravessava a cidade carregando trouxas de roupa lavada e passada para a clientela da minha mãe. Invisível, entrava pela porta lateral das casas e entrevia universos tão longínquos quanto aqueles que imaginava à noite deitado na minha cama, a janela emoldurando o firmamento. A kombi estacionou no meio-fio e o rapaz, bigode e cabelos negros ondulados na altura dos ombros, subiu as escadas. Filho do dono de uma padaria, Z. ajudava a família distribuindo pães para os armazéns, restaurantes, bares e botequins. Simpático, usava roupas extravagantes e arrastava fama de maconheiro, categoria na qual a polícia classificava desde consumidores e traficantes até pessoas indesejadas de maneira geral (rebeldes, agitadores, indisciplinados, revoltosos), para marcá-las como contestadores da ordem, da moral, dos bons costumes. Z. en50

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tregou a trouxa de roupa suja para minha mãe e voltou-se para mim, que ouvia, melancólico, temas de faroeste-espaguete de Ennio Morricone, um dos seis ou sete elepês que meu irmão comprara com o toca-discos Philips no Natal (alguns dos outros: Ray Coniff, Músicas Inesquecíveis - Volume 1, Contos dos Bosques de Viena de Strauss, O melhor da música italiana, Burt Bacharach...). Z. falou: “Vou trazer um negócio pra você.” Apareceu à tarde, me repassou um disco que estampava uma vaca na capa (o que me conquistou de imediato a estima, pois remetia às minhas férias na roça), alertando: “Só tome cuidado pra não arranhar...” Custei a tomar coragem para assentar aquela bolacha preta no prato da eletrola, mas quando o fiz foi um alumbramento. Os sons de metais ritmados pela bateria misturavam-se a relinchos de cavalos e barulho de motocicletas, coroados por violinos angelicais, batidas eletrônicas e solos de guitarra, guindando-me a um voo sobre minha casa tão modesta. Lá de cima enxerguei minha mãe, lenço abraçando os cabelos castanhos, as mãos azuis de água de anil; enxerguei meu pai, terno e gravata, arrastando os sapatos em círculos infindos; enxerguei meu irmão apascentando o pomar, que breve seria sufocado pelo matagal; enxerguei minha irmã a chulear as horas, ansiando enredos de contos de fadas. Eu começava a me despedir de todos... Eu queria salvá-los, mas não podia... “Se eu fosse um trem, estaria atrasado”... Na semana seguinte, Z. pegou o disco, feliz por saber que havia me maravilhado. No entanto, suas visitas espaçaram-se e em menos de seis meses ele sumiu de vez. Descobrimos então que seus pais, preocupados com as más companhias, haviam resolvido enviá-lo para um colégio interno no interior de São Paulo, onde contavam com parentes. Anos depois, ele retornou à cidade, convertendo-se num agiota famoso na região. Hoje, estão todos mortos, minha mãe, meu pai, meu irmão. Parte de mim imergiu com eles, parte permanece, como uma canção de Pink Floyd – cicatriz intangível na espessura da alma. Texto publicado originalmente no El País Brasil


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