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FLÁVIO DINO Sangue novo no governo do Maranhão

O GAÚCHO NEGRO Ensaio revela personagem invisível para a cultura branca

nº 102 dezembro/2014 www.redebrasilatual.com.br

DEMOCRACIA EM RISCO

Dilma deve abraçar a mobilização que assegurou sua vitória para promover as mudanças que o país exige: o fim do financiamento privado de campanhas e a democratização dos meios de comunicação


Sintonize a frequência que dá as notícias que os outros não dão. E ainda tem cultura, esportes e música brasileira

93,3 FM

98,9 FM

102,7 FM

LITORAL PAULISTA

GRANDE SÃO PAULO

NOROESTE PAULISTA

www.redebrasilatual.com.br/radio


ÍNDICE

EDITORIAL

6. Na Rede

Notas que foram destaque na RBA no mês que passou

8. Rádio

Contra desigualdade, África se inspira em programas brasileiros ICHIRO GUERRA/DILMA 13/FOTOS PÚBLICAS

10. Entrevista

Eleito no Maranhão, Flávio Dino quer união contra o golpismo

16. Política

Os tentáculos de Eduardo Cunha pela presidência a Câmara

22. Sociedade

Futuros médicos e a violência na Faculdade de Medicina da USP

Na reta final, quem garantiu a reeleição, contra o golpe, foram os movimentos sociais

24. Trabalho

Concentração fundiária e mudanças na produção expulsam agricultores Os percalços da população de Itu, em SP, em busca de água

32. Cidadania

Ninguém sabe, mas os negros já foram metade da população gaúcha

36. História

MICHEL MEYNSBRUGHEN/FREEIMAGES

Aracy, mulher de João Guimarães Rosa, e a luta contra o Holocausto

Ascensor em morro de Valparaíso

40. Viagem

Valparaíso, no Chile, se organiza para voltar a ser a Joia do Pacífico

Seções Cartas

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Mauro Santayana

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Emir Sader

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica

50

Dias sem tédio virão

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28. Ambiente

segundo governo Dilma ainda não começou, mas o primeiro não termina bem. Um mês depois da vitória nas urnas, gestos da presidenta reeleita causavam apreensão nas forças progressistas que tiveram papel decisivo no segundo turno. Para acalmar a sanha do mercado financeiro, especulativo e sabotador, a presidenta indicou a montagem de uma política econômica mais conservadora do que a que conduzira nos últimos anos, assegurando estabilidade, empregos e renda. Em outro sinal conciliador com as bancadas empresariais que mandam no Congresso, entregou o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio para um representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Armando Monteiro, e o Ministério da Agricultura para a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), da Confederação Nacional da Agricultura (CNA). O peso do dinheiro empresarial nas eleições é decisivo para a composição desse Congresso que está longe de representar a sociedade brasileira. O Legislativo, para piorar, tem chances de ser chefiado pelo deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Cunha é uma das principais referências dos lobbies empresariais na Câmara. E garantirá – nos dizeres do governador eleito do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), em entrevista nesta edição – que o governo Dilma não tenha um único dia de tédio em seu novo mandato. É fato que nem Dilma, nem Lula, em seus 12 anos de governo, podem ser responsabilizados pelos sistemas político e partidário aos quais são subordinadas as regras eleitorais e a tal da governabilidade. Tampouco podem responder pela rede de empresários corruptores e de políticos corruptos que contaminam o Estado brasileiro desde dom João VI. E muito menos têm culpa pelo fato de o sistema de comunicações do país ser dominado por meia dúzia de famílias, que hoje formam o principal partido de oposição. Entretanto, mediram mal a capacidade da imprensa corporativa de estragar a festa, e pouco foi feito para que o Brasil superasse essas mazelas. De todo modo, ainda há tempo de sair do “terremoto político” proporcionado pela Operação Lava Jato com objetivos mais ousados. Para tanto, é preciso saber unir forças também em torno dos movimentos da sociedade que asseguraram as duas reeleições, tanto de Lula, em 2006, quanto de Dilma, agora. As agendas da reforma política e da regulação dos meios de comunicação são inadiáveis. REVISTA DO BRASIL

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CARTAS uma boa campanha. Contudo, o que está em jogo não é esta ou aquela proposta. A vitória democrática foi a vitória do interesse da maioria brasileira. Antonio Francisco

www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia: Sônia Oddi Capa Imagens de Alashi/Getty Images, Luísa Santosa/RBA (Flávio Dino) e Eduardo Tavares (gaúcho) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Roberto Salvador, Raimundo Suzart, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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REVISTA DO BRASIL

Tamires Gomes Sou professor de História. Trabalho em uma escola pública em Brasília. Nossos alunos e alunas são em sua maioria de cidades satélites, inclusive, muitos do entorno. São filhos e filhas de trabalhadores. Muitos viajam de 30 a 50 quilômetros até uma escola no Plano Piloto. Nossa escola não conhece a questão negra. Nossos jovens não têm aula sobre a África. Um colega foi surpreendido quando resolveu passar um filme sobre religiões afro-brasileiras, e parte dos estudantes se recusou a assistir e ameaçou sair da sala. A África é importante demais para se reduzir a palestras pontuais e/ou eventos de curta duração e folclorizados. Parabéns, Tamires, muita força e continue sua luta (“Da periferia para o Centro Acadêmico”, edição 101). José Gilbert Martins Vitória da democracia Em política de país democrático devem-se evitar algumas generalidades, do tipo “este partido é do mal e aquele outro é do bem”. Dentro da democracia, o partido que melhor apresenta sua campanha em vista da maioria é o partido que vencerá; se não fosse assim, não seria um país democrático (“Sociedade garante vitória da democracia”, edição 101). O PSDB usou de suas armas para vencer da melhor forma que pôde. Fez

Lalo Leal É preciso fazer cumprir a Constituição no que tange à propriedade de meios de comunicação (“O frio na barriga podia ter sido evitado”, edição 101). Político não pode ter concessão. Um segundo ponto seria não a regulação do que se veicula, mas a responsabilidade. Faça a notícia que quiser, seja responsabilizado por ela, porque atualmente publica-se qualquer indício como manchete e depois cai no esquecimento. Um dos meios poderia ser o corte de publicidade oficial e outro a obrigatoriedade de mesmo espaço/tempo para veiculação de esclarecimento. Rogerio Schmidt Jeosafá Gonçalves Grande escritor e ativista (“Do bairro para o mundo”, edição 101). Conheci-o, claro, na militância das ruas, considero um privilégio suas histórias e estudos contra a alienação. Agradeço a ele pelas discussões e debates que tivemos juntamente com mentes mais assertivamente comunistas que já conheci pessoalmente. Obrigado, Jeosafá, inclusive pelas dedicatórias nos livros presenteados. Li e recomendei a outras pessoas que não possuem o hábito de ler. Pedro Henrique Guerrilheiros verdes Ótimo texto. É incrível essa aproximação homem-natureza, não ficando adstrito somente às comunidades rurais, sem falar no fortalecimento das relações interpessoais (“Guerrilheiros verdes de Nova York”, edição 101). Um exemplo a ser seguido. Thomaz Willian

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


MAURO SANTAYANA

Golpismo, ‘comunismo’ e reforma política

Doadores de campanhas não agem por interesse público. Não são “azuis” nem “vermelhos”. As distorções históricas do sistema político ainda sustentam um modelo que o país tem o desafio de superar

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as últimas semanas, insatisfeitos com o resultado das eleições, golpistas que nos últimos anos praticavam seu ódio à democracia e às instituições pela internet têm convocado caminhadas pelo país, pedindo o impeachment da presidenta Dilma Rousseff ou intervenção militar. Para tentar derrubar o governo, os novos golpistas fazem como fizeram os que os antecederam na história brasileira, que praticamente mataram Getúlio em 1954, tentaram inviabilizar Juscelino Kubitscheck em 1955 e derrubaram João Goulart em 1964. Apelam para o tosco, velho e surrado discurso anticomunista da época da Guerra Fria, que justificou crimes como os milhares de civis mortos e torturados no Chile, na Argentina, na Indonésia, e em conflitos prolongados e estéreis como a Guerra do Vietnã. Dizer que é comunista um país em que o sistema financeiro lucra bilhões, em que as multinacionais fazem o mesmo e remetem fortunas para o exterior, em que qualquer cidadão pode montar um negócio a qualquer momento, com ajuda do governo e de instituições, como o Sebrae, e em que nossos armamentos são produzidos em estreita cooperação com empresas inglesas, norte-americanas, francesas, suecas, israelenses, é tremenda hipocrisia. À oposição institucional cabe também agir com responsabilidade. Caso fosse adiante um pedido de impeachment, ou caso venha a ser impedida por outras manobras a diplomação de Dilma Rousseff, a ascensão do vice Michel Temer à Presidência da República corroeria, em vez de ajudar, as chances de Aécio Neves de chegar ao Palácio do Planalto em 2019. E na remotíssima possibilidade de os golpistas terem sucesso por outros meios, jamais entregariam o poder ao ex-governador mineiro. Os mais radicais o desprezam e desconfiam de seu discurso antipetista. O problema do Brasil não é comunismo, como apregoam essa minoria extremista e alguns golpistas de plantão, em seus comentários nos portais e redes

sociais. O que põe a opinião pública em estado de perplexidade é a corrupção. Esse mal nasce de uma acumulação histórica de defeitos no universo político, como o clientelismo e o fisiologismo, que vêm desde o Brasil Colonial. Sua raiz está na busca permanente do poder, por partidos e candidatos, e da necessidade de fontes de financiamento para suas campanhas. No caso da Petrobras, o próprio Ministério Público declarou que o esquema funciona desde 1999 – logo, ainda antes da chegada do PT ao poder. Quando das manifestações de junho de 2013, Dilma saiu em defesa de reformas que tirassem o país da dependência desse quadro de relações incestuosas entre o governo e o Congresso, e de se criarem mecanismos que permitissem maior espaço para a população manifestar seus anseios e interesses. Suas teses, no entanto, não prosperaram no Legislativo. Agora, que a reforma política volta à tona, o que importa é saber se teremos uma de fato, ou se uma reforma de faz de conta, comandada pelos grupelhos de sempre, com mudanças cosméticas para enganar a população. O caixa dois não é mais do que uma extensão do financiamento eleitoral privado, e legal. O menos citado caixa um, que poderia ser suprimido por meio do financiamento público de campanhas, como prevê a proposta de reforma política defendida por entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e tantas outras entidades e movimentos com representação em amplos setores sociais. No meio desse processo estão pilantras que aparecem para viabilizar “negócios” e “acertos”, extorquem recursos de empresas e irrigam, com parte dos recursos auferidos, candidatos e partidos. Eles não agem em nome do interesse público ou partidário, não são “azuis” ou “vermelhos”, nem “golpistas” nem “comunistas”. Se existisse um termo exclusivo para defini-los, seria simplesmente “corruptistas”, ladrões que se aproveitam das distorções históricas do atual sistema político. REVISTA DO BRASIL

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Em defesa da vida Lançada pela Anistia Internacional Brasil, a campanha Jovem Negro Vivo coleta assinaturas reivindicando que as autoridades brasileiras assegurem aos jovens negros o direito a uma vida livre de violência, investindo em políticas integradasdesegurançapública,educação e trabalho. De acordo com o Mapa da Violência – pesquisa baseada em dados oficiais do Sistema de Informações de Mortalidade do Ministério da Saúde –, 82 jovens com idades entre 15 e 29 anos são mortos por dia, sendo 77% deles negros,moradoresdeperiferiaseregiões metropolitanas.“Alémdeserumpaíscom um dos maiores índices de homicídios no mundo, o Brasil está matando mais seus jovense,entreestes,osnegros.Osnúmeros são chocantes. A indiferença com a qual o temaétratadonaagendapúblicanacional é inaceitável”, afirma Atila Roque, diretor executivo da Anistia Internacional Brasil, duranteolançamentodacampanha,dia9 denovembro,noRiodeJaneiro.Deacordo com a Anistia, ainda haverá mais duas etapasdacampanha,quesedesenvolverá durantetodooanode2015.Asassinaturas e a reivindicação serão entregues para a presidenta Dilma Rousseff e aos 27 governadores estaduais. O manifesto pode ser assinado na página da Anistia Internacional Brasil. http://bit.ly/rba_homicidio_negros 6

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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Avanços com a canabis

ABIR SULTAN/EPA/EFE

ANISTIA.ORG.BR

redebrasilatual.com.br

Os cidadãos do Distrito de Columbia, onde fica Washington, a capital dos Estados Unidos, aprovaram em referendo a posse e o cultivo da maconha com fins recreativos, uma iniciativa similar à que também foi votada no Alasca e no Oregon.“Istoéumsucessodetodosquelutarampelalegalizaçãodamaconhahá anosemD.C.(DistritodeColumbia)”,explicouAdamEidinger,presidentedaDC Cannabis Campaign, grupo favorável à legalização. A Iniciativa 71, que legaliza a posse de pequenas quantidades para uso pessoal, foi rejeitada por 29,45%. O eleitorJasonSprolesdisseàagênciaEFEqueacreditaquea“iniciativavaleapena”, comoprovamasexperiênciasdoestadosdeColoradoeWashington.Assimcomo em outros 22 estados, o uso medicinal da maconha já é legal em Washington, ondeaprefeituratambémdescriminalizounoanopassadoapossedepequenas quantidadesdemaconha,oquepassouasertratadodeformaparecidaaalgumas infraçõesnotrânsito,compuniçãoatravésdemultas.Noentanto,anovainiciativa referendadavaimaislongeaoeliminarqualquerpuniçãopelapossedepequenas quantidades. Continua proibida a criação de mercado legal para venda. http://bit.ly/rba_cannabis

A lembrança de Santo Dias Uma procissão de cerca de 50 operários, sindicalistas e militantes políticos caminhou no último 30 de outubro na rua Quararibeia, zona sul de São Paulo, para relembrar um episódio trágico da história brasileira que ocorreu naquele endereço há 35 anos: o assassinato do metalúrgico Santo Dias da Silva pela Polícia Militar, minutos depois de ele aceitar pacificamente encerrar um piquete que ocorria em uma fábrica no local. O crime, considerado“incompreensível”por amigos e familiares, fez do operário um mártir da democracia e da luta sindical contra a ditadura civil-militar (1964-1985). Os manifestantespintaramaruadevermelho,ilustrandoosanguederramadoemdefesade seusideais.“SantoDiaseraumlíderdacomunidade,queparticipavaativamentedaigreja erepresentavaaPastoralOperárianaCNBB(ConferênciaNacionaldosBisposdoBrasil). Eraumcompanheirodeluta,apaixonadopelotrabalhosocial,comumacapacidadeímpar deorganizarostrabalhadores.Eraconhecidoportodos”,lembrouoex-padreRaimundo Perillat, que militou com Santo Dias. http://bit.ly/rba_santo_dias


TVT

Moradores querem urbanização

Canal 44 UHF Digital: Grande São Paulo. Canal 2 NET Digital: São Paulo (das 19h às 20h30). Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br

FOTOS DANILO RAMOS/RBA

O Moinho segue vivo Os moradores da favela do Moinho, no bairro do Bom Retiro,regiãocentraldacapitalpaulista,aindaaguardam posição da gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) sobreoprojetodeurbanizaçãoeregularizaçãofundiária do local. A relação entre a gestão Haddad e os moradores é antiga. Em 19 de setembro de 2012, o então candidato esteveláapósincêndioquedestruiu80moradiasedeixou 300pessoasdesabrigadas.Conversoucommoradorese gravou programa no local, afirmando que ia “trabalhar muitopararegularizarasituaçãodesteterreno,daravocês a propriedade que é de direito de vocês”. Em 5 de julho de 2013, os moradores realizaram manifestaçãoreivindicandoqueoprefeitocumprisseas promessas.Houvedepoisduasreuniõescomeleeoutras dezenas com representantes da administração. Mas nada foi efetivado. Os moradores mantêm as mesmas reivindicações desde 2012: regularização fundiária, urbanização participativa da comunidade, efetivação dosserviçosdeáguaencanada,esgoto,energiaelétricae coletadelixo,construçãodeáreadelazer,equipamentos de combate a incêndios e derrubada do muro que foi construído após outro incêndio, de dezembro de 2011, paragarantirumarotadefuga.Hoje,cercade600famílias recebem auxílio aluguel, vivendo fora da comunidade. Outras500permanecemnolocal.http://bit.ly/rba_moinho

Se alguém ainda não entendeu a importância da lei que prevê a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo das escolas do país, atenção à explicação de Gustavo Gomes da Silva: “Mesmo que os contos africanos não tenham moral, como as fábulas, há uma O vídeo com Gustavo foi visto na internet mais de 250 moral que você toma pra mil vezes em uma semana você, como ser humilde, aprender a ser forte, respeitar os outros, aprender que ninguém vive sozinho, que ninguém pode viver isolado mas estar em conjunto para combater o preconceito, a fome. Porque tudo nesse mundo cria um debate, vai ter sempre alguém que vai ser racista, com opinião diferente. Eu gosto de aprender sempre pra mostrar pra pessoa como é ser negro e mudar o ponto de vista da pessoa sobre como você se vê. E não pra deixá-la no chão”. A opinião consciente, madura e articulada podia bem ser de um experiente militante do movimento negro. Mas não é. Gustavo é um estudante de ensino fundamental, tem apenas 10 anos, e deu seu depoimento à repórter Michelle Gomes, da TVT, sobre o “leituraço” de contos afro-brasileiros promovido na rede municipal de ensino da cidade de São Paulo na primeira quinzena de novembro. A reportagem foi exibida no noticioso Seu Jornal, que vai ao ar diariamente às 19h. A atividade marcou o projeto da Secretaria Municipal de Educação para ampliar a discussão e reflexão na sociedade a respeito das raízes dos brasileiros de origem africana no mês dedicado à consciência negra em alguns municípios. O projeto envolveu 800 mil alunos de 1.462 escolas de educação infantil e de ensino fundamental e médio em atividades de leitura e debate de obras africanas e afro-brasileiras. Sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda em 2003, a Lei 10.639 prevê a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura afro-brasileira no currículo das escolas do país. No entanto, ainda não saiu totalmente do papel. Quando finalmente sair, opiniões como a de Gustavo certamente se tornarão mais presentes entre crianças e adultos brasileiros. REVISTA DO BRASIL

REPRODUÇÃO/TVT.ORG.BR

Um sábio de 10 anos de idade

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RÁDIOBRASILATUAL

93.3 FM: Litoral paulista. 98.9FM: Grande S. Paulo. 102.7FM: Noroeste paulista www.redebrasilatual.com.br/radio

RICARDO STUCKERT/INSTITUTO LULA

Ponte Brasil-África

P

Com PIB crescendo mais de 6% ao ano, países africanos se espelham em programas brasileiros para reduzir a desigualdade

or preconceito ou submissão ao poder dos Estados Unidos e da Europa, sempre no foco de seus noticiários, a mídia tradicional ignora a África em sua cobertura. Noticia apenas o que convém, como doenças e instabilidades políticas, e nem se dá ao trabalho de acompanhar o que acontece naqueles países, que desde o começo dos anos 2000 avançam anualmente seus PIBs em mais de 6%, consolidam seus regimes democráticos e se voltam para a necessidade de reduzir desigualdades. Nesse período, 38 dos 44 países africanos se livraram do jugo de regimes ditatoriais, estabelecendo eleições livres e diretas. É nesse contexto, fundamental para o desenvolvimento econômico e social, que Brasil e África estreitam suas relações. “É muito gratificante ver que nossos programas sociais se tornaram o melhor produto de exportação brasileiro”, disse o diretor do Instituto Lula, Celso Marcondes, em entrevista a Oswaldo Colibri Vitta, da Rádio Brasil Atual. Marcondes é coordenador do projeto Iniciativa África, criado pelo ex-presidente Lula para contribuir para o fortalecimento dos laços comerciais, sociais, políticos e econômicos com o continente por meio da cooperação técnica, cultural e diplomática na luta pela paz, pela democracia e pelos direitos humanos. 8

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PATRONO Lula visita projeto de agricultura familiar em Angola

REVISTA DO BRASIL

“O que poucos sabem é que diariamente vêm ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome delegações de todo o mundo, principalmente da África. São ministros, técnicos, secretários que vem conhecer mais sobre o Bolsa Família, o programa de agricultura familiar, de merenda escolar, do Minha Casa Minha Vida”, disse. Em abril passado, Lula esteve em Angola para falar com mais de 800 lideranças dos 55 países africanos somente sobre o Bolsa Família. Ele destacou que a percepção dos africanos sobre o Brasil é a da “colônia que deu certo, que está crescendo e se desenvolvendo” e por isso serve de modelo e inspiração para os governos que buscam desenvolvimento com justiça social. A parceria firmada com cinco países já dá resultados, como o programa My House My Life, criado pelo governo de Gana nos moldes do Minha Casa Minha Vida, e o adotado no Senegal, que estimula e subsidia a agricultura familiar, comprando a produção para utilização na merenda escolar. Ainda de acordo com Marcondes, essas relações tornam-se ainda mais relevantes quando a história dos parceiros se misturaram nos 300 anos em que o Brasil explorou mão de obra escrava africana, chegando a ter em seu território mais 4,5 milhões de africanos.


EMIR SADER

Paradoxos do novo mandato de Dilma A presidenta reeleita Dilma Rousseff saiu da campanha mandatada por seus eleitores para avançar em temas cruciais: democratização dos meios de comunicação, reforma política e novo ciclo de crescimento

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própria circunstância do recente processo eleitoral refirmou a necessidade de romper os monopólios e oligopólios na mídia brasileira, sem o que os próprios debates políticos no Brasil são viciados por participações desproporcionais de meios de comunicação, que reafirmam seu papel de partido da oposição. A composição do novo Congresso, por sua vez, representa um apelo ainda mais forte para que o poder do dinheiro não seja determinante na representação parlamentar. Ainda antes que se desse a prisão dos executivos de empreiteiras brasileiras no último 14 de novembro, já era pública a lista das dez grandes empresas que financiaram a eleição de 70% dos congressistas brasileiros. Cinco dessas empresas estão entre as envolvidas em investigação no escândalo da Operação Lava Jato, o que por si só reforça a necessidade do financiamento público das campanhas eleitorais. Dilma reafirmou, durante a campanha, a necessidade do país de retomar um novo ciclo de crescimento econômico, para construir a infraestrutura de que o Brasil necessita para aprofundar e estender as políticas sociais, além de manter a linha de proteção do nível de emprego e a tendência de aumento da renda do trabalhador. Porém, essas necessidades se chocam com a correlação de forças políticas concretas com que o país sai das eleições. Em primeiro lugar, ficou claro durante a campanha eleitoral que o conjunto do grande empresariado está com uma postura de oposição política ao governo, o que ficou expresso com as manipulações da Bolsa de Valores. As especulações que seus porta-vozes na imprensa corporativa fazem circular sobre as autoridades econômicas servem para pressionar o governo e, eventualmente, manifestar descontentamento público caso os nomes escolhi-

dos para compor a equipe ministerial, em especial da área econômica, não sejam os da sua preferência. O que é certo, mais além das pressões que tentam emparedar a presidenta, é que o governo precisa encontrar formas de estabelecer um novo pacto com o grande empresariado, que dispõe dos recursos necessários para o país voltar a crescer. Além da indispensável baixa reiterada da taxa de juros, é preciso encontrar as formas de levar o grande capital a investimentos produtivos funcionais ao modelo econômico e de distribuição de renda, elemento essencial do governo. Por outro lado, a chamada base aliada está totalmente desarticulada. Se não se logra um acordo geral com o PMDB – que vai ter custos em termos de composição dos ministérios e execuções orçamentárias – a Câmara pode se tornar um espaço de oposição e de sabotagem. Como terceiro foco de problemas, o governo tem de encontrar uma forma de fazer valer a norma constitucional que proíbe monopólios e oligopólios nos meios de comunicação, assim como a propriedade de concessões de estações de rádio e TV por políticos com mandato, sem depender do Congresso. Também se espera que seja possível contar com a proibição de financiamentos empresariais em campanhas eleitorais, em votação já decidida pelo STF – embora ainda não concluída – , dado que o Congresso tampouco aprovaria algo nessa direção. Assim, se configura um quadro paradoxal para a transição ao novo ciclo pretendido por Dilma: por um lado, a militância que foi decisiva na sua vitória exige avanços; mas o bloqueio institucional que se monta contra ela a obriga a redefinir acordos com setores conservadores, sem os quais o boicote econômico e o cerco parlamentar pode tornar frustrante o seu segundo mandato. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

NA MARGEM ESQUERD Vencedor no Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), fala em unir forças progressistas no combate à desigualdade e à mídia oligárquica. Para ele, governos Lula e Dilma, ao não mexer com as comunicações, abriram a guarda para o golpismo Por Paulo Donizetti de Souza

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oma posse no governo do Maranhão em 1º de janeiro o comunista Flávio Dino. O candidato do PCdoB derrotou no primeiro turno, com 63,53% dos votos, Lobão Filho, do PMDB e uma coligação de outros 17 partidos, do DEM ao PT, com apoio do Palácio do Planalto. Como Dilma não foi ao estado, corria nas ruas e bastidores que a presidenta (que teve ali 78,76% dos votos) torcia calada por Dino. A militância petista, por sua vez, fez campanha aberta pelo nome que derrotaria o império econômico e midiático das famílias Sarney e Lobão, que detêm jornais e emissoras de rádio e TV, inclusive retransmissoras da Globo e do SBT no estado. A coligação de Flávio Dino tem legendas que se opõem a Dilma, como PP, PPS, e o vice, Carlos Brandão, do PSDB. Como entender as complexas alianças admitidas pelo desgastado sistema eleitoral brasileiro? O advogado Flávio Dino, professor de Direito da Universidade Federal do Maranhão, vê na frente que liderou o “sentido da modernização da política e da transformação da vida do povo”. Já na aliança com o PMDB, para ele o PT superestimou a capacidade do partido de Sarney de contribuir com a governabilidade. Dino começou a militância nos anos 1980. Foi advogado do Sindicato dos Bancários do Piauí quando presidido por Wellington Dias – que, aliás, também toma posse no governo vizinho em janeiro. Em 1994, ingressou na carreira de juiz federal, na qual permaneceu por 12 anos. Deixou a magistratura em 2006, filiou-se ao PCdoB e se elegeu deputado federal. Conhecedor profundo dos três poderes, Flávio Dino brinca que a presidenta Dilma não terá um único dia de tédio neste início de segundo mandato. Ele vê na Operação Lava Jato uma tempestade política, mas discorda de “catastrofistas” que dizem que o fim do mundo se avizinha. E aposta: essa tempestade ainda pode ter como principal saldo positivo o fim das doações de empresas a campanhas.

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Como um estado comandado sempre pelas mesmas forças políticas continua tão atrasado em termos de desenvolvimento humano?

A questão de essência é essa. A desigualdade profunda que faz com que um estado com tantas potencialidades naturais, culturais e econômicas não consiga realizá-las a ponto de garantir qualidade de vida para o povo. Esse é o desafio número um: como garantir que a mudança não seja apenas a mudança dos políticos, mas a mudança para o povo, das condições de vida. Nosso campo político elegeu 16 deputados estaduais, de um total de 42. Queremos avançar na formação de uma maioria parlamentar. A questão mais relevante é a alavancagem de investimentos públicos e privados que garantam crescimento, acompanhado de políticas sociais que assegurem serviços públicos universais, e melhorar a posição do Maranhão no que se refere ao IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) que, dependendo do atributo, sempre oscila entre as três últimas colocações do país, alternando com Piauí e Alagoas.


ENTREVISTA

RDA DO RIO DA VIDA As finanças do estado estão como o senhor imaginava, melhor ou pior?

As finanças estão até em condições de razoáveis para boas, considerando a situação muito pior de outros estados. O problema na transição é que há uma conspiração permanente para piorar a situação fiscal. Ideias que nunca haviam sido apresentadas nas últimas décadas, de repente surgiram. Conseguimos judicialmente impedir uma licitação que iria terceirizar o presídio de Pedrinhas, produzindo gasto mensal por preso na ordem de R$ 8 mil, três vezes mais do que a média nacional. Compensaria mais investir diretamente nas famílias dos presos do que mantê-los em um sistema dominado pelo crime organizado, a ponto de terem, hoje, as chaves das suas próprias celas. Estamos o tempo todo tentando desativar essas tentativas.

A relação com a governadora Roseana Sarney ajuda no processo de transição?

A rigor, não houve uma transição organizada por falta de iniciativa do próprio governo. Nós buscamos. Cheguei a enviar ofício para a governadora pedindo a colaboração. Não houve uma resposta adequada a isso. Infelizmente, a atual governadora não deu a orientação para seus secretários de ajudar na transição. O Maranhão compõe o chamado Meio Norte com o vizinho Piauí, do governador Wellington Dias (PT), que já tem um acúmulo de programas sociais e de desenvolvimento locais. Pretende adotar algum?

O governador Wellington é um amigo de longa data. Fui advogado dele quando era presidente do Sindicato dos Bancários do Piauí, já se vão quase três décadas. Tenho certeza que vou poder contar com a ajuda dele. Maranhão e

LUISA SANTOSA/RBA

A regulação da mídia é a principal dívida desses 12 anos de governo progressista. Faltou medir melhor o tamanho desse problema e enfrentá-lo

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Piauí, além da geográfica, têm proximidade também no dia a dia. O fato de ele ir para o terceiro mandato indica que teve mais acertos do que erros, e eu também quero ter mais acertos do que erros. No Maranhão, essa esperança conseguiu vencer o poder das mídias controladas pelas famílias Sarney e Lobão. Mas será possível governar com esse poder da mídia na oposição?

Nós enfrentamos isso desde sempre. Essa assimetria de meios, não só no que se refere à mídia, como ao poder econômico. Enfrentamos uma espécie de poder total, que tem múltiplos tentáculos. O importante é identificar isso como um obstáculo e ter as ações corretas para superá-lo. E a ação correta, no plano estadual, é avançar em mecanismos que democratizem a circulação de informações. Reestruturação do sistema público de comunicação. É possível, a partir de uma emissora pública de rádio, melhorar as condições de pluralidade na circulação de ideias na sociedade. Apoiar jornais regionais, pequenos jornais, blogs regionais e investir muito na extensão do acesso à internet, à banda larga, que é também um caminho para você diminuir essa assimetria absoluta, na medida em que eu não sou dono nem de rádio, nem de TV, nem de jornal, e não serei. No plano federal, a principal dificuldade dos governos do PT foi não ter mexido com os meios de comunicação?

Essa é a principal dívida desses 12 anos de governo do campo de esquerda progressista com o Brasil. Poderia e deveria ter avançado mais. Tenho a impressão que faltou medir melhor o tamanho desse proA palavra pragmatismo blema e enfrentá-lo com consistência e continuidade. Acompanhei, como deputado federal, a criação traz todos da EBC, Empresa Brasileira de Comunicação, discuos vírus e ti intensamente o projeto. Porém, esse é um esforço bactérias da praticamente isolado. Se nós pegarmos a política para negação da as rádios comunitárias, o que se alterou? Mesmo na boa política. internet se avançou pouco. Ao se pensar um segunPara uma do mandato da presidenta Dilma marcado por uma pessoa de cena política de muito embate, longe de isso levar ao esquerda, é rebaixamento de objetivos, deve levar a mais ousadia. muito danosa. A não priorização de determinadas questões acabou criando as condições até para que algo inimaginável, Uma coisa é há algumas décadas, se manifestasse agora, como esse a leitura da absurdo clamor por um golpe militar. realidade e

senso prático. Outra é absolutizar tudo isso, que é o pragmatismo 12

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Esse discurso golpista ainda está na boca de uma minoria, mas parece ser estimulado por algumas forças de oposição. Algumas declarações de Aécio Neves, FHC, Aloysio Nunes não criam um ambiente perigoso para a democracia?

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Todo democrata sincero deve, em primeiro lugar, fazer um apelo às forças políticas do país para que tenham responsabilidade e zelo com o Estado democrático de direito, que foi tão duramente conquistado. Esse jogo da perenização do ódio é o jogo da negação da democracia. Isso flerta com o fascismo, pois traz desdobramentos incontroláveis para todos. Por isso mesmo tenho um otimismo de que o PSDB e outras forças políticas vão ter muita firmeza no isolamento dessa insanidade de pedido de intervenção militar. Como é ser comunista, no Brasil, com essa minoria anticomunista tão barulhenta?

Enfrentamos isso com muita nitidez, na campanha, porque estávamos diante de dois quadros da direita brasileira, que são o senador José Sarney e o ministro Edison Lobão, ambos com origens profundas no regime militar. Nesse momento, em que eles se sentiram ameaçados em seu poder, eles abandonaram qualquer tipo de verniz democrático e fizeram contra nós uma campanha que fez lembrar os piores momentos do Comando de Caça aos Comunistas. É muito desafiador afirmar uma identidade contra-hegemônica, e ao mesmo tempo, fazer as alianças políticas que conduzam a um programa que receba a adesão da maioria da sociedade, mas sem esconder e sem negar a sua identidade. Fizemos uma aliança ampla, porém o sentido dominante dessa aliança é exatamente o da modernização da política e da transformação da vida do povo, aquilo que tenho chamado da soberania dos pobres. Sua vitória pode contribuir para reconstruir unidade dentro do próprio PT do Maranhão já que apoiou Lobão Filho (PMDB), enquanto a militância te apoiou. É possível unir o campo da esquerda e superar esse pragmatismo?

Espero que sim. O pragmatismo é uma palavra que traz todos os vírus e bactérias da negação da boa política. Uma coisa é ter senso de leitura da realidade, de análise da conjuntura, senso prático. Outra é absolutizar tudo isso, que é o pragmatismo. Mas esse pragmatismo acabou conduzindo para que o PT, nacionalmente e no estado, acabasse elegendo o PMDB como seu parceiro preferencial. Só que o PMDB do Maranhão tem nome e sobrenome, representa esse coronelismo dos anos 1950, que acaba por ter uma sobrevivência quase que inacreditável, pois vem desde Juscelino Kubitschek até o governo Dilma, personalizado na figura do senador José Sarney. O próprio resultado mostra que o melhor posicionamento eleitoral do PT, no Maranhão, é buscar recompor esse campo conosco. É o apelo que tenho feito, tanto em nível estadual como em nível nacional.


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Todo democrata deve fazer um apelo às forças políticas do país para que tenham zelo com o Estado democrático de direito, duramente conquistado. O jogo da perenização do ódio é a negação da democracia e flerta com o fascismo

O debate político nacional demonstra que a importância do PMDB, sobretudo de alguns “sobrenomes”, foi superestimada pelo PT para a correlação de forças nacional?

Acho que essa é a palavra mais correta. Há uma superestimação da importância de algumas figuras nesse processo. É certo que, visando a assegurar a chamada governabilidade, você tem de fazer alianças. Não há dúvida. A questão que se põe é aliança com quem, em que termos e quem dirige a aliança. A impressão que eu tenho é que, em alguns momentos, essas indagações deixaram de ser feitas pelo PT, o que explica muitas das suas dificuldades atuais. É preciso ter uma visão mais aberta do que é exatamente o Congresso Nacional, e não procurar criar blocos que no cotidiano não funcionam. Toda semana o governo tem de negociar com o PMDB em torno da sua pauta. Isso demonstra que há algo de errado. O PMDB pode ajudar, mas acho que há outras forças que também podem ajudar e que devem ser valorizadas. Essas contradições do sistema político, como falta de programa e de fidelidade partidária, seriam superáveis a partir desse Congresso? A educação política do eleitor em relação a um programa, e não a uma promessa. É possível mexer nisso?

Hoje, em condições normais de temperatura e pressão, diria simplesmente que não. Ocorre que este final de 2014 e início de 2015, vai ser marcado por um profundo terremoto político. A Operação Lava Jato tem um potencial de destruição desse jogo político tão profundo que nós não sabemos bem no que isso vai dar. Ao similar, na Itália, que foi a Operação Mãos Limpas, resultou no império de Silvio Berlusconi. Imagino que essa é a grande questão que hoje deve ser colocada. Em condições normais, o Congresso nada deliberaria. Mas diante de um terremoto que vai ocorrer, que é a Operação Lava Jato, as condições políticas mudam. Esse fato, associado ao julgamento pelo Supremo Tribunal Federal sobre financiamento empresarial de campanhas, obrigará o Congresso a deliberar alguma coisa. E esse é um dos temas centrais da luta política nos próximos meses, porque esse sistema político eleitoral atual vai ser implodido de fora para dentro pela Operação Lava Jato e pela decisão do STF, provavelmente, tornando inconstitucional o financiamento empresarial para campanhas. Em 2015, teremos algum tipo de reforma política. Temos de ter um sistema de financiamento que preserve a política e a proteja do poder financeiro e econômico, e em que você desindividualize a luta eleitoral para priorizar os projetos e programas, de modo a garantir que o voto do cidadão tenha mais qualidade. Existe estratégia política movendo a Lava Jato?

Acho que, na verdade, diferente da avaliação de alguns, não há hoje um comando político na realização da operação. Há uma disputa de apropriação do significado dela, mas não consigo enxergar que haja uma orientação política desse nível de sofisticação “nós vamos fazer isso para chegar aqui ou acolá”. O erro está no terreno da apropriação política de fatos que fazem parte de um projeto judicial concreto. Mas houve vazamento seletivo de informações originadas de delação premiada, sob sigilo. Também ficou escancarado nas redes sociais que alguns integrantes da PF têm posição política contrária à presidenta, ao PT.

Em relação aos delegados da Polícia Federal, particularmente, achei gravíssimo o que foi identificado, e que aparentemente vai se confirmar no curso da investigação. O delegado da Polícia Federal é um cidadão, e tem direito à opinião política. Mas não no momento em que conduz uma investigação com esse peso político. Naturalmente, em nome da preservação da legitimidade da sua atividade, não pode embaraçar isso com a opinião política. O caso deve ser apurado e objeto de atuação dos órgãos de controle da própria PF. Agora, os fatos existem. E essa temática de vazamento é sempre muito delicada, porque você nunca consegue identificar quem vazou. Em um processo judicial, muitas pessoas têm acesso, inclusive advogados dos investigados. Sempre fica esse jogo, “foi o delegado”, “não, foi o advogado”, “não, foi o juiz”. Por isso tenho defendido que a melhor coisa que haveria, hoje, do ponto de vista político e da legitimidade dos agentes públicos envolvidos na investigação, é a plena publicidade. Fui juiz por 12 anos e, com essa experiência, não consigo imaginar que tornar público (todo o conteúdo do processo) vá atrapalhar o desdobramento de alguma investigação. REVISTA DO BRASIL

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O melhor a se fazer, para combater esses vazamentos seletivos, é exatamente a plena publicidade. E até para que as pessoas possam se defender. O sigilo absoluto acaba negando o direito de defesa porque fica sempre no terreno da especulação. E isso leva a um julgamento arbitrário, incompatível com o Estado de direito. A partir do julgamento do processo do chamado mensalão, não lhe pareceu que parte do Judiciário pendeu favoravelmente para um dos lados da polarização política do país?

O Supremo Tribunal Federal, como qualquer tribunal do país, qualquer juiz, tem de zelar pela coerência das suas decisões. O que chama a atenção, e dá espaço à crítica, é quando há situações em que há tratamentos díspares para situações idênticas, como os casos do chamado mensalão e o mensalão mineiro. Mas de um modo geral temos o STF mais progressista da história. Tanto é assim que avanços fundamentais foram confirmados pela Corte. Por exemplo, as cotas raciais, o reconhecimento da união homoafetiva. Acho que não é correto dizer que o Supremo e o Judiciário desempenhem um papel reacionário. Discordo frontalmente. Essa ‘PEC do pijama’, que estende a aposentadoria compulsória dos magistrados de 70 para 75 anos, visa ao aprimoramento da Corte?

Esse é um dos temas centrais da luta política nos próximos meses: o sistema político eleitoral vai ser implodido de fora para dentro pela Operação Lava Jato e pela decisão do STF de tornar inconstitucional o dinheiro de empresas em campanhas 14

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O senhor perdeu um filho adolescente (em 2012), vítima de um erro médico, em um hospital conceituado de Brasília. Esse episódio mexeu com a sua disposição de querer mudar as coisas por meio da política?

No que se refere às razões de eu procurar mudar a realidade, não. São opções que se fazem ao longo da vida, no meu caso optei ainda bem jovem por ficar, como gosto de dizer, na margem esquerda do rio da vida. Obviamente, um fato dessa magnitude não pode sequer ser traduzido em palavras, e muda sua organização emocional, o modo como você vê as relações humanas, o modo como vê as pessoas, e você passa a vivenciar as injustiças de outro modo. Uma coisa é você falar da injustiça racionalmente. Outra é ser vítima de uma delas, das formas mais absolutas que pode existir, a perda de um ente querido. É fato que nunca fica no passado, só tem um tempo verbal para falar dele, o presente. Por isso, ele integra a minha vida nesse sentido de buscar ajudar outros injustiçados, como eu sempre busquei, agora com esse elemento a mais. Qual sua expectativa em relação à próxima legislatura, com uma pessoa com as características do Eduardo Cunha (PMDB-RJ) jogando pesado para presidir a Câmara. Prevê dias difíceis para a presidenta Dilma?

Não, de jeito nenhum. Sempre combati essa ideia, desde os tempos em que era juiz. Na Constituinte já houve esse debate. Elevar para 75 anos para diminuir a alternância no poder vai no sentido oposto aquilo que eu defendo. Defendo mandatos no Supremo Tribunal Federal, à semelhança das cortes institucionais europeias. Apresentei uma emenda constitucional nesse sentido, em 2009. Os 75 anos de idade representariam exatamente a continuidade desse poder, que já é vitalício, seria um enorme equívoco e enorme casuísmo.

Acho que ela vai ter dias sem tédio (risos). Todas as pessoas lutam, enfim, contra o tédio da existência. Dificuldades agudas se avizinham, independentemente dessa questão do personagem a, b, ou c. Como disse há pouco, esse mundo político institucional vai viver um terremoto nos próximos meses, então é natural que a presidenta Dilma vai estar cotidianamente posta diante de novos desafios, mas superáveis. Discordo profundamente de leituras catastrofistas de que o fim do mundo se avizinha.

O ministro Gilmar Mendes segura há oito meses seu voto em relação ao financiamento privado de campanhas, o placar de 6 a 1 a favor da proibição não pode mais ser revertido. Não é excesso de poder na mão de um magistrado, impedir que um processo siga seu rito?

Mas é dada como certa a eleição do Eduardo Cunha para a presidência da Câmara ou é possível reverter essa tendência ainda?

Essa questão é antiga no Supremo e hoje se exige uma revisão do regimento de todos os tribunais, inclusive do Supremo, nessa questão. Pedido de vista não pode ser absoluto. No Parlamento você pode pedir vista, mas o tema volta à pauta decorridas duas seções. Você pede vista, decorridas duas seções o tema volta à pauta automaticamente. Algum tipo de mecanismo dessa natureza está maduro para ser adotado, para evitar que o poder individual se sobreponha à vontade do colegiado.

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Quando saí da magistratura e fui para a Câmara, uma vez uma repórter perguntou qual a diferença. Eu disse que a diferença é que, na vida de juiz, sei que depois de segunda-feira necessariamente vem terça-feira. E na Câmara, não. Ninguém sabe ao certo o que vai acontecer no dia seguinte. Em razão dos fatos a que fiz referência, Operação Lava Jato, decisão do Supremo etc., tudo é imprevisível. A gente só vai saber quem será o presidente da Casa mesmo no dia 1º de fevereiro. Tem-se dito que o futuro Congresso será mais conservador. Será, mesmo, mais conservador do que tem sido nas últimas duas décadas?


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Há movimentos para que a reforma política seja feita por uma Constituinte exclusiva, e há quem tema que seja arriscado convocar uma Constituinte e ela resultar, como esse Congresso, numa composição piorada.

Uma pessoa de esquerda não pode ter medo de eleição. Olhando como analista político, como alguém do direito, como tese, a melhor sem dúvida é a de uma Constituinte exclusiva. Nesses anos todos, nos últimos 20 especialmente, quantas vezes já se discutiu financiamento público, lista pré-ordenada, lista fechada, flexível, voto em dois turnos, sistema distrital, distrital misto, fim da reeleição, voto facultativo, todo esse cardápio, e nunca se chega a uma deliberação? A mim parece a tese mais adequada uma Constituinte que fosse convocada visando, sobretudo, ao redesenho do modelo político e tributário. Até porque ela não nega outras teses. Você pode continuar defendendo a Constituinte, e ao mesmo tempo, estar no Congresso lutando para que no meio desse terremoto se vote algo mais avançado, como fizemos na lei da Ficha Limpa.

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O que seria uma mudança substancial?

Precisamos de um sistema que preserve a política e a proteja do poder financeiro e econômico. Em que você desindividualize a luta eleitoral para priorizar os projetos e programas, e garanta que o voto do cidadão tenha mais qualidade Há uma lenda no Brasil que diz que só um Congresso pode ser pior que o atual: o seguinte. Isso virou lugar-comum na análise política do Brasil, e o apocalipse nunca chegou. Não quero fazer uma análise ingênua. Houve uma redução das bancadas do PT e do PCdoB, mas essas bancadas também já foram menores em outros tempos, bem menores. O PT, na Constituinte, tinha 16 deputados, se não me falha a memória. O PCdoB tinha dois ou três. Então qual é a referência para dizer que esse Congresso é mais conservador do que o “Centrão” na Constituinte? O Congresso pulsa muito ao sabor do que acontece na sociedade, para o bem e para o mal. Como o Congresso é muito gelatinoso, amorfo nesse sentido, nós podemos até, desse terremoto, extrair uma boa reforma política. É possível. Vou te dar um exemplo: foi um Congresso bem parecido com esse que votou a lei da Ficha Limpa, que todo mundo dizia que não iria passar. Porque se estabeleceu uma tal correlação de forças na sociedade que levou a que a lei da Ficha Limpa passasse. Participei diretamente disso. Acho que a dificuldade existe, no terreno econômico inclusive, mas não vejo esse fim do mundo na esquina.

O tema principal é o financiamento de campanha. Enfrentar essa questão da subordinação do poder político ao mundo econômico-financeiro. Nada é mais importante do que isso, porque o sistema atual é uma usina de ficha suja. O sistema de votos, a reeleição, um mandato mais longo etc... quaisquer outros temas que eu fale são secundários. A questão principal é quem paga a conta da democracia. É a questão mais aguda no mundo, onde há eleições com características como as nossas. Um sistema que, de algum modo, dá maior peso ao financiamento público, me parece mais adequado. O que, não necessariamente, significa financiamento público exclusivo. Pode-se combinar o financiamento público com o chamado financiamento cidadão. Você pode admitir o financiamento empresarial via fundo partidário. Se a empresa quer contribuir para o jogo democrático, como hoje acontece muito, as grandes sobretudo, doam para a direita e para a esquerda, que faça isso de modo transparente. Doe para um fundo gerido pelo Tribunal Superior Eleitoral. Há vários caminhos, mas só se vai conseguir percorrer essa agenda se você focar nela. Se começar a se dissipar o cardápio para discutir se o mandato tem que ser de quatro ou cinco anos, se o senador tem que ter um ou dois suplentes, não se chega a lugar nenhum. A não ser por intermédio de uma Constituinte exclusiva, e aí sim se chega. Uma constituinte exclusiva poderia redimensionar o Congresso, a quantidade de deputados e senadores?

A rigor, uma Constituinte pode tudo. Há uma oposição juridicista a essa ideia de Constituinte, porque se disse que seria inconstitucional. Por esse raciocínio, a Constituição de 1988 seria inconstitucional, pois foi feita por um Congresso Constituinte, convocado por uma emenda constitucional à Constituição de 1967. Se isso não puder ser feito de novo significa dizer que a Constituição de 1988 é inconstitucional, o que é um absurdo. Por isso, acho que pode e deve ser feito um novo Congresso Constituinte. Colaborou Hylda Cavalcanti REVISTA DO BRASIL

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O risco Eduardo Cunha

Líder do PMDB tem poder e ramificações por toda a República. Mantém aliados às custas de doações de campanhas, é íntimo de setores do empresariado que defende com unhas e dentes e tem no currículo processos ainda em tramitação na Justiça Por Hylda Cavalcanti

O

ano de 2015 começará com um novo fator de risco nas costas da chamada base aliada do governo: o “risco Eduardo Cunha”, como tem sido chamado o período tenso que antecede a eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, em fevereiro. O risco se dá não apenas para o governo, como também para alguns setores da oposição que têm pé atrás com o político de estilo agressivo e bem articulado que há anos figura como um

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dos mais poderosos do país. Cunha, líder do PMDB na Câmara e candidato ao comando da Casa, é um dos mais polêmicos a sentar na cadeira de deputado federal nos últimos tempos e foi o quinto mais votado do Rio de Janeiro, com 150.616 votos. Declarações não comprovadas de colegas do mesmo estado são de que seus gastos de campanha teriam chegado a perto de R$ 9 milhões (embora tenha declarado R$ 6,8 milhões à Justiça Eleitoral). Talvez por isso seja defensor do

financiamento privado de campanhas – considerado por muitos a principal raiz dos defeitos que atrapalham o atual sistema político e eleitoral brasileiro. Cunha é alvo de processos judiciais por improbidade administrativa e crimes contra a ordem financeira e coleciona um sem número de desafetos. Parlamentares de seu estado, em conversas reservadas (e pelas costas, é claro) o tratam pelo apelido de “coisa-ruim”. Ao mesmo tempo, reúne uma espécie de “séquito” no Congresso, onde costu-


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RENATO ARAÚJO/ABR

O estilo do líder peemedebista de fazer política foi alvo de inúmeras reuniões no Palácio do Planalto e nos gabinetes do anexo (sede da vice-presidência) por atitudes tidas como chantagem, durante sessões onde foram discutidas votações de matérias importantes – casos da Medida Provisória (MP) dos portos, que regulamentou o setor no país, e do Marco Civil da Internet. “Não há mais o que dizer sobre isso. Eduardo Cunha é oposição e precisamos apresentar um candidato para combater essa oposição, seja um nome do PT ou apoiando o candidato de outro partido”, afirmou o ex-líder do PT na Câmara, José Guimarães (PT). Em tom mais indignado, o ex-ministro Ciro Gomes, atual secretário de Saúde do Ceará, já apresentou outra definição. “Esse cara deve ser assim, entre mil picaretas, o picareta mor. Eu conheço esse cara desde o governo Collor. Ele operava no escândalo do PC Farias na Telerj. Depois no fundo de pensão da Cedae (empresa de saneamento) do governo Garotinho e aí vem vindo. Depois com Furnas e agora está enrolado até o gogó em tudo quanto é quanto. É cara que banca seus colegas. Antigamente, o picareta achava a sombra, procurava ali o bastidor, ia fazendo as picaretagens escondido. Agora não. O picareta quer ser o presidente da Câmara”, afirmou Ciro Gomes em entrevista recente.

ma ser chamado por colegas para opinar com antecedência sobre a votação de temas diversos e dar conselhos sobre as posturas a serem adotadas. Em parte por conhecer como poucos os meandros do Congresso. Em parte por ser um dos principais captadores – e distribuidores – de doações feitas por empresas ao PMDB. Motivos que já o levaram a bater de frente com Michel Temer, por diversas vezes, e até mesmo a disputar poder com o atual vice-presidente da República dentro do partido.

Collor e PC

Aos 56 anos, Eduardo Cosentino da Cunha tem trajetória incomum. Casado com a jornalista carioca Cláudia Cruz, pai de quatro filhos, formado em Economia, vinculado à bancada evangélica, é dono da rádio evangélica Melodia FM, em sociedade com o deputado e pastor Francisco Silva (tido como guru que introduziu na política Cunha e Garotinho). Cunha começou em 1982, ao trabalhar para a campanha de Eliseu Resende, então candidato ao governo de Minas Gerais pelo extinto PDS. Em 1986, trabalhou para a campanha de Moreira Franco, que se elegeu governador do Rio. E em 1989, Paulo César Farias, tesoureiro de Fernando Collor, o convidou para fazer parte do estafe.

Ele participou ativamente da campanha e em 1991 foi indicado para presidir a Telerj, extinta empresa de telefonia do Rio de Janeiro. O jornalista Xico Sá, que acompanhou por muito tempo Paulo César Farias para suas reportagens, publicou em sua conta do Twitter que “era comum encontrar Cunha esperando PC no intervalo de reuniões”. O objetivo da indicação de Cunha na Telerj, onde ficou até 1993, foi preparar a empresa para a privatização, mas não foi bem assim que sua gestão ficou marcada. O Tribunal de Contas da União (TCU) encontrou várias irregularidades. Em 1999 ele foi subsecretário de Habitação do Rio de Janeiro e, pouco tempo depois, presidiu a companhia de habitação do estado (Cehab-RJ). Em 1994 filiou-se ao PPB, na ocasião aliado do ex-governador Anthony Garotinho, hoje deputado (PR-RJ), de quem tornou-se desafeto. Em 2003, migrou para o PP e no mesmo ano ao PMDB. Em 2002, foi eleito deputado federal.

Intrincadas relações

A movimentação de processos que têm Eduardo Cunha como parte é outro ponto nevrálgico de sua biografia. No Supremo Tribunal Federal (STF) – para onde vão todas as ações que o envolvem, em razão de ter foro privilegiado – ele aparece em 22 processos: uns como autor, outros como réu. Alguns dos mais emblemáticos foram os inquéritos 2.123, 2.984 e 3.056, que apuraram crimes denunciados na época em que presidiu a Cehab. Envolvem casos de falsificação de documentos referentes a contratos da companhia que teriam levado ao arquivamento de processo no Tribunal de Contas do Rio de Janeiro (TC-RJ). Ocorre que alguns inquéritos com incompatibilidade entre informações bancárias de Cunha, obtidas pela quebra de sigilo pela receita federal, e a sua movimentação financeira, bem como bens e rendimentos declarados no período entre 1999 e 2000, o procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, considerou, no início de 2000, que as provas eram insuficientes para levar as REVISTA DO BRASIL

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investigações à frente e pediu o arquivamento dos inquéritos. O que foi acatado em julho de 2004 por decisão colegiada do STF. Num outro caso, a Corte se manifestou pela abertura de inquérito para a apuração de fatos denunciados pelo procurador geral do Rio de Janeiro, Roberto Monteiro Gurgel Santos: exames grafotécnicos teriam constatado falsidade de documentos e da assinatura de promotores públicos estaduais. Este último processo ainda não foi concluído. Os demais, também envolvendo o deputado, tramitam no mesmo tribunal e correm em segredo de Justiça. Não é preciso pesquisa muito longa para descobrir alguns deles: inquérito do Tribunal Regional Federal da 1ª Região apura crimes contra a ordem tributária supostamente cometidos por Cunha; ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro; ação por improbidade administrativa movida pelo MP/RJ; representação movida pelo Ministério Público Eleitoral por captação ilícita de sufrágio; ação de investigação judicial eleitoral movida pelo MPE por abuso de poder econômico; e recurso contra expedição de diploma apresentado pelo MPE por captação ilícita de sufrágio. Também é bastante comentada a ligação do deputado com fundos de pensão de estatais. No caso de Furnas, por exemplo, a intimidade é relacionada ao órgão de previdência complementar Real Grandeza. Cunha ainda é acusado por adversários de ter imposto, em 2007, para a então ministra Dilma Rousseff, que comandava a pasta de Minas e Energia, o nome do ex-prefeito carioca Luiz Paulo Conde à presidência da Eletrobras. O deputado nega até hoje, mas a articulação, ou chantagem, como definem seus opositores, teria se dado da seguinte forma: ele era na época relator do projeto que pedia a prorrogação da CPMF e prometeu só apresentar seu parecer depois de confirmada a nomeação. Na Comissão de Fiscalização e Controle da Câmara, foi acusado pelo deputado Nelson Pellegrino (PT-BA) de pressionar dirigentes de companhias de petróleo pe18

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DIREITOS HUMANOS O PSC de Marco Feliciano será eternamente grato às articulações de Cunha

la votação de matérias. E foi citado pela deputada estadual Cidinha Campos, no Rio de Janeiro, de ter feito em 2007 uma operação cruzada de venda e recompra de um imóvel em Angra dos Reis com o traficante colombiano Juan Carlos Abadia. Eduardo Cunha também teve seu nome ligado a denúncias de desvio de recursos da Prece, fundo de pensão

dos funcionários da Companhia de Água e Esgoto do Rio de Janeiro. Como se não bastasse, foi noticiado pela imprensa seu suposto envolvimento com o doleiro Lucio Funaro, também investigado na CPI dos Correios, e participação em esquema de sonegação fiscal liderado pela Refinaria de Manguinhos, pertencente ao empresário Rogério Andrade Magro.

LAYCER TOMAZ/CÂMARA DOS DEPUTADOS

Fundos de pensão


DO CONTRA Nas negociações do Marco Civil da Internet, Cunha atuou claramente a favor das empresas de telecomunicação

Conforme ele costuma avisar, todas estas denúncias estão sendo discutidas judicialmente, em processos por calúnia e difamação. Já moveu 51 deles. Destes, em 28 perdeu em primeira instância, em três ganhou, enquanto os demais permanecem em tramitação. “É natural que quem se destaque incomode muita gente, mas todas as pessoas que inventaram inverdades pagarão por isso na Justiça. Se me atacam com mentiras, eu processo. O ônus da prova é de quem acusa”, afirmou.

Distribuição de recursos

Mas é na distribuição de recursos de campanha que a postura de Cunha mais atrai atenção. Informações de bastidores são de que o deputado atuou fortemente no sentido de formar uma espécie de “bancada própria”, com quem possa vir a contar na Casa, o que teria contribuído para o financiamento de campanha de perto de 30 deputados. Conforme dados declarados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ele recebeu doações que passam pela indústria de mineração, bebidas, medicamentos e setor financeiro, tais como Rima Industrial (R$ 1 milhão), Vale (R$ 700 mil), ­CRBS, controladora

GUSTAVO LIMA/CÂMARA DOS DEPUTADOS

POLÍTICA

da AmBev (R$ 1,25 milhão) e da Recofarma, fabricante da Coca-Cola (R$ 250 mil). Do setor financeiro, amealhou R$ 500 mil do Bradesco, R$ 500 mil do BTG Pactual, R$ 300 mil do Santander e R$ 50 mil do Safra. Além dos R$ 900 mil doados pela Telemont já mencionados, Cunha também recebeu mais R$ 700 mil da Líder Taxi Aéreo, R$ 500 mil do Shopping Iguatemi e R$ 300 mil da Rio de Janeiro Refrescos. Criador no ano passado do “blocão”, grupo partidário que procura ser independente do governo nas votações do Congresso, o líder peemedebista afirmou que já conta com o apoio de 152 deputados à sua candidatura, integrantes do PTB, PR, PSC e Solidariedade (SD). “Há um grande entusiasmo com a candidatura dele e estamos trabalhando para garantir o apoio de todos do PTB”, confirmou o líder da legenda, Jovair Arantes (GO). “Acreditamos que se mantivermos o foco, ganharemos a eleição. Será muito bom para a Câmara ter um presidente independente do Palácio do Planalto”, completou o líder do SD. Paulo Pereira da Silva (SP), o Paulinho da Força. O atual presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), embora evite dar declarações, tem feito vários contatos em busca de votos para Cunha. Nos últimos dias, porém, o peemedebista, que já afirmou que sua candidatura é “irremovível”, teve seu nome voltado para a mira dos holofotes, mas por outros motivos. Foi mencionado entre os parlamentares que teriam sido denunciados pelos investigados da Petrobras em delação premiada. Ele foi apontado por ter ligações com Fernando Soares, o Fernando Baiano, citado como operador do PMDB em esquema de propinas na estatal. Como sempre, destacou que não conhece Soares e caso as denúncias não sejam comprovadas, vai processar os responsáveis. Mas o desenrolar do caso pode vir a dar novos contornos à disputa pelo comando da Câmara. Até lá, Eduardo Cunha tem feito o que mais sabe fazer: articular e formar conchavos durante as votações dos itens inseridos na pauta do Congresso até o último dia do ano.

Trancador de pautas No segundo governo Lula, Eduardo Cunha passou a exibir mais sua forma de trabalhar. Já havia sido presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e se comportou como aliado do Executivo durante a CPI que investigou o apagão aéreo. Ao mesmo tempo, começou a se destacar como nova liderança do PMDB. “Ele sabe como adiantar ou atrasar uma votação, articular de forma a atrapalhar os planos da base aliada e trancar a pauta”, contou um peemedebista que pediu para não ser identificado. Na MP dos Portos, apresentou obstáculos e se reuniu com parlamentares para conseguir atrasar a apreciação. E no Marco Civil da Internet atuou a favor das empresas de telecomunicações tentando derrubar a neutralidade da rede. A Telemont, uma das empresas do setor de telecomunicações, operadora de sistemas de internet de banda larga, doou R$ 900 mil para sua última campanha. “Cunha atua como um lobista do setor privado dentro do Congresso”, afirmou outro parlamentar, do PTB. O deputado aparenta estar sempre bem informado. Durante reuniões das lideranças, tem por hábito se gabar sobre como votarão os deputados do PMDB em relação ao tema. Em geral, seu prognóstico se confirma. Foi Eduardo Cunha um dos principais articuladores, em 2013, da manobra que levou o pastor evangélico Marco Feliciano (PSC-SP) à presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Casa, derrubando uma hegemonia de mais de dez anos por parte de parlamentares progressistas que atuam junto ao setor. A iniciativa provocou retrocesso na votação de projetos, fortaleceu a bancada evangélica e levou integrantes do PSC a terem dívida de gratidão com o líder peemedebista. Outro apoio que ele conta como certo é dos parlamentares ligados ao pastor Silas Malafaia, do PSC, com quem mantém boas relações. E, também, dos integrantes do Solidariedade, que já anunciaram voto nele para a presidência da Câmara.

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LALO LEAL

Mais liberdade de expressão, mais democracia O Brasil enfrenta e supera crises globais, tira milhões de pessoas da pobreza, preserva empregos e é respeitado no mundo. Mas não se livrou de uma grave deficiência: a falta de regras nas comunicações

O

país que se orgulha de estar entre as dez maiores economias do mundo, é uma das raras democracias em que os meios de comunicação agem sem limites, atuando apenas segundo os interesses de quem os controla. As vozes dissonantes ainda são sufocadas. Dessa forma, a democracia deixa de funcionar plenamente por não contar com um de seus principais instrumentos: a ampla circulação de ideias. Para enfrentar o problema é necessária uma regulação da mídia, capaz de ampliar o número de pessoas que têm o privilégio de falar com a sociedade. De forma alguma trata-se de impor qualquer tipo de censura aos meios de comunicação como seus controladores insistem em dizer. Ao contrário, a regulação tem como objetivo romper com a censura que eles praticam quando escondem ou deturpam fatos como lhes interessam. O uso da palavra censura, pelos que se opõem à regulação, interdita o debate em torno do tema. Trata-se de uma palavra de fácil compreensão que carrega uma carga negativa muito grande, contrapondo-se a argumentos mais complexos, mas necessários ao entendimento do que é regulação da mídia. Estamos hoje numa sociedade capitalista onde impera a livre concorrência comercial e o direito à liberdade de expressão e opinião. As empresas concorrem entre si em busca de consumidores, cabendo ao Estado impedir apenas que controlem artificialmente o mercado tornando-se monopolistas ou oligopolistas. Quando isso ocorre, elas ganham um poder capaz de impor preços aos seus produtos, acabando com a livre concorrência e prejudicando os consumidores. Essa regra vale para os supermercados e deveria valer também para as empresas de comunicação. Nesse caso, por trabalharem com a oferta de ideias e valores, o monopólio ou o oligopólio já são proibidos pela Constituição com o objetivo de garantir a liberdade de expressão de toda a sociedade e não apenas daqueles que controlam os meios. Na prática, no entanto, o que vemos é o Estado evitando o monopólio na produção e venda de pastas de dentes ou de chocolates, por exemplo, mas permitindo que ele exista no setor de jornais, revistas, emissoras de rádio, de TV e internet. A regu20

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lação econômica da mídia é a forma de impedir a existência de monopólios também na área da comunicação. No entanto, a regulação pode e deve ir além dos limites econômicos. Deve haver regras para garantir o equilíbrio informativo, o respeito à privacidade e à honra das pessoas. É importante que sejam assegurados espaços no rádio e na TV aos movimentos sociais, à promoção da cultura nacional, à regionalização da produção artística e cultural. E que seja garantida a proteção de crianças e adolescentes diante de programas e programações inadequadas à sua formação e agressivas à sua dignidade.

Concessões públicas

Os grandes grupos empresariais do setor se constituíram ao longo da história recente do Brasil, a partir das empresas jornalísticas que começaram a se formar ainda na primeira metade do século 20. Algumas delas, como os Diários Associados, em 1935 e as Organizações Globo, em 1944, obtiveram concessões do governo para operar emissoras de rádio. Posteriormente, já nos anos 1950, argumentaram que a TV, recém-chegada ao país, era apenas uma extensão tecnológica do rádio. Era a justificativa para receberem concessões de televisão sem a necessidade de participar de qualquer concorrência. Formaram-se assim os monopólios e oligopólios da mídia. O rádio e a televisão são concessões públicas outorgadas pelo Estado em nome da sociedade. Empresas como Globo, SBT, Record, Bandeirantes e outras não são donas dos canais. Elas apenas receberam o direito de utilizá-los durante um período limitado de tempo que é de 10 anos para o rádio e de 15 para a televisão. As emissoras transmitem seus sons e imagens através de um espaço conhecido como espectro eletromagnético, que é público e limitado. Ou seja, está aberto a toda a sociedade, mas tem limites físicos que não podem ser ultrapassados. No espaço por onde trafegam os sinais da TV aberta em VHF, por exemplo, não cabem mais que os sete canais hoje mais popularmente conhecidos. Por isso ocupá-lo é um bem precioso que precisa ser regulado pelo Estado para evitar privilégios. Esse é o primeiro e mais simples tipo de regulação necessário ao Brasil. Trata-se


TIAGO MAZZA/FUTURAPRESS

URGÊNCIA Parte da sociedade tem clareza da necessidade de regulação da mídia. Outra parte cai no conto da censura

de estabelecer regras para o funcionamento do setor audiovisual operado na forma de concessões públicas. Para tanto, basta colocar em prática, por meio de leis específicas, aquilo que já está previsto na Constituição de 1988, cujo quinto capítulo foi dedicado à Comunicação Social. O segundo tipo de regulação deve tratar a mídia como um todo, incluindo os meios impressos. Nesse caso, são atividades privadas em que qualquer pessoa pode, possuindo capital suficiente, produzir e vender jornais e revistas. Seus responsáveis têm apenas o dever de respeitar as leis gerais do comércio e as que coíbem violações éticas. Ainda assim, como prestadores de serviço público de informação, deveriam estar submetidos a mecanismos legais capazes, por exemplo, de abrir espaços para o direito de resposta quando notícias ou comentários por eles publicados forem considerados inverídicos ou ofensivos por qualquer pessoa. Em ambos os casos a legislação no Brasil é frágil ou inexistente. A lei que regula o rádio e a televisão é de 1962, época em que a TV ainda era em branco e preto e o videotape era a grande novidade tecnológica. Hoje, em plena era digital, essa lei encontra-se totalmente ultrapassada, com pouca possibilidade de aplicação. Mesmo assim, o pouco que poderia ser aproveitado daquela lei, regulamentada em 1963, não é respeitado. É o caso do artigo que limita em 25% da programação diária do rádio e da TV, o tempo destinado à publicidade. Sabemos que esse limite é constantemente ultrapassado por longos intervalos comer-

ciais, por merchandising inserido no meio de programas e por canais que dedicam-se o tempo todo a vender joias, tapetes e gado, entre outros produtos. No caso dos jornais e revistas, a Lei de Imprensa garantia aos cidadãos o direito de resposta que poderia ser acionado quando uma pessoa se sentisse atacada. A garantia está prevista na Constituição em seu artigo 5º, inciso V, que assegura “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além de indenização por dano moral, material ou à imagem”. A aplicação se dava através da Lei de Imprensa que, em 2009, sob forte pressão das empresas de comunicação, foi revogada pelo Supremo Tribunal Federal, tornando inócuo o dispositivo constitucional. O presidente do tribunal na época, Ayres Britto, comemorou a decisão enaltecendo a liberdade absoluta da imprensa, como se os meios de comunicação pairassem acima dos interesses econômicos e políticos dos seus donos. É esse um dos debates ao qual o Brasil precisa se lançar. É papel dos poderes públicos – governo, Congresso e Judiciário – apresentá-lo à sociedade, uma vez que está em jogo uma determinação constitucional ainda não cumprida. E é papel das organizações da sociedade comprometidas com o avanço da democracia cobrar essa dívida do país. O alcance da cidadania passa pelo direito à informação, só possível de ser exercido quando há respeito à diversidade de ideias e de culturas que permeiam nossa composição social. Cabe ao Estado mediar e conduzir essa mudança. REVISTA DO BRASIL

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SOCIEDADE

Violência no currículo Estupros e assédio a estudantes na Faculdade de Medicina da USP, a principal do país, expõem as mazelas do curso que deveria formar mais médicos e menos monstros Por Cida de Oliveira

N

um país em que médicos saem às ruas contra um programa governamental que pretende levar atendimento aos brasileiros das regiões mais distantes, onde eles próprios não querem nem passar, é evidente não se tratar apenas de corporativismo, descompromisso social e falta de ética, mas também de problemas na própria formação. Em audiência pública promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, no último dia 11 de novembro, médicos, professores, estudantes e parlamentares ouviram os relatos de alunos que sofreram violência física, sexual, assédio moral e homofobia nos trotes e festas do curso mais concorrido da principal universidade brasileira, a USP. E o que mais revolta: sofreram ainda difamação, perseguição e pressões para silenciar, numa agressão psicológica igualmente perversa. Claramente nervosa, a estudante Marina Souza Pikman contou que foi estuprada em 2011, ainda caloura, numa festa tradicional da faculdade, por um trabalhador terceirizado da instituição. A consciência foi recobrada muito tempo depois, no Hospital das Clínicas, para onde foi levada. Por duvidar do que tinha acontecido, recusou-se a fazer exame de corpo de delito, mas acabou convencida por amigos a tomar antirretrovirais, procedimento comum em casos de 22

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estupro para tentar prevenir a infecção por HIV. Depois de muito tempo soube que o tal homem pagou para entrar na barraca onde ela estava desacordada. A liderança da associação atlética a desencorajou a denunciar por falta de provas e “por sua culpa” ao ter se excedido na bebida. “Diziam que isso tudo podia vazar, e que eu ia destruir a atlética. Um ex-presidente de lá chegou a dizer que a gente precisava abafar para proteger a vítima e também para não destruir a festa. Eu procurava testemunhas, mas elas se esquivavam. Diziam que eu tinha que deixar isso para trás, tocar a minha vida para a frente e que eu não ia conseguir provar”, relatou. Mesmo assim, registrou boletim de ocorrência. Envergonhada e evitando as pessoas, ficou um mês longe das aulas e recorreu ao Grupo Psicológico de Apoio ao Aluno (Grapal), onde faz tratamento até hoje contra o trauma. “As vítimas deveriam entrar com ações na Justiça contra a universidade e a escola de Medicina, a quem cabe a responsabilidade por tudo o que acontece ali dentro”, defende o professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP) e autor de livros sobre o trote universitário, Antonio Ribeiro de Almeida Junior. “Tratam-se de quadrilhas que assim devem ser tratadas pela lei.” De acordo com ele, professores, dirigentes, diretores, reitores e até ex-alunos estão por trás dos grupos trotistas, cuja atuação configura o

ato não como brincadeira para a integração dos novatos, mas um mecanismo de manutenção da hierarquia no meio médico que deve ser assimilada já no início da formação. “Quem recebe no primeiro ano tem de se calar senão é expulso, num silêncio que lembra as organizações mafiosas, que depois vai acobertar práticas indecentes. Trote não é brincadeira. Divide alunos, causa perdas, tira alunos do campus. A cultura da violência é baseada na impunidade, na cultura do abuso”, afirma, lembrando o caso de uma menina na Esalq que, além de ter sido estuprada por oito rapazes, passou por agressões psicológicas ao ser chamada de pizza “porque dava para oito”. Outro aspecto chocante é que, em vez de zelar pela segurança e integridade das vítimas e punir os agressores, que geralmente passam anônimos e incólumes em todos esses casos, a direção se preocupa apenas com a preservação do nome da faculdade. Conforme o presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo, Adriano Diogo (PT), dias antes da realização da audiência pública, ele e outros parlamentares foram pressionados diretamente pelo diretor da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), o professor titular do Departamento de Cirurgia José Otávio Costa Auler Junior, para que não realizassem o debate sobre as violações aos direitos humanos naquela instituição. “Exaltado, sem me deixar falar, ele dizia que a reunião não deveria ser realizada porque iria jogar na lama o nome da instituição e que ele iria tomar providências contra os abusos”, disse Diogo. A audiência acabou realizada na marra. “Apelar à direção não vai funcionar porque ela faz parte do esquema”, disse o professor do Instituto de Matemática e Estatística da USP e diretor da Associação dos Docentes Francisco Miraglia. “Só a democratização da universidade, em especial da Faculdade de Medicina, é que vai resolver esse problema que tem raízes na estrutura autoritária e militarizada da USP, que permite o lucrativo mercado das festas privadas aqui dentro, mas que criminaliza os estudantes.” Em meio à grande repercussão, no final de novembro Auler proibiu festas dentro da faculdade.


SOCIEDADE

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TRABALHO

Vou ficando por aqui Condições desfavoráveis reduzem o número de trabalhadores no campo. Uns saem em busca de oportunidade. Outros persistem Por Vitor Nuzzi 24

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J

osé Ferreira Filho saiu de Bonito de Santa Fé, cidade do sertão da Paraíba, quase na divisa com o Ceará, em 1982. “Aquele tempo era sofrido demais”, conta. Ele trabalhava com os pais em uma fazenda, onde a família morava em uma “casinha de barro”, assim como outras famílias da região. Trabalho duro, das 6 da manhã às 5 da tarde. “Tudo quanto fosse serviço de roça a gente fazia, até

arrancar toco na picareta.” Não havia outra alternativa, a menos que alguém tivesse um pedacinho de terra. Coisa para poucos. “Não tinha trabalho. O que tinha era trabalhar pra fazendeiro, que só via o lado dele. O patrão do meu pai era um juiz de Direito, pagava o que ele queria”, lembra. A consequência era quase sempre a mesma para os jovens dali, diz o seu José: “Completava 18 anos, caía no mundo”.


TRABALHO

Trabalhadores em estabelecimentos agropecuários

“AGRICULTURA É TUDO DE BOM” Antônio: A gente trabalha de tudo um pouco. Criação de gado, porquinho, queijo, caprino, ovino”

População no setor rural 64%

23% 16%

15% 8%

1960

1985

2013

2050*

Empregados no setor rural Em 2013: 4 milhões 59% 79% 89% 69% 58%

16%

sem carteira ganham até 1,5 salário mínimo são homens são pretos ou pardos** têm até 39 anos

** Projeção

8%

1950

2010

2050*

** Classificação do IBGE

ROSENILDO VASCONCELOS/RBA

Fonte: Dieese (subseção Contag), com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE

De 1960 a 1985, quase 8 milhões de pessoas se incorporaram à força de trabalho no campo, levando o total a 23 milhões, auge do emprego rural no Brasil. Mas nos últimos 30 anos o número de trabalhadores em atividades agrícolas diminui continuamente. Hoje, são 15 milhões. Estudo divulgado em novembro pelo Dieese traz uma estimativa de que, mantida essa tendência, em 2050 serão apenas 8 milhões. Cada vez mais gente caindo no mundo.

O deslocamento de mão de obra acompanha as mudanças na sociedade brasileira. Em 1950, 64% da população estava no setor rural. Passados 60 anos, o número caiu para 16%. O estudo detecta alguns fatores que ajudam a entender a diminuição gradual de trabalhadores no campo: desenvolvimento da indústria, transformação do processo produtivo na agricultura, precariedade de serviços por parte do Estado, dificuldade do trabalho no campo, maior concentração da propriedade na terra. Apenas na última década, são 2 milhões de trabalhadores a menos no meio, boa parte jovens de até 24 anos, lembra o economista Júnior César Dias, da subseção do Dieese na Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Ele cita o que se chama de sucessão rural, apontando a dificuldade de o jovem ter acesso à terra e começar o seu negócio. “O pai tem dois, três filhos, e a propriedade acaba não ficando com nenhum”, diz. De um lado, a indústria nos centros urbanos passou a atrair mão de obra. No campo, aos poucos o processo de produção foi se tornando menos manual e

mais mecanizado, em setores como algodão, café, cana. “E você tem a fragilidade de oferta de bens e serviços pelo Estado. Poucos lugares têm as chamadas escolas rurais. É um dos fatores que fazem as pessoas sair”, ressalta o economista.

Mudança de vida

Seu José foi para o mundo aos 22 anos. Direto para São Bernardo do Campo, na região do ABC paulista, onde tinha amigos e um primo, com quem dividiu um “barraquinho” durante três anos. “O lugar era ruinzinho demais...”, recorda. Aos poucos, ele foi se arrumando. Dois meses na construção civil, depois três anos numa pequena fábrica (“Pagava pouco demais, sabe?”), um trabalho aqui e ali, até entrar na Volkswagen em 1986. “Trabalhei de tudo”, conta, sobre sua vida na montadora. Meio oficial, corte de chapa, prensa, pintura – até se aposentar, dois anos atrás. “Quando comecei na fábrica, as coisas eram muito manuais. Agora é mais tecnologia.” Enquanto dava seus primeiros passos e ia arrumando a vida, ele foi trazendo a família. Todos moram em São Paulo agora. Conheceu aqui sua mulher, Sônia, perREVISTA DO BRASIL

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ROBERTO PARIZOTTI/RBA

TRABALHO

RETIRANTE José Ferreira saiu do sertão da Paraíba e foi para São Bernardo, no ABC paulista, onde arrumou emprego e constituiu sua família

nambucana. “Cada um tem sua casinha, não paga aluguel.” Nos últimos dez anos, a informalidade caiu 13%, mas ainda hoje quase 60% dos trabalhadores rurais não têm carteira assinada. Júnior observa que a redução da informalidade parece estar mais ligada à redução de postos de trabalho, ou à migração para outros setores, do que ao avanço da formalização. “Reduz o emprego com e o sem carteira”, observa o técnico do Dieese. Pelo ritmo atual, diz o estudo, seriam necessários 50 anos para atingir o nível de informalidade no setor urbano, em torno de 27%. O economista conta que o rendimento no trabalho rural tem se mantido, mas a média é bem próxima ao salário mínimo, e as melhorias no período recente foram puxadas pela política de valorização sistemática aplicada pelo governo federal. Em 2013, quase 80% (79,3%) ganhava o 26

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equivalente a até 1,5 mínimo, e 90% vai até dois mínimos. A diferença é grande entre formais e informais. No ano passado, trabalhadores com carteira assinada recebiam em média R$ 1.121, enquanto os sem carteira tinham remuneração de R$ 579. A média geral era de R$ 798, o equivalente a 54% do rendimento do trabalhador não agrícola. Júnior lembra ainda que a forma de organização da atividade econômica interfere nas negociações coletivas, com períodos de produção e regiões diferentes – em contraste, como ele exemplifica, com acordos como o dos bancários, negociados nacionalmente, em um só período. “No setor rural há vários mecanismos que dificultam uma campanha mais ampla. A sazonalidade, a produção. Isso dificulta o processo de negociação.” Assim, os pisos, por exemplo, representam pouco mais que o salário mínimo. Mas Dias

também aponta avanços, como acordos referentes a jornada de trabalho, pagamento da hora in itinere (no percurso) e cláusulas relativas às mulheres e aos delegados sindicais. Segundo o estudo do Dieese, no ano passado 31% dos empregados rurais estavam em lavoura temporária – as chamadas lavouras brancas, observa Júnior, como soja, milho e algodão. Outros 22% trabalhavam com produção mista (lavoura e pecuária) e 16% em lavoura permanente (café, fruticultura). “Quase todas essas atividades econômicas são temporárias, mais curtas. Pecuária é uma das únicas atividades que você tem praticamente o ano todo.”

Tudo de bom

Ali em Várzea do Meio, região de Independência, interior do Ceará, a renda vem principalmente do “queijinho”, con-


ta o agricultor familiar Antônio Florêncio da Silva Melo. Trabalha em uma propriedade do pai, que fica ao lado, e mora na casinha que ele mesmo construiu. “A gente trabalha de tudo um pouco. Criação de gado, porquinho, queijo, caprino, ovino”, conta Antônio, que nunca pensou em sair de lá. “Nasci, me criei aqui e não saí daqui. Toda a vida eu gostei. Agricultura é tudo de bom. É o gosto.” Mas ele já viu muita gente tentar a sorte em outro lugar. “Meu irmão mesmo trabalha em Independência, no comércio”. Sair do lugar onde ele se criou, só a passeio. No máximo a Fortaleza, a 300 quilômetros. Antônio acorda cedinho, tira o leite da vaca, leva para a mulher, Leila, fazer o queijo, vai pegar capim para a criação. “Tá seco, a forragem tá pouca”, comenta. “A situação não tá muito boa, mas a gente não pode chorar, porque se chorar aí que o bicho pega.” Todas as segundas-feiras, eles vão até Independência, a seis quilômetros dali, para vender queijo. Com 38 anos, Antônio tem uma filha de 16 e um filhinho que completou 2 em novembro. A menina vai para a escola em Independência – caminha um quilômetro até a estrada, para pegar a condução. “Hoje tá tudo mais fácil. Tem carro pra levar, pra trazer. Eu andei muito de bicicleta.” Será que ela vai continuar o trabalho dos pais? “Eu nem sei lhe dizer. Está pensando em fazer... O que é mesmo?”,

PEDRO REVILLION/PALÁCIO PIRATINI/FOTOS PÚBLICAS

TRABALHO

INFORMAL Na era da mecanização, 60% dos trabalhadores rurais não têm carteira assinada

pergunta para Leila. “Ela está pensando em fazer Fisioterapia. Ela que tem de dizer o que quer. Só Deus sabe”, diz Antônio, que ia voltando do curral, onde cuidava de algumas crias, preocupado com o sol. “Se não tomar cuidado, morre os cabritos tudinho.” Primeiro da família a tomar o rumo de São Paulo, José Ferreira, hoje com

55 anos, às vezes pensa em voltar para Bonito de Santa Fé, onde comprou um terreno e levantou uma casa – a mulher e os filhos querem ficar. “Ficou melhor demais. Se brincar, tá melhor que cidade grande. Ninguém trabalha mais na roça, é mais comércio, a maioria é empregado. Toda casa é com água encanada, com luz.”

Qualificação melhorou. Falta crédito CÉSAR RAMOS/CONTAG

mão de obra.” O secretário de Assalariados Rurais da Contag, Ele acredita que há um problema grave não só Elias D’Ângelo Borges, vê algum avanço na área de para o campo, mas para a sociedade brasileira. “A qualificação, com os institutos técnicos e o Programa produção de alimentos vai ser afetada não só pelo Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego êxodo rural, mas pelo que se produz.” Elias, durante (Pronatec), mas com defasagem. “Estamos atrasados. toda a vida foi assalariado rural. Hoje, assentado Precisava estar funcionando há muito tempo”, critica. da reforma agrária, é um pequeno proprietário em Na área de pesquisa, ele identifica uma deficiência. Morrinhos (GO), onde produz leite e grãos e cria “As pesquisas e tecnologias desenvolvidas não pequenos animais. chegam na agricultura familiar.” Elias: “A produção Há ainda a questão do agenciamento e dos “gatos”. Uma questão relacionada é a do crédito. “Um de alimentos vai O trabalho rural mostra a coexistência de dois Brasis, problema disso não chegar é falta de assistência ser afetada não só observa Júnior, do Dieese. “Você tem setor de ponta técnica. Ou não acessa (o crédito) ou aplica mal, por pelo êxodo rural, funcionando, cadeias de alta tecnologia, e ao mesmo falta de assistência técnica.” mas pelo que se tempo tem esse Brasil arcaico. Quanto mais fiscaliza Para Elias, a saída de pessoas do campo, além da produz” esse setor, mais encontra trabalho degradante.” busca de outras oportunidades, deve-se à carência de políticas públicas. “O processo de mecanização A realidade do trabalhador rural continua também tira muita gente do campo, principalmente as mais difícil, reforça Elias. “Mas ainda tem as pessoas que estão lá, qualificadas. Agricultura e pecuária têm menos demanda de persistem, lutam.” REVISTA DO BRASIL

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AMBIENTE

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vida em Itu, a 100 quilômetros da capital paulista e uma das mais importantes cidades do estado entre 1850 e 1935, já girou em torno da produção de açúcar e do café. Depois disso, abriu-se para a produção de cerâmica vermelha e também para o turismo motivado pela chamada “cidade do exagero”. Suvenires de objetos gigantes fizeram sucesso nas lojas locais na segunda metade do século passado. Nos últimos meses, porém, Itu ganhou o noticiário nacional em razão da seca. A população termina o ano consumindo muita energia e dinheiro em busca de água potável. O aposentado José Bernardo, de 70 anos, vendeu um carro que valia R$ 33 mil por R$ 15 mil. Comprou uma caminhonete usada por R$ 39 mil, assumindo 48 parcelas de R$ 500. Acoplou ao veículo uma caixa de água de 500 litros, mais uma bomba d’água com uma extensão elétrica e uma mangueira de 35 metros. Essa parte ao custo de R$ 1.200. Isso sem contar o gasto com combustível. O objetivo? Conseguir água. “A gente passa muito aperto. Não só pela falta da água, mas porque temos um parente que requer cuidados de higiene complexos. A gente tem de se virar”, desabafa Bernardo, que passa parte do dia indo e vindo da fábrica de cerveja Brasil Kirin, a sete quilômetros de casa, onde pessoas varam a noite pegando água na bica. Ao voltar para casa, Bernardo tem de subir no telhado levando a mangueira para abastecer a caixa de mil litros. Um decreto da prefeitura determinou a liberação de poços artesianos privados para a população. Além disso, desde fevereiro a cidade decretou racionamento, prevendo a chegada da água da rua em dias alternados. Mas desde setembro muitas torneiras estão secas. O cunhado de Bernardo, Ocimar de Souza Leite, de 60 anos, tem um problema de saúde que o deixa vulnerável a infecções. Precisa de pelo menos dois banhos diários. Mas faltava água havia 30 dias no final de outubro, quando recebeu a reportagem. “Ninguém nos apresenta uma solução”, protesta Ocimar. 28

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E A C E S DESCASO SEM TAMANHO Falta de chuva – e de planejamento, investimentos e respeito – leva população de Itu, no interior de São Paulo, a viver em busca de água Por Rodrigo Gomes. Fotos Danilo Ramos/RBA

Cadeirante, ele teria preferência no atendimento dos caminhões-pipa, que distribuem água emergencialmente. Até 30 de outubro, 40 veículos faziam o abastecimento. No mesmo dia, o governador

Geraldo Alckmin (PSDB) ofereceu apoio de mais 20, contratados pela Defesa Civil. “Não sei para onde vão os caminhões. Ninguém sabe, na verdade. Aqui eles não chegam”, reclama Ocimar.


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VIDAS SECAS Moradores de Itu acumulam água de todas as formas possíveis para enfrentar o desabastecimento

Clarisse: sistemas para garantir a higiene

Manoel: bombeamento aumentou conta de luz

Bernardo: troca de carro para carregar caixa d’água de 500 litros

Improvisos e incertezas

As dificuldades na vida dos ituanos em consequência da seca afetaram hábitos e orçamentos. O valor de uma caixa de água de mil litros passava de R$ 800 nas casas de material para construção que a dispunham. Um galão com 20 litros não sai por menos de R$ 28. Na capital, custa de R$ 8 a R$ 15. Mesmo assim, a maior parte das revendedoras de água está fechada, com cartazes simbólicos: “Acabou a água”. Comprar mil litros de água de um caminhão-pipa se tornou artigo de luxo. O custo médio é de R$ 130. Em uma ca-

sa com quatro pessoas, essa quantidade é consumida em três dias, de acordo com parâmetros da Organização das Nações Unidas (ONU), de 110 litros por pessoa por dia para uma utilização saudável da água. Em condições normais, as pessoas pagam R$ 27,80 para a concessionária Águas de Itu por 10 mil litros de água por mês. Esse pagamento – equivalente à tarifa mínima da Sabesp na capital paulista – é outro motivo de revolta da população. Mesmo com as torneiras quase sempre secas, muita gente recebia contas com a cobrança do valor mínimo.

A dificuldade mexeu também com os nervos. “A gente não dorme mais. Estamos sempre esperando alguma água chegar nas torneiras. Quem trabalha durante o dia tem de ir nas bicas de noite. E só depois fazer alguma coisa em casa. Quem não tem carro tem de contar com a boa vontade dos outros”, lamenta a dona de casa Solange Rodrigues Belon, de 55 anos. Segundo Solange, é impossível localizar os caminhões-pipa, pois a empresa Águas de Itu não informa. Mesmo no site do Comitê de Gestão da Água, criado em setembro para definir ações prioritáREVISTA DO BRASIL

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rias e acompanhar a atuação da empresa, não havia informações claras sobre onde o caminhão estaria. Sabia-se apenas onde já estivera. Do caos surge a criatividade. A população ituana tem feito desde alterações simples, como tirar o carro da garagem para dar espaço a uma caixa d’água, a ter tambores diferentes para os diversos tipos de água – para beber, para lavar roupa ou para limpeza – e engenhocas. O aposentado José Manoel Sobrinho, de 73 anos, e a mulher Clarisse Cardoso, de 68, montaram vários sistemas com garrafões instalados na pia e no banheiro para garantir uma estrutura mínima para banho e lavagem de louça. Como não pode carregar os galões de 200 litros que mantém no carro, Manoel também providenciou um sistema para bombear água do veículo para um galão no quintal e dali para a caixa d’água da casa. “Assim não preciso mais subir no telhado. Só que a gente já nota uma diferença na conta de energia elétrica, pois usamos a bomba muitas vezes”, relata. A fila na fábrica da Brasil Kirin tem uma espera de cerca de uma hora durante o dia, mas à noite as pessoas ficam mais tempo. “Se você vier aqui às 20h, vai passar três horas. Se vier às 3h da manhã, ainda vai ter gente na fila”, diz o analista de qualidade Rafael Alexandre dos Santos, de 31 anos. Ele e outras dez pessoas estavam no local com seus carros, todos adaptados para carregar o maior volume possível. Quem não tem carro carrega garrafas e galões em carrinhos de mão, de feira ou no braço. “Vendo essa situação a gente até já pensa em voltar”, diz Juno dos Santos Silva, recém-chegado da Paraíba junto com o irmão Fábio para trabalhar na cidade. Sem carro e morando longe das principais bicas, os dois pegavam água de uma mina da qual não se conhece a procedência. “A gente não vai beber nem cozinhar. Mas para banho, lavar roupa e limpar casa, depois de ferver, acho que não tem problema”, acredita Juno. Os dois têm de carregar galões nos ombros até o Jardim Eliane, a dois quilômetros da mina. Os pontos de distribuição da Águas de Itu foram ampliados com a instalação de sete caixas de 20 mil litros em algumas 30

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APERTO A bica da Fábrica de Cerveja Kirin virou ponto de encontro da cidade

INCERTO Juno (sem camisa) e outros moradores recolhem água de uma mina suspeita

praças da cidade, e mesmo assim os moradores têm dificuldades. “É muita gente para pegar água, então acaba rápido. E daí as caixas demoram para ser reabastecidas”, reclama a assistente administrativa Rosana Metzner, de 50 anos. Moradora do Jardim São Camilo, Rosana não cozinha mais. Sem água há quase dois meses na torneira, ela e o marido passaram a comprar marmitex no almoço e no jantar, de preferência acompanhada de talheres descartáveis. “Nós dois trabalhamos e não temos muito tempo para conseguir água. O que conseguimos serve para banho e para beber”, conta. Os fins de semana de Rosana são pas-

sados em Indaiatuba, a 25 quilômetros, na casa da mãe. Segundo ela, é a forma mais “tranquila” de lavar roupa e conseguir mais alguma água. “A gente tenta sujar a menor quantidade de roupa possível. Usa peças escuras. Vai segurando como dá”, explica. Além disso, as visitas em sua casa estão proibidas. “Como eu vou receber alguém na minha casa nessas condições?”, questiona. Vizinho de Rosana, o assistente administrativo Wilson Luís Boff, de 38 anos, tentou o caminho da Justiça, mas até agora só conseguiu arquivar dezenas de documentos. “Reclamei na Ouvidoria, na Câmara de Vereadores, na prefeitura e no


AMBIENTE

custos. “Tem de ser um produto minimamente resistente, se não causa um constrangimento”, explica. Outro problema é que nenhum estabelecimento libera seus banheiros a clientes.

Intervenção

O JUSTO Wilson tentou o caminho da Justiça para fazer valer o decreto de racionamento. Mas o caminhão-pipa só apareceu uma vez

juizado de pequenas causas. Neste último foi determinado que a cada 48 horas um caminhão-pipa fizesse o abastecimento, conforme determina o decreto de racionamento. Mas só vieram uma vez”, conta. Donos de lojas e restaurantes de Itu temem ter de fechar as portas, caso a crise persista, e que o próximo problema a se abater sobre a cidade sejam falências e desemprego. Uma lojista da região central, que pediu para não ser identificada, revelou que os empresários não sabem o que fazer em relação às festas de fim de ano. “A gente não sabe se compra produtos. Do jeito que está hoje, com as pessoas saindo da cidade no fim de semana, pode ser que no Natal e no Ano Novo ninguém queira ficar aqui. Vai ser um desastre”, lamentou. Um dono de restaurante contou que tem de comprar água de caminhões-pipa toda semana para manter o estabelecimento. “Meu custo em três semanas foi de R$ 600 só com água para fazer comida. Não sei quanto tempo a gente aguenta nessa situação”, afirma. Ele tem servido os clientes com copos, pratos e talheres de plástico, o que também aumenta os

Os moradores já organizaram abaixo-assinados pedindo que a prefeitura decrete estado de calamidade pública. E apoiam pedido de intervenção na cidade feito pelo Ministério Público (MP) em Itu. Se assim fosse, o governo paulista teria de indicar um interventor para atuar na cidade no lugar do atual prefeito Antônio Luiz Carvalho Gomes, o Tuíze (PSD). O prefeito não falou com a reportagem, que foi atendida pelo coordenador da Defesa Civil municipal e coronel reformado da Polícia Militar, Marco Antônio Augusto, na sede da Guarda Metropolitana. Augusto admitiu que há dificuldades para atender a população e que os caminhões-pipa não dão conta de retornar às casas em 48 horas. Além disso, o próprio modelo de abastecimento não contribuía para equilibrar a distribuição. “Algumas pessoas tinham grandes reservações e, com isso, o abastecimento ficava em poucas casas. Determinamos que não seria mais permitido abastecer mais que mil litros em uma mesma residência, mas isso ainda leva algum tempo para normalizar”, explica. O porta-voz responsabilizou a empresa Águas de Itu, concessionária do serviço há sete anos, por não ter realizado obras, como o desassoreamento dos mananciais e o aumento da disponibilidade hídrica. Ponderou que isso não impediria a crise, mas que a situação poderia estar diferente: “Problemas com a água nós iríamos ter de qualquer jeito em virtude da estiagem. Mas se tivesse sido feito, por exemplo, o desassoreamento dos mananciais, teríamos mais água armazenada”. A prefeitura multou a empresa em cerca de R$ 10 milhões por ações previstas em contrato que não foram realizadas. O aumento da disponibilidade está sendo feito agora no Ribeirão Mombaça, que passa a 22 quilômetros da cidade. As ações para captação pretendem trazer 280 litros de água por segundo, para abastecer cer-

ca de 100 mil pessoas na região central da cidade. Essa obra, no entanto, deve ficar pronta somente em janeiro de 2015. Os mananciais de Itu são abastecidos basicamente por chuvas. A cidade não tem grandes rios, somente alguns ribeirões, cujo volume de água é menor. “No último ano choveu 600 milímetros, o que é nada em termos de captação. Nossa região é característica de uma situação de escassez, mas sempre foi suficiente para manter o abastecimento normal de 24 horas por dia. Neste ano, não”, observa Augusto. Perguntado sobre por que não decretar estado de emergência ou de calamidade, o coronel diz que a medida não está descartada, mas que hoje não seria aceita pelo governo estadual. “Itu não tem como ser reconhecido como situação de calamidade”, pontua. Segundo ele, seria preciso haver incolumidade pública, ou seja, descontinuidade dos serviços de saúde ou educação, por exemplo, ou risco de morte de pessoas. A Águas de Itu tem fornecido água aos estabelecimentos públicos entre 20h e 3h. Também poderia ser considerado emergência se a cidade tivesse de usar pelo menos 3% dos recursos orçamentários para comprar água. “Mas hoje não colocamos dinheiro nenhum, porque é a empresa privada que precisa comprar a água e fazer as obras”, explica. Questionado sobre as pessoas com deficiência física que não estão recebendo água dos caminhões-pipa, o porta-voz da Defesa Civil argumenta que elas precisam entrar com contato com a Secretaria da Saúde. “Se elas estão cadastradas e não estão recebendo, precisam reclamar na agência reguladora.” Apesar da crise e de admitir que a empresa deixou a desejar no cumprimento do contrato, Augusto não considera que isso seja um problema e vê um caminho de maior valoração econômica da água como resposta ao momento vivido em São Paulo. “Eu estive no Japão há três anos e pedi um copo de água. Me mostraram uma máquina que vendia garrafinhas de água por 50 centavos de iene. Lá a água não é dada. Vai chegar um momento no Brasil em que a água terá de ser comprada. Porque ela é finita.” REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

O invisível gaúcho negro Alguém lembra de já ter visto um gaúcho negro de bombacha, num cavalo, ou tomando chimarrão? Ou uma prenda negra a dançar num CTG gaudério? Difícil. A representação imagética gerenciada por cabeças brancas os omite Por Eduardo Tavares 32

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ilmar Fortes tem a força no nome e no olhar. Há também dignidade e paixão nesse olhar. Vilmar é negro e gaúcho. Um trabalhador rural que interage com seu ambiente com sapiência, habilidade e carinho. Sabe tudo da terra que pisa. A qual pisaram seus pais e seus avós, escravos, africanos, arrancados da sua terra natal com violência, por homens brancos, mercenários desalmados que visavam apenas a riqueza, muita riqueza. Há mais de 15 anos Vilmar trabalha na Fazenda Capão Alto das Criúvas, em Sentinela do Sul, 110 quilômetros ao sul de Porto Alegre. Depois do mate ao alvorecer, ordenha as búfalas e vai aplicar os preparados biodinâmicos na lavoura de arroz


CIDADANIA

Rodeio em Vacaria

Quilombola do Ibicuí da Armada, em Santana do Livramento

orgânico que a família Volkmann produz. É tratado como um filho pelo patrão, João Batista, que reconhece: “Temos todo esse conforto hoje graças a essas pessoas que foram sequestradas, escravizadas e trabalharam com tanto sacrifício para o crescimento deste país. Devemos tudo a eles”. Hoje Vilmar é um dos 1,8 milhão de afrodescendentes vivendo no Rio Grande do Sul, cerca de 16,3% da população. É uma cifra que impressiona os brasileiros que consideram o Estado sulista um reduto povoado apenas por brancos, descendentes de europeus. A existência do negro gaúcho é uma realidade que se esconde nas brumas do preconceito racial e da estratificação social. Essa discriminação se torna mais evidente no meio rural. Alguém lembra de já ter visto alguma imagem de um gaúcho negro, de bombacha, montado num cavalo ou tomando chimarrão? Ou uma prenda negra dançando num CTG gaudério? Dificilmente. Esse é um fato que tem sido omitido na representação imagética da cultura gaúcha, normalmente gerenciada por cabeças brancas. O maior símbolo gaúcho, a estátua do Laçador, obviamente, é de um orgulhoso homem branco. Essa deslealdade cultural levou este autor a dar a devida visibilidade ao afrogaúcho, produzindo a exposição fotográfica O Invisível Gaúcho Negro. Não foi um projeto que partiu de uma tese e de uma ida a campo para comprová-la. Na verdade, bastou um mergulho Elisa Rodrigues na Fazenda Palomas, em Santana do Livramento

DIANTE DOS OLHOS Bastou um mergulho no próprio arquivo fotográfico. Uma coleção de fotos de negros no meio rural surgiu naturalmente ao longo dos anos e caminhos percorridos pelo interior do Rio Grande em reportagens para várias publicações REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

16,3% DA POPULAÇÃO Fazenda Capão Alto das Criúvas, Sentinela do Sul: Vilmar é um dos 1,8 milhão de afrodescendentes vivendo no Rio Grande do Sul

no próprio arquivo fotográfico. Uma coleção de fotos de negros no meio rural surgiu naturalmente ao longo dos anos e caminhos percorridos pelo interior do Rio Grande em reportagens para várias publicações. No campo, lidando com o gado, no fogo de chão do galpão, assando o churrasco, tomando mate, dançando a chula, competindo nos rodeios, cantando nos festivais, sempre, sempre, estava presente o negro, gaúcho. Fazendo tudo isso com maestria, paixão e orgulho. Mas, sempre, invisível na representação da cultura gaudéria. Uma injustiça histórica a ser reparada. Navegando um pouco no nosso passado constata-se que em 1822 metade da população rio-grandense era negra. Consequência da bárbara escravidão que durou no Brasil até fins do século 19. Nossa biografia pátria carrega a vergonha de ser uma das últimas nações a acabar com a escravidão. O saldo, trágico, foram 5 milhões de africanos que pereceram no trajeto do tráfico da África para as Américas, sendo um dos maiores genocídios da história da humanidade. Ficamos atrás, apenas, do holocausto nazista. Foi a força moral e física dos escravos sobreviventes, suportando toda sorte de sacrifícios e humilhações, que alavancou a economia do Rio Grande do Sul e projetou essa terra esquecida do sul como uma potência no cenário político e econômico brasileiro. Relatos de viajantes estrangeiros, como o botânico francês Auguste Saint-Hilaire, em 1821, comprovam a participação do negro em todas as atividades do cotidiano rural. Numa charqueada, em Pelotas, registrou: “Há sempre na sala um negrinho de 10 a 12 anos, cuja função é prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que essa 34

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Fazenda Palomas, em Santana do Livramento

Alegrete


CIDADANIA

Desfile Farroupilha, em Santana do Livramento

criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca! Passa a vida tristemente encostado à parede e é frequentemente maltratado pelos filhos do dono. À noite chega-lhe o sono e, quando não há ninguém na sala, cai de joelhos para poder dormir. Não é essa a única casa que usa esse impiedoso sistema: ele é frequente em outras”. Para completar o massacre, os escravos foram os “patriotas” enviados para combater na Guerra do Paraguai e na Revolução Farroupilha. Com essa mortandade, aliada ao tráfico interno para os estados cafeeiros, em 1858 os negros gaúchos tinham sido reduzidos a 25% da população do estado. A afirmação da identidade racial e a preservação da cultura afro no interior tem se cristalizado com muita força nos quilombos rurais. São mais de 50 em todo o estado, com uma concentração maior na zona litorânea. A comunidade quilombola Ibicuí da Armada está localizada no município de Santana do Livramento, na divisa com o Uruguai. São 35 famílias, totalizando 110 descendentes do escravo Manoel Vicente Vaqueiro. O sobrenome não é coincidência. É uma evidência da habilidade dos afrodescendentes no manejo da pecuária. O escravo Manoel foi comprado em Pelotas, zona das charqueadas, pelo estancieiro Bragança e levado para Livramento. Com a abolição da escravatura o patrão, além da alforria deu-lhe um pedaço de terra. Manoel tinha tanta destreza na lida

com o gado que acabou adotando o sobrenome Vaqueiro e, hoje, seus descendentes, além de herdarem o nome continuam preservando a cultura e são especialistas no artesanato com lã de ovelha. Dona Valeriana Vaqueiro, a matriarca, tem 97 anos, faz crochê, anda a cavalo e conta, com lucidez e emoção as histórias da família. As gerações alemãs pós-guerra, herdeiras da vergonha do genocídio nazista, fizeram um “mea culpa” com a humanidade e mostraram que podiam ser uma nação civilizada. Os brasileiros, finalmente, estão assumindo a responsabilidade pela herança escravocrata e começaram a pagar a dívida com seus afrodescendentes, agora irmãos de sangue. Programas de inclusão e promoção social, como as cotas de ingresso nas universidades públicas e empregos estatais estão sendo criados para começar a consertar estragos da discriminação e do preconceito originados do poder oligárquico, quase sempre gerenciado pela elite branca. Mas não bastam decretos. A mutação cultural demanda consciência e tolerância da sociedade. É no convívio diário, baseado no respeito, na solidariedade e na igualdade que vamos pagando nossa dívida do passado e mostrando que podemos, também, ser um povo civilizado e fraterno. Saiba mais em www.e-tavares.com.br REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA AÇÃO CONTRA O NAZISMO Aracy ficou conhecida como “anjo de Hamburgo”

Na Alemanha, Joãozinho conheceu um anjo

Ação de Aracy, mulher de Guimarães Rosa, em favor de judeus ganha luz com documentário

ACERVO FAMÍLIA TESS

Por Vitor Nuzzi

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HISTÓRIA

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história de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa foi sendo descoberta aos poucos. Há alguns anos sabe-se que ela, como chefe do setor de passaportes do consulado brasileiro em Hamburgo, na Alemanha, burlou orientação da diplomacia brasileira e se arriscou diante do regime nazista para salvar judeus. Talvez uma centena deles. A conta é incerta. A própria Aracy, que morreu em 2011, aos 102 anos, evitava comentar. Mas os detalhes vão surgindo. Alguns revelam ironias históricas: na Alemanha, seu único filho, Eduardo Tess, entrou em uma fila com outras crianças para cumprimentar Adolf Hitler. A revelação é feita por Plínio de Arruda Sampaio – que morou na mesma rua e era colega de Eduardo – no documentário Esse Viver Ninguém me Tira, longa de estreia do ator Caco Ciocler como diretor. “O Edu me contou uma vez que ele cumprimentou Hitler”, diz Plínio no filme. Hoje com 85 anos, o filho de Aracy confirma. Conta que ficou indeciso, até que resolveu se enfileirar para cumprimentar o líder alemão. “Ele perguntou de onde eu era”, recorda Eduardo. Outra coincidência histórica entre personagens tão distantes: Aracy (1908) e Hitler (1889) nasceram no mesmo dia, 20 de abril, com 19 anos de diferença. “Em meio ao horror inventado por ele, Aracy descobriu quem era ela”, escreveu a jornalista e escritora Eliane Brum

em 2008, quando Aracy completou 100 anos e há muito tempo era conhecida como “anjo de Hamburgo”. Paranaense de origem, Aracy foi cedo para São Paulo, onde teve uma criação de classe média alta. Em 1934, aos 26 anos, separada e com um filho de 5, deixou o Brasil e foi morar na Europa (sua mãe era alemã), na casa de uma tia. Depois de algum tempo, foi trabalhar no consulado brasileiro em Hamburgo, onde conheceria João Guimarães Rosa, o cônsul adjunto, que tinha duas filhas (Vilma e Agnes) do primeiro casamento (com Lygia Cabral Penna). Já estavam juntos, mas casaram-se por procuração, no México, em 1942 – ainda não havia o divórcio. E ficariam juntos até a morte dele, em 1967. O livro Grande Sertão: Veredas, de 1956, começa com esta dedicatória: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Ela era Ara. Ele era Joãozinho.

Intrépida

A historiadora Mônica Raisa Schpun, pesquisadora e professora do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e autora do livro Justa, sobre Aracy e a imigração judaica, diz no filme pensar como foi embarcar para uma viagem de três semanas com um menino de 5 anos. “Fico tentando imaginar como ela subiu naquele navio.” De um país pacífico para uma Alemanha “já nazificada”, como define. Se tivesse de escolher apenas uma palavra para falar de Aracy, ela

escolheria “intrépida”. Há escassa informação sobre a atuação de Aracy no consulado. Familiares que dão depoimentos para o documentário são unânimes em dizer que ela era reservada em relação a esse assunto. O tema jamais apareceu nas correspondências com a mãe, nem nos diários que ela escrevia. Mas sabe-se que Guimarães Rosa receava que algo pudesse acontecer a ela (“O pavor que você tinha que a Gestapo me pegasse”, escreve Aracy em uma carta). “Ela não queria que isso ficasse documentado. Ela estava contrariando ordens superiores”, observa o sociólogo e escritor René Decol. Havia orientação do governo brasileiro para não conceder, ou dificultar, vistos para a entrada de judeus no Brasil. Antes de romper com o Eixo e declarar guerra a Alemanha, Itália e Japão, o governo Vargas flertou com esses países. Decol, filho de sobreviventes do Holocausto, cita a Circular secreta 1.127, de junho de 1937 – ano em que Guimarães Rosa chega à Alemanha, após passar em concurso –, sobre recusa de vistos a “indivíduos­ de origem semita”. Já sob o impacto da perseguição e violência contra os judeus na Alemanha, Aracy resolve burlar as ordens do Itamaraty. Não se sabe bem que “técnicas” ela usou para isso. Misturava os pedidos à papelada do dia, conseguia passaportes sem o J vermelho que identificava os judeus. Teria “cúmplices” na administração pública de Hamburgo para conseguir falsos atestados de residência em Hamburgo para FOTOS DIVULGAÇÃO/CINE GROUP

VESTÍGIOS Cenas do documentário de Ciocler: história nunca contada

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HISTÓRIA

que judeus de outras regiões pudessem pedir vistos. Aracy também chegou a transportar gente no carro diplomático. O cônsul, Joaquim de Souza Ribeiro, desconhecia as ações de sua chefe da área de passaportes. Um mérito do filme, se não o maior, é trazer depoimentos de pessoas salvas pela ação solidária de Aracy. Ou de pessoas que descobriram histórias de seus pais – e talvez nem existissem se isso não tivesse acontecido. A Segunda Guerra começara em 1939, mas as ações contra os judeus já haviam começado bem antes. As chamadas Leis de Nuremberg, por exemplo, são de 1935. Até 1942, quando declarou guerra ao Eixo, o Brasil mantinha boas relações com a Alemanha. Chegou a ser o principal parceiro comercial daquele país na América Latina, aponta o jornalista Lira Neto no segundo volume da recente trilogia sobre Getúlio Vargas. O pesquisador cita a mudança de política da diplomacia brasileira para “disciplinar” a emissão do visto a judeus. “Em vez de incentivar a imigração judaica, as novas regras do Itamaraty tinham como objetivo declarado reduzi-la drasticamente”, escreve Lira Neto à página 362. Deu certo, conforme afirmava o próprio ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha: “O número de indivíduos de origem semita entrados no Brasil em 1939 foi de 2.289, o que representa uma diminuição considerável em relação aos números anteriores, 4.900 em 1938; 9.263 em 1937”, disse o ministro ao embaixador brasileiro em Berlim, Ciro de Freitas Vale, primo de Aranha. Segundo o livro, Vale se queixa da “displicência” do governo em relação à “invasão de judeus no Brasil”. “A gente tinha muito pouca documentação relativa ao propósito do filme”, conta Caco Ciocler, que durante uma exibição do documentário dedicada à comunidade judaica, em novembro, fez uma comparação com Tubarão, de Steven Spielberg, ao dizer que em determinado momento das filmagens, nos anos 1970, a equipe concluiu que não poderia mostrar o robô que representava o ani38

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O livro Grande Sertão: Veredas, de 1956, começa com esta dedicatória: “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”. Ela era Ara. Ele era Joãozinho

mal, por ser muito ruim – e optaram por mostrar apenas a barbatana. “Deixa de ser um filme sobre tubarão e passa a ser sobre fobia, instinto”, observa Caco. “Não procurem pelo tubarão Aracy. A gente visitou a ausência de Aracy, tentou filmar essa ausência.” Com aproximadamente uma hora e dez minutos, Esse Viver Ninguém me Tira foi exibido nos festivais de Gramado e do Rio de Janeiro e iria ainda para os de

Recife e do Maranhão, antes de ser apresentado no exterior. No Brasil, os direitos de exibição foram adquiridos pelo canal pago Arte 1. Deverá chegar aos cinemas no ano que vem. Boa parte do material foi garimpado no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo (USP), onde fica o Fundo de Aracy, com 1.477 itens pessoais, como diários, cartas, fotografias, cartões-postais, documentos – e até dentes de gato.

ACERVO FAMÍLIA TESS

Imigração


HISTÓRIA

Neto de Aracy e com o mesmo nome do pai, Eduardo lembra que sua avó também ajudou gente muito tempo depois. Comenta que ela foi contra “os nazistas na Alemanha e os fascistas no Brasil”. E recorda do episódio em que, já viúva, escondeu em seu apartamento em Copacabana, no Rio, o cantor Geraldo Vandré, perseguido após apresentar sua canção Pra não Dizer que não Falei das Flores no Festival Internacional da Canção da Globo, em 1968. Do apartamento, ironicamente, dava para ver a movimentação no Forte de Copacabana. “Minha mãe mais uma vez assumiu a defesa de alguém que estava precisando”, completa Eduardo Tess. Em um livro de poesias publicado em 1973 no Chile e ainda inédito no Brasil, Vandré homenageou Aracy. “A graça já se fez, amiga,/ E não vai se perder./ Só falta que eu bendiga/ e vou me preparar para cumprir/ a missão de agradecer/ além do verso e da palavra”, diz o trecho inicial. Em uma carta, Aracy lembra de um episódio dos tempos em que o casal morava na praia do Russell, também no Rio. Guimarães procurava um título para seu livro, ela foi dormir. “Às 4 da manhã, assusto com você gritando: Ara, achei! Sagarana! Como ficamos alegres. Esse viver ninguém me tira.” O livro saiu em 1946, primeiro ano do pós-guerra.

CORAGEM calcula-se que Aracy salvou pelo menos uma centena de judeus quando trabalhava em Hamburgo

DIVULGAÇÃO/CINE GROUP

Aracy está citada no Museu do Holocausto (Yad Vashem) entre os não judeus que ajudaram a salvar judeus da perseguição nazista – os “justos”. Ganhou um bosque com o seu nome em Israel. Em 1982, foi reconhecida como “Justa entre as Nações”. Além dela, figura o nome do diplomata brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas, que foi embaixador na França no mesmo período. “Ela salvou meus pais”, diz no filme Marion Aracy, que ganhou o nome em homenagem à antiga funcionária do consulado em Hamburgo. O seu pai era Günter Heilborn, preso em 1938 em um campo de concentração. Inge, mulher de Günter, bateu à porta da representação diplomática e conseguiu ajuda. Obteve o visto e foi embora com Günter para o Brasil. Casaram-se no navio. Assim como Margareth Levy, a Margarida, que conseguiu deixar a Alemanha graças a Aracy, de quem se tornou amiga até o final da vida. “Uma mulher tão corajosa...”, murmura Margarida no filme. As duas morreram aos 102 anos, em 2011. Margarida em fevereiro, Aracy em março. Nem tinha como saber da morte da amiga, porque sofria de Alzheimer havia muito tempo – às vezes, reconhecia o filho, Eduardo. Mas a ligação entre as duas mulheres atravessou o tempo e superou o esquecimento.

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Justa

REVERÊNCIA O nome de Aracy é dos poucos brasileiros gravados nas pedras do Jardim dos Justos, no Museu do Holocausto, em Israel REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

A joia se reconstrói Valparaíso resistiu a piratas, terremotos e incêndios, tornou-se Patrimônio Cultural e coleciona desafios. Entre eles, construir um futuro que espelhe seu passado glorioso Por Cida de Oliveira 40

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epois de 30 dias a bordo do velho cargueiro militar francês Winnipeg, 2.365 refugiados da Guerra Civil Espanhola avistaram pontos luminosos, como estrelas penduradas no céu. Era o sinal de que finalmente se aproximavam da tão esperada Valparaíso, no Chile, país do diplomata Pablo Neruda, que chefiou a missão de resgate. Ali teriam asilo, morada, trabalho e a chance de uma nova vida longe da perseguição de Francisco Franco, que instauraria na Espanha uma ditadura de 36 anos. Com o raiar do dia 4 de setembro de 1939, descortinou-

-se o emaranhado de sobrados em meio a ruas estreitas, praças, jardins e escadarias a colorir a encosta que parecia pender sobre o porto e a parte baixa da cidade. Uma localidade ainda rica, diga-se, e estratégica para o comércio marítimo internacional. Com a independência do Chile, em 1810, Valpo, como é chamada, passou a receber investimentos e se tornou a mais importante na costa do Pacífico, sediando transações comerciais com a Europa e os Estados Unidos. Era uma época em que a ligação entre Pacífico e Atlântico era feita pelo Estreito de Magalhães, no extremo sul do continente.


ABRIGO Winnipeg e os refugiados da Ditadura Franquista

FOTOS HECTOR GARCIA/FLICKR/CC E BIBLIOTECA NACIONAL DO CIHILE (WINNIPEG)

VIAGEM

A herança desse período de pujança inclui os edifícios que abrigam a maior parte dos serviços públicos, escritórios de empresas, todo o setor portuário e hotéis em que marinheiros de todo o mundo se hospedavam. Ergueram-se museus como o Municipal de Belas Artes, o de História Natural, o do Mar Lord Thomas Cochrane e a Galeria Municipal de Arte do Valparaíso. A cidade também conta com universidades de prestígio, como a Pontifícia Universidade Católica de Valparaíso, a Universidade de Valparaíso e a Universidade Técnica Federico Santa María, um edifício característico de estilo gótico e renascentista situado na parte frontal do Cerro Prazeres. E com antigas escolas europeias, como o Colégio Alemão, a Aliança Francesa e o Colégio dos Sagrados Corações. Em atividade desde 1837, é a mais antiga escola particular na América do Sul. A maioria da população, estimada em 300 mil pessoas, das quais 280 mil moradoras nos cerros, tem escolaridade superior à média nacional. E o analfabetismo é de menos de 2%.

No traçado dos morros

Valpo está a 120 quilômetros ao norte da capital Santiago. É uma das três cidades mais importantes do país, sede do Congresso Nacional, do Comando das Forças Armadas, do Serviço Nacional de Aduanas e do Conselho Nacional de Cultura e das Artes. É ainda a capital de uma província formada por seis comunas, entre elas a vizinha Viña Del Mar, o mais procurado dos balneários de todo o litoral.

Símbolos da resistência de um povo que foi reconstruindo suas vidas após terremotos que destruíram o plano baixo da cidade, como o de 1730, os cerros concentram diversos bairros, como o Cordillera, onde está o Museu do Mar, no antigo Castelo San José, uma fortaleza construída contra ataques de corsários e piratas, que entre 1559 e 1615 roubaram o ouro enviado do Peru. O único planejado é o Concepción, com praças, passeios, corredores, mirantes, escadas e estações de alguns dos ascensores. Ali concentra-se boa parte da vida cultural e boêmia, em cafés, restaurantes, museus, antiquários e centros de arte que movimentam a cidade e atraem turistas de todo o mundo. O bairro foi desenvolvido por imigrantes alemães atraídos pela importância da cidade. Único no mundo, esse traçado urbano que venceu as adversidades de encostas tão íngremes foi reconhecido em 2003 pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. No entanto, a Valparaíso de hoje não é sombra daquela vista pelos espanhóis trazidos salvos por Neruda há 75 anos. Muito menos a “Joia do Pacífico”, como foi tratada até 1914, quando a abertura do Canal do Panamá reduziu sua atividade portuária e a riscou da mapa das grandes rotas comerciais, o que levou, entre outras coisas, a perder para Santiago sua posição de centro político e econômico do Chile. Cartão postal da cidade, os ascensores – elevadores sobre trilhos – são também símbolo do empobrecimento. Dos 31 construídos no final do século 18 como

ESTRATÉGICO Valparaíso tem um dos portos mais importantes da América do Sul pelo lado do Oceano Pacífico

JETDRIVER/WIKIMEDIA COMMONS

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RODRIGO GARRIDO/EFE

VIAGEM

ACOLHEDORA À noite, Valparaíso exibe seus cerros iluminados e seus pontos turísticos

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na foi saqueada. Durante a ditadura chilena, Valpo enfrentou um regime de toque de recolher que afetou empresas e prejudicou hotéis e pousadas. A crise econômica no começo do final dos anos 1970 fechou indústrias e transferiu outras para Santiago, em especial as de refino de açúcar e de doces. A casa museu foi restaurada em 1991, com apoio de empresários espanhóis, e aberta como centro cultural em 1997.

Reconstrução

Entre os inúmeros desafios que Valparaíso tem pela frente estão justamente a sua preservação e planejamento. De acordo com a prefeitura, está sendo elaborado um plano de recuperação, fortalecimento e conservação de infraestrutura relativa às funções históricas do porto e do patrimônio subaquático, que inclui a pesca, e o enfrentamento às vulnerabilidades a desastres naturais, como terremotos, inundações e incêndios, além de garantir a sustentabilidade dos sistemas tradicionais de transporte, como os degradados ascensores e bondes. Entre as medidas, pretende-se investir na preservação das estruturas e fachadas das construções e traçar diretrizes estratégicas para o monitoramento. A administração espera, a partir de parce-

PEKKA PARHI/WIKIMEDIA COMMONS

alternativa de mobilidade para os moradores chegarem a suas casas, apenas sete funcionam. Entre eles está o Concepción, o primeiro a ser construído, inaugurado em 1883. Parte da Rua Prat, próximo ao Relógio Turri, e sobe 69 metros até o morro mais badalado, no Paseo Gervasoni, de onde se tem uma bela vista da cidade com o Pacífico ao fundo. Há outros oito ascensores inativos, entre eles o Florida, inaugurado em 1906, que partia da Rua Carrera subindo 138 metros até chegar à Rua Maroni. O Florida servia a quem subia ao cerro de mesmo nome, onde se encontra a Casa Museu La Sebastiana, um dos principais pontos culturais da cidade. A construção, que conserva coleções de mapas antigos, fotos e pinturas, é uma das três casas de Pablo Neruda. As outras estão na capital Santiago e em Isla Negra, também transformadas em museu. Adquirido de um espanhol morto em 1949, o imóvel reformado e inaugurado com festa em 1961 foi o espaço escolhido pelo Nobel da Literatura para passar suas festas de réveillon, de onde podia ver os fogos de artifício lançados do porto. Em 1972, o poeta passou ali sua última virada. No ano seguinte, o do golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende e de sua morte, La Sebastia-

VISITA OBRIGATÓRIA A Casa Museu La Sebastiana é um dos principais pontos culturais da cidade. Dela, Pablo Neruda contemplava os fogos de artifício no Reveillon


ESTEBAN IGNACIO/FLICKR/CC

VIAGEM

rias com o governo de Michelle Bachelet, obter novas fontes de recursos para financiar seu plano de recuperação e fortalecer seu potencial como cidade patrimonial, turística e cultural. Valpo é vista também como um polo de desenvolvimento tecnológico. Depois de enfrentar grandes incêndios em 2007 e 2010, ano que foi assolada também por um forte terremoto, em abril deste ano Valparaíso voltou a sofrer com o fogo iniciado em uma reserva florestal em La Polvora, que matou 15 pessoas, destruiu 2.837 casas e deixou mais de 8 mil desalojados nos cerros El Litre, La Cruz, Las Cañas, Mariposas, Mercedes, Ramaditas e Rocuant. A reconstrução, no entanto, não segue a mesma velocidade das chamas. O Ministério da Habitação lançou um plano com obras de infraestrutura que não devem ficar prontas antes de 2021 e de ajuda para a recuperação das casas até 2017. Até outubro passado, segundo o próprio governo, apenas 27% das famílias tinham reerguido suas moradias nos cerros de Valparaíso.

ASCENSOR ARTILLERÍA Os ascensores são opção de transporte para a população dos morros, mas apenas sete estão funcionando

FELIPE TRUEBA/EFE

PROBLEMA CRÔNICO Moradores observam o incêndio que em abril deste ano destruiu florestas, casas e matou pelo menos 15 pessoas

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MEMÓRIA

A vida e suas viradas

Livro resgata jornadas de sobreviventes da ditadura, intelectuais, artistas e líderes de um projeto nacional democrático, enquanto os “vencedores” de ontem vivem nos subúrbios da história Por Xandra Stefanel

O

momento não poderia ser mais propício para o lançamento de Os Vencedores – A Volta por Cima daGeraçãoEsmagadapela Ditadura de 1964 (Geração Editorial, 856 págs.), do jornalista Ayrton Centeno. Enquanto a direita saudosa dos anos de chumbo sai às ruas para pedir intervenção militar, a imensa reportagem de Centeno chega às livrarias para relembrar uma história sombria que calou por muitos anos militantes, músicos, cineastas, atores, jornalistas, escritores e artistas em geral. O que o autor pretende é trazer à tona uma realidade bastante evidente mas que, segundo ele, até então ninguém havia abordado: “O fato de que os vencedores de 1964 hoje estavam esquecidos enquanto os derrotados de então eram, décadas depois, são os reais vitoriosos. O ponto de partida foi uma entrevista com a então ministra da Casa Civil e pré-candidata à Presidência, Dilma Rousseff, que eu havia feito em 2010”, afirma Ayrton Centeno. Para contar esta história, durante três anos Ayrton fez muitas entrevistas. Dilma, Tarso Genro, José Genoíno, Aloysio Nunes Ferreira, José Dirceu, Frei Betto, Gilberto Gil, Marília Pêra, José de Abreu, José Celso Martinez e Ignácio de Loyola Brandão são alguns dos que receberam o jornalista para longas conversas. A primeira delas foi com a presidenta reeleita,

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sobre quem ele narra toda a história, desde a infância, em Belo Horizonte, passando pela adolescência, a entrada na clandestinidade, a prisão, a tortura, a vitória contra o câncer e a conquista da presidência do maior país da América do Sul. Segundo Centeno, o critério de escolha dos entrevistados tem uma lógica e um lado bem definidos. “Pode-se dizer que o material existente, os depoimentos a serem concedidos, as histórias a serem contadas dariam material para uma alentada coleção da resistência. Foi necessário fazer escolhas. A primeira delas

foi a de ouvir apenas os resistentes. O livro, portanto, tem lado. O que não significa que pretenda subverter a verdade factual. Quanto aos entrevistados potenciais, houve alguns que, procurados, preferiram não se manifestar, caso de Chico Buarque, Caetano Veloso, Fernando Gabeira, por exemplo. A outros não foi possível ouvir por diferentes razões”, afirma.

Devidos lugares

Os fatos são incontestáveis: “Nos últimos 20 anos, o Brasil foi governado por um professor perseguido que perdeu sua cátedra na Universidade de São Paulo e se autoexilou; um torneiro mecânico preso, condenado duas vezes e removido da direção de seu sindicato; e uma ex-guerrilheira, presa e torturada. Os três foram privados de seus direitos políticos”, reforça. E como estão aqueles que perseguiram, torturaram e mataram nos porões da ditadura? O delegado Davi dos Santos Araújo, conhecido na época da ditadura como Capitão Lisboa, talvez tenha a resposta. Supostamente arrependido, parece ter entendido a sucessão de desgraças que viveu (infartos, cânceres, cegueira e acidentes) como castigo divino pelas atrocidades que cometeu. “Se eu soubesse que o Brasil resultaria nisso, não teria ido para lá (DOI-Codi). Hoje nossos adversários são excelências e nós não somos nada.” “Na disputa pela memória, os perdedores venceram”, escreve Ayrton Cente-


A PARTIR DE FOTOS ARQUIVO PESSOAL (GILBERTO GIL); ROLANDO DE FREITAS/AE (JOSÉ CELSO); JUCA MARTINS/OLHAR IMAGEM (LULA); REPRODUÇÃO (DILMA); AE (JOSÉ DIRCEU); ARQUIVO PESSOAL (GENOÍNO)

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no, na abertura do livro, ao observar que velhas palavras impostas pelo imaginário do autoritarismo foram ressignificadas. “Revolução, terrorismo, subversão deram lugar a golpe, tortura, resistência. Repisada a sério anos a fio, a expressão ‘Revolução Redentora’ é lida hoje apenas pelo viés da galhofa. Mesmo a imprensa que quase sempre perfilou-se com os militares, agora refere-se a 1964 como golpe, sem nenhuma cerimônia.” Ao contrário dos algozes que têm de esconder sua história vergonhosa, os personagens de Os Vencedores, por mais difíceis e dolorosas que tenham sido suas experiências, podem se orgulhar de terem lutado por um país mais justo e democrático. Apesar de não serem histórias inéditas, são impactantes e extraordinárias. Juntas em uma mesma obra, têm peso inquestionável. “São, no legítimo sentido do termo, trajetórias extraordem. Já era assim nos anos 1960. Mas são muito mais impressionantes agora quando as utopias são, como nunca, questionadas e o pensamento dominante está muito mais focado na realização individual, no arrivismo, no vencer na vida a qualquer preço, no consumo conspícuo, no próprio umbigo”, opina o jornalista. Questionado sobre a entrevista que mais o emocionou, Ayrton Centeno destaca a de José Genoino: filho de sertanejos muito pobres, trabalhou na roça desde criança e calçou sapatos pela primeira vez na adolescência. Virou liderança estudantil no Ceará, contraiu leshmaniose e 20 malárias na guerrilha do Araguaia, foi preso, torturado e, por um triz, escapou de ser executado. “Cumpriu pena longa na ditadura. Reconstruiu sua vida, foi vendedor de tintura de cabelos, depois professor de cursinho e retornou à militância no PT, após transitar pelo PCdoB e o clandestino Partido Revolucionário Comunista (PRC). Casou-se com uma companheira de trajetória revolucionária, teve filhos, elegeu-se deputado federal e liderança nacional do partido. Foi constituinte em 1988 e se tornou uma das figuras notáveis do Congresso. Na presidência do PT, foi fulminado pelo julgamento atípico do chamado mensalão e 46

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MARCELLO CASAL JR./ABR 2003

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“É possível afirmar que os vencidos de ontem, por caminhos distintos, coletivos ou individuais, derrotaram a derrota que lhes foi imposta na luta armada ou desarmada contra a ditadura, enquanto os vitoriosos de outrora habitam os subúrbios da memória nacional” hoje luta para defender sua história.” Os Vencedores – A Volta por Cima da GeraçãoEsmagadapelaDitadurade1964 faz um retrato de uma geração nascida nos anos 1940 e que era muito jovem nos anos 1960. A narrativa acompanha a travessia desses militantes, estudantes, músicos, escritores, atores, cineastas e guerrilheiros em sua derrocada até sua superação, quando se tornam referências de luta pela democracia. Trata-se de uma obra útil até mesmo (ou ainda mais) para esses que hoje esperneiam pela volta dos militares. “Costumo dizer que a direita que está nas ruas

em 2014 se faz direita menos por sua atividade intelectiva do que por sua operosidade intestinal. Mas, cuidado: todo mundo sabe perfeitamente que, adicionando agressividade e violência a este coquetel, o resultado é o fascismo. Acho que o livro será útil mesmo para quem grita pela volta dos militares. Basta encará-lo com espírito desarmado, sem milhares de certezas e nenhuma dúvida. É que OsVencedores, entre outras tarefas, também cumpre a função de descrever algumas das situações e práticas que tornaram a ditadura uma experiência tão nefasta. Para nunca mais ser repetida”, completa o autor.


curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Rainha caipira

FOTOS DIVULGAÇÃO EDITORA KELPS

Prestes a completar 90 anos, em março de 2015, Inezita Barroso ganhou um presente adiantado. O livro Inezita Barroso - Rainha da Música Caipira (Ed. Kelps, 212 págs.) é narrado em primeira pessoa pela própria artista para o jornalista Carlos Eduardo Oliveira, autor do texto final. Na obra, ela relembra sua trajetória e os obstáculos que teve de enfrentar para que seu cancioneiro triunfasse ante a falta de espaço artístico. Ela resgata casos que envolvem o apresentador Silvio Santos, o presidente Juscelino Kubitschek e o sanfoneiro Luiz Gonzaga, e conta como Roberto e Erasmo Carlos destruíram e salvaram a carreira dela na época da Jovem Guarda. Tantos anos e tanto talento renderam a Inezita não só reconhecimento, mas também saborosas histórias. R$ 31,50. (por Xandra Stefanel)

Inezita canta na fábrica, em 1956

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CURTAESSADICA

MARIA BUZANOVSKY/DIVULGAÇÃO

CARLOS CHAMBELLAND/DIVULGAÇÃO

Jovem com frutas, de Carlos Chambelland

Primeira perifa Todo o terceiro andar do Museu de Arte do Rio (MAR) foi ocupado pela exposição Do Valongo à Favela: Imaginário e Periferia, que conta a história da região onde hoje estão os bairros da Saúde e da Gamboa. A mostra resgata uma história de exclusão e examina como foi sendo formado o imaginário cultural dessa periferia. Por meio de um percurso que apresenta antigas imagens do lugar e suas atividades, a

exposição coloca a periferia no centro do interesse da arte e expande os limites geográficos que a originaram. De certa forma, coloca em evidência o encontro – ou o desencontro – da África com o Brasil. Até 1° de fevereiro, às terças, das 10h às 19h, com entrada gratuita, e de quarta a domingo, das 10h às 17h, na Praça Mauá, 5, no Centro da capital carioca. R$ 4 e R$ 8. Informações: museudeartedorio.org.br.

Bicharada de Baleiro

A Serpente que Queria Ser Pente, Girafa Rastafari, Maria Fedida, Morcego Sanfoneiro. A bicharada está solta na primeiro volume da série Zoró - Bichos Esquisitos, de Zeca Baleiro. O cantor e compositor maranhense chamou um time peso-pesado para seu primeiro disco infantil. Tom Zé tem participação especial em Dona Libélula, Fernanda Abreu participa da “balada” Joaninha Dark, MPB4 empresta as vozes a O Hipopótamo e tem ainda Blubell, Azira E e Tetê Espíndola, Chico Lobo, Wado, Walter Franco e Diogo Franco. O álbum foi lançado em versão digital, em CD e em breve deve sair em DVD. Em média R$ 25. 48

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Amizade para superar o luto O diretor cearense radicado em Recife Eric Laurence percorreu cerca de 6.300 quilômetros para fazer o documentário Uma Passagem para Mário, que estreou em novembro em circuito nacional e que poderá ser exibido gratuitamente em cineclubes de todo o Brasil. O road movie de 77 minutos é sobre amigos e superação da morte. A ideia nasceu quando o diretor e seu amigo Mário Duques começaram a planejar uma viagem para o deserto do Atacama, no Chile. Mas Mário não resistiu ao câncer contra o qual lutava há quatro anos e o filme acaba virando uma emocionante homenagem à amizade. Para exibir Uma Passagem para Mário em um cineclube, basta escrever para a produção por meio do site www.umapassagemparamario.com.


FOTOS DIVULGAÇÃO

Helvécio Ratton, o mesmo diretor que reproduziu horripilantes cenas de tortura nos porões da ditadura no longa-metragem Batismo de Sangue (2007), lança agora uma trama adolescente cheia de aventura. O Segredo dos Diamantes, que tem previsão de estreia para o dia 18 de dezembro, conta a história de Angelo (Matheus Abreu), um garoto de 14 anos que vai atrás de uma antiga lenda sobre diamantes para salvar a vida do pai (Nivaldo

DIVULGAÇÃO

Aventura adolescente Pedrosa), que sofreu um traumatismo craniano em um acidente de carro e precisa ser transferido para um hospital maior. A única saída para salvá-lo é encontrar os diamantes escondidos por um misterioso padre há mais de dois séculos. Para isso, Angelo vai contar com a ajuda de dois amigos e juntos terão de enfrentar o vilão Silvério (Rui Rezende), que não vai desistir tão fácil de colocar as mãos no tesouro.

Mundo Mafalda Personagem mais famosa do cartunista argentino Quino, a rebelde Mafalda completou 50 anos no final de setembro. Para celebrar a data, ela ganhou a exposição O Mundo de Mafalda, que já passou pelo México, Chile, pela Costa Rica, Argentina e chega no dia 16 de dezembro Praça das Artes, na capital paulista. A mostra faz parte do Circuito São Paulo de Cultura

e apresenta todo o universo da menina mais contestadora, pacifista e libertária de todos os tempos nas histórias em quadrinhos. Estarão em cartaz até 28 de fevereiro desenhos originais, reproduções de cenários, vídeos e fotografias. De terça a sábado, das 9h às 20h, na Avenida São João, 281, em São Paulo. Informações: circuitospdecultura.prefeitura.sp.gov.br. Grátis. REVISTA DO BRASIL

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CRÔNICA

Manoel de Barros, por Armandinho Personagem do cartunista Alexandre Beck homenageia o poeta, morto no último dia 13 de novembro, aos 98 anos

Trecho do texto “Manoel por Manoel”, do livro Memórias inventadas – As Infâncias de Manoel de Barros (Editora Planeta do Brasil, 2010) 50

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ORÇAMENTO 2015 Dê a sua opinião. Ela vai fazer de São Paulo uma cidade melhor.

A Câmara Municipal de São Paulo convida você para debater o orçamento do próximo ano. É a oportunidade de indicar os investimentos necessários em seu bairro, como mais recursos para saúde, transporte público, moradia e lazer. Audiência Pública: Dia 9/12 às 10h na Câmara Municipal de São Paulo

Venha para a audiência ou acompanhe em www.camara.sp.gov.br. Participe. Sua opinião vale uma cidade melhor.

Portal da Câmara www.camara.sp.gov.br

Web Rádio www.webradio.camara.sp.gov.br

TV Câmara www.tvcamara.sp.gov.br Canal Aberto Digital 61.4 • Net - Canais 13 (Cabo) e 3 (Digital)


Está todo mundo falando. Você precisa ver. Canal 44 UHF Digital: Grande São Paulo. Canal 2 NET Digital: São Paulo (das 19h às 20h30). Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br


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