Rdb119

Page 1

JEAN WYLLYS É possível enfrentar e superar a imbecilidade nas redes e melhorar a política

PARQUES AMEAÇADOS Alckmin quer entregar áreas florestais onde brotam nascentes, pesquisas e vida

nº 119 julho/2016 www.redebrasilatual.com.br

O CONGRESSO, SEM O CUNHA, VAI MELHORAR Dilma diz que governo interino tenta engessar a evolução social do país por 20 anos. Para ela, o golpe será barrado no Senado e a retomada da governabilidade passa pelo fim da influência de Cunha na Câmara


A ALEGRIA DE OUVIR RÁDIO ESTÁ DE VOLTA

98 9FM ,

GRANDE S. PAULO

As notícias que as outras não dão

e as músicas que as outras não tocam.

24 horas no ar, todos os dias

Emerson Ramos

Marilu Cabañas

Rafael Garcia

www.redebrasilatual.com.br/radio

Guaracy Junior

Colibri Vitta

Fabiana Ferraz

soundcloud.com/redebrasilatual


ÍNDICE

EDITORIAL

6. Capa

Dilma: Meirelles foi bem no governo Lula, mas vai mal agora

12. Mauro Santayana Controle de gastos torna país estrategicamente inviável

14. Entrevista

ANTONIO CRUZ/ AGÊNCIA BRASIL

Jean Wyllys: Lava Jato não é vaca sagrada, e Moro tem lado

18. Ambiente

Governo Alckmin dá mais um passo para o atraso da pesquisa

24. Trabalho

Solidariedade mantém a luta e a esperança na Karmann-Ghia

Renúncia de Cunha faz parte de “acordão” e de estratégia de Temer: sistema falido

28. Comportamento Em casa, na escola, no trabalho, na política... Respeito é bom

“Deus abençoe esta nação’’

34. Esporte

Os Jogos do Rio e a distância de um projeto esportivo nacional

40. Cidadania

Caravana tenta encurtar a distância cidade-campo

FELIPE GOMES/FLICKR/CC

Parque Estadual Carlos Botelho (SP)

44. Viagem

Nossa Senhora do Rosário, cerimonial de resistência

Seções Cartas

4

Eleições na TV, por Lalo Leal

5

A economia, por Marcio Pochmann 11 Curta essa dica

48

Crônica, por Eduardo Maretti

50

A frase acima, dita por Eduardo Cunha (PMDB-RJ) ao renunciar à presidência da Câmara – com objetivo de não perder o mandato –, coroa a hipocrisia que abate a política brasileira. Como diz o provérbio, é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que Eduardo Cunha entrar no reino dos céus. O parlamentar é conhecido por explorar a fé alheia para enriquecer, se elevar no altar da política e enriquecer mais ainda. Com seu poder econômico na Câmara, Cunha paralisou o país e liderou um golpe legislativo. É o símbolo mais contundente de um sistema político falido. Esse tema aparece em comum em entrevistas desta edição, uma com a presidenta afastada Dilma Rousseff e outra com o deputado federal Jean Wyllys (Psol-RJ). Ambos apontam para a contradição do sistema eleitoral, em que pessoas costuma priorizar o projeto em disputa quando votam para prefeito, governador, presidente, mas são movidas a clientelismo ou desinformação ao eleger vereadores ou deputados que inviabilizam o projeto escolhido. Para Jean Wyllys, o uso oportunista da política se alimenta da cumplicidade de um eleitorado majoritariamente conservador. O Congresso não representa a diversidade do Brasil, mas representa preconceitos arraigados na maioria do povo. E preconceito não se resolve com leis duras ou prisões, mas com um processo civilizatório de formação e educação. Dilma enaltece o papel da educação para a evolução do país em termos materiais, culturais, científicos e humanos. Por isso, considera um dos objetivos mais graves do golpe em curso o engessamento dos gastos com educação e saúde – “Não por agora, mas por 20 anos”. Wyllys tem fé que o país melhore sua representação política em 2018, sem financiamento empresarial de campanha e com mais empenho dos setores democráticos em saber acolher as demandas que florescem todos os dias nas ruas e redes. Segundo ele, a esquerda e a juventude têm potencial para enfrentar e superar a imbecilidade que prolifera nas redes sociais. Também é comum a esses dois personagens – de gerações e posições partidárias contrastantes – a batalha vigorosa pela democracia. Para ambos, Dilma errou ao compor governo com traidores, mas o golpe ainda pode ser revertido no Senado. E ela sairia da turbulência melhor do que entrou, com o compromisso de rever a condução da economia para a rota do crescimento e de honrar o programa de governo com que se elegeu. REVISTA DO BRASIL

JUNHO 2016

3


CARTAS Para poucos Ótima exposição da atual situação. Parabéns à Revista do Brasil. Pena que a situação seja tão tenebrosa. Sinto-me envergonhado com o nível de desfaçatez desses golpistas. Fora, Temer. Fora, Rede Globo. (“O país para poucos”, ed. 118) Luiz Carlos

www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gabriel Valery, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Sergio Amaral/RBA (Dilma Rousseff) Mauricio Morais/Sind. Bancários SP (Jean Wyllys) Manufaturadeideias/Flickr/CC (ambiente) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 120 mil exemplares

Conselho diretivo Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Douglas Izzo, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Glaucus José Bastos Lima, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, João Carlos de Rosis, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Roberto von der Osten, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

4

JUNHO 2016

REVISTA DO BRASIL

Revista, 10 anos Ainda bem que temos algumas publicações que não se curvam à subserviência à Casa Grande, como é o caso da Revista­ do Brasil. Força e perseverança para os próximos 10 anos, talvez os mais dramáticos que estes tristes trópicos deverão enfrentar. (Editorial “Ao desalento, movimento”, ed. 118) Ed Sampa Mauro Santayana Conspiração contra a Presidência da República é crime. O impeachment ao qual Dilma tem sido submetida faz parte de uma conspiração. A Globo é sócia desde a primeira hora desse golpe, agindo como verdadeiro partido de oposição aos governos petistas. Então, se a conspiração do impeachment é na verdade um golpe do qual a Globo é partícipe de peso, ela deve ser imputada e responsabilizada pelo crime de conspiração. (“O grande golpe depois da curva”, ed.117) Jô Gê O golpe não é apenas um golpe interno. É um golpe patrocinado por potências estrangeiras. Nossa mídia, controlada por famiglie mafiosas, vendidas, já fez e continua a fazer seu papel covarde de lavanderia de cérebros e de almas. A Constituição foi “pro saco”. A Justiça está integrada ao golpe. Não tem volta, infelizmente. (“O grande golpe depois da curva”, ed.117) Gustavo Horta

Economia Esse senhor Henrique Meirelles era o indicado pelo Lula? Bem fez a Dilma em não querê-lo. E depois dizem que ela não sabe nada. (“O Estado na contramão”, ed. 118) Carlos Tramontina Pós-Olimpíada Trinta mil trabalhadores serão demitidos, isso de empregos diretos, e os indiretos! O golpista está raspando o cofre para distribuir entre amigos. E o povo que se lasque. (“Fecham-se as cortinas”, ed. 118) Aurélio O desafio da unidade A direita que está no poder fará o que puder para inviabilizar a vitória do povo nas urnas. Barrar o golpe é a única opção para se restaurar a democracia. O que a presidenta Dilma Rousseff está propondo é nada mais e nada menos do que garantir a legalidade, tal qual o fez o grande Leonel Brizola. Não há negociação com governo ilegítimo. (“São demais os perigos”, ed.117) Kristina Cruz Emir Sader Não adianta a eleição de um presidente progressista se o parlamento é um covil de reacionários. Estamos vendo essa situação em toda magnitude agora. A presidenta Dilma está sendo deposta por não ter o respaldo do congresso. É simples assim. (“Por que o Congresso brasileiro é tão ruim”, ed.117) José Roberto de Lima

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


LALO LEAL

Eleições na TV

A disputa dos partidos é a principal evidência da importância da televisão nas eleições. Coalizões, às vezes esdrúxulas, se formam em nome de mais algum tempinho diante das câmeras

D

ois dias antes do plebiscito que definiu a saída do Reino Unido da União ­Europeia, um debate entre defensores das duas propostas em disputa reuniu 6 mil pessoas na Arena de Wembley, em Londres. A realização foi da BBC, a emissora pública britânica que, além dos debatedores, três de cada lado, incluiu entrevistas com o público e convidados. Nas bancadas estavam, entre outros, o ex e o atual prefeito de Londres, defendendo posições antagônicas. Nas eleições presidenciais nos Estados Unidos, os debates entre os candidatos são realizados em universidades públicas e transmitidos pela PBS, a rede pública de televisão daquele país. Aqui, em ano eleitoral, algumas emissoras já anunciam a realização de debates entre candidatos a prefeito. Com a diferença, em relação aos exemplos anteriores, de que são empresas comerciais mais preocupadas com audiência e seu respectivo faturamento do que com a prestação de um necessário serviço público, fundamental para o jogo democrático. Ainda que as regras desses debates sejam aceitas de comum acordo entre os partidos, seu conteúdo está sempre sujeito a distorções editoriais, segundo a linha política adotada pela emissora. Um caso histórico é o debate Lula-Collor, em 1989, quando a direção da Globo determinou que houvesse destaque, na edição para os telejornais, dos melhores momentos de Collor e dos piores de Lula. Em debates mais recentes, pode-se notar o partidarismo de jornalistas escolhidos para fazer perguntas aos candidatos, induzindo nelas interesses políticos da empresa. A televisão, apesar da importância da internet, ainda é a principal fonte de informação no país. Faz um trabalho diário buscando consolidar politicamente os seus interesses junto à população. Em períodos eleitorais, a situação torna-se mais aguda, com a proliferação de informações e reportagens destinadas a estimular ou a destruir candidaturas. A disputa dos partidos por alguns segundos no chamado horário eleitoral obrigatório é a principal

evidência da importância da TV nas eleições. Coalizões partidárias, às vezes esdrúxulas do ponto de vista ­ideológico, se formam para que seus integrantes desfrutem de mais algum tempinho diante das câmeras. Ainda assim, deve-se considerar a existência desse tipo de programa como um dos avanços da democracia brasileira. O horário eleitoral tornou-se um pequeno oásis democrático, abrindo-se como contraponto à narrativa homogênea das emissoras comerciais. Curioso que esse espaço vem dos tempos da ditadura, quando os partidos artificiais existentes, Arena e MDB, tinham direito de acesso ao rádio e à TV duas vezes por ano. A redescoberta foi obra do PT, o primeiro partido, na nova configuração partidária, a se valer da lei e a colocar no rádio e na TV propostas e programas de ação. Ao primeiro programa, bastante rudimentar, gravado num ginásio de esportes, com cenas de ringue de boxe, seguiu-se outro produzido gratuitamente por jornalistas de diferentes emissoras. O sucesso foi total, com excelentes índices de audiência e elogios publicados até na mídia conservadora. Pela primeira vez, usava-se em programas políticos a linguagem específica da televisão, com qualidade técnica e artística a que o telespectador estava acostumado a ver em novelas e telejornais. Aberta a porta pelo PT, as janelas do rádio e da televisão para transmissão de mensagens político-eleitorais passaram a ser disputadas de forma acirrada pelos demais partidos. A profissionalização chegou ao setor com o surgimento de marqueteiros muito bem remunerados com recursos de origem, quase sempre, não muito clara. Os programas eleitorais da TV tornaram-se fontes de descaminhos éticos que chegam com vigor até hoje, disseminados pelo país. Mas nem por isso devem ser condenados. Resta aprimorá-los e não reduzi-los, como passa a acontecer neste ano, quando caíram de 45 para 35 dias de exibição. Exigência dos donos das emissoras encampada pela Câmara dos Deputados, na gestão Eduardo Cunha. REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

5


ENTREVISTA

N

aquele 6 de julho, em que o advogado José Eduardo Cardozo leria o documento de defesa para a comissão do impeachment no Senado, não houve pedaladas. “Hoje não deu”, diz a presidenta afastada Dilma Rousseff, que anda de bicicleta por cerca de uma hora “quase” todas as manhãs. “Ficamos até mais de duas da madrugada escrevendo aquele trem”, disse, suportando o cansaço com energia e um tanto de humor. O dia em que a reportagem foi recebida para esta entrevista no Palácio da Alvorada foi de movimentação no ambiente político. Na hora do almoço, longa conversa com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para ouvir “sempre informações importantes”. Em meio a sucessão de reuniões, Dilma se deu uma pausa para a entrevista, que durou pouco mais de uma hora. Desligados os gravadores, conversou informalmente por mais meia hora – “Preciso ir para mais uma reunião, mas não estou com vontade...” –, desmentindo com descontração, piadas e comentários impublicáveis a fama de “má”. Naquele momento, Temer sofria um revés no Congresso, quando a Câmara rejeitou o regime de urgência para seu pacote de bondades negociado com governadores, orçado em R$ 50 bilhões. Segundo a presidenta, a governabilidade não está fácil para ninguém. No dia seguinte ela se encontra com sua base de apoio para mapear os próximos passos da reação. E o deputado suspenso Eduardo Cunha (PMDB-RJ) renuncia à presidência da Câmara com vistas a preservar seu mandato e seu poder na Casa. “Cada vez que se dá mais um passo no sentido de afastá-lo se cria uma perspectiva favorável ao país”, acredita. Na ainda controversa proposta sobre consulta popular sobre antecipação de eleições, Dilma­não explicita sua posição pessoal, mas deixa nas entrelinhas que a convocação de um plebiscito, sobre eleições presidenciais ou eleições gerais, não precisa ser condição prévia para que os senadores barrem o impeachment. Para ela, o principal consenso alcançado já será o suficiente: “Restabelecer a democracia, fazer o Brasil voltar a crescer e conter as ameaças a direitos, tanto as efetivas como as virtuais, aquelas que ainda vão ocorrer”. E não haverá solução para a crise política sem a participação da sociedade e sem a abertura de um debate sobre reforma política. 6

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL


ENTREVISTA

Sobre o ministro da Fazenda, Henrique ­ eirelles, que teria sido cogitado para sua equiM pe, ela não desconversa. Observa que é pessoa qualificada, mas depende de para qual projeto trabalha. No governo Lula, de 2003 a 2010, foi bem e ajudou. No governo do “interino, provisório e ilegítimo”, vai mal. “E em meu governo ele nunca esteve.” A presidenta considera grave a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que restringe gastos com saúde e educação “não por um ano, mas por 20 anos” – praticamente o tempo que durou a ditadura imposta pelo outro golpe, o de 1964. “O que se gastou ainda não é suficiente para o Brasil ser um país que tenha um padrão internacional equivalente a países do nosso nível médio de renda”, afirma. A tese é trágica e burra: “Ninguém vai me convencer que uma sociedade que exclua as pessoas, que as condene à miséria e renegue questões básicas da civilização, como o acesso à educação, é uma sociedade em que as pessoas queiram criar seus filhos. Não acredito”. Dilma garante estar confiante. Está previsto para entre 22 e 26 de agosto – na média, como ela mesma observa, 24 de agosto, dia do suicídio de Getúlio Vargas – o julgamento final do processo no Senado. Desta vez, afirma, a democracia irá renascer.

Retomada exige outra economia e outra política Para a presidenta, governo proveniente de golpe quer cassar investimentos sociais nos próximos 20 anos e engessar o país Por Hylda Cavalcanti, Marilu Cabañas e Paulo Donizetti de Souza

FOTOS SERGIO AMARAL/RBA

Ninguém me convence que uma sociedade que exclua as pessoas, que as condene à miséria e renegue questões básicas da civilização, como o acesso à educação, é uma sociedade em que as pessoas queiram criar seus filhos. Não acredito

Como foi seu encontro com o ex-presidente Lula hoje?

Conversar com o presidente Lula é sempre bom, porque é uma pessoa interessadíssima nos destinos do Brasil. Ele vem sempre com agenda forte de luta e perseverança. Nós estamos com uma expectativa extremamente positiva para reverter esse processo de i­mpeachment, fraudulento e golpista. E obviamente que o presidente Lula pode dar uma grande contribuição, na medida em que ele tem uma enorme capacidade de interlocução e diálogo com vários setores. Ele me disse que fará viagem bastante intensa no Nordeste. Vai fazer um conjunto de reuniões políticas, nas capitais e no interior de Ceará e Pernambuco. O presidente Lula tem todo o respaldo na medida em que é, talvez, um dos presidentes do Brasil que mais agiu para colocar o Nordeste como prioridade nas políticas do governo que ele começou e que eu continuei. Falando em viagem, e essa arrecadação via internet, organizada por suas amigas Guiomar Lopes e Celeste Martins, que já ultrapassou R$ 700 mil? REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

7


ENTREVISTA

Nós tivemos a proibição de que eu viajasse nos aviões da FAB. Essa foi uma prática sistemática do governo provisório interino ilegítimo: impedir que eu me manifestasse. E agora fizemos essa arrecadação (a campanha começou em 29 de junho e ultrapassou R$ 710 mil reais em dez dias). Foram companheiras minhas, com as quais eu dividi um momento difícil da minha vida, que foi a prisão, que abriram essa campanha de solidariedade, essa jornada da democracia. Arrecadamos recursos suficientes para garantir que eu consiga viajar e me movimentar pelo país. Vamos conseguir, também, com isso, a defesa da democracia, a denúncia do golpe, conversar sobre as perspectivas de futuro. Nós estamos lutando para conseguir que eu volte. Queremos restabelecer a democracia, fazer o Brasil voltar a crescer e impedir as ameaças a direitos, tanto as efetivas como as ameaças virtuais, aquelas que ainda vão ocorrer. Por exemplo, impedir que eles congelem, do ponto de vista do gasto real, o que vai ser despendido em educação e saúde. É um absurdo, em um país como o nosso. Alguma medida do Temer chocou mais?

Olha, primeiro ele tomou várias medidas absurdas e depois voltou atrás... Mas essa, que é uma proposta de emenda à Constituição (PEC 241), é gravíssima. Primeiro, porque não é para um ano ou dois. Ela dura 20 anos! Passa por cinco presidentes. É uma pretensão absurda um governo comprometer o programa político de presidentes futuros em áreas estratégicas, como saúde e educação. É engessar. A consequência é que vai ter um teto de gasto. As pessoas que demandarem educação e saúde, crianças, jovens e adultos que querem estudar, querem ser atendidas no sistema de saúde, vão ser prejudicadas. Vai aumentar o número dos que precisam de atendimento. Logo, vai cair o gasto por pessoa. É por isso que estão chamando de PEC da morte?

Você pode chamar também de PEC da doença, ou PEC do sofrimento. Agora, eu acho que no caso da educação também é gravíssimo, porque você precisa da educação por motivos estratégicos. A educação tem o condão, a capacidade de tornar perene uma conquista que é a melhoria de vida. E a ida dessas pessoas que já estavam na pobreza para a classe média, quase 40 milhões, como você torna isso permanente? Ampliando a qualidade da educação no país, da creche à pós-graduação, com isso você terá empregos melhores, uma capacidade de geração de renda muito maior e as famílias vão ter estabilidade para ter uma vida melhor. Além disso, você precisa de educação para sustentar toda ciência e tecnologia de um país. E permitir que as empresas façam inovação. A educação é base disso, é condição para que um país dê seu salto de desenvolvimento, entre na economia do conhecimento. O ministro Henrique Meirelles afirmou que o país já gastou muito com saúde e educação. Não é estranho que ele teria sido cogitado para integrar sua equipe?

É lamentável ele ter dito isso. Eu acho que o ministro Meirelles teve uma participação importante nos dois governos do presidente Lula. É uma pessoa qualificada, mas obviamente é um ministro dentro de uma concepção de governo. Nesta concepção atual, ele 8

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

Eu acredito que nós vamos ganhar, porque eu sei que estou do lado certo da história. E também tenho uma certa teimosia, que todos nós temos defendeu isso, que o país gastou muito. Acho estranho, porque gastou também quando ele foi presidente do Banco Central. Mas ele não integrou o meu governo. Três dias depois da sua saída do Palácio do Planalto, o programa Fantástico entrevistou Meirelles, e a Globo o lançou à Presidência em 2018. A imprensa estaria procurando uma figura como essa?

Olha, é muito pouco adequado achar que é possível inventar um candidato à Presidência da República por um órgão de mídia. Isso não conduz às modificações que o país precisa. Acho que a política não é feita só pelos políticos, pode ser feita por qualquer um. Mas é essencial que as pessoas tenham compromissos, tenham projetos. Nós não gastamos muito nem em educação, nem em saúde. Tanto é assim que quando fizemos uma avaliação sobre o atendimento básico de saúde, criamos o programa Mais Médicos. Porque vimos que quase 80% de todas as demandas de saúde de uma população podem ser atendidas por meio do atendimento básico de saúde. Óbvio que ampliando o gasto com saúde. Estou dando esse exemplo para deixar claro que a gente não gasta muito, gasta aquém da necessidade. No caso da educação isso é claríssimo. Se não gastar mais, o Brasil não vai alcançar um padrão internacional equivalente a países do nosso nível médio de renda. O governo interino olha mais para os ricos?

Sem dúvida esse governo não está olhando para a população mais pobre. Mas quando atinge a educação, ele não está olhand­o para ninguém. Eu não acredito que alguém com uma renda maior possa achar que esse país vai crescer, vai melhorar, vai se transformar em um país desenvolvido se toda a população não estiver envolvida nisso. Não beneficia só quem não tinha e passou a ter acesso à educação. Beneficia toda a economia, a qualidade


ENTREVISTA

do emprego, aumenta a demanda, o poder de consumo das pessoas, tudo vai melhorar. É impossível esse país não romper com a ideologia dos que acham que a casa-grande é a casa-grande e que a senzala é a senzala. Num país onde não há casa-grande, ela não surta. Onde a casa-grande não manda mais, você vai ter maior democratização, acesso, vai ter um povo muito mais civilizado, menos violência, exclusão e privilégios. Ninguém vai me convencer que uma sociedade que exclua as pessoas, que as condene à miséria, que renegue questões básicas da civilização, como o acesso à educação, é uma sociedade em que as pessoas queiram criar seus filhos. Não acredito. Como lidar com esse Congresso caso consiga reverter o impeachment no Senado?

Cada vez mais fica próximo o julgamento do depu­ tado Eduardo Cunha, cada vez que você dá mais um passo no sentido de afastá-lo, melhora o ambiente, cria uma perspectiva favorável ao país. Se ele for afastado, você vai ter uma recomposição das forças do Congresso. As práticas dele vão ter menos influência sobre os deputados. Agora, não é fácil hoje a governabilidade. Por isso, acredito que vai ser muito importante na minha volta construir um caminho democrático que discuta uma reforma política. A saída do Cunha ajuda a recuperar o caráter democrático na Câmara e a recompor a governabilidade. A senhora pretende chamar de volta esses partidos menores que compunham sua base?

Acho que isso a gente deixa pra ver na ocasião em que for refazer a composição. O fato de eu voltar cria uma nova correlação de forças, um novo ambiente, uma nova perspectiva. E a partir daí se discutem as condições de governabilidade do país, porque hoje elas também não existem. A gente ainda tem uma presença muito forte do Cunha no controle da ­Câmara. Isso explica que numa noite de domingo ele tenha sido recebido no Palácio do Jaburu (onde vive o vice-presidente, Michel Temer).

Esse seria um momento para que a população opinasse sobre uma solução para a crise política, por exemplo, com um plebiscito sobre novas eleições?

Olha, no nosso lado, que é o lado democrático, nós aceitamos e temos obrigação de discutir e de encaminhar todas as propostas que passem pela legitimidade do voto popular. O outro lado é o lado da eleição indireta, porque o impeachment é uma variante da eleição indireta, é como se oferecesse base legal para implantarem um programa que ninguém aprovou. Ninguém foi consultado, ninguém nem viu um tra-

cinho desse programa. E sabem que, se tivesse sido consultada, a população não aprovaria. Falta muito para unificar uma bandeira sobre eleições presidenciais ou gerais?

O que se tem é um consenso imenso, uma unidade grande no fato e na consciência de que é fundamental interromper o processo de impeachment e, portanto, a minha volta para a Presidência da República. Aí temos variantes no que se refere à consulta popular. Há s­egmentos que acham que temos de discutir uma reforma política, há os que acham que é importante convocar uma Constituinte exclusiva que faça essa reforma, há propostas de eleição só presidencial e há propostas de eleição geral. Isso não implica em dissenso dentro desse grande agrupamento. Significa é que há – uma grande ação, uma grande atividade política na discussão. Se você imaginar que a democracia é uma árvore, no caso do golpe militar você a derruba. Derruba o regime democrático e o governo. No caso desse tipo de golpe, essa árvore é atacada por parasitas. Eles entram nas instituições, não derrubam a árvore, mas atacam. O que é a sua obrigação? Levar o oxigênio do debate democrático a todos os lares, às ruas, aos movimentos. No campo democrático todas essas questões são absolutamente importantes também pelo reconhecimento de que nós precisamos fazer a unidade nacional. E essa unidade só ganha força, densidade, na consulta popular, porque é um único pacto que, de fato, é um pacto por baixo, não é um pacto feito por cima, em gabinetes. Daí a importância de você ter esse debate. Um dos consensos na resistência seria uma relação mais estreita da senhora com a sociedade organizada, e com a desorganizada também, e isso implica mais comunicação e mais presença. A senhora tem autocrítica em relação à sua conduta anterior, de pouco diálogo?

Olha, eu acho que tem uma parte disso que é lenda. Uma parte até pode ter acontecido, agora vamos botar clara a situação. É muito difícil contentar todos, diante da crise. Nós buscamos fazer um ajuste fiscal porque a gente veio impedindo que a crise chegasse ao Brasil desde 2009. Fizemos várias coisas, mas não foi suficiente. A crise teve uma dimensão maior, e com tudo isso você não consegue fiscalmente ter a mesma política. Então o que você tem de fazer? Tem de optar. Não existe opção que não passe por você reconhecer, sem ser demagógico, que existe redução de dinheiro. Mas todo o problema gerado pela crise econômica foi pequeno se comparado aos efeitos da crise política, a prática do quanto pior melhor, engendrada pela oposição, que perdeu a eleição em 2014. Logo depois foi eleito o deputado Eduardo Cunha como presidente da

Cada vez que você dá mais um passo no sentido de afastá-lo (Eduardo Cunha), melhora o ambiente, cria uma perspectiva favorável ao país

REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

9


ENTREVISTA

Câmara. Então todas as medidas que nós queríamos tomar não eram nunca aprovadas. Mesmo quando eles votaram sobre elas, reduziram os efeitos dessas medidas. Então, ficamos emparedados diante da crise fiscal. Para vocês terem uma ideia, este ano de 2016, até a véspera do meu afastamento, não houve sequer uma única comissão trabalhando na Câmara. Só funcionaram a comissão do impea­ chment e o Conselho de Ética, com ele (Cunha) tentando enrolar. Então, você tem uma situação em que a crise econômica se sobrepõe a uma crise política cujo objetivo é criar um ambiente propício para o golpe. Agora eles assumiram e logo aprovam um déficit de R$ 170 bilhões. É o maior descalabro fiscal do mundo. O próprio presidente interino, provisório e ilegítimo diz o seguinte: eu vou tomar medidas impopulares em algum momento no futuro. Leia-se: assim que aprovar em definitivo o processo de impeachment. Quando a senhora começou a cogitar a tramitação da CPMF, falou-se muito em por que o governo não tentava taxar grandes fortunas e heranças.

Vocês lembram do pato, não é? Quem paga o pato é quem ganha menos. Além da CPMF, nós mandamos propostas ao Legislativo sobre taxação de heranças. Outra questão levantada foi a dos lucros e dividendos. O Brasil cobrava imposto sobre isso até o governo Fernando Henrique, depois acabaram. Mas eu acho que não é só essa questão. Em algum momento vai entrar na pauta do Brasil novamente uma questão crucial, que é o papel do sistema tributário na reprodução da desigualdade. Então, você tem de discutir a possibilidade de se criar um sistema menos regressivo e mais progressivo. Regressivo é você cobrar a mesma coisa de todo mundo. Quando você faz isso e não faz diferenciação, os que ganham menos pagam mais. Agora, no sistema progressivo é preciso ter cuidado com uma outra questão. Você tem de tributar o rendimento, tem de fazer com que o rendimento proporcionalmente tenha uma tributação maior. Essa discussão nós conseguimos fazer só parte dela. Nenhuma proposta que seja mais ou menos progressiva, como é essa questão da CPMF, passou. Falando em arrecadação, e o impacto da Lava Jato?

Eu vi vários estudos, de várias consultorias diferentes. O mínimo que levantaram era de impacto de 1,5% do PIB. Ia de 1,5% a 2,3% do PIB esse impacto. E isso é grave. Eu sou a favor do combate à corrupção. Mas acho que o combate à corrupção não pode ser instrumento de duas coisas: não pode ser um instrumento político para demonizar um partido ou um grupo de pessoas, e também não pode significar perda de empregos, a paralisação de empresas. No resto do mundo é assim. Você pode perfeitamente combater a corrupção mantendo as empresas funcionando e os empregos. Como a senhora está aguentando toda essa pressão desde o afastamento?

Couro duro (risos). É que nem a história do jacaré, que tem

10

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

Existe consenso contra o impeachment e é muito importante, dá um marco democrático ao processo. Aí temos variantes no que se refere à consulta popular um couro desse tamanho. A gente vai criando um couro duro, vai aprendendo a conviver com a adversidade e encontrar forças na adversidade para lutar contra ela e transformar. Eu acredito que nós vamos ganhar, porque eu sei que estou do lado certo da história. E também tenho uma certa teimosia, que todos nós temos. Como sua filha vê tudo isso? Ela dá conselhos, pede para a senhora voltar para Porto Alegre ou algo assim?

Minha família toda vê isso com absoluta discrição. Nenhum deles comenta nada sobre o assunto, me deixam completamente livre para decidir da forma que eu quiser. O ambiente, quando eu encontro minha filha, meus netos, meus familiares todos, é só de apoio e de conversas familiares. Não tratamos disso. É discrição mais absoluta possível, eles nem sequer comentam. É importantíssimo isso. Não há avaliação, crítica nem reclamação. É só um lugar de acolhimento, amizade, carinho. E isso é muito importante. Todo mundo sabe que a vida é dura e cada um faz o seu papel. E eu escolhi o meu. A senhora pensa em escrever um livro?

Ô, e como. Eu pretendo fazer isso, sim. Só não vai sair brevemente, mas pretendo sim, vai sair. Sabem aquela frase do Guimarães Rosa? “O que a vida exige da gente é coragem”. Temos que seguir pensando assim.


MARCIO POCHMANN

Economia política da corrupção Diante do sistema econômico operado por poucas e gigantescas empresas, a corrupção pode ser vencida com mais Estado. Com menos, as tramas tendem a seguir intocáveis

FERNANDO FRAZÃO/ AGÊNCIA BRASIL

S

e entendida simplesmente por deterioração do interesse com o bem comum, a corrupção não deveria ser considerada como parte intrínseca à natureza humana, incapaz de ser superada. Há sociedades com mais ou menos sinais de corrupção – seja social, descrita, por exemplo, pela criminalidade e prostituição, seja no setor público por subornos, informações privilegiadas, desvios de recursos e outras formas. A maior transparência na gestão pública, com regulação, fiscalização e monitoramento eficientes, bem como decentes controles políticos, sociais e culturais, tendem a assegurar menor risco à corrupção. Nas sociedades capitalistas, de modo geral, a centralidade do enriquecimento e consumo é difundida, tendo a vantagem de alguns sendo interposta sobre a desvantagem de outros. É claro que para o pobre o consumo se coloca no primeiro momento enquanto atendimento das necessidades básicas, ao contrário dos segmentos de renda intermediária e ricos. Por conta disso, as desigualdades sociais no capitalismo implicam formas de corrupção de natureza distinta entre as sociedades. Além disso, os fundamentos capitalistas assentados na existência de mercados competitivos e na propriedade privada dos meios de produção e, por consequência, o sistema de preços dos bens e serviços, tendem também a se contaminar pela corrupção. Isso porque a transformação das estruturas de mercados ao longo do tempo, de livre competição no passado para oligopolista nos dias de hoje, asfixia cada vez mais os mecanismos de controle da corrupção. Com menos competidores, não apenas no espaço nacional, mas sobretudo pela ação das corporações transnacionais no plano global, a prática dos cartéis privados se generaliza consubstanciada pelas ligações perigosas com os partidos políticos, especialmente nos financiamentos das campanhas eleitorais. Inúmeros casos têm sido divulgados pelos meios de comunicação no mundo. Com a propriedade privada dos meios de produção e a distribuição tão concentrada, aliada à estrutura oligopolizada dos mercados, a busca de vantagens competitivas avança para dentro dos orçamentos públicos como elemento diferenciador da corrupção moderna. Em decorrência, o sistema democrático de

SEM SANEAMENTO Para o pobre, as necessidades básicas vêm em primeiro lugar, ao contrário de outros segmentos de renda

escolhas públicas ameaça perder consistência e credibilidade, tendo o poder econômico maior influência não apenas na determinação do resultado eleitoral, mas sobretudo na condução das políticas públicas. Nas eleições, programas de governos são debatidos com a sociedade, porém após o resultado eleitoral deixam, muitas vezes, de ser aplicados, especialmente quando atentam contra os interesses principais do poder econômico dominante. Diante de um sistema econômico operado cada vez mais por poucas e gigantescas empresas de dimensão global, a corrupção pode ser vencida com mais Estado, não menos. Certamente um Estado distinto do atual, corroído por lobbies e lógicas privadas de favorecimentos particulares, que o distanciam do bem comum. Com menos Estado, conforme pretende o receituário neoliberal, a economia política da corrupção tende a seguir intocável. REVISTA DO BRASIL

JUNHO 2016

11


MAURO SANTAYANA

O Brasil na camisa de força Não existe uma só área estratégica em que a iniciativa privada tenha sido superior ao Estado como fator de promoção do desenvolvimento nacional. Ainda assim, querem sufocá-lo

S

eguindo a linha de criação de factoides adotada por setores do governo interino – exibe-se a bandeira da “austeridade” com a mão e aumenta-se, com a outra, em mais de R$ 60 bilhões as despesas, proventos e contratações. Uma das novidades da equipe econômica interina é a criação de um “teto” para as despesas do setor público para os próximos 20 anos. A principal desculpa para engessar ainda mais o país – e até mesmo investimentos como os de saúde e educação – é, como sempre, o velho conto da dívida pública. Segundo jornais como O Globo, a dívida bruta do Brasil somou R$ 4,03 trilhões em abril, o equivalente a 67,5% do Produto Interno Bruto (PIB) – e pode avançar ainda mais nos próximos meses por conta do forte déficit fiscal projetado para este ano e pelo nível elevado da taxa de juros (14,25% ao ano). E daí? A pátria do Wall Street Journal, os Estados Unidos, multiplicou, nos primeiros anos do século 21, de US$ 7 trilhões para US$ 23 trilhões a sua dívida pública bruta, que passou de 110% do PIB este ano, e se espera que vá chegar a US$ 26 trilhões em 2020. A Inglaterra, terra sagrada da City e The Economist, que tantas lições tenta dar – por meio de matérias e editoriais imbecis – ao Brasil e aos brasileiros, mais que dobrou a sua dívida pública, de 42% do PIB em 2002 para quase 90%, ou 1,5 trilhão de libras esterlinas (cerca de US$ 2,2 bilhões), em 2014. A da Alemanha também é maior que a nossa, e a da Espanha, e a da Itália, e a do Japão, e a da União Europeia... Já no Brasil, com todo o alarido e fantástico mito – miseravelmente jamais desmentido pelo partido – de que o PT quebrou o Brasil, a dívida pública em relação ao PIB diminuiu de quase 80% em 2002, para 66,2% do PIB em 2015. Enquanto a dívida líquida caiu de 60% para 35%. E poupamos US$ 414 bilhões desde o fim do malfadado governo de FHC (US$ 40 bilhões pagos ao FMI mais R$ 374 bilhões em reservas em internacionais). E somos um dos dez países mais importantes do board do FMI, e o quarto maior credor individual externo dos Estados Unidos. Então vamos à inevitável pergunta: por que será que os países mais importantes do mundo e as chamadas nações “desenvolvidas” são, em sua maioria, os mais endividados? Será que é porque colocam o desenvolvimento na frente dos números? Será que é porque não dão a menor pelota para as 12

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

agências de classificação de risco, que, aliás, estão a seu serviço, e nunca os “analisaram” ou “rebaixaram” como deveriam? Será que é por que conversam fiado sobre países como o Brasil, mas não cumprem as regras que não param – para usar um termo civilizado – de “jogar” sobre nossas cabeças? Ou será que é porque alguns, como os Estados Unidos, estabelecem seus objetivos nacionais, e não permitem que a conversa fiada de economistas e banqueiros e a manipulação “esperta” de dados, feita também por grupos de mídia que vivem, igualmente, de juros, sabote ou incomode seus planos estratégicos? Todas as alternativas anteriores podem ser verdadeiras. O que importa não é o limite de gastos. Nações não podem ter amarras na hora de enfrentar desafios emergenciais e, principalmente, de estabelecer suas prioridades em áreas como energia, infraestrutura, pesquisa científica e tecnológica, espaço, defesa. O que interessa é a qualidade do investimento. Como não parece ser o caso, como estamos vendo, dos reajustes dos mais altos salários da República, e dos juros indecentes que o Estado brasileiro repassa aos bancos, os maiores do mundo. Que tal, senhor ministro Henrique Meirelles, adotar a mesma proposta de teto estabelecida para os gastos públicos exclusivamente para os juros e os respectivos bilhões transferidos pelo erário ao sistema financeiro todos os anos? Juros que não rendem um simples negócio, um prego, um parafuso, um emprego na economia real – ao contrário dos recursos do ­BNDES, que querem estuprar em R$ 100 bilhões para antecipar em “pagamentos” ao Tesouro? Agora mesmo, como o ministro Meirelles deve saber, os juros para igual efeito na Alemanha – com uma dívida bruta maior que a do Brasil – estão abaixo de zero. Os títulos públicos austríacos e holandeses rendem pouco mais de 0,2% ao ano e os da França, pouco mais de 0,3% porque são países que, mesmo mais endividados que o Brasil, não são loucos de matar sua economia, como fazemos historicamente – e seguimos insistindo nisso, com os juros mais altos do planeta, de mais de 14% ao ano, e outros, ainda mais pornográficos e estratosféricos, para financiamento ao consumo, no cheque especial, no cartão de crédito etc. A diferença entre países que pensam grande e países que pensam pequeno, senhor ministro Henrique Meirelles, é que os


ALEXANDRE MARCHETTI/ ITAIPU BINACIONAL/FOTOS PÚBLICAS

primeiros decidem o que querem fazer, e fazem o que decidiram, sem admitir obstáculo entre eles e os seus objetivos. Enquanto os segundos, por meio da ortodoxia econômica – e do entreguismo –, antes mesmo de pensar no que vão fazer, submetem-se servilmente aos interesses alheios, e criam para si mesmos obstáculos de toda ordem, adotando – como as galinhas com relação à raposa na reforma do galinheiro – o discurso alheio. Aqui, senhor ministro, não determinamos nem discutimos, nem defendemos interesses nacionais, e quando temos instrumentos que possam nos ajudar eventualmente a atingi-los, como ocorre com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, nos dedicamos a enfraquecê-los e destruí-los. Cortando onde não se deve e deixando de cortar onde se deveria, estão querendo matar o Estado brasileiro, que, de Brasília a Itaipu, foi responsável pelas maiores conquistas realizadas nos últimos 100 anos – na energia, na mineração, na siderurgia, no transporte, na exploração de petróleo, na defesa, na aeronáutica, na infraestrutura. Não existe uma só área em que, do ponto de vista estratégico, a iniciativa privada tenha sido superior ao Estado, como fator de indução e de realização do processo de desenvolvimento nacional nesse período – até porque, fora algumas raras, honrosas exce-

ções, ela coloca à frente os seus interesses e não os interesses nacionais. E é com base justamente na premissa e no discurso contrário, que é falso e mendaz, que se quer justificar uma nova onda de entrega, subserviência e privatismo, com a desculpa de colocar em ordem as contas do país, quando, no frigir dos ovos, nem as contas vão tão mal assim. Basta compará-las às outras nações para perceber isso. As dificuldades existem muito mais no universo nebuloso dos números, que mudam ao sabor dos interesses dos especuladores (onde está a auditoria da dívida?) do que na economia real. Se a PEC do Teto, como está sendo chamada pelo Congresso, for aprovada, as grandes potências, como Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha – ainda que mais endividadas que o Estado brasileiro – continuarão progredindo tecnológica e cientificamente, e se armando, e se fortalecendo, militarmente e em outros aspectos, nos próximos anos, enquanto o Brasil ficará, estrategicamente, inviável e imobilizado, e ainda mais distante dos países mais importantes do mundo. Para enfrentar os desafios de um mundo cada vez mais complexo e competitivo, senhor ministro Henrique­ Meirelles, o Brasil precisa de estratégia, determinação e bom senso. E não de mais camisas de força.

SOBERANIA Obras estratégicas, como a usina de Itaipu, seriam impensáveis sem a iniciativa do Estado

REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

13


Para o deputado Jean Wyllys, o Brasil se olhou no espelho – do golpe que combateria a corrupção – e não gostou. A maioria dos brasileiros ficou envergonhada com o sistema político, que foi desnudado

O mundo sentiu vergonha alheia

M

ovido pela ideia de que o Brasil e o mundo vão superar a onda de retrocesso conservador, o deputado Jean Wyllys (Psol-RJ) acredita que o impeachment poderá ser derrotado. “Eu creio que há, sim, uma chance da Dilma voltar. Se voltar, ela sabe que não tem ambiente legislativo e parlamentar para governar. Então, quando sinalizou que iria consultar a sociedade por meio de um plebiscito eu achei a decisão mais acertada”, afirma o deputado, em entrevista concedida no dia 4 de julho ao programa Contraponto, produção da TV do Sindicato dos Bancários de São Paulo em parceria com o Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé. Para o deputado, o governo 14

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

interino de Michel Temer está “caindo de podre”. Jean Wyllys observa que a crise de representatividade política não é exclusividade nossa. Mas lembra do 17 de abril, na votação do processo de impeachment pela Câmara. “O mundo sentiu vergonha alheia”, diz o parlamentar, para quem mesmo os favoráveis ao processo ficaram envergonhados. Mas a imagem refletida no espelho, mesmo desagradável, não é totalmente mentirosa. “Se por um lado o Congresso não representa o Brasil, por outro representa preconceitos que estão arraigados ainda na alma da maioria do povo.” Autor de um projeto de lei (4.211, de 2012) que regulamenta a atividade das profissionais do sexo, Wyllys defende a descriminalização das casas de prostituição: “Só tem como combater

FOTOS MAURICIO MORAIS/SIND. BANCÁRIOS SP

ENTREVISTA


ENTREVISTA

a ‘cafetinagem’, que é entre aspas, se regulamentar a profissão e legalizar as casas. Se as prostitutas decidirem criar uma cooperativa, elas são criminalizadas, elas são presas por cafetinagem, porque a casa é crime. E isso não tem lógica, muitas trabalhadoras do sexo são mães de família, têm filhos, sustentam a casa. E elas não querem prestar o serviço na casa delas”. Em 17 de abril, você classificou de “farsa” a votação do impeachment na Câmara. Como vê o andamento do processo?

O tiro saiu pela culatra. O Brasil se mirou naquele espelho e não gostou do que viu. O mundo sentiu vergonha alheia e a maioria dos brasileiros, mesmo os que eram favoráveis ao impeachment, ficou envergonhada, com aquele sistema político que foi desnudado. A imagem refletida naquele espelho não é totalmente mentira. Se por um lado o Congresso não representa o Brasil, por outro representa preconceitos que estão profundamente arraigados ainda na alma da maioria do povo brasileiro. Preconceitos de raça e étnicos, preconceito de gênero, muito machismo, em relação à identidade sexual, identidade de gênero e orientação sexual. O conservadorismo do Congresso de uma maneira geral reflete um conservadorismo que está, sim, na alma da maioria do povo brasileiro. E é possível sair dessa crise de representatividade?

Há uma crise da representação política no mundo porque há uma transformação em curso, decorrente dessa globalização tardia, sobretudo a que se dá por meio das novas tecnologias de comunicação e informação, e isso tem imposto sobre os sistemas políticos uma exigência de transparência, mas nem sempre os sistemas políticos respondem. O sistema político brasileiro sempre foi blindado do resto da sociedade, que pouco participa de instâncias decisórias. Essas novas tecnologias estão rompendo essa blindagem. Essa crise não está só no parlamento, é uma crise dentro dos próprios movimentos, nos sindicatos. Os sindicatos estão se confrontando com uma questão que é interessante, porque sempre priorizaram uma agenda de classe, do conflito de classes, a relação entre empregados e patrões. Mas as questões de gênero, por exemplo, invadiram os sindicatos. Afinal de contas, como fica a questão das mulheres? Como os homens, trabalhadores que estão na greve, com megafone nas ruas, como fica a questão de esses homens chegarem em casa e baterem em suas mulheres? Ou oprimi-las, ou não considerar o trabalho doméstico como um trabalho a ser respeitado e reconhecido? E as questões colocadas pela comunidade LGBT, as questões raciais... Eu creio, quero

crer, que as próximas eleições, livres do financiamento empresarial de campanha e diante dessa exigência de transparência e de qualidade de políticos, que depois de 2018 o resultado vai ser outro. Teremos um parlamento melhor. Quero crer que vai acontecer. O governo Temer dura até 2018? Dilma pode voltar? Existem propostas como a do plebiscito...

Eu creio que há, sim, uma chance de a Dilma voltar. Se voltar, ela sabe que não tem ambiente legislativo e parlamentar para governar. Então, quando sinalizou que iria consultar a sociedade por meio de um plebiscito, achei a decisão mais acertada. Se a sociedade disser que quer antecipação das eleições gerais, ela sai ganhando porque se a sociedade quer, não se pode contrariar. A maioria quer antecipar as eleições. Então, em 2017 acontecem eleições gerais, deputados e senadores perdem um ano de seus mandatos. Se ao contrário, as pessoas disserem que querem que ela governe até 2018, ela também sai vitoriosa. E o Congresso também não vai ter o argumento de dizer que a está sabotando porque a população não quer esse governo. E a Dilma sinalizou que vai jogar muito mais com a sociedade civil organizada e menos com o Congresso. Para usar as palavras dela, ela disse que cometeu erros e não crimes. E eu concordo: ela cometeu erro gravíssimo, que foi ceder a essas forças conservadoras que compunham em tese a base do governo. O governo Michel Temer está caindo de podre. Essa é a verdade. É um governo rejeitado pela maioria da população, implicado em escândalos de corrupção. O “governo” Temer é um governo profissional, no sentido de que representa quem governa o país há 500 anos. Não pode, portanto, se sustentar na votação do Senado?

Ele pode se sustentar por isso, um fisiologismo, pelas velhas práticas que sempre gangrenaram nosso sistema político. E se isso acontecer, e eu digo “se acontecer” porque há uma chance de a Dilma voltar, isso desnuda que a nossa democracia é uma farsa, tem dono­, pertence à plutocracia brasileira. Aí, cabe a nós, progressistas, de esquerda, pessoas com vida e pensamento, desmoralizar essa farsa cada vez mais por meio dos nossos canais, dos nossos meios de comunicação, que são poucos, mas também podem ser eficazes. Mostrar o quanto a imprensa montou uma narrativa anticorrupção e agora é condescendente com esse escândalo, que é a distribuição de cargos para garantir o impeachment. A imprensa é condescendente com o envolvimento direto das figuras do governo Temer em escândalos investigados pela Lava Jato. A Lava Jato não é uma vaca sagrada. E a gente precisa

Dilma cometeu o erro gravíssimo de ceder a essas forças conservadoras que compunham em tese a base do governo

REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

15


ENTREVISTA

mostrar o quanto ela tem agido, desde sempre, de maneira parcial, sob o comando de um juiz que age seletivamente, o Sergio Moro. Ele não tem compromisso necessariamente com a Justiça, ele tem com um lado das forças em conflito. Esse governo pode se sustentar sobretudo porque está agradando a plutocracia, os ricos, e eles não querem perder. Decidiram tirar do condomínio do poder o sócio mais novo e minoritário, que apesar de ter feito parte da festa, ainda se importava com os mais pobres. E aí decidiram tirar o PT, e para isso valeu criminalizar deliberadamente o PT, e por extensão toda a esquerda. E o Supremo Tribunal Federal estaria se omitindo?

No Brasil, nós não tivemos acesso à Justiça. Se pensarmos em um aspecto da Justiça que é o encarceramento de pessoas, sobretudo na quantidade de prisões provisórias que tem neste país, e se pensarmos no perfil socioeconômico de quem está preso, veremos que a Justiça sempre serviu à gestão da pobreza, por meio do encarceramento e por meio de manter impune quem hoje executa quase que um programa de extermínio de pobres, nas periferias, com a desculpa da guerra às drogas. Antes se ouvia dizer “neste país só se combate preto, pobre e puta”, era um ditado muito corrente, e agora tem mais um P, não agora, na verdade, antes mesmo de o PT chegar ao poder, já em 1989, a partir da primeira candidatura do Lula, já se dizia que neste país só se prende preto, pobre, puta e petista. É importante dizer: eu não estou inocentando aqui as pessoas­ do PT que se locupletaram, que se deixaram picar pela mosca azul, que participaram de esquemas de corrupção. E não acho que elas têm de ficar impunes. O que eu quero dizer é que há um partido apresentado pela imprensa como de moralidade e é imoral, que é o PSDB, um partido que tem muitos esquemas de corrupção montados nos estados e também em nível nacional e que não sofre a mesma perseguição, a mesma criminalização nem é alvo da Justiça. Nunca fui filiado ao PT, eu digo isso porque a criminalização do PT se estende ao conjunto da esquerda. Em 1964, não havia alternativa de comunicação. Quase toda a imprensa apoiou o golpe, como apoia agora. Mas eis que existem as redes sociais, e você está muito presente nelas, isso ajuda a formar opinião?

A comunicação é feita de emissor, mensagem e receptor. A gente sempre pensa na comunicação no endereçamento, mas temos de pensar no receptor, na história de vida e nas mediações que acontecem na recepção dessa mensagem. O Lula, por exemplo, empreendeu uma série de programas sociais, que transformaram a vida das pessoas e levaram essas pessoas a receber de maneira diferente a mensagem que a Globo mandava. A mensagem de que o Lula é um escroto não é recebida. E as redes sociais potencializaram isso, porque elas trazem o elemento da interatividade. Você não é mais uma maioria silenciosa. Nas novas mídias, cada ponto na audiência passou a ser um indivíduo com opinião. Isso empoderou novos coletivos, produziu uma atuação política mais horizontal e descentralizada, permitiu que grupos que antes eram invisíveis se colocassem e fizessem essa disputa, sobretudo 16

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

A imprensa é condescendente com o envolvimento direto das figuras do governo Temer em escândalos investigados pela Lava Jato a juventude, mas ao mesmo tempo, para citar Umberto Eco, as redes sociais também deram voz à legião de imbecis. Creio que as pessoas com o tempo saberão quais lugares podem consultar com credibilidade. As redes tiveram um papel importantíssimo no enfrentamento ao golpe, que é diferente do de 1964. É golpe parlamentar, institucional, uma nova modalidade que está se espalhando na América Latina, travestida de legalidade. Mas é golpe. E ao contrário do golpe de 1964, em que os meios de massa controlaram toda a narrativa, agora eles não puderam controlar. Você falou sobre as velhas formas de fazer política, mas e as novas? Os secundaristas representam essas novas formas?

Sim, tem muitas novas formas de fazer política, e elas estão sempre em consonância com as redes sociais e a internet. É incrível o impacto que isso vem produzindo, não só nos nossos modos de vida, mas nas nossas próprias estruturas cognitivas. Agora há uma combinação de atuação, ocupam-se as ruas e de maneira lúdica e claramente com atuação das redes sociais. Essas são novas formas de fazer política, e talvez a juventude tenha diálogo maior com o meu mandato porque tenho procurado também uma nova forma de fazer a representação política. Dos 513 deputados, sou o único que tem um conselho social. Minhas proposições legislativas e pedidos de audiências públicas e requerimento de informação, e a própria discussão em torno do orçamento da União, são feitas a partir de consulta com o


ENTREVISTA

conselho, que tem hoje 100 pessoas. A atuação nas redes sociais é extensão da minha tribuna, a tribuna real no parlamento. Se as pessoas não podem ir a Brasília participar de audiências, eu transmito, faço isso com uma linguagem cada vez mais próxima da linguagem que essa juventude vem utilizando, e com isso vamos fortalecendo a democracia participativa. E sobre a regulamentação da prostituição?

O Brasil encontrou uma maneira de criminalizar indiretamente a prostituição, de manter o estigma sobre as trabalhadoras do sexo, quando criminalizou a casa de prostituição. Então, a prostituição não é criminalizada, aparece na lista do Ministério do Trabalho (Código Brasileiro de Ocupações), à espera de regulamentação, e o Código Penal, de maneira enviesada, criminalizou a “casa”. Desde 1987, quando eu era criança em Alagoinhas (BA), ajudando meu irmão a vender algodão-doce para ajudar a minha família miserável, que Gabriela Leite, que já se foi desta (morreu em 2013), iniciou um movimento de organização das trabalhadoras do sexo, criou a Daspu. A Gabriela pleiteou a regulamentação justamente para livrar mulheres da exploração sexual, do tráfico humano, da escravidão. Então, jamais iria oferecer um projeto que beneficie cafetões. É o ponto polêmico, é daí que vem a ideia de que está tornando o cafetão empresário...

Sim, é o ponto polêmico, só que essa proposta de legalização da casa não é minha, mas das trabalhadoras do sexo. Então, quem são as feministas, criadas a Ovomaltine, e educadas nas melhores faculdades de sociologia do país, brancas, quem são elas para achar que podem falar em nome das trabalhadoras do sexo? E se vale a máxima do empoderamento e do protagonismo, por que elas querem roubar o protagonismo das trabalhadoras do sexo? Deixa elas falarem por si mesmas, dizerem da realidade da prostituição. Segundo ponto, um dogma do feminismo é “meu corpo, minhas regras”. Ué, isso vale para o aborto, mas não vale para uma mulher vender o serviço sexual? Que hipocrisia, que moralismo é esse? E como combater a cafetinagem?

Só tem como combater a “cafetinagem”, que é entre aspas, se regulamentar a profissão e legalizar as casas. Se as prostitutas decidirem criar uma cooperativa, elas são criminalizadas, elas são presas por cafetinagem, porque a casa é crime. E isso não tem lógica, muitas trabalhadoras do sexo são mães de família, têm filhos, sustentam a casa. E elas não querem prestar o serviço na casa delas. As pessoas precisam conhecer a realidade da prostituição neste país, enten-

der que é um fenômeno complexo, que atravessa as classes. Em uma casa que opere legalmente, com fiscalização do Estado, não haverá exploração de mulheres ali, porque ela vai poder judicializar as questões, se ela não for paga. Os programas de combate àsDST(doençassexualmentetransmissíveis)podem ir a essa casa, não vai ter meninas menores ali. É uma situação parecida com o tráfico de drogas, quer dizer, o tráfico nasce da proibição. Como você vê a questão da criminalização da homofobia?

Tem muitos ativistas homossexuais que têm agido de maneira desonesta com relação a mim, não sei por que motivo. Defendo que haja, sim, criminalização da homofobia, mas em quais termos? O Código Penal – que é algo relativamente simples, se houver boa vontade do parlamento para isso – tem de reconhecer a homofobia entre as motivações torpes do homicídio, da lesão corporal e da tortura. Essa motivação tem de estar lá entre os motivos torpes, e essa motivação tem de agravar as penas para esses crimes. Agora, eu não acho e não defendo que a discriminação e a injúria homofóbica tenham de ser punidas com pena de prisão pura, nos moldes em que o racismo hoje, segundo a lei, é punido, e na prática, de fato, nunca é. Ninguém nasce homofóbico, a homofobia não é um dado da natureza. É adquirida, como o racismo, no processo de socialização. Tem a ver com o sistema de ensino, com o sistema informal de educação, os meios de comunicação, com a transmissão dos valores da família, com a educação religiosa. O cara ser preso por ter me chamado de veado, ou escroto, fica pior na prisão; nossas prisões são masmorras medievais. Eu sou um cara comprometido com o Estado penal mínimo, defendo a legalização do aborto – portanto, sua descriminalização –, defendo a legalização da maconha, sou a favor da descriminalização do comércio e do consumo de drogas, sou a favor da legalização das casas de prostituição, portanto, da descriminalização da prostituição, e por que vou defender um projeto de lei que criminaliza uma pessoa que me chama de veado? Eu quero que essa pessoa se transforme, que a homofobia dela seja excluída, e isso só pode acontecer não com penas duras de prisão, mas com medidas socioeducativas, prestação de serviços, palestras. A esquerda tem de ser vigilante para não cair no discurso populista. Participaram desta entrevista o repórter Helder Lima, da Revista do Brasil, e os blogueiros Altamiro Borges, Conceição Oliveira e Eduardo Guimarães, com mediação da presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Juvandia Moreira

Ninguém nasce homofóbico, a homofobia não é um dado da natureza. É adquirida, como o racismo, no processo de socialização

REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

17


AMBIENTE

Estado em

LIQUIDAÇÃO Governador Geraldo Alckmin aprova concessão de áreas florestais a grupos empresariais e quer carta branca para vender outras. Comunidades, biodiversidade, pesquisa científica e água estão ameaçadas Por Cida de Oliveira

A

18 quilômetros da capital paulista, três aldeias Guarani estão espremidas entre as rodovias Anhanguera e dos Bandeirantes e o Rodoanel Mário Covas. A menor área demarcada no país, com 657 hectares, é parte do que sobrou do avanço colonizador no século 16 no estado. Seus 583 habitantes, segundo a Fundação Nacional­ do Índio (Funai), são descendentes de grupos indígenas que já habitavam a área e todo o país há 14 mil anos. Uma trégua para os históricos conflitos parecia vir com a demarcação assinada em 29 de maio de 2015 pelo então mi18

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

nistro da Justiça, José Eduardo Cardozo. Um ano depois, em 7 de junho, a Assembleia Legislativa paulista aprovaria o Projeto de Lei (PL) 249/2013, vindo do Palácio dos Bandeirantes, de onde despacha o governador Geraldo Alckmin (PSDB). Sancionada pelo governador no último dia 29, a agora Lei 16.260/16 autoriza a concessão de 25 áreas florestais em várias regiões­do estado a conglomerados empresariais, que por 30 anos poderão explorar seu potencial turístico e ecoturístico, bem como madeira e subprodutos florestais, como resinas. Houve apenas uma audiência pública no processo. Entre as áreas, está o Parque Estadual

do Jaraguá, onde vivem os Guarani. “Lutamos para conseguir a demarcação da nossa terra e, quando conseguimos, vem esse projeto que não ouve nem respeita os povos tradicionais, nos trata como se a gente não existisse”, protesta o líder guarani David­Karai Popygua, o David Guarani, para quem o governo segue na contramão dos acordos ambientais internacionais assinados pelo Brasil. “Tinha que defender nossa mãe, a natureza. Alckmin deveria ser o pai de todos no estado, mas não é. Quer tirar o povo dos parques para pôr seus amigos. Leva um trem para casa e come a merenda sozinho. Deixa a água acabar e ganha


AMBIENTE

BRUNOSK96/WIKIMEDIA COMMONS

ALBERTO ROSSETTINI/FLICKR/CC

SEM APOIO O Parque Estadual da Ilha do Cardoso abriga um centro de estudos em meio ambiente e é lar de seis comunidades, que zelam pela preservação da floresta

um prêmio. E agora esse projeto. Vender a nossa grande mãe já é demais. Onde vai chegar?”, desabafa David Guarani. Em 30 de setembro, o governador ingressou com mandado de segurança no Superior Tribunal de Justiça (STJ) contra a demarcação. Alega que a decisão enfraquece a consolidação da urbanização no entorno das áreas naturais protegidas e que prevê, para o Parque Estadual do Jaraguá uma unidade de preservação integral na qual não seria autorizada a ação humana. A nova lei mexe também com as comunidades tradicionais do Vale do Ribeira, que concentra cinco das 24 áreas cobiçadas. Na divisa entre São Paulo e Paraná está o Parque Estadual da Ilha do Cardoso, criado em 1962, que abriga um centro de estudos em meio ambiente. Há seis comunidades na ilha, uma delas indígena. “Não temos escola. É preciso sair da ilha para estudar, o que enfraquece a comunidade. Houve reforma de milhões voltada para o turismo. A gente, que vive lá, está abandonado. Não tem autorização nem pra construir um banheiro. As comunidades vão sofrer com a privatização, mas não temos voz nem apoio”, desabafa Eduardo Roberto Pereira, da comunidade Itacuruçá. Coordenador de uma rede de economia solidária em Sete Barras, município que abriga parte do Parque Estadual Intervales,­próximo ao Parque Estadual­ Carlos Botelho, o agricultor Gilberto Ohta conta que os moradores sempre ficaram de fora da discussão de projetos que os afetam diretamente, como a própria criação do Intervales, em 1995. “Abandonados pelo governo, esses parques estão preservados graças às comunidades locais. A privatização não vai salvar nenhuma dessas áreas porque as empresas só visam lucro. Nós é que somos os guardiões da floresta.” As comunidades estão indignadas porque não recebem investimentos nem incentivos. “Precisamos discutir políticas de preservação com a comunidade dentro. SEM GARANTIAS O projeto do governo do estado mexe com as comunidades tradicionais do Vale do Ribeira, como as da região dos parques Intervales e da Caverna do Diabo (ao lado). Moradores temem o acirramento de conflitos, pois não há título de posse das terras REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

19


AMBIENTE 21

Entregues às raposas Parques, estações experimentais, florestas e unidades de pesquisa inclusos nos projetos do governo

8

1

22

23

14

18

10 2

17

9

19

3

15

PARQUES ESTADUAIS (em hectares) 01. Alberto Löfgren: 174,00, São Paulo 24 02. Caverna do Diabo: 40.219,66, Eldorado 03. Campos do Jordão: 8.341,00, Campos do Jordão 04. Cantareira: 7.900,00, Caieiras, Guarulhos, Mairiporã e São Paulo 05. Carlos Botelho: 37.644,36, Capão Bonito, São Miguel Arcanjo e Sete Barras 06. Ilha do Cardoso: 22.500,00, Cananéia 07. Ilhabela: 27.025,00, Ilhabela 08. Intervales: 41.987,81, Guapiara, Eldorado Paulista, Iporanga, Ribeirão Grande e Sete Barras 09. Jaraguá: 492,68, São Paulo 10. Morro do Diabo, 33.845,33, Teodoro Sampaio 11. Parque Caminhos do Mar: 115.000,00, São Bernardo do Campo e Cubatão 12. Serra do Mar (Núcleo Santa Virgínia): 17.500,00, São Luiz do Paraitinga 13. Turístico do Alto Ribeira: 35.712,00, Apiaí e Iporanga ESTAÇÕES EXPERIMENTAIS (em hectares) 14. Araraquara: 117,60 15. Assis: 1.760,64

16. Itapeva: 1.827,00 17. Mogi Guaçu: 3,05 18. Itirapina: 3.212,81

7

11 5

4

20 12 3

5 16 13

6

4 9 São Paulo

12 1 11 12 7

10 8 2

6

FLORESTAS ESTADUAIS (em hectares) 19. Águas de Santa Bárbara: 1.659,97 20. Angatuba: 1.196,21 21. Batatais: 1.478,55

22. Cajuru: 1.909,56 23. Pederneiras: 1.975,00 24. Piraju: 680,00

1. Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento de Araçatuba Na fazenda de 70 hectares, três pesquisadores trabalham em projetos voltados à agricultura e à pecuária, inclusive com ovinos, praticada em pequenas propriedades e em assentamentos. Entre eles, para combater toxoplasmose e outras doenças no gado leiteiro e tecnologias para a pós-colheita e conservação de frutas e hortaliças. 2. Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento de Gália Fundada em 1962 para pesquisar tecnologia para produção de amoreiras para a criação do bicho da seda – uma vocação regional crescente –, nela os servidores estudam hoje, entre outras coisas, aplicações da planta em antibióticos fitoterápicos para uso humano e animal. 3. Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento de Itapetininga O desenvolvimento e expansão da ovinocaprinocultura do sudoeste paulista são fruto de pesquisas na fazenda de 139 hectares. Os laboratórios erguidos em 1958 produzem tecnologia para agricultura familiar, em especial para aumentar a produtividade do milho e da soja em consórcio com a pecuária. 4. Centro Avançado de Pesquisa Tecnológica do Agronegócio e Engenharia de Automação Desde 1969, a propriedade com 110 hectares, em Jundiaí, desenvolve protótipos e avalia o desempenho de máquinas, implementos e componentes agrícolas, além de tecnologias de segurança rural e gestão agroambiental e de aplicação de insumos agrícolas e para colheita e pós-colheita para pequenos produtores. 5. Instituto de Zootecnia A fazenda fundada em 1905, com 27 hectares, em Nova Odessa, região de Campinas, é espaço para estudos em produção animal sustentável. Há ainda projetos, já aprovados, de área de preservação ambiental e de criação de um hospital veterinário regional na propriedade. 6. Polo Regional Tecnológico do Vale do Paraíba A área de 350 hectares, em Pindamonhangaba, já desenvolvia inseminação artificial em 1938. Entre as pesquisas mais recentes, biodiesel de pinhão manso e mamona. Atualmente desenvolve pesquisa participativa com agricultores familiares da reforma agrária em agroecologia, agroflorestas e resgate da sociobiodiversidade.

20

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

7. Polo Regional Tecnológico de Piracicaba Em atividade desde 1922, a propriedade de 106 hectares sedia pesquisas voltadas à cana de açúcar (melhoramento genético, adubação e colheita) e aos pequenos produtores, como a adubação verde e produção de plantas ornamentais. No campo ambiental, técnicas para recuperação de áreas degradadas e descontaminação do solo e da água e recomposição florestal. 8. Polo Regional de Desenvolvimento Tecnológico de Ribeirão Preto De seus laboratórios em funcionamento desde 1934 saíram tecnologias para nutrição animal, alimentos biofortificados para humanos e controle biológico de pragas inclusive de frutas cítricas, entre outras, que continuam sendo aprimoradas e colocadas à disposição de agricultores familiares. 9. Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento de Brotas Criada em 1962 numa fazenda de 71,5 hectares, conta com quatro pesquisadores que atuam em sete projetos voltados à avicultura e três em sustentabilidade de pastagens. Entre 2011 e 2016, recebeu investimentos de apenas R$ 131.507,00. 10. Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento de Itapeva A fazenda com 46 hectares atende a quase 2 mil suinocultores da região, por meio de cursos e técnicas para inseminação artificial, com distribuição de sêmen, e manejo sustentável. Entre os objetivos do trabalho dos pesquisadores está a capacitação técnica de agricultores familiares para a geração de renda. 11. Instituto Biológico – Centro Experimental Central de Campinas Com 692 hectares, a fazenda reúne laboratórios de pesquisa sobre café, grãos e fibras, horticultura, solos e recursos genéticos vegetais, além de tecnologia para recuperação do meio ambiente. Há ainda espaços voltados à produção de sementes melhoradas, para armazenagem de grãos, pátio para máquinas, laboratórios e estufas. 12. Unidade de Pesquisa e Desenvolvimento de Tatuí Criada em 1933, a propriedade de 15 hectares já fez melhoramento genético do trigo e tem o maior banco de material genético de bambu da América Latina. Hoje pesquisa a melhoria genética de milho, inclusive de pipoca, e feijão, além de preservação ambiental e pecuária.

FONTES: INSTITUTO FLORESTAL, FUNDAÇÃO FLORESTAL E AGÊNCIA PAULISTA DE TECNOLOGIA DOS AGRONEGÓCIOS (APTA)

UNIDADES DE PESQUISA


CIETE SILVÉRIO/A2IMG

VERA MASSARO E BRUNA SAMPAIO/ALESP

AMBIENTE

MARRETADA David Guarani: “Lutamos para conseguir a demarcação e, quando conseguimos, vem esse projeto que não ouve nem respeita os povos tradicionais”. Alckmin quer autorizar a concessão de 24 áreas florestais em várias regiões do estado a conglomerados empresariais, que por 30 anos poderão explorar seu potencial turístico e ecoturístico, bem como madeira e subprodutos florestais, como resinas

Temos comunidades inteiras de ex-palmiteiros que passaram a fazer agricultura familiar. Não concordamos com a concessão porque nós podemos fazer a autogestão com economia solidária, numa nova perspectiva de sociedade. Não queremos acumular riqueza nem competir. Apenas preservar”, afirma.

Caverna do Diabo

No município vizinho de Eldorado fica parte dos parques estaduais Intervales e da Caverna do Diabo. O morador Ivo Santos­Rosa, presidente da Associação Remanescente de Quilombo Sapatu, teme que a privatização acirre conflitos. “Como não temos títulos de posse de nossas terras, somos constantemente ameaçados, invadem nossas casas. Companheiros já foram mortos. Além disso, não temos sequer licença para fazer roças de subsistência. Onde estão nossos direitos?”, questiona. O líder comunitário lembra que as mais de 300 famílias que dependem do trabalho como monitor na Caverna do

Diabo e entorno correm risco de perder sua principal fonte de sobrevivência. Na vizinha Iporanga, também há conflitos, e a população não tem apoio do estado. O morador da comunidade cabocla Claudionor Pedroso conta que são frequentes as invasões de domicílio. “Como fazer uma lei se existem conflitos?” De acordo com ele, o estado é ausente na oferta de serviços públicos, como energia elétrica, e no encaminhamento de demandas. “Já apresentamos projeto de RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentável), que contempla nossas necessidades ao mesmo tempo em que preserva a natureza. Somos nós que defendemos a natureza, que enfrentamos fazendeiros, mineradores, caçadores”, diz Claudionor. A advogada Vanessa Alves Vieira, do Núcleo de Combate à Discriminação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, avalia a lei como um “total desrespeito” à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signa-

tário. Tal violação pode trazer sanções. “A convenção prevê a consulta prévia às comunidades de povos tradicionais em projetos que os afetem, o que não aconteceu.” O texto da lei não trata da conciliação dos interesses da gestão privada com a integralidade da conservação do meio ambiente e nem detalha a concessão de serviços de turismo e a exploração comercial. “Haverá disputa dentre concessionárias e comunidades tradicionais”, afirma Vanessa, lembrando que a exigência de caução e capital social elimina a possibilidade de participação das associações locais na licitação. A desconsideração desses aspectos, bem como o fato de o texto elencar um parque que não existe – o núcleo São Paulo da Serra do Mar–, está embasando ações de inconstitucionalidade que serão protocoladas no Supremo Tribunal Federal. Para o Conselho de Representantes dos Funcionários da Fundação Florestal­, entidade responsável pela gestão de 94 unidades em todo o território paulista, a privatização é finalidade do histórico sucaREVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

21


AMBIENTE

POVOS TRADICIONAIS EM PERIGO Crianças guarani na mata do Parque do Jaraguá, a menor área demarcada no país, com 657 hectares, é parte do que sobrou do avanço colonizador no século 16 no estado. Seus 583 habitantes, segundo a Funai, são descendentes de grupos indígenas que já habitavam a área e todo o país há 14 mil anos. Com o projeto de Alckmin, seu futuro é incerto

teamento. Segundo os trabalhadores, não é de hoje que alertam a diretoria da Fundação com estudos sobre a falta de funcionários e a precariedade das condições de trabalho que tornam as unidades mais vulneráveis à degradação. As áreas estaduais hoje geridas pela fundação, que correspondem a 18% do território paulista, contam com um efetivo de 55 guarda-parques, que recebem salário de R$ 880, abaixo do mínimo paulista (R$ 1 mil). Os servidores questionam também a omissão do estado quanto à obrigação constitucional de garantir as condições adequadas para que as unidades de conservação cumpram seus objetivos ecológicos e sociais de conservação da sociobiodiversidade. E chamam atenção ainda para um ponto estratégico: 60% da água captada para abastecimento no 22

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

estado depende, direta ou indiretamente, dessas áreas protegidas. Esse é um dos temores do promotor de Justiça Ivan Carneiro Castanheiro, do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente (Gaema) PCJ-Piracicaba. Em junho, ele prorrogou por seis meses o inquérito civil instaurado há mais de um ano para apurar a constitucionalidade, a adequação técnica, os impactos ambientais sobre a biodiversidade nativa e as providências cabíveis em relação a editais de licitação e a contratos que vierem a ser assinados em concessão da Estação Ecológica de Itirapina, região de Piracicaba. Inserida na Área de Proteção Ambiental Corumbataí-Botucatu-Tejupá, Itirapina é estratégica também por ser um dos pontos de recarga do Aquífero Guarani. Alterações nessa região podem contaminar

as águas subterrâneas. “Itirapina tem uma das últimas áreas bem conservadas de cerrado em terras paulistas, mas 37 de suas espécies animais estão ameaçadas de extinção. Além disso, a integridade da vegetação nativa está ameaçada por espécies exóticas, como o pinus, o que pode levar a desequilíbrios ecológicos”, afirma Castanheiro. O cultivo de pinus pelo Instituto Florestal começou na década de 1960 pelo potencial madeireiro e pela resina fornecida, com diversas aplicações na indústria química. “Há na área talhões de madeira de pinus no ponto de corte que, segundo o próprio Instituto Florestal, valem R$ 30 milhões. Por que o estado não vende essa madeira e investe o dinheiro em ações ambientais previstas no plano de manejo?”, questiona.


DANILO RAMOS/RBA (ALDEIA GUARANI TEKOA PYAU)

AMBIENTE

Laboratórios à venda

Outro plano de Alckmin é vender 79 imóveis do estado para fazer caixa. São 16 áreas sob gestão da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, cinco da de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação, e sete pelo Departamento de Estradas de Rodagem (DER). Os demais têm uso diverso. Os imóveis foram avaliados pelo governo em R$ 1,43 bilhão. Em abril, o governador enviou à Assembleia o PL 328/16, em caráter de u ­ rgência. O projeto foi barrado no começo de junho pelo Tribunal de Justiça, ao conceder liminar em uma ação movida pelo deputado Carlos Neder (PT). Dos 16 imóveis da Agricultura e Abastecimento, a maioria está em áreas de preservação destinadas à pesquisa em agricultura orgânica, pecuária, recuperação de solos degradados e outros temas de interes-

se de agricultores familiares e de pequenos produtores – como Ivo, Claudionor, Eduardo e Gilberto –, das comunidades tradicionais do Vale do Ribeira e milhares de outros espalhados pelo estado. “Com esse projeto, o governo atinge não só os pesquisadores, que ficarão sem seus laboratórios, mas a população como um todo. Nesses centros de pesquisa são feitos estudos que beneficiam os pequenos produtores, a agricultura familiar, e em especial a população mais pobre, que não tem acesso a alimentos mais saudáveis e baratos”, diz o dirigente do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Delwek Matheus. Filha e parceira de Delwek na coordenação do movimento, a agrônoma Fernanda Matheus conta que o MST mantém parcerias com muitas dessas estações experi-

mentais próximas a assentamentos. Uma delas é em Itapeva, na região de Itapetininga, onde mais de 500 famílias estão assentadas em área vinculada ao Instituto Florestal. “Fazemos um trabalho conjunto com universidades e essas áreas experimentais, onde buscamos a produção sustentável de alimentos junto com a conservação da vegetação nativa”, diz Fernanda. Desde 2013, MST, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e a Escola de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq/USP), de Piracicaba, trabalham na construção de uma proposta a ser apresentada ao governo estadual. A ideia é que parte dessas áreas, agora passível de venda, seja utilizada para assentamentos e produção agroecológica. “E agora o governo aprova essa lei”, lamenta Delwek. No começo de junho, a Associação de Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC) encaminhou ofício à deputada Célia Leão (PSDB), presidenta da Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Assembleia, com manifestações contrárias ao PL, mais 5.065 assinaturas, colhidas até aquela data, além de ficha técnica e documentos sobre a importância das áreas de Piracicaba, Nova Odessa, Brotas, Jundiaí e Ribeirão Preto. A agrônoma Mônica Sartori, especializada em solos e nutrição de plantas e pesquisadora no Polo Regional de Desenvolvimento Tecnológico Centro Sul, em Piracicaba, afirma que a propriedade, de 120 hectares, sedia a Estação Experimental José Vizioli, fundada em 1928. Entre as pesquisas em andamento, adubos verdes, combate a pragas e doenças, recuperação do solo, de mata ciliar e cursos d’água degradados, voltadas a áreas de proteção permanente. “A fazenda é economicamente sustentável. Como nos últimos anos não temos recebido investimento, passamos a vender resíduos da cana usada em pesquisa para custear a manutenção e compra de máquinas agrícolas e o custeio dos escritórios”, diz a pesquisadora. Fora a importância socioambiental, com a proteção de 40 hectares de áreas de preservação permanente. Entre elas, fauna e flora regional e o córrego Guamium, que ajuda a abastecer o rio Piracicaba, que leva água para 3 milhões de pessoas em 60 cidades do interior paulista. REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

23


TRABALHO

ELES QUEREM

PRODUZIR Marca clássica surgida nos anos 1960, a Karmann-Ghia tem futuro incerto. Na luta pela sobrevivência, trabalhadores acampam na fábrica Por Vitor Nuzzi 24

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

“W

ilhelm Karmann Jr. e Luigi Segre celebram a feliz parceria, a união da exigente produção alemã com o sofisticado design italiano.” A frase acompanha fotografia, sem data, exposta em um painel onde ficava a recepção da fábrica da Karmann-Ghia, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Nos últimos meses, o local passou a funcionar como cozinha e depósito de mantimentos para garantir a permanência da ocupação iniciada em 13 de maio. Um movimento surgido da esperança de ver ressurgir a velha fábrica, inaugurada no início dos anos 1960, no ritmo de instalação e expansão da indústria automobilística brasileira naquele período. Neste 2016, a luta dos trabalhadores é pela sobrevivência.


Presente no imaginário nacional, a Karmann-Ghia deixou de produzir carros há aproximadamente dez anos e passou a se dedicar à fabricação de peças e partes de veículos, além de estamparia e ferramentaria. Mas as lembranças estão em toda parte. A estilista Zuzu Angel dirigia um Karmann-Ghia quando sofreu o mais que suspeito acidente que a mataria, em 1976, em outro episódio obscuro da ditadura. No documentário Meu Tempo é Hoje (2003), Paulinho da Viola mostra um automóvel da marca, que ele guardava em uma área no Rio de Janeiro e pretendia restaurar. O carro está com um mecânico, em São Paulo. A marca surgiu em meados dos anos 1950, a partir de uma parceria entre o ale-

mão Karmann e o italiano Segre, dono da carroceria Ghia. No Brasil, a primeira unidade saiu da linha de produção de São Bernardo em 1962, em parceria com a Volkswagen local. Da fábrica visível a quem passa de automóvel, na altura do km 21 da rodovia Anchieta, saíram os cupês esportivos e os conversíveis (neste caso, apenas 177 unidades foram produzidas), e os SP1 e SP2, similares ao Puma. A partir dos anos 1980, outros modelos foram feitos no local, como o Ford Escort XR3 conversível e o Land Rover Defender. A empresa não faz veículos há dez anos, mas ainda figura como associada da Associação dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). Com as mudanças de mercado, os problemas começaram a surgir e foram se acumulando. Desde 2008, foram três trocas de dono – e esperanças renovadas. Hoje não se sabe direito quem é o atual proprietário, já que existe um impasse judicial relativo à última transação: o dono anterior reclama que as parcelas deixaram de ser pagas, e quem comprou diz não ter sido informado de um passivo milionário. Na briga, os prejudicados são os trabalhadores, que ficam sem receber o pagamento e não sabem se a fábrica volta a operar. Alguns acreditam que a empresa não se preparou para o fim da produção da

Kombi e do Gol modelo G4. “Perdemos alguns clientes importantes, por má decisão administrativa”, diz o coordenador do comitê sindical de empresa (CSE), Valter­Saturnino Pereira, o Valtinho, que está na fábrica há quase 20 anos – entrou em 1997, nas áreas de pintura e funilaria. A fábrica do ABC chegou a ter perto de 2 mil funcionários. Quando Valtinho entrou, eram aproximadamente 600. Hoje, são 364. Metade se reveza na ocupação, dividindo-se em três turnos. “Estão cuidando da empresa como se fosse a própria casa”, afirma Valtinho. "Eles estão aqui para ver a Karmann-Ghia reviver.” Para manter essa esperança, os funcionários foram insistentes e criativos. Para garantir o fornecimento de água, por exemplo, descobriram uma fonte nas proximidades. Também contaram com muito apoio anônimo, como o do pai de um trabalhador, que se ofereceu para cuidar dos jardins.

Apoio

Sobretudo, eles recebem solidariedade de outros metalúrgicos, que passaram a fazer doações de alimentos e alguns valores em dinheiro, que serviram, entre outras coisas, para religar a luz na residência de muitos empregados, às voltas com dificuldades financeiras depois que os salários deixaram de ser pagos

MARCIA MINILLO/RBA

FIRMES Assembléia na porta da fábrica: ocupação continua

EDU GUIMARÃES/SMABC

TRABALHO

SOLIDÁRIOS Metalúrgicos de outras fábricas passaram a fazer doações de alimentos e valores em dinheiro. O sindicato ajuda com o café da manhã, um restaurante oferece marmitas REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

25


TRABALHO

No limite

Sebastião Carlos Botelho, 60 anos, fresador CNC, teve de pagar do bolso o exame médico para ser admitido para um trabalho temporário na usinagem, desde novembro. Aposentado pela vizinha Scania, ele procurava um complemento de renda – mas, desde maio, tem se dedicado a ajudar nas atividades da ocupação. Sua mulher, Valéria Clara Benazzi Botelho, foi visitar a fábrica pela primeira vez em 22 de junho. E dá apoio ao movimento. “Fizeram falcatrua com eles. Têm de fazer (a ocupação) mesmo”, diz. O casal, com dois filhos, conta que está “quase quitando” a casa, também em São Bernardo. A rotina alterna momentos de alegria, desânimo e nervosismo. Quando chega uma doação, trabalhadores formam o mutirão para armazenar os pacotes, 26

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

SOMBRA DO PASSADO A fábrica, que já produziu os esportivos SP1 e SP2 e mais tarde o Escort XR3 conversível e o Land Rover Defender, está escura e silenciosa

trazidos em uma empilhadeira. Para distrair, há mesas de sinuca, pingue-pongue e pebolim, além de uma televisão, no mesmo espaço onde, encostados em uma parede, painéis contam um pouco da história da empresa e da fábrica, cujas obras começaram em 1959. Ali se acumulam panelas, garrafas térmicas, pratos, mantimentos. Também há horas de desentendimento. Em um desses dias, um trabalhador pediu desculpas publicamente após uma discussão. Depois, todos deram-se as mãos. Alguns choram. O clima tornara-se subitamente tenso depois de a Fiat informar que pretendia retirar seu ferramental da fábrica, o que acabou conseguindo nos dias 28 e 29 de junho, devido a uma liminar obtida na Justiça. “Sei que vocês estão no limite. Mas precisam ter força”, diz o diretor do Sindicato dos Metalúrgicos Vânio Guedes, funcionário da Scania, cuja representação havia

FOTOS MARCIA MINILLO/RBA

regularmente, desde o final do ano passado. Uma doação dos trabalhadores da Volkswagen permitiu que 120 funcionários tivessem novamente luz em casa. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC ajuda com o café da manhã, um restaurante oferece marmitas. “Já vinha ‘picando’ (o salário) em quatro, cinco vezes”, conta o ferramenteiro Nivaldo Antonio Defavari, 59 anos, há quase 40 na empresa. A situação não é mais complicada porque ele, “graças a Deus”, já está aposentado. E tem casa própria, no bairro Assunção, em São Bernardo, perto da fábrica. O filho Marcelo está na mesma situação: também é funcionário da Karmann-Ghia. E a filha Mayara, nutricionista, está desempregada – no final de junho, foi chamada para uma entrevista de trabalho. A mulher, Sônia, cuida da casa. Nivaldo entrou na fábrica em 1979, saiu durante alguns meses e voltou em 2010. Acha difícil explicar a origem das dificuldades da empresa, que segundo ele não existiam durante a gestão alemã. “Deve ser a tendência do brasileiro de acabar com as coisas, não é possível”, lamenta. Trabalhar na Karmann-Ghia era sinal de status na categoria. “Ainda é”, corrige Nivaldo. “A gente não tem culpa da gestão da empresa. A gente sempre ganhou salário de montadora. Nunca ficamos sem depósito de Fundo de Garantia.”

ESCOLHAS ERRADAS Valtinho, que passou a dormir na fábrica desde o início da ocupação: “Perdemos alguns clientes importantes por má decisão administrativa”


MARCIA MINILLO/RBA

TRABALHO

INEXPLICÁVEL Nivaldo, com a esposa, Sônia, e o filho Marcelo, também funcionário da Karmann-Ghia, acha difícil explicar a origem das dificuldades da empresa: “Deve ser a tendência do brasileiro de acabar com as coisas, não é possível”

acabado de doar alimentos e um valor em dinheiro. “A gente se coloca na situação de quem não está recebendo salário. Isso (fábrica) não pode morrer por incompetência de alguns.”

Dramas pessoais

No mesmo 22 de junho, representantes da Associação dos Metalúrgicos Aposentados chegam com mais alimentos e solidariedade. “A gente queria fazer muito mais por vocês”, diz o presidente da AMA, Wilson Ribeiro, ex-funcionário da Mercedes-Benz. No dia seguinte, a Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM) da CUT e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) levaram alimentos produzidos por 50 famílias de seis cidades do Es-

pírito Santo. Também esteve lá o bispo diocesano de Santo André, dom Pedro Carlos Cipollini. Dezenas de representações de fábricas da região já passaram pela fábrica. Além da preocupação de garantir a sequência do movimento, é preciso também cuidar dos dramas pessoais. São trabalhadores com ameaça de despejo, luz cortada, dificuldade para garantir as despesas básicas. Outros também temem ser presos porque não conseguem pagar a pensão alimentícia. “Tinha trabalhador sem comida em casa”, conta Valtinho, que passou a dormir na fábrica desde o início da ocupação. Com três filhos, sendo dois pequenos, ele também é cobrado pela mulher e pelas crianças por não passar mais tem-

po em casa. “Quando posso, trago eles no final de semana. Ontem mesmo fiquei em casa até eles dormirem.” O coordenador do CSE diz que em algumas situações o trabalhador foi duplamente lesado, porque a pensão foi descontada e não repassada. Nesse caso, o jeito é procurar a Vara da Família e tentar explicar o que se passa. “Às vezes, eu mesmo atendo a pensionista.” Neste mês de julho, o filho mais novo, Gabriel, completa 7 anos. A festa já não vai ser como Valtinho gostaria. “Ele diz: ‘Faz só um bolinho, só um enfeitinho de safári tá bom’”, conta o metalúrgico. “Pelo menos 50% quero fazer ele sorrir.” Do local onde se concentram os trabalhadores, sobe-se dois lances de escadas e se chega às áreas de produção, agora silenciosas, mas bem conservadas. Prontas para serem reativadas, garantem os trabalhadores. Estão lá as enormes prensas (Clearing, Mahnke, Schuler), furadeiras made in Poland, partes de automóveis. Depois de tentativas de negociação e diante da dificuldade, inclusive, de identificar o atual proprietário, na última semana de junho o Sindicato dos Metalúrgicos decidiu entrar na Justiça com pedido de falência da Karmann-Ghia, por abandono de patrimônio. A decisão foi aprovada em assembleia realizada no dia 27. Ao mesmo tempo, os trabalhadores decidiram manter a ocupação, lembra o diretor da entidade Carlos Caramelo. “Eles estão preservando o que é de um dono que não se pronunciou”, afirma, acrescentando que a fábrica tem todas as condições de voltar a funcionar. “Em termos de know-how, o trabalhador da Karmann-Ghia é altamente qualificado. A marca é muito forte. Agora, precisa de gestão, de pessoas sérias.” Os metalúrgicos avaliam que a falência é a melhor alternativa para resguardar os direitos dos empregados – nesses processos, o crédito trabalhista tem preferência. Esse é um primeiro passo. Em um segundo momento, pretendem discutir alternativas de produção. A autogestão pode ser uma dessas alternativas, como já ocorreu em outras fábricas. Mas será preciso percorrer um longo caminho. REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

27


COMPORTAMENTO

E

MARLENE BERGAMO/FOLHAPRESS (SÃO PAULO, SP, 2/12/2015)

ra mais um dia de protestos para pedir a saída do então presidente da Câmara dos Deputados. Na ocasião, o “Fora Cunha” estava explosivo entre mulheres, sobretudo jovens, indignadas com a agenda do peemedebista. Ele só viria a ser afastado pelo Supremo Tribunal Federal seis meses depois. Não por bancar projetos como o que proíbe o uso de pílula do dia seguinte por vítimas de estupro ou o que institui o Dia do Orgulho Hétero. Não foi o atraso civilizatório que o derrubou, mas a corrupção – e não sem antes liderar o afastamento da primeira mulher eleita presidenta da República. Foi naquela tarde de novembro que a produtora Beatriz Alonso, de 24 anos, tomou pela primeira vez contato com os secundaristas que ocupavam a escola Fernão Dias Paes, na zona oeste de São Paulo, contra o fechamento de escolas públicas pelo governo do estado.

SEM MEDO Estudante encara PM durante ocupação das escolas

“A escola estava ocupada havia três dias. Fui aluna de escola pública e sei do que aquela moçada estava falando. Fiquei entusiasmada com a organização e encantada com a bravura das meninas. Numa sociedade em que há pouco espaço para as vozes femininas, até nos movimentos e na política, aquilo me tocou”, lembra Beatriz. O cenário a inspirou a produzir, junto com o namorado, Fábio Colombini, o documentário Lute como­uma Menina, título tirado de um chamado que se espalhava nas redes sociais. “Foi impressionante deparar com o nível de consciência e politização daquelas meninas. As adolescentes têm muito mais restrição à liberdade desde de dentro de casa. Cresci e amadureci com elas.” O filme, ainda não lançado, reúne imagens dos movimentos e depoimentos de 33 estudantes de 12 escolas estaduais, todas mulheres, de 15 a 18 anos. Uma delas é Lilith Cristina Passos Moreira, 15 anos. Ela teve contato com o feminismo em redes sociais. Passou a prestar atenção aos papéis feminino e masculino e apresentou um trabalho escolar que inicialmente nem entraria na questão. “Comecei a ouvir opiniões e fiquei inconformada com o pensamento de um entrevistado que iria compor a minha apresentação. E me dei conta do machismo”, conta. Participar da ocupação da escola Maria José, na Bela Vista (bairro da região central de São Paulo), durante um mês, foi importante para aprimorar sua percepção. “Durante o movimento escancarou-se o processo de opressão existente sobre os estudantes de escolas públicas, mais ainda quando se trata de mulheres negras”, diz Lilith. “Por isso, foi muito natural que as meninas tenham liderado as ocupações. Formou-se uma unidade entre as mulheres, que logo montaram um coletivo para continuar discutindo e atuando.” Na ocupação, ela lembra, a primeira polêmica surgiu na divisão do trabalho. Em uma assembleia, um dos participantes sugeriu que as meninas ficassem na cozinha. “Pra quê...” Após conversarem, criaram cotas para as comissões de alimentação

Lute como uma A juventude que ocupa as ruas e as redes recicla o feminismo e avisa aos machistas, de ontem e de amanhã: sem igualdade e respeito não haverá democracia, nem paz Por Rose Silva 28

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

e segurança, o que garantiu participação equilibrada nas atividades. “Foi um processo como eu acredito que deva acontecer para construir uma nova sociedade, mais livre”, afirma. Para ela, o mais difícil tem sido lidar com a conduta de alguns educadores que não levam o assunto a sério. Lilith cita o exemplo de um professor de História que em sala de aula considerou “vitimizador” o tema da violência contra as mulheres na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Na estrutura social e na cena política, observa Beatriz, não é


COMPORTAMENTO

Semayat “Além da limitação geográfica, com pouco acesso a direitos, também existe a tripla jornada que a maioria das mulheres negras e pobres administra. Isso te empurra para o feminismo, a necessidade de bancar a casa, de ir à luta, de estudar ao mesmo tempo, de buscar segurança no lugar onde moramos, que é extremamente vulnerável e não tem a proteção do Estado”

CLÁUDIA VIEIRA

menina REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

29


COMPORTAMENTO

novidade a mulher ser inferiorizada. “Está aí o interino que baniu as mulheres dos postos importantes do governo”, comenta. O que é novidade, em sua avaliação, é que esse estopim feminino já característico dos movimentos e dessa nova geração que vai às ruas está se expandindo para ambientes não engajados. “Vejo mudanças na minha casa, com a divisão de tarefas. E no meu trabalho, com mulheres tomando a frente e se fazendo ouvir. Vejo amigos admitindo que determinados gestos e condutas deles são machistas.”

Instrumento de peso

A socióloga Verônica Borges é um exemplo de mulher que se faz ouvir. Foi a primeira a tocar na bateria da Nenê de Vila Matilde, em 2012, quando a escola de samba paulistana já tinha 63 anos de existência. A ritmista mergulhou no movimento de

Verônica

LUCAS DUARTE DE SOUZA/RBA

“Até hoje a participação de mulheres em baterias de escolas é limitada a instrumentos leves por causa do preconceito, mas hoje tem muita gente se reunindo para criar espaços femininos”

mulheres do samba. Aos 31 anos, após uma década de carnaval e seis anos em rodas, toca surdo em quatro grupos e luta para ser musicista profissional. “Até hoje a participação de mulheres em baterias de escolas é limitada a instrumentos leves por causa do preconceito, mas hoje tem muita gente se reunindo para criar espaços femininos”, afirma. Na primeira vez em que “vestiu” o surdo, pensou que ia cair. “É questão de ritmo e treinamento. Você vê as mulheres que dançam nas rodas de samba, é puro ritmo. Se colocar um instrumento leve ou pesado nas mãos delas certamente aprenderão”, acredita Verônica. A inspiração vem de um lugar importante surgido recentemente em São Paulo, o Samba da Elis. Ao ar livre, na Praça Elis Regina, bairro do Butantã, na zona sul, o projeto reúne mensalmente pelo menos dois grupos formados exclusivamente por mulheres. “Lá também atuam vários coletivos que conversam sobre temas ligados ao feminismo.” Mais do que as ruas, as redes sociais se tornaram focos de “reuniões” e discussões. Para a secundarista Luísa Segalla, aluna do Colégio Equipe, as redes sociais e o ambiente escolar foram determinantes para sua percepção crítica da cultura machista. “Quando eu entrei no ensino médio comecei a me incomodar fortemente com isso. Procurei informações, li muito, entrei em grupos no Facebook e passei a entender melhor o que era o feminismo e o quanto é importante”, diz. “É muito complicado ser bombardeada pela mídia machista, que expõe e ‘objetifica’ as mulheres, perceber a diferença na criação entre meninos e meninas, andar na rua sempre insegura. Eu acho crucial querer desconstruir esse ciclo”, afirma Luísa, moradora da Casa Verde, na zona norte paulistana. Porém, ela observa que muitas vezes as pessoas não estão dispostas a ouvir. “O feminismo não está aqui para ser confortável. Assim como todas as lutas contra um sistema, vai incomodar. Ser feminista é começar as mudanças no espaço do microcosmo, como na sua casa e escola, e se possível, abranger o macro”, defende. E quem não aprende na escola aprende na vida. Foi em casa que a jornalista Semayat Silva e Oliveira, de 27 anos, do coletivo Nós, Mulheres da Periferia, recebeu desde criança informação e impulso de mãe sobre a necessidade de se defender do racismo e do machismo. Moradoras do Jardim Miriam, na zona sul de São Paulo, elas sempre souberam das dificuldades das mulheres negras na região. “Minha mãe fez questão de me proteger desde a infância. Também me orientou desde cedo a evitar relacionamentos abusivos que pudessem surgir.” Semayat foi crescendo e passou a questionar por que a liberdade feminina é tão limitada. A família se formou no ensino superior toda ao mesmo tempo, como bolsista do ProUni: pai, mãe, irmã e ela. “Além da limitação geográfica, com pouco acesso a direitos, também existe a tripla jornada que a maioria das mulheres negras e pobres administra. Isso te empurra para o feminismo, a necessidade de bancar a casa, de ir à luta, de estudar ao mesmo tempo, de buscar segurança no lugar onde moramos, que é extremamente vulnerável e não tem a proteção do Estado.”


COMPORTAMENTO

Lilith

LUCAS DUARTE DE SOUZA/RBA

“Durante o movimento escancarou-se o processo de opressão existente sobre os estudantes de escolas públicas, mais ainda quando se trata de mulheres negras. Por isso, foi muito natural que as meninas tenham liderado as ocupações. Formou-se uma unidade entre as mulheres, que logo montaram um coletivo para continuar discutindo e atuando”

A partir de um artigo escrito a seis mãos por jornalistas de várias regiões periféricas e publicado por um grande veículo sobre essas dificuldades, surgiu a ideia de formar um coletivo e editar um blog que abordasse a vida das mulheres da periferia. O grupo é composto por sete mulheres de bairros diversos, duas casadas, uma mãe e outras que moram com os pais. “O nosso feminismo começa na escuta, é a partir da reflexão que identificamos a nossa potência. Nessa condição em que vivemos, é raro uma pessoa ter oportunidade de refletir sobre sua própria história. Nosso objetivo é dar voz para as mulheres da periferia, que são múltiplas, plurais”, diz Semayat. Apesar de ser um ambiente dirigido por intelectuais e supostamente mais libertário, o meio cultural reproduz os valores machistas. A musicista e sonoplasta Jéssica Soares Martins de Melo, 27 anos, constata em sua área que nove em cada dez vagas para sonoplastia no teatro são

ocupadas por homens. “Ninguém pensa em contratar uma mulher para essa função. Nós ficamos com as sobras, embora haja muitas mulheres capazes de executar o trabalho com a mesma competência”, afirma. Aos 8 anos, Jéssica ganhou um sutiã de seus familiares quando perceberam que ela brincava na rua sem camiseta nos dias de calor, como faziam os meninos. “Eu não entendi o sentido daquilo (de ganhar um sutiã aos 8 anos), mas nunca esqueci. Depois entendi: era machismo. Já no mercado de trabalho, sempre questionei muito as pessoas sobre o motivo por que eu trabalhava na mesma função de homens que ganhavam mais que o dobro do meu salário.” Jéssica participa de coletivos feministas do teatro. E aposta no diálogo com as pessoas de sua convivência para que essa situação mu“Quando a gente de. “Se eu estou em casa com lança um disco, alguns meu pai, tradicionalmente produtores nos chamam pra cantar porque tenho de lavar a louça, fazer querem ‘nos pegar’” a comida. Acho muito estraARQUIVO PESSOAL nho que um adulto como ele

Karol

REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

31


COMPORTAMENTO

não possa se nutrir sozinho. Eu falo sobre isso, com calma, pois sei que é de outra geração, na esperança de que um dia seja diferente.”

O poder em jogo

A MC Karol de Souza, de 34 anos, decidiu iniciar carreira no rap, apesar de consciente de que é uma cena predominantemente masculina e machista. Começou em 1995, no bairro onde morava, em Curitiba, e já naquela época montou um grupo de meninas que se chamava Garotas de Atitude. Há cinco anos morando em São Paulo, começou a cantar com a “Eu não entendi o sentido daquilo (de rapper Flora Matos e decidiu ganhar um sutiã aos iniciar carreira solo. Ela par8 anos), mas nunca ticipa de três projetos coletiesqueci. Depois entendi: era machismo. vos de mulheres MC’s: o DiJá no mercado de vas do Hip Hop, uma banda trabalho, sempre só de mulheres, o Minas do questionei muito as pessoas sobre o Rap, constituído por MC’s motivo por que eu de São Paulo, Curitiba, Retrabalhava na mesma cife e Rio de Janeiro, e o Rifunção de homens que ganhavam mais que o mas e Melodias, que tem dobro do meu salário” duas MC’s cantoras e outras duas que só rimam. Karol admite que se coloca em uma redoma para evitar ser ofendida e usa a inteligência para sobreviver no meio. “Quando a gente lança um disco, alguns produtores nos chamam pra cantar porque querem ‘nos pegar’”, revela. “Sou de uma família na qual as mulheres lideraram normalmente. Meu pai se separou da minha mãe, meu avô se separou da minha avó, e as mu-

LUCAS DUARTE DE SOUZA/RBA

Jéssica

lheres sempre foram mais bem-sucedidas do que os homens. Agora que tenho um irmão mais novo, percebo o machismo de volta nas pequenas coisas cotidianas. O menino é tratado como bibelô da família”, observa. Para a secretária municipal de Políticas para as Mulheres de São Paulo, Denise Motta Dau, a expansão das causas feministas é fruto, em parte, dos avanços democráticos dos últimos anos, e também resultado de uma resistência da sociedade ao conservadorismo que reage a esses avanços. Ela observa uma geração que nasceu ou era muito criança no início dos anos 2000 e se formou na última década e meia. “As lutas das mulheres em diferentes movimentos e setores da sociedade proporcionaram avanços. O Estado, por sua vez, também garantiu políticas de distribuição de renda e maior participação feminina. Muitos direitos conquistados já estão internalizados por uma parcela da população, sobretudo a juventude, que nasceu e cresceu em um processo democrático, e não aceita presenciar um retrocesso no seu cotidiano”, afirma. Em contrapartida, na avaliação de Denise, o conservadorismo também reagiu. “Se por um lado presenciamos o feminismo se tornar mais atuante e dar voz e força às mulheres, por outro corre-se o risco de se perder, inclusive, importantes direitos conquistados”, diz, referindo-se

Nenhuma a menos A estudante Zoe Aymara tem 14 anos e não iria ao colégio de short, mesmo no verão. Tampouco sairia na rua sozinha vestindo a peça, que foi mote de protesto de estudantes em Buenos Aires, em novembro passado, inconformadas com a proibição da vestimenta para garotas, quando garotos podem ir à escola usando bermudas. Zoe tem claro que existem riscos ao usar determinada roupa e revela preocupação com o que tem sido um problema para 32

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

mulheres de diferentes idades e classes sociais: a violência de gênero. “Passei e passo por situações constrangedoras na rua ou no ônibus.” O constrangimento reflete o resultado de uma espécie de pedagogia do patriarcado, em que as mulheres são ensinadas a estar subjugadas ao que seria direito natural dos homens numa sociedade conservadora. Isso é o que explica parte do primeiro relatório de 2016 sobre direitos humanos do

Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels) da Argentina, apresentado agora em junho. O estudo lembra que o estupro e assassinato de mulheres jovens instalaram a violência de gênero na agenda midiática, mas que boa parte da imprensa, por sua vez, alimenta esse processo ao descolar a abordagem da cultura social machista. “Esse tipo de tratamento da imprensa não apenas revitimiza as mulheres e suas famílias que sofreram com a violência,

mas a toda a sociedade que se constrói sob essa égide”, diz a advogada Edurne Cárdenas, autora do texto Nenhuma a menos. A violência institucional à luz da Lei de Proteção Integral às Mulheres, integrante do documento. A advogada ressalta o valor do enfrentamento que os movimentos feministas têm encampado no país. É esse movimento, diz o relatório, que denuncia durante décadas os assassinatos de mulheres como feminicídios. “‘Alcunhou’ esta palavra e fez uso político


LUCAS DUARTE DE SOUZA/RBA

COMPORTAMENTO

Luísa “É muito complicado ser bombardeada pela mídia machista, que expõe e ‘objetifica’ as mulheres, perceber a diferença na criação entre meninos e meninas, andar na rua sempre insegura. Eu acho crucial querer desconstruir esse ciclo”

ao que chama de “golpe em curso”, ao lembrar que todas as políticas de direitos humanos foram suspensas pelo governo interino de Michel Temer e que nos estados e no Congresso proliferam projetos que promovem um atraso civilizatório no país, como os que defendem a “lei da mordaça” aos educadores e a discussão sobre diversidade de gênero pelas escolas. “O questionamento contundente ao machismo, social e culturalmente construído, faz surgirem reações conservadoras.” A secretária considera que diversas ações que ganharam “as ruas e as redes” desde o ano passado já são uma forma de re-

com a mobilização de 400 mil pessoas em 120 locais, com grande concentração em frente ao Congresso, conforme cita o relatório. O documento emitido pelo Nenhuma a Menos em 2015 destacou que em 2008 uma mulher era morta a cada 40 horas pelo simples fato de ser mulher. Em 2014, a cada 30 horas. “Em sete anos, os meios de comunicação publicaram o assassinato de 1.808 mulheres”, diz o informe.

Passeata mobilizou 400 mil pessoas em 120 locais

# NI UNA MENOS / YOUTUBE

dela para assinalar que os crimes, apresentados como ‘fatalidades’ doméstica, ou invisibilizados, devem ser examinados como expressão de problemas sociais”, descreve. “São mulheres mortas por homens em situação de machismo e não mais ‘casos passionais’.” Segundo ela, foi a dedicação desses mesmos movimentos que proporcionou campo fértil para a realização das marchas Nenhuma a Menos (Ni una Menos). A primeira se deu em 3 de junho de 2015,

sistência. “Campanhas como #chegadefiufiu, #primeiroassédio, #meuamigosecreto,#agoraéquesãoelas,asmanifestaçõesdassecundaristas, as respostas ao caso de estupro no Rio, fizeram com que a discussão sobre violência de gênero e desigualdade se tornasse tema do dia a dia, e não mais restrita ao ambiente acadêmico e aos movimentos”, lembra Denise. “Temas como preconceito, assédio, desigualdade, racismo, misoginia e feminicídio são hoje realidade quando se trata de enfrentamento das violências que as mulheres sofrem cotidianamente em suas casas, nas ruas, na escola, no trabalho e na política.”

Por Erika Morhy, de Buenos Aires REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

33


ESPORTE

Isaquias Queiroz, campeão mundial de canoagem

Vai ter Ol 34

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL


ESPORTE

P

alavra de ordem não há. Mas a imprensa comercial agarra-se ao estado de calamidade no Rio de Janeiro e até ao zika vírus para decretar o fracasso dos Jogos – da gigantesca empreitada de organizar o maior evento do planeta ao esforço do esporte brasileiro para se situar entre as dez maiores potências olímpicas do mundo (pelo número de pódios, não necessariamente de ouros). Sediar a Olimpíada não foi um louco disparate do ­ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, segundo Ricardo Leyser, homem por trás do projeto esportivo brasileiro. A história do processo que vai culminar com a frase “estão abertos os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro”, no dia 5 de agosto, no Maracanã, começou bem antes. As origens remetem a uma competição bem menos glamurosa, os Jogos Sul-Americanos de 2002. Devido à crise econômica argentina, Córdoba, a sede designada, abriu mão do evento. Numa reunião emergencial da Organização Desportiva ­Sul-Americana (Odesur), em Assunção, em 18 de abril daquele ano, foi designada uma nova sede. O Brasil levou a melhor, superando o Chile por 11 a 3. Leyser, lotado no gabinete da então secretária paulistana de Esportes, Nádia Campeão, constatou o despreparo nacional e o prazo apertado para receber uma competição poliesportiva modesta. A insuficiência ia além de instalações esportivas obsoletas e rede de comunicações desatualizada. Saindo do mundo do futebol, e de ilhas de excelência, como vôlei, judô e vela, o país revelava grande despreparo para competir. Um exemplo folclórico: às vésperas das eliminatórias, as brasileiras da patinação de velocidade estavam preocupadas porque sabiam apenas patinar em linha reta e temiam as curvas do circuito montado no Sambódromo do Anhembi, em São Paulo.

COB (PAN-AMERICANOS DE 2015, TORONTO, CANADÁ)

Olimpíada Nenhum movimento cultivou um sucedâneo do “não vai ter Copa”. Desde a escolha do Rio, o país avançou em vários aspectos e regrediu em outros. Não se sabe qual será o espaço para o espírito esportivo Por Alessandro Lucchetti REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

35


ROBERTO CASTRO/ME

INFRAESTRUTURA O velódromo, grande fiasco do Pan 2007, foi a última instalação do Parque Olímpico a ser entregue, dessa vez certificado

Presidente do Comitê Olímpico desde 1995 e entusiasta do fracassado projeto Brasília 2000, Carlos Arthur Nuzman já acalentava o projeto de ver o Brasil sediar os Jogos. Nenhuma cidade brasileira tinha condições de receber a competição que Cuenca, no Equador, organizara em 1998. As mais recentes experiências de competições poliesportivas disputadas em solo nacional não eram tão recentes: os Jogos Pan-Americanos de São Paulo-1963 e a Universíade de Porto Alegre, no mesmo ano. A solução encontrada pelo Comitê Organizador foi descentralizar: Belém e os estados de São Paulo, Paraná e Rio receberam disputas do Odesurzão-2002.

A experiência animou Nuzman, que colou sua imagem à ascensão do vôlei brasileiro. Antes restrito a praias e escolas, ganhou ginásios lotados de torcedores e uma galeria de títulos internacionais. O passo seguinte seriam os Jogos Pan-Americanos de 2007. “Ao fazer o trabalho de preparar o Pan, constatamos a completa insuficiência de estrutura. Foi um choque em termos de tecnologia, comunicação, transporte. Mas realizamos o evento, e a avaliação internacional foi melhor do que a nacional. O Pan de 2007 demonstrou e afirmou a capacidade do Brasil de realizar grandes eventos”, afirma Leyser. Foram cometidos erros colossais, do tamanho de um veló-

As boas chances Basquete masculino

Natação

Vôlei

Futebol masculino

A seleção feminina, bicampeã olímpica, é candidata ao pódio novamente. O masculino, prata em 2008 e em 2012, e campeão em 2004, pode ser de novo, como pode cair nas quartas de final. 36

JULHO 2016

Atletismo

Fabiana Murer é esperança solitária. Ouro no Mundial de Daegu, em 2011, compete centímetro a centímetro no salto com vara com a cubana Yarisley Silva, a neozelandesa Eliza McCartney, a grega Ekateríni Stefanídi, além das norte-americanas. Não será fácil.

REVISTA DO BRASIL

Pentatlo moderno

O Brasil não terá Cesar Cielo, mas Bruno Fratus, quarto nos 50 metros livre em Londres, é muito competitivo. Thiago Pereira, o 4x100m livre. Há esperança na água.

Dunga se foi, e isso é ótimo. O treinador Rogério Micale, livre, pode conduzir o Brasil ao tão sonhado ouro olímpico, contando com Neymar e cia.

O Brasil mal sabia o que era pentatlo moderno. Até surgir Yane Marques, de Afogados da Ingazeira, interior de Pernambuco. Bronze em Londres, ela quer mais.

PAUL J ROBERTS/UIPM

O Brasil já tem uma geração de jogadores experientes, com anos de prática na NBA, a liga norte-americana, e/ou em ligas importantes da Europa, como a espanhola. Liderados por Rubén Magnano, campeão olímpico comandando a Argentina em 2004, podem recolocar o Brasil no pódio olímpico. O basquete masculino brasileiro foi bronze em 1948, 1960 e 1964. Os destaques são o armador Marcelinho Huertas, do Los Angeles Lakers, o armador Leandrinho e o ala/pivô Anderson Varejão (ala/pivô), ambos do Golden State Warriors, e o pivô Nenê, do Washington Wizards, além do ala/pivô Augusto Lima, do Real Madrid.

Yane Marques


ESPORTE

CBLA/RENATO SETTE

dromo com pista de pinheiro siberiano projetado urbano, há o legado esportivo. O Brasil tem hoje um campeão mundial de canoagem, Isaquias sem consulta à União Ciclística Internacional. As Queiroz. A paulista Aline Silva é vice-campeã instalações foram construídas com o duplo promundial de luta olímpica, e uma pernambupósito de receber disputas do Pan e convencer o cana, Yane Marques, medalhista olímpica no Comitê Olímpico Internacional de que o Brasil já pentatlo moderno. Há outros gratos exemplos, tinha parte das instalações para a Olimpíada de e mais medalhas por vir. 2016. Sem conformidade, o velódromo foi desA infraestrutura esportiva do país, antes defasamontado e levado para Santo Antônio do Pinhal da, agora inclui a Rede Nacional de Treinamento. (SP), onde suas peças enferrujam. Um novo – e Esse projeto deu origem à construção, reforma e caríssimo – foi erguido com atraso. equipagem de centros para ginástica, judô, tiro Desastres com dinheiro público à parte, a expericom arco, luta olímpica, handebol, saltos ornaência do Pan resultou numa candidatura competimentais, ciclismo e canoagem, entre outros estiva e vencedora em 2009, quando o COI apontou portes. A diretriz governamental foi espalhar o Brasil como sede dos XXIX Jogos Olímpicos da esses centros por todo o território nacional. Era Moderna. “Identificamos, ao preparar o proMacapá conta hoje com uma pista de atletisjeto, todos os problemas que teríamos de sanar paAline Silva, mo certificada pela Associação Internacional ra a candidatura não perecer, e planejamos o que vice-campeã fazer caso ganhássemos”, recorda Leyser. das Federações de Atletismo (Iaaf, na sigla mundial de luta olímpica Enfronhado nos meandros do Ministério do em inglês). No caso do esporte mais icônico Esporte por 13 anos, ele considera que a Rio dos Jogos, o projeto se fundou numa parceria com universidades federais. 2016 deixará dois legados. “As obras são tocadas pela prefeitura do Rio. Vão promover modernização e salto de O PCdoB, partido que comandou o Ministério do Esporte de qualidade na estrutura de transporte da cidade. Mais de R$ 20 2003 a 2014, com Agnelo Queiroz, Orlando Silva e Aldo Rebelo, bilhões foram investidos em transporte público”, diz. Além do superou eventuais ranços ideológicos e formulou parceria com

Judô

Ketleyn Quadros conquistou, em 2008, o primeiro bronze da história do judô feminino brasileiro em Jogos Olímpicos. Em 2012, veio o primeiro ouro, com Sarah Menezes. No Rio, a piauiense luta pelo bi. Mas há outras chances: Mayra Aguiar, Maria Suelen, Érika Miranda, Rafaela Silva. No masculino, o pesado Rafael Silva, o experiente Tiago Camilo e Felipe Kitadai já sabem o caminho do pódio olímpico.

Vela

Martine Grael, ao lado de Kahena Kunze, quer continuar provando que é uma legítima velejadora da família Grael, um nome que o brasileiro associa a medalha olímpica na vela desde 1984. As duas são as atuais campeãs mundiais da classe 49er. Jorginho Zarif, na Finn, é outro ótimo nome.

PAULO PINTO/FOTOS PÚBLICAS (2016)

TOMAZ SILVA/AGÊNCIA BRASIL (2013)

Sarah, Rafaela e Érika Miranda

Arthur Zanetti

Ginástica olímpica

Arthur Zanetti, atual campeão olímpico nas argolas, tem grandes chances de repetir presença no pódio. E Diego Hypólito, que já era para ter subido, pode, aos 30 anos, conquistar medalha no solo, caso controle os nervos. Já admitiu que “amarelou”.

Vôlei de praia

Larissa/Talita, Alison/Bruno Schmidt, Ágatha/Bárbara, Evandro/ Pedro Solberg. Não se podem descartar as chances de medalha de dupla brasileira alguma nessa modalidade. Em casa, com forte apoio da torcida, as chances, já altas em qualquer lugar, aumentam. REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

37


ESPORTE

Lançado em 2012, o Plano Brasil Medalhas se propõe a preparar as equipes que defenderão o país nos Jogos do Rio, formar novas gerações de atletas e construir, reformar e equipar centros de treinamento Brasil afora. Os atletas dispõem de treinadores – em muitos casos, estrangeiros de alto nível, além de materiais para treinamento e competição, como os coletes e capacetes com tecnologia para aferição de pontos do taekwondo, além de recursos para viagens para competições internacionais, intercâmbio e períodos de treinos no exterior. Se a meta brasileira é se colocar entre os FORMAÇÃO Para onde vamos? dez países com maior número de medalhas, Davi Albino, da luta O país carente de políticas públicas voltadas ao desen- greco-romana, é um dos nos Paralímpicos a projeção é uma posição volvimento do esporte começou a engatinhar no enfren- 17 mil beneficiados pelo entre os cinco melhores. Em termos de estamento desse déficit em 2005, com a criação do progra- Bolsa Atleta trutura, o Centro Paralímpico só perde para ma Bolsa Atleta. Oito em cada dez competidores, dos 178 os locais de preparação da Ucrânia e China, brasileiros, já garantidos nos Jogos até o fechamento desta edição ficando à frente de seus pares dos Estados Unidos, Rússia, Alesão apoiados pelo programa, com bolsas entre R$ 5 mil e R$ 15 mil. manha, Reino Unido e Canadá, entre outros. Entre eles, 72 recebem a Bolsa Pódio, uma categoria do Bolsa Parte do Plano Medalhas, a Bolsa Pódio apoia diretamente Atleta. A lista exclui os atletas de modalidades coletivas ainda não atletas de modalidades individuais classificados entre os 20 priconvocados, como handebol, vôlei, futebol, polo aquático e rúgbi, meiros do ranking internacional. Desde que foi implementae os de esportes individuais ainda em disputa por classificação. A do, em 2005, pelo presidente Lula, o programa investiu R$ 640 delegação nacional contará na Olimpíada com 442 atletas. milhões e já beneficiou mais de 17 mil brasileiros, com mais de KAIO ALMEIDA/CBLA

as Forças Armadas, que comportam hoje modernas instalações esportivas. Essa aproximação inclui a realização dos Jogos Mundiais Militares de 2011, no Rio. A busca de conhecimento ultrapassou fronteiras. Um técnico espanhol de canoagem, um técnico sul-coreano de tiro com arco, um italiano do tiro, um ucraniano da ginástica e um cubano do boxe, entre muitos outros, contribuíram para preparar a atual geração de atletas para esta Olimpíada. O Brasil tem como meta ficar entre os dez melhores. A sorte está lançada. Porém, ela terá sido precedida por muito planejamento, investimento, erros e acertos. Uma conclusão já se apresenta, antes mesmo de qualquer brasileiro desfilar na cerimônia de abertura do evento: o esporte do país nunca mais será como antes.

Ana Moser, pé no chão Entrincheirados em uma organização não governamental chamada Atletas pelo Brasil, cerca de 60 atletas e ex-atletas brasileiros que não aceitam mais a pecha de alienados travam o que consideram ser o bom combate. Com a mesma fome de pontuar que apresentava quando subia para enfrentar o bloqueio cubano, Ana Moser, uma das líderes mais destacadas do coletivo, faz críticas pesadas ao processo de formulação de uma tão sonhada política nacional de esportes. Miragem? “Acho que as pessoas incumbidas de organizar os Jogos Olímpicos no Brasil correram atrás para organizar, construir o que tinha que construir, treinar quem tinha que treinar, contratar os 38

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

treinadores estrangeiros que tinham que contratar. E isso tudo para não fazer feio no quadro de medalhas. Mas treinaram atletas feitos. Quero saber como vão fazer, no futuro, mais atletas.” Ana Moser sempre foi mulher de ação. “Criou em 2001 o Instituto Esporte & Educação, que desenvolveu e dissemina uma metodologia de esporte educacional, com objetivo de ampliar e qualificar a prática de educação física e esporte em todo o Brasil”, diz sua ficha no site da Atletas pelo Brasil. “Empreendedora social com várias premiações, e sócia fundadora do Todos pela Educação, da Atletas pelo Brasil e da Rede de Esporte pela Mudança Social (Rems).” No final de outubro

passado, você poderia encontrar Ana sob e sobre o calor de Palmas, porque na capital de Tocantins o calor vem do sol, ricocheteia no solo e é distribuído até pelo vento. A vice-campeã mundial de 1994, bronze em Atlanta-1996, todas essas pessoas que são sempre ela, estavam lá à frente da Caravana do Esporte, que tem o apoio e os recursos da Disney, proprietária do canal ESPN Brasil. Era época dos Jogos Mundiais Índigenas. Ana, 47 anos, catarinense de Blumenau está no Caravana há dez anos. A primeira expedição foi para Alcântara, no Maranhão. O projeto começou modesto, e já passou por mais de 600 cidades do Brasil, com direito a uma incursão pela África do

Sul, no ano em que a Copa do Mundo foi disputada naquele país, em 2010. “A Caravana é uma tecnologia brasileira, que deverá ser exportada, porque é referência internacional na área”, diz. A atacante das cortadas fulminantes tem dificuldade para acompanhar o passo de tartaruga em que avança (?) a formulação do tal projeto esportivo nacional. “A gente não aguenta mais discutir. Fazemos três, quatro encontros, que geram documentos muito bons. E esses projetos morrem na paralisia do Congresso. Já teve três conferências organizadas com o objetivo de se formular uma política de Estado esportiva para o Brasil. A gente não aguenta mais debater.” O repórter faz esforço


ESPORTE

CÉLIA SANTOS/IEE (CARAVANA DO ESPORTE, IGARASSU, PE, 2015)

PAULINO MENEZES/ME

de prosperar na modalidade sem um 44 mil bolsas para diversos estágios empurrão federal. de desenvolvimento desde a iniciação Em entrevista ao portal IG, Albino até o topo do desempenho. declarou que não tinha perspectivas e O programa Bolsa Pódio foi mal que o esporte mudou sua vida. “Quanutilizado por atletas que não tinham do recebi minha primeira convocação, necessidade de receber dinheiro público. O caso mais gritante foi o de em 2005, não ligava muito para a luta, Peter Dirk Siemsen. O pai do presiia treinar no Centro Olímpico por treidente do Fluminense é um velejador nar, porque lá dava lanche, dava passe (de ônibus). Depois que fui chamaoctogenário, um dos advogados mais APRENDENDO COM OS ERROS do para a seleção brasileira comecei a respeitados do Brasil. Mas fez questão Leyser: “Ao fazer o trabalho de preparar o pegar mais amor”, relatou. “Eu evitava de preencher formulário para receber Pan, constatamos a completa insuficiência de estrutura. Foi um choque em termos de sair, ficar bebendo, queria estar na seR$ 22,2 mil anuais. tecnologia, comunicação, transporte” leção. A luta me abriu o mundo. Quem Mais necessitado, Davi Albino, conhece o Capão Redondo (bairro no atleta brasileiro da luta greco-romana, tem o perfil imaginado pelos formuladores. O programa extremo sul da cidade de São Paulo) sabe que a vida é difícil. Vejo­ foi concebido para lutadores com essa trajetória de vida. Os que muitas pessoas de lá estão me mandando força e querem me recursos federais ajudam atletas que não teriam muita chance assistir lutando. Isso é muito bom.”

BASE Ana: “Acho que esse projeto esportivo nacional é uma utopia. Mas faço parte da linha propositiva. Está na mão da sociedade lutar por isso”

para apresentar dados otimistas sobre a Olimpíada. Ela bloqueia todos, como se fizesse parte do paredão da seleção russa de vôlei. E do mais alto, o masculino. “Agora temos pistas de atletismo pelo Brasil todo”, diz o repórter. “Ter uma pista revestida com material emborrachado e

certificado pela Iaaf é para atletas de alto rendimento. Precisamos de pistas também para as pessoas que vivem no bairro. Com chão de terra, piso de carvão. Ter uma pista de atletismo tão cara para atender a amadores é como dar um tiro de bazuca para matar uma formiga.”

“Mas e as crianças? Meu filho, por exemplo, vai ter a oportunidade de ver, in loco, algumas provas dos Jogos Olímpicos”, apela a reportagem. “Seu filho é um privilegiado. Ele vai se encantar por algum esporte e vai querer praticá-lo no dia seguinte, mas não vai

encontrar um lugar”, rebate. Eu desisto. Ela não desanima: “Acho que esse projeto esportivo nacional é uma utopia. Mas faço parte da linha propositiva. Está na mão da sociedade lutar por isso. É uma utopia, é uma utopia que vale a pena perseguir”. REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

39


CIDADANIA PRIMEIRA PARADA Participantes da Caravana no Sítio Pirilampo, em Jarinu

A terra e seus sá E Projetos de caravanas agroecológicas organizadas pelo CNPq integram ambientes, conhecimentos e culturas em busca do equilíbrio cidadecampo Por Carolina Caffé 40

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

m maio, cinco caravanas na região Sudeste saíram em busca de histórias de resistência e esperança. Eram estudantes, agricultores e ativistas paulistas, fluminenses, capixabas e mineiros, interessados em experiências em agroecologia no estado de São Paulo. Os comboios percorreram rotas temáticas, envolvendo comunidades tradicionais, agroturismo, consumo responsável, agricultura urbana e assentamentos, tendo a agroecologia como elo. No país que mais consome agrotóxi-

cos no mundo, a Caravana Agroecológica e Cultural rumo ao Vale do Ribeira busca expressar a valorização do cultivo orgânico e agroecológico, cada vez compreendido como saída para o consumo de alimentos sem venenos ou sementes transgênicas. E a reflexão não é só alimentar, mas sobre a concentração de renda e terras, o modelo de economia baseado nos grandes latifúndios e na ausência de integração entre campo e cidade. “Para nós, comer é um ato político”, afirma Virlei Ferreira, responsável pelo Centro de Formação Campo-Cidade


na zona rural do município de Jarinu, a 80 quilômetros de São Paulo. No Sítio ­Pirilampo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) promove cursos, formações e experiências-piloto em produção agroecológica. É a primeira parada da caravana. Mais tarde, na noite cultural, segue a conversa regada a música e cerveja artesanal Guerrilheira, produzida ali. “A agroecologia é uma matriz tecnológica pautada nos princípios socialistas. Interessa a toda a humanidade, pois é uma forma de produção baseada em conceitos sobre relações humanas”, diz Virlei. Para o agricultor, existe também a responsabilidade por parte dos consumidores para a manutenção de um sistema alimentar prejudicial. “As pessoas deveriam parar de seguir o que a mídia diz, de consumir veneno, e começar a se preocupar com o rastro ecológico e social que deixam no planeta”, afirma. O programa de reforma agrária popular proposto pelo MST considera a necessidade de se romper com a ideia de “espaços que só produzem e espaços que só consomem”. A agricultora Maria Alves da Silva concorda. Residente do acampamento Comuna da Terra Irmã Alberta, local da segunda parada, ela diz que não se deve ver o camponês “como um Jeca Tatu”, como se o problema dele fosse só a terra. “O trabalhador do campo tem de ser um sujeito preparado, versátil, capaz de vender sua própria mercadoria, sem precisar de atravessadores. Além disso, devemos

ter orgulho de ser trabalhador do campo, sem a ideia de que o que vem do campo é atrasado ou penoso.” O trabalho no sistema agroecológico, segundo ela, não é exaustivo como no convencional, mas prazeroso no plantar e no colher. A proximidade com os centros urbanos e a modernidade possibilitam essa condição híbrida do trabalhador descrito por dona Maria, e em seu assentamento há diferentes categorias de trabalho. “Hoje aqui não temos mais essa divisão: camponeses e urbanos. Temos trabalhadores. De mãos calejadas ou não.” A comuna é um acampamento localizado no bairro de Perus, região noroeste da capital. Havia para a região um projeto de construção de aterro sanitário para receber dejetos do Rio Pinheiros. O MST ocupou e, junto com os bairros e cidades vizinhas, pressionou a prefeitura para barrar a ideia. O argumento foi pela defesa dos mananciais, dos recursos que ainda existiam na região, e também pelo assentamento das famílias que estavam reivindicando a terra para produção de alimentos. Há mais de dez anos acampadas, as famílias lutam para permanecer, sob as incertezas e entraves da regularização fundiária. A maioria vem da própria cidade de São Paulo, e vivia em áreas de risco ou em situação de rua. Segundo Maria, aqueles que nunca tiveram acesso ao trabalho na terra são os que mais querem ficar. Eles acabam criando gosto pelo manejo e não querem mais voltar para a cidade.

Hortas urbanas

CAROLINA CAFFÉ

sábios

ANDRÉ BIAZOTI

CIDADANIA

ENCONTRO FINAL Na praça, em defesa das comunidades tradicionais, em Barra do Turvo

A caravana segue estrada. A viagem que liga os extremos da capital paulista leva mais de uma hora, pelas margens do município. A paisagem inclui as represas de Guarapiranga e Billings, beira parques e unidades de conservação e testemunha reservas naturais inimagináveis, até chegar em São Mateus, na zona leste. A horta da Dona Terezinha é uma referência em agricultura urbana, com cultivo de frutas, verduras, legumes, feijão, temperos, chás e ervas medicinais. A área de 4 mil metros está sob torres de transmissão de energia, ocupando espaços que estariam abandonados e ociosos. REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

41


CIDADANIA ANDRÉ BIAZOTI

AGROECOLOGIA “Interessa a toda a humanidade, pois é uma forma de produção baseada em conceitos sobre relações humanas”, enfatiza Virlei Ferreira, do Centro de Formação Campo-Cidade, do MST, também em Jarinu

“Vim da Bahia porque eu queria morar dentro da cidade”, conta Terezinha Santos Matos. “Cresci na roça plantando junto com meu pai. Via os aviões passar e gritava, ‘me leva pra São Paulo!’ Meu sonho era vir, mas não queria deixar o que eu fazia lá”. Com o apoio do Fundo Especial do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Fema, órgão ligado à prefeitura paulistana) e da organização não governamental Instituto Kairós, dona Terezinha é assistida por um agricultor que a visita três vezes por semana. “Cada vez que vem aqui ele nos dá uma receita diferente”, conta. De São Mateus para a terceira parada, na região do ABC paulista, a distância é menor. O Coletivo de Consumo Rural Urbano de Diadema (CCRU), na Vila ­Socialista, recebe a caravana e outros gru42

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

pos de diferentes partes do estado para debater outro universo temático: as conquistas e desafios do consumo responsável. Os grupos são formados por pessoas que se organizam para incorporar ao ato da compra critérios éticos, políticos, sociais e ambientais. Atuam no apoio a pequenos produtores e pretendem, ao mesmo tempo, viabilizar a compra de produtos saudáveis a preços acessíveis. O CCRU é um dos 25 coletivos reunidos na Rede Brasileira de Grupos de Consumo Responsável, com objetivo de difundir a cultura de consumo de produtos agroecológicos, da agricultura familiar e da economia solidária.

Agrofloresta

Já quase alcançando o destino final, a caravana se dirige ao município de ­Sete

Barras, na região do Vale do Ribeira, a pouco mais de 200 quilômetros da capital, para visitar a experiência de agrofloresta do seu Geraldo, na Comunidade do Guapiruvu. Geraldo Oliveira, em parceria com Gilberto Otha, protagonizou um lento, mas bem-sucedido, processo de transição agroecológica que inspirou a comunidade e o entorno. Essa e outras experiências da região se articulam em uma rede de cooperativas de produção e vendas chamada Aliança 7B. “Vocês estão vendo essa árvore caída? Essa árvore cresceu, ela mesmo teve o seu tempo de vida e agora retornou, caiu. E é ela mesmo quem vai sustentar todos os outros cachos e plantas vivas. É o processo de renovação do solo”, conta Geraldo. O sistema junta floresta com agricultura, recupera técnicas e conhecimentos de po-


vos tradicionais e agrega o conhecimento científico acumulado sobre a ecofisiologia das espécies vegetais – e sua interação com a fauna nativa. Ali se cultivam palmito, jaca, laranja, juçara, banana sem nenhum tipo de agrotóxico ou maquinário. Quem aduba é a própria natureza, a floresta, as árvores e folhas que caem. “Na agroecologia a gente aprende que a diversidade de espécies traz o equilíbrio para o solo”, afirma Geraldo. Enquanto ele fala, seu parceiro Gilberto mete a mão na terra, cheirando e separando punhados para passar de mão em mão aos caravaneiros. Os integrantes ouvem com atenção sob as folhas das bananeiras que os protegem da chuva. “O meu filho, por exemplo”, conta Gilberto, “em vez de virar empresário, está aqui com a gente nos defendendo. Ele não acreditava antes, mas passou a ver os resultados, as pessoas vindo, perguntando como funciona.” A transição agroecológica é movida a princípios: “As pessoas­ chamavam a gente de românticos, de poetas, loucos e utópicos, mas hoje reconhecem que estamos no caminho certo”. A dupla relata que a área era tratada com veneno, óleo e adubo químico. “Era área degradada, um terreno muito ácido, tratado com trator, maquinário, totalmente deteriorado. Agora você vê a qualidade da terra? Totalmente diferente. Levou tempo para recuperar”, diz Gilber-

CAROLINA CAFFÉ

CIDADANIA

NA COMUNA “Devemos ter orgulho de ser trabalhador do campo”, diz a agricultora Maria Alves

to. Eles não esperam lucro, nem aumento do consumo. Ainda assim, o sistema começou a revelar resultados positivos inspirando novos adeptos. “Hoje conseguimos mais valor agregado com os novos contratos. Está provada a viabilidade econômica.”

Povos tradicionais

“Devemos reivindicar o que é necessário. O direito de permanência das comunidades tradicionais nos seus

territórios para continuar com este conhecimento agroecológico”, grita Paquê, um dos idealizadores do projeto da caravana, no megafone. Na praça central de Barra do Turvo, ainda no Vale do Ribeira, os instrumentos ritmizam uma ciranda formada por mais de 200 ativistas, agricultores e estudantes. Era a passeata do dia da culminância, quando cinco rotas temáticas se encontram para trocar experiências, conhecimentos, sementes, e participar de um seminário sobre agroecologia. Os caravaneiros afirmam que no Vale do Ribeira puderam perceber que há uma importante forma de produzir alimentos que hoje está ameaçada por projetos que não garantem a permanência das comunidades tradicionais nos seus territórios. Um padrão que se repete em muitos lugares do Brasil. “O modelo de agricultura dos quilombos nada mais é do que uma agrofloresta de forma diferente do contexto da universidade, no contexto do saber, das técnicas e mística dos povos tradicionais”, afirma Ubiratã de Souza Dias, o Bira, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). “Nossa luta é junto com as comunidades quilombolas, indígenas, caiçaras e ribeirinhas que vivem ameaçadas por projetos de desenvolvimento que prometem emprego e só trazem destruição.”

A resposta é verde O evento estava na terceira edição. A realização é da Rede de Núcleos de Agroecologia da Região Sudeste (R-NEAs) e da Articulação Paulista de Agroecologia (rede APA), por meio do Projeto Comboio Agroecológico Sudeste do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). A resposta a muitos dos problemas sociais vividos hoje no planeta é verde. E essa resposta, se já não era das melhores, fica mais ameaçada pelos retrocessos em curso. Se outras caravanas virão, ainda não se sabe.

Situação já ruim é ameaçada por retrocesso

CAROLINA CAFFÉ

O projeto Caravana Agroecológica e Cultural rumo ao Vale do Ribeira tem especial importância diante da conjuntura política atual. Semanas depois dessa empreitada, o país passou a enfrentar retrocessos para a agricultura familiar, como a desestruturação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o enfraquecimento da Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater), da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo), entre outras.

REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

43


CULTURA

Axé

pra quem é de amém

Cerimonial afro, na Igreja Nossa Senhora do Rosário, no bairro paulistano da Penha, conecta fiéis a uma história de resistência negra e a um futuro de esperança Por Carolina Conti Fotos Grupo Poética em Construção

O

uando o sino, na toada do atabaque, convoca o povo, o Largo do Rosário se colore em festa. É dia de evocar os antepassados. E se fazer presente na história originada naquela igreja construída por negros escravizados. Proibidos de frequentar as missas com seus senhores, eles ergueram a capela de Nossa Senhora do Rosário, no bairro da Penha, zona leste da capital paulista. A porta original acentua o transporte no tempo, e as paredes de taipa abraçam os fiéis. O canto e o louvor perpassam gerações e aglutinam o sentimento de fé, entrega, memória e resistência. A missa inculturada, presente em diferentes estados, é um traço do Brasil 44

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

colonial, misto de catolicismo apostólico romano e ritos e tradições de matriz africana. Dos imigrantes que aqui aportaram pela dominação e conquista de terras, ou por meio da mão de obra escrava, nasceu uma identidade nacional, que se faz contar sobretudo em celebrações como esse cerimonial afro, que no primeiro domingo de cada mês reúne a comunidade do bairro da Penha e visitantes de todos os cantos. “O que realizamos é com base no que intuímos de como deveria ser feito. Também há relatos em livros que descrevem como eram realizadas as festas dos negros e das irmandades no Brasil Colônia. Através dessa literatura podemos concluir que existem algumas singularidades”, diz o geógrafo Júlio Cesar

­ arcelino, membro da Comissão do RoM sário e do Movimento Cultural da Penha, que há três anos colabora na organização da celebração. No ano 2000, o Departamento de Controle do Uso de Imóveis (Contru), órgão municipal, interditou a Igreja, pois o teto ameaçava cair. Uma reforma aconteceu depois da mobilização de moradores do bairro. Dois anos depois, foi criada a comissão, a fim de promover eventos que trouxessem a população àquele espaço sagrado, dando-lhe visibilidade e impedindo que sua história fosse soterrada.

Secular

Não há data precisa para o nascimento da igreja. A formalização da construção tem um registro em 16 de junho de 1802,


CULTURA

A missa inculturada, presente em diferentes estados do país, é um traço do Brasil Colônia, misto de catolicismo apostólico romano e ritos e tradições de matriz africana data que acabou destinada a eventos que reúnem no largo festeiros de outras regiões do estado, além de Minas Gerais e das tradicionais irmandades – como a do Largo do Paissandu, a mais antiga da capital, no centro. Celebrar a permanência da construção em pé – a única em São Paulo, levantada­ por negros escravizados, a se manter no local de origem – é um dos motivos da REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

45


CULTURA

reunião de todo primeiro domingo do mês. Egresso do ministério sacerdotal católico e hoje ministro da palavra nos cerimoniais afro, José Morelli se diz um dos espectadores da luta de força e resistência daquelas pessoas. Autorizado pelo monsenhor Carlos Calazans (pároco da Penha e responsável pela capela do Rosário) a conduzir as celebrações utilizando a liturgia católica, é um dos entusiastas do evento. Morelli cresceu absorvendo a memória visual do largo. Quando criança, foi coroinha e ajudou em missas no antigo altar. Afastou-se por 17 anos, em função do seminário e da vida de padre, e retomou as atividades ali em 1994, ao confeccionar presépios dentro e fora da igreja. Aproximou-se do Movimento Cultural Penha e também participou da conservação do local. “O cerimonial segue as orientações litúrgicas romanas. Como em outras igrejas, são adicionados elementos da cultura africana. O repertório musical vem se enriquecendo”, conta. “Temos aprendido com muitos daqueles a quem conhecemos em nossas andanças e festas que acontecem em outros bairros, outras cidades do estado e em Minas Gerais.” Procure imaginar o que se passa naquele local durante o cerimonial – da perspectiva de quem acaba de entrar. De antemão: não corresponderá à experiência pessoal, já que nem a linguagem e nem a fotografia dão conta da realidade. Apenas oferecem pistas: o piso ornamentado é um gracejo do tempo. À direita, um balcão onde se acomodam as ervas e outros elementos que desfilarão no dia. À esquerda, um móvel de vidro com imagens de santos, velas e outras miudezas para venda. A transição para um chão de madeira marca o acesso aos bancos enfileirados até a beira do altar e o local onde se concentra a banda, com seus instrumentos de percussão, logo abaixo de São Benedito, no canto esquerdo. Após o toque da trombeta, tem início a liturgia, variada de acordo com o mês e as datas importantes ao calendário cristão ou à cultura negra – como o Dia da ­Consciência Negra, comemorado em no46

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

Quem participa da celebração veste-se com roupas com motivos afros e as mulheres enfeitam os cabelos com turbantes e flores. No ar, perfume de alfazema e arruda vembro, com menções a Zumbi dos Palmares, entre outros expoentes. Aqueles que participam da celebração vestem-se de roupas com motivos afros. As mulheres enfeitam os cabelos com turbantes e flores. No ar, perfume de alfazema e arruda. O fato, ansiado pelo povo por um mês, se desdobra alegre e emotivo por todos os cantos, sob o amparo dos estandartes das irmandades que fundaram a igreja e por ela zelam há mais de 100 anos. Também exercem o papel de assistir os mais necessitados e auxiliar na alforria de irmãos. Quem podia colaborar pagava uma mensalidade, e os recursos eram destinados a esses fins. A Irmandade do Rosário, segundo os autos presentes na Cúria de São Miguel Paulista, data de 1755. Tinha autonomia de decisões, total controle de seus recursos e objetivo de cuidar dos que não tinham condições de tratar de uma enfermidade, além de assegurar que seus familiares fossem en-

terrados com dignidade. Não há registro da sua extinção. “Pode ter ocorrido entre o final do século 19 e o início do 20, coincidindo com o processo de romanização da Igreja Católica no Brasil, quando houve a separação entre Igreja e Estado, suprimindo alguns privilégios do aparelho eclesiástico. A romanização tinha como finalidade centralizar, hierarquizar e combater a religiosidade feita pelo povo liderada por leigos, como as irmandades de negros”, conta Júlio Cesar. “É também desse período o surgimento de novas ordens que atendiam a essa hierarquia: Congregados Marianos, Filhas de Maria, Apostolado da Oração, entre outros.” Em 1934, foi fundada a Irmandade de São Benedito, que já não tinha a mesma autossuficiência da anterior, pois havia um pároco como responsável e representante da diocese local. Provavelmente deixou de existir após o golpe, nos anos


CULTURA

COMUNHÃO José Morelli, egresso do ministério sacerdotal católico e hoje ministro da palavra nos cerimoniais afro, é um dos entusiastas do evento. Ele acolhe a Nossa Senhora do Rosário e dá a hóstia a Margarida Soares durante o cerimonial

1960. A característica fraternal que o próprio nome sugere dá o tom a essa nova configuração de amigos – que se dizem irmãos – e encabeça os festejos em reverência aos seus antecedentes, lembrados pela resistência. Carlos Casemiro adora rememorar a história porque, na estrutura do quebra-cabeça, figuram seus avós maternos, ­Edmundo Narcizo e Silvina Narcizo, zeladores da Igreja do Rosário dos anos 1930 aos 1960. Silvina nasceu em 1888 (ano da abolição), portanto cresceu sob o regime do Ventre Livre. Ela e seu futuro marido viriam, na fase adulta, a compor a irmandade que daria continuidade às tradições religiosas de seus antepassados com uma questionável liberdade, ainda às custas de muita luta – fato que permanece até os dias de hoje. A comissão de festas, responsável pelo Cerimonial, responde à Igreja Matriz da Penha – que “guarda” a chave da capela, entregando-a apenas nos dias de eventos. “Hoje entendo melhor o que presenciei junto aos meus pais naquela igreja. Sinto essa energia”, relata Casemiro – que conduz, junto com Morelli, o cerimonial. A família já está na quarta geração de frequentadores da Igreja do Rosário.

Chão de fé

Nayara Rodrigues Francisco, de 25 anos, está entre os que mantêm a tradição. E também se emociona ao descrever o que sente durante a missa afro. “A

participação de pessoas de várias comunidades, raças e crenças em prol de um patrimônio histórico e cultural, além da fé que tem nesse chão, é de fazer chorar.” Ela é certeira sobre a fé que há no chão. Todo o bairro da Penha guarda memórias religiosas seculares. Ponto estratégico na rota comercial da Vila São Paulo a Minas Gerais, o bairro – interiorano nos idos do século 17 – era composto por terrenos loteados para a criação de gado, plantação de cana-de-açúcar, algodão e cereais, mas também destino procurado por devotos de Nossa Senhora da Penha. Diz a lenda que um viajante francês passava pela região, onde se recolheu por uma noite. Já bem distante da colina da Penha, no dia seguinte, percebeu a falta da santa em sua bagagem. Retomou ao local da hospedagem e a encontrou lá. O fato aconteceu uma outra vez, o que o levou a compreender que Nossa Senhora da Penha queria ficar na região. Ele então construiu uma igreja para abrigá-la, que passou a ser visitada por peregrinos de diferentes regiões. Com o apóstolo Paulo, a santa é padroeira da metrópole paulistana. São três as principais igrejas católicas do bairro. Esta, que teve origem na ermida construída pelo lendário francês, a matriz – que em 1985 foi elevada à categoria de basílica menor pelo papa João Paulo II – e a do Rosário, representativa do movimento negro. Isabella Santos fundou em 2014 o Sam-

pa Negra, uma agência de turismo com objetivo perpetuar as tradições de matriz africana, enaltecer a importância da cultura negra para a construção da cidade. Com patrocínio da prefeitura, por meio do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VA), criou o roteiro Rosário a Rosário, que tem como protagonista a Igreja do Rosário – o mapa liga a Igreja da Penha ao Largo do Paissandu, pontuando locais representativos da luta e da resistência da população negra. O resultado pode ser conferido no site www.sampanegra.com.br. “O roteiro é um convite para usufruirmos o que a cidade oferece de transporte público e a pé, podendo usar o celular como ferramenta dessa (re)descoberta.” “Não queremos desrespeitar o romano, mas dar voz aos nossos antepassados reproduzindo suas celebrações numa comunhão de fé”, diz Sérgio Oliveira, idealizador do cerimonial afro e organizador do repertório. “Não podem faltar canções que falem da luta do negro para uma sociedade e convívio em igualdade social, religiosa, com todos os outros irmãos.” Torna-se bem compreensível o que ele diz ao se ouvir o Canto das Três Raças (Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro) imortalizado por Clara Nunes, entoado por todos com profunda emoção. Cerimonial afro da Igreja do Rosário Primeiro domingo do mês, das 10h às 12h Largo do Rosário, Penha, São Paulo REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

47


Por Xandra Stefanel

FOTO E INTERVENÇÃO MARCELO BRODSKY

América Latina em foco A mostra coletiva Arquivo Ex Machina: Identidade e Conflito na América Latina, em cartaz até 7 de agosto no Itaú Cultural, em São Paulo, reúne fotografias de arquivo de países latino-americanos. Criminalidade, revoltas populares, escravidão, extermínio indígena e repressão política são alguns dos temas das imagens que compõem a exposição. Cabanagem, de André Penteado; A Boa Aparência, de Eustáquio Neves; Bajo Sospecha: Aqui Todos Somos Suspeitos, do chileno Bernardo Oyarzún; Operação Condor, de João Pina; entre outras fotografias, trazem à tona e ressignificam acontecimentos que, não raro, ficam no fundo das gavetas e nos porões da história. De terça a sexta-feira, das 9h às 20h, sábados, domingos e feriados, das 11h às 20h, na Avenida Paulista, 149, em São Paulo. Mais informações: (11) 2168-1777. Grátis. 48

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

O jogador de futebol Ricardinho

Alta performance O documentário Paratodos, de Marcelo Mesquita, acompanha o cotidiano de quatro equipes de atletas paralímpicos brasileiros. Dos treinamentos às competições, o longa-metragem mostra o dia a dia de esportistas de alta performance como o nadador Daniel Dias, a velocista Teresinha Guilhermina e o jogador de futebol Ricardinho, entre outros. Mais do que tratar da superação e da quebra de barreiras, o filme sai do lugar-comum ao abordar também questões pessoais como autoestima, perfeccionismo e o companheirismo. Paratodos estreou nos cinemas no fim de junho e está em exibição em escolas públicas de todo o país com o objetivo de fortalecer o diálogo sobre educação inclusiva e acessibilidade. Para a exibição em instituições de ensino, basta que o responsável preencha um formulário no site www.taturanamobi.com.br.

Ponte para o passado Um homem sem convicções se transforma em agente infiltrado durante a ditadura brasileira. Quarenta anos depois, durante três dias ele relembra seus fantasmas, sua vida sem paixão nem culpa, suas visões e contradições e faz um acerto de contas com a própria existência. O novo romance de Ivone Benedetti, Cabo de Guerra (Editora Boitempo, 304 págs.) apresenta a história de uma figura anônima que entrou sem querer numa guerra que não lhe dizia respeito e da qual não fez nada para sair: era como se o agente infiltrado fosse regido pelo “controle remoto” do regime. O livro reconstrói pontes entre o sombrio passado do país e o presente. R$ 54.

DIVULGAÇÃO

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

FOTO MANUEL BIDERMANAS. INTERVENÇÃO MARCELO BRODSKY

curtaessadica


Cinara da Serrinha 2011, por Ana Stewart

FOTOS DIVULGAÇÃO

Cinara da Serrinha 2003, por Ana Stewart

Imaginário carioca A alma carioca está em cartaz no Museu de Arte do Rio (MAR) até 9 de outubro. Com curadoria de Paulo Herkenhoff apoiada por Milton Guran, a mostra Linguagens do Corpo Carioca [A Vertigem do Rio] expõe em 800 obras toda a essência dos moradores do Rio de Janeiro. Entre os artistas que compõem a mostra estão Candido Portinari, Cecília Meireles, Di Cavalcanti, Evandro Teixeira, J.R. Ripper, Juca Martins, Luciana Whitaker, Marcel Gautherot, Nair Benedicto, Pierre Verger, Thomas Farkas, Walter Carvalho Ana Stewart e muitos outros. Juntas, as obras discutem a identidade social do carioca e apresentam o rico imaginário da Cidade Maravilhosa: o mar, a camaradagem, a segregação social, o samba, as comunidades, as muldidões no Maracanã, as manifestações políticas, as belezas, a violência, a melancolia… De terça a domingo, das 10h às 17h, na Praça Mauá, 5, Rio. Informações: (21) 3031-2741. R$ 5 e R$ 10.

O disco de estreia da cantora e autora Marina Melo, Soft Apocalipse, traz 13 canções que misturam temas sociais a íntimos. A paulistana de 25 anos passeia por diferentes estilos a partir de letras inteligentes e bem-humoradas. O álbum tem produção musical de Gabriel Serapicos e participação especial de Zeca Baleiro em Adultos. Composta na semana de lançamento da campanha #primeiroassédio, a faixa Laura trata sobre um tema áspero: “A Julia não se importa de sentir pavor/ A Maira não notou que a infância entortou/ A Natasha nem sentiu quando foi estuprada e a Laura nunca lembra que foi morta…/ Quando você rasga uma, você rasga todas nós”, diz a letra. Soft Apocalipse pode ser baixado gratuitamente no site www.marinamelo.com.br e ouvido nas plataformas digitais SoundCloud, Spotify, Deezer, no Google Play e no canal da cantora no YouTube.

ILUSTRAÇÃO SUSSANE STRABER

Delicada acidez

Medos de Elise Era uma vez uma mulher que tinha muito medo de aranha, de gente, de árvore, de tudo. Elise vivia sozinha e assim pretendia ficar, até que um dia um aviãozinho entrou pela sua janela e acabou com sua paz. A mulher ficou em dúvida se deveria receber um estranho ou ignorá-lo­ e manter tudo como estava. O livro A Visita (Cia. Das Letrinhas, 40 págs.), da autora alemã Antje Damm, faz com que as crianças reflitam sobre como às vezes basta apenas abrir uma porta para que grandes transformações aconteçam. R$ 34,90. REVISTA DO BRASIL

JULHO 2016

49


EDUARDO MARETTI

De derrotas e sentimentalismos

Messi continuará feliz lá na Catalunha. E os chilenos, outrora menosprezados por seus próprios compatriotas, estão muito felizes com o bicampeonato. Muito justo

A

perda da Copa América pela Argentina, e principalmente a derrota de Messi, o herói, deram margem a todo tipo de dramatizações. Algumas sinceras, outras demagogas e midiáticas; umas emocionadas, outras calculistas (em busca de audiência), outras simplesmente tolas. Faço este breve comentário com tranquilidade, pois estou muito longe de alimentar a rivalidade globeleza e falsa entre Brasil e Argentina, que embala o canal de televisão patrocinador do golpe no Brasil. Adoro o futebol argentino, que, para mim, junto com o outrora (e hoje degradado e horrível) futebol brasileiro e o italiano, sempre formaram a tríade do melhor futebol do mundo – como tradição e escola, e não apenas como fruto de fenômenos episódicos, do tipo Hungria de 1954 e Holanda de 1974. E mais do que de seu futebol adoro a Argentina. Julio Cortázar, embora morasse em Paris, certa vez disse que caminhar por Buenos Aires era um dos maiores prazeres de sua vida. Mas voltemos a Messi. Até mesmo eu fiquei um pouco condoído pela dor do craque com a perda do pênalti que custou a derrota para o Chile. Porque a derrota é de fato triste. Mas a pieguice que embalou muitos e o oportunismo mancheteiro que motivou outros, sinceramente, é de dar tédio, ou raiva, dependendo do momento. Para mim, “a tristeza de Messi é a tristeza do futebol”, como escreveu Mário Magalhães em seu blog no uol, francamente, superou tudo em tolice, inclusive o sentimentalismo piegas dos amigos ou amigas que se emocionaram a não mais poder com a imagem de uma mulher enxugando as lágrimas do craque. Só para ficar no futebol: e a alegria do Chile, construída com talento e aplicação, um time taticamente impressionante, a seleção de Alexis Sánchez e Arturo Vidal, não conta? Por acaso, quando Roberto Baggio, um dos maiores craques do futebol italiano, e portanto do futebol mundial, em 1994, perdeu o pênalti contra o Brasil não foi “a tristeza do futebol” também, só porque o vencedor foi a seleção pragmática e covarde de Carlos Alberto Parreira venerada por Galvão Bueno? Ou, voltando um pouco mais, quando Zico, um dos maiores que vi jogar (para mim mais jogador do que Messi) perdeu o pênalti contra a França em 1986, não foi “a tristeza do futebol” também, só porque perdemos, e então o sentimento tinha de 50

JULHO 2016

REVISTA DO BRASIL

ser outro que não o da pena? “A decepção da seleção de Zico” pode-se achar facilmente hoje numa busca no Google. Messi perdeu. O esporte é assim. Perde-se. Até Pelé perdeu. Aliás, não foi nem a primeira, nem a segunda, nem a terceira vez que Messi perdeu um título junto com a Argentina. Messi, um dos maiores craques do século 21, nunca ganhou nada por seu país, onde, diga-se, nunca jogou profissionalmente, já que saiu dos infantis do Newell’s Old Boys aos 13 anos para alçar a glória no Barcelona. A mídia precisa de heróis, para vender manchetes. Mas Messi não chega ao maravilhoso pé esquerdo de Maradona, que ganhou sozinho a Copa do Mundo de 1986 para seu país, num dos momentos épicos e inigualáveis da história do futebol. Messi hoje é um herói, há anos é o queridinho da mídia, naquela semana virou o símbolo da tristeza e rendeu muitas manchetes. Por isso mesmo, porque o mundo precisa de manchetes e de quem as compre, virão outros. Podem ficar tranquilos. O craque nascido em Rosário que perdeu o pênalti na final da Copa América continuará feliz lá na Catalunha. E os chilenos, outrora menosprezados por seus próprios compatriotas, estão muito felizes com o bicampeonato. Muito justo. Eduardo Maretti é repórter da RBA e publicou este texto originalmente em seu blog, Fatos Etc: bit.ly/derrota-de-messi


www.redebrasilatual.com.br Acompanhe na RBA a cobertura dos principais fatos no paĂ­s e do mundo. E siga nas redes sociais nosso jornalismo crĂ­tico, cidadĂŁo e transformador


RESPEITO À DEMOCRACIA

ASSISTA AO SEU JORNAL DAS 19H15 ÀS 20H, DE SEGUNDA A SÁBADO Notícias, reportagens, entrevistas, colunistas no Brasil e no mundo, dicas, cultura e mundo do trabalho com o olhar da democracia e do desenvolvimento econômico com inclusão social

NA GRANDE S. PAULO: canal 8.1 TV digital NO ABCD: canal 12 da NET EM MOGI DAS CRUZES: canal 46 UHF analógico e canal 13 NET Digital BRASÍLIA: Rede Cidade Livre, canal 10, das 19h às 19h30


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.