Justiça concede liminar por ato de infração à ordem econômica contra a jbs

Processo: 5208437.98.2017.8.09.0143

Comarca​ ​de​ ​São​ ​Miguel​ ​do​ ​Araguaia ​ ​ ​ ​ ​ ​Gabinete​ ​do​ ​Juiz

Processo​ ​Nº:​ ​5208437.98.2017.8.09.0143

DECISÃO

Trata-se de Ação Civil Pública ajuizada pelo Município de São Miguel do Araguaia​ ​em​ ​face​ ​JBS​ ​S/A. Em petição inicial narra a autora, sinteticamente, que a ré adquiriu em 19/7/2013, por R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais), bem imóvel onde está situado estabelecimento enquadrado na categoria de matadouro frigorífico para bovinos, com capacidade de abate de 1000 cabeças de gado por dia, mantendo-o inativo com a finalidade de impedir que o estabelecimento fosse vendido a terceiros empreendedores, causando prejuízo à livre concorrência, dominando o mercado de abate de bovinos, impondo o preço da arroba aos fornecedores de gado, controlando​ ​o​ ​aumento​ ​e​ ​diminuição​ ​da​ ​oferta.

Salienta que a ré é proprietária de um abatedouro frigorífico no município de Mozarlândia, distante 181 quilômetros de São Miguel do Araguaia, dominando 100% do mercado relevante de bovinos em um raio de 400 quilômetros na região do Vale​ ​do​ ​Araguaia​ ​e​ ​municípios​ ​circundantes,​ ​não​ ​existindo​ ​outro​ ​frigorífico​ ​próximo.

Afirma que doou o imóvel com a finalidade de instalar-se no município indústria frigorífica, havendo investimento de recursos públicos, por crédito outorgado de ICMS destinado à ampliação e modernização do complexo industrial do frigorífico, havendo interesse público na operação e funcionamento do estabelecimento.

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Valor: R$ 1.000.000.000,00 | Classificador: Ação Civil Pública ( L.E. ) SÃO MIGUEL DO ARAGUAIA - VARA DAS FAZENDAS PÚBLICAS Usuário: Leandro Silva - Data: 11/09/2017 09:30:58

Poder​ ​Judiciário Estado​ ​de​ ​Goiás

Processo: 5208437.98.2017.8.09.0143

Em despacho datado de 5 de julho de 2017 foi postergada a análise do pedido liminar para depois da resposta da ré, em atenção ao Princípio do Contraditório.

Na contestação apresentada (evento 8) a ré alega, preliminarmente, prescrição, ilegitimidade passiva, ausência de interesse de agir, vício de representação processual, carência de ação e inépcia da inicial. Requer seja denunciada a lide à empresa SMA Frigorífico Indústria e Comércio Ltda, pois esta estava obrigada por força de contrato a colocar em funcionamento frigorífico e matadouro de bovinos no município. Afirma que não participou da tratativa entre Poder Público e tal empresa, não tendo qualquer parceria comercial com esta e que somente​ ​adquiriu​ ​um​ ​imóvel​ ​desativado​ ​há​ ​mais​ ​de​ ​13​ ​anos.

Aduz, no tocante aos pleitos provisórios, em resumo, que a atividade industrial (matadouro e frigorífico) havia sido encerrada em outubro de 2004, oito anos antes da aquisição do imóvel pela empresa-ré, não sendo possível se falar em sucessão​ ​empresarial.

Sustenta que “quando da aquisição da área pela empresa-ré pareceu um bom negócio. A destinação a ser dada ao mesmo está inerente ao direito de propriedade​ ​(usar,​ ​gozar​ ​e​ ​dispor)”.

Assevera existirem três frigoríficos não vinculados à JBS que estão mais próximos de São Miguel do Araguaia do que a planta de Mozarlândia, os quais absorvem os rebanhos, de modo que os fornecedores nunca tiveram problema com a​ ​venda​ ​do​ ​produto.

Argumenta que deve ser levada em consideração a legislação ambiental, que a microrregião de São Miguel do Araguaia não demanda dois frigoríficos de grande porte, além do fato de que qualquer abertura de planta frigorífica deve, obrigatoriamente,​ ​ter​ ​autorização​ ​do​ ​CADE. É​ ​o​ ​relatório.

Decido.

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Exara que a conduta praticada pela ré “produz efeitos difusos negativos e contínuos na economia local e regional. Prejudica as relações comerciais, civis, de consumo e trabalhistas ao impedir a geração de mais de 350 empregos diretos e 1200​ ​indiretamente”.

Postula que ao final da demanda seja desconsiderada a personalidade jurídica​ ​da​ ​ré.

Requer seja concedida tutela antecipada antecedente para determinar a reabertura do matadouro frigorífico e, alternativamente, a venda, particular ou por leilão,​ ​do​ ​referido​ ​estabelecimento.

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Cuida-se de pedido de tutela antecipada requerida em caráter antecedente, formulada em Ação Civil Pública proposta por Município de São Miguel do​ ​Araguaia​ ​em​ ​face​ ​de​ ​JBS​ ​S/A. As preliminares suscitadas em sede de contestação serão apreciadas em momento​ ​oportuno.

Em análise perfunctória dos fatos narrados em petição inicial e aqueles deduzidos em contestação verifico a presença dos requisitos necessários à concessão​ ​da​ ​liminar​ ​deduzida​ ​pela​ ​parte​ ​promovente.

A probabilidade do direito (​fumus boni iuris​) resta fartamente demonstrada pela documentação acostada aos autos pela autora por ocasião do ajuizamento da demanda.

Em 27 de abril de 1993 foi sancionada Lei Municipal 120/93 que tinha por objeto autorizar o Município, por intermédio do chefe do Poder Executivo, a adquirir área de até 350.000m2 (trezentos e cinquenta mil metros quadrados) “para doação a uma indústria frigorífica a instalar-se no Município de São Miguel do Araguaia, a título de fomento e incentivo a industrialização, dentro do programa de Governo estabelecido para o Município (...). As despesas decorrentes da operacionalização dos ditames desta Lei, acorrerão a conta própria do vigente orçamento, segundo o plano de classificação funcional programática e sob nº 11.62.346.1.026 - 4.2.1.0” (evento​ ​1​ ​-​ ​arquivo​ ​7).

Posteriormente, a Lei Municipal 148/94, de 13 de outubro de 1994, autorizou o chefe do Poder Executivo a efetuar a “Doação e Escrituração à empresa Frigorífico São Miguel do Araguaia Ltda ‘AGUAFRICO’ (...), com atividade principal de abate e frigorificação de bovinos, com aproveitamento de sub-produtos, especialmente de couros, a área de terreno de 5 (cinco) alqueires, em cultura e campo, de propriedade do Município de São Miguel do Araguaia, situada no loteamento denominado “Vertente do Araguaia”, aquisição concedida pela Lei Municipal nº 120/93, de 27/4/93, para ser doada à empresa em questão, depois de cumpridas as normas do Contrato de Empréstimo por Comodato de nº 043-C/93, de 25 de maio de 1993, cuja área avaliada nesta data pelo preço de R$ 5.000,00 (cinco mil​ ​reais)”.

O parágrafo único do artigo 1º da Lei em questão estabelece que “fica por força desta Lei, a referida doação gravada dos ônus estabelecidos na letra “a” inciso I do art. 102 da Lei Orgânica Municipal , e no art. 17, § 4º da Lei Federal nº 8.666/93 (...), determinando desde já o prazo de no mínimo 01 (um) ano para construção e funcionamento do Frigorífico, dispensado este se devidamente comprovado o seu cumprimento​ ​em​ ​prazo​ ​inferior”.

Dispõe o artigo 17, § 4º que “ A doação com encargo será licitada e de seu instrumento constarão, obrigatoriamente os encargos, o prazo de seu cumprimento e cláusula de reversão, sob pena de nulidade do ato, sendo dispensada​ ​a​ ​licitação​ ​no​ ​caso​ ​de​ ​interesse​ ​público​ ​devidamente​ ​justificado”.

Processo: 5208437.98.2017.8.09.0143

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A cláusula de reversão foi aposta no parágrafo 1º do art. 2º da referida Lei, prevendo que a transferência do imóvel objeto da doação em prazo inferior a dois anos implicará o ressarcimento aos cofres do Município da importância de R$ 72.000,00​ ​(setenta​ ​e​ ​dois​ ​mil​ ​reais).

A lei 173/95, de 2 de agosto de 1995, suprimiu o parágrafo supracitado, “competindo ao município, via de seu Poder Executivo, a adoção das providências complementares necessárias, inclusive a re-ratificação da escritura pública de doação”​ ​(evento​ ​1​ ​-​ ​arquivo​ ​7).

A parte autora também juntou a Certidão de Matrícula (arquivo 1 - evento 8) do imóvel em questão, onde constam tanto a aquisição da área pela Prefeitura no ano de 1993 quanto a doação à empresa Frigorífico São Miguel do Araguaia com o encargo​ ​construção​ ​e​ ​funcionamento​ ​do​ ​frigorífico.

Da análise de tal documento verifico que em 19 de setembro de 1995, exatamente um mês e meio após a sanção da lei 173/95, o imóvel foi vendido por R$ 200.000,00 (duzento mil reais). Após a realização de benfeitorias, em 15 de janeiro de 2002 o imóvel foi mais uma vez alienado pelo valor de R$ 485.000,00 (quatrocentos e oitenta e cinco mil reais). Em 13 de outubro de 2011 o bem foi comprado por SMA Frigorífico Indústria e Comércio Ltda por R$ 650.000,00 (seiscentos e cinquenta mil reais) e, em 04 de outubro de 2013, quase dois anos depois, vendido por esta à ré JBS S/A por R$ 20.000.000,00 (vinte milhões de reais).

No ano de 2006 foi lavrado Termo de Acordo de Regime Especial (evento 1 - arquivo 3) entre a Secretaria da Fazenda do Estado de Goiás e a empresa SMA Frigorífico Indústria e Comércio Ltda, com estabelecimento localizado na Rod. Municipal Piratininga, S/N, Km 04, Distrito Agroindustrial, em São Miguel do Araguaia, representada por Ramiro Zucato Filho. O regime especial consistiu em implementação de crédito outorgado do ICMS destinado à ampliação e modernização, máquinas, equipamentos e instalações, na efetiva execução do projeto,​ ​observado​ ​o​ ​limite​ ​de​ ​até​ ​R$​ ​4.000.000,00​ ​(quatro​ ​milhões​ ​de​ ​reais).

A Lei Estadual 15.756/06 modificou a Lei 13.194/97, para incluir no art. 2º, II, desta, outorga de crédito de ICMS até o limite de R$ 4.000.000,00 (quatro milhões de reais) para ser apropriado por estabelecimento frigorífico ou abatedor, estabelecido nas regiões Norte e Nordeste do Estado de Goiás (evento 1 - arquivo 1:32).

Não obstante a formalização da aquisição do imóvel por parte de SMA Frigorífico tenha se dado apenas em 2011, esta já estava estabelecida no local em 2006.

Corrobora tal conclusão matéria do Diário do Norte, de 13/1/2008, na qual o diretor-presidente do Frigorífico São Miguel do Araguaia, ​Ramiro Zucato​, informava que no mês de abril daquele ano o frigorífico iniciaria suas atividades, gerando​ ​300​ ​empregos​ ​diretos​ ​e​ ​1200​ ​indiretos.

Processo: 5208437.98.2017.8.09.0143

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Entre os anos 2002 e 2011 o frigorífico pertencia à pessoa jurídica Redenção Frigorífico do Pará Limitada, sendo seus sócios Valter Minari e Hamilton de Souza Pinto. Todavia, foi Ramiro Zucato Filho quem lavrou o Termo de Acordo de Regime Especial acima citado (2006) e respondeu como diretor-presidente perante​ ​a​ ​imprensa​ ​(2008).

Aliás, desde a primeira pessoa jurídica adquirente do imóvel até a transferência deste para JBS S/A figuram como representantes legais ou sócios pessoas de sobrenome Minari ou Zucato, ora como compradores, ora como vendedores.

Forçoso reconhecer, portanto, que os registros e averbações apostos na Certidão de Registro de Imóveis jamais refletiram a realidade fática da​ ​titularidade​ ​do​ ​frigorífico​ ​abatedouro.

Em documento datado de 19 de junho de 2014, oito meses após a alienação do imóvel para a ré JBS S/A, endereçado à Doutora Cristina Emília França Malta, titular da 1ª Promotoria de Justiça de São Miguel do Araguaia, SMA Frigorífico menciona que em audiência pública ocorrida em 9 de julho de 2013 informou sobre possível celebração de contrato de parceria “entre nossa empresa e JBS S/A”. Tal ofício foi formalizado nove meses e meio após a transferência da propriedade de SMA Frigorífico para JBS S/A. Pelo fato de ser a alienante quem respondia em nome do Frigorífico perante o Ministério Público e não a adquirente, é possível concluir que foi estabelecida a parceria entre as empresas, ainda que por tal​ ​interregno.

Também constam dos documentos juntados pela parte autora ofício da lavra do Procurador-Geral de Justiça, endereçado ao Secretário da Fazenda do Estado de Goiás, solicitando informações sobre o procedimento de outorga de crédito​ ​por​ ​intermédio​ ​da​ ​SEFAZ/GO​ ​(evento​ ​1​ ​-​ ​arquivo​ ​2:33).

Em resposta, datada de 22 de junho de 2011, o Secretário da Fazenda encaminhou memorando subscrito pelo Superintendente da Receita, onde afirma que “a Delegacia Especial de Auditoria durante a vigência do retrocitado TARE considerou que a empresa não cumpriu o disposto na cláusula segunda, parágrafo 3º do TARE nº 299/06, razão pela qual lavrou os autos de infração nºs 3029446007328, 3029448045782, 3031603517559, 4010902088660, buscando ressarcir ao Erário os R$ 4.000.000,00. Entretanto, todos foram julgados nulos pelo Conselho Administrativo Tributário, razão pela qual estão sendo feitos estudos buscando viabilizar a realização de nova autuação​” (sem destaque no original).

A ré, em contestação, não impugnou qualquer dos documentos acostados aos​ ​autos​ ​pela​ ​parte​ ​autora.

Questiona, entretanto, as diversas matérias jornalísticas juntadas, que mencionam suposta prática de atos lesivos à concorrência por parte de JBS S/A não somente​ ​em​ ​Goiás,​ ​mas​ ​em​ ​outros​ ​estados​ ​da​ ​Federação.

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Alega que por questões de logística opta por efetuar o abate no Município de Mozarlândia, distante 180 quilômetros de São Miguel do Araguaia. Cumpre transcrever relevante trecho da peça processual: “Quanto à localização do frigorífico da JBS em Mozarlândia, na microrregião encontram-se (sic) uma cidade que se destaca na engorda de bovinos e no abate e industrialização de carne bovina de alta qualidade, que é o município de Aruanã, onde se tem atualmente capacidade máxima para engorda de 150 mil cabeças de gado confinado, produzindo assim uma carne de alta qualidade. Isso justifica a localização do frigorífico. Em um breve comparativo, outras regiões menos desenvolvidas, que contam apenas com a pecuária extensiva e sem melhoria tecnológica, o Vale do Araguaia atua na cria, recria, engorda e abate de bovinos com alta qualidade e tecnologia. E, no entender do​ ​requerido,​ ​o​ ​maior​ ​contribuinte​ ​para​ ​essa​ ​situação​ ​é​ ​o​ ​confinamento​ ​em​ ​Aruanã”.

Em consulta ao sítio do IBGE - pecuária 2015 - bovino - efetivo dos rebanhos - comparação entre os municípios - Goiás, constata-se que naquele ano o município de Aruanã possuía 236.929 cabeças, Mozarlândia, 190.295, que, somadas, não alcançavam o número de reses que São Miguel do Araguaia possuía: 560.620.

Não há qualquer prova nos autos de que tenha havido grande modificação da população de bovinos na região entre os anos de 2013, quando o frigorífico​ ​foi​ ​adquirido​ ​pela​ ​ré,​ ​e​ ​2015,​ ​data​ ​do​ ​censo​ ​acima​ ​mencionado.

Além disso, a ré aponta os motivos pelos quais concentra o abate no município de Mozarlândia, mas não explica qual a razão de adquirir o frigorífico abatedouro em São Miguel do Araguaia se não existia qualquer intenção de colocá-lo​ ​em​ ​operação.

Aliás, salta aos olhos o fato de que é incontroverso nos autos que o frigorífico​ ​encontra-se​ ​fechado​ ​e​ ​inoperante.

A própria ré reconhece que “QUANDO DO AJUIZAMENTO DA PRESENTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA (JULHO/2017), NÃO HAVIA ATIVIDADE FRIGORÍFICA NO IMÓVEL EM QUESTÃO HÁ MAIS DE 13 (TREZE) ANOS” contestação​ ​fl.​ ​9.

Não justifica, todavia, por qual motivo adquiriu o imóvel há apenas quatro anos​ ​com​ ​a​ ​finalidade​ ​de​ ​mantê-lo​ ​fechado.

Inexplicável, inexoravelmente, é o valor despendido: R$ 20.000.000,00 (vinte​ ​milhões​ ​de​ ​reais).

Independentemente do tamanho da empresa, ainda que seja uma multinacional com faturamento bilionário, seriam necessários argumentos muito convincentes​ ​a​ ​demonstrar​ ​tal​ ​aquisição​ ​a​ ​seus​ ​acionistas.

Caso​ ​exista​ ​tal​ ​esclarecimento,​ ​nestes​ ​autos​ ​não​ ​há.

A ré limita-se a asseverar que “Quando da aquisição da área pela empresa-Ré pareceu um bom negócio. A destinação a ser dada ao mesmo está inerente​ ​ao​ ​direito​ ​de​ ​propriedade​ ​(usar,​ ​gozar​ ​e​ ​dispor)”.

O​ ​argumento​ ​genérico​ ​de​ ​que​ ​pareceu​ ​um​ ​bom​ ​negócio​ ​não​ ​se​ ​sustenta.

Processo: 5208437.98.2017.8.09.0143

Hodiernamente, há que se considerar o princípio da socialidade, isto é, os institutos jurídicos devem respeitar a sua função social. Daí que a propriedade encontra-se subordinada a sua função social. Isto significa dizer que a propriedade não pode atender apenas aos interesses individualistas, senão deve ser inserida em uma nova dimensionalidade ética que perpassa e adorna com novas cores as relações interprivadas, com vistas a atender também ao interesse​ ​da​ ​coletividade.

A função social deita raízes nos direitos sociais, coletivos e contrapõem-se aos direitos individuais. A função social integra, pois, o próprio direito de propriedade, juntamente com os demais poderes de uso, gozo, disposição e persecução do direito de propriedade (Mello, Cleyson de Moraes - Direito Civil: direito​ ​das​ ​coisas,​ ​Rio​ ​de​ ​Janeiro,​ ​2017,​ ​p.​ ​147).

Aplicável à espécie, também, o conceito do Abuso de Direito, insculpido no artigo 187 do Código Civil. Comentando tal dispositivo legal, Caio Mário da Silva Pereira​ ​leciona: O dispositivo oferece os extremos da caracterização do abuso do direito, assentando que o exercício dele há de ser limitado. O parâmetro instituído no Código está em que o sujeito de um direito subjetivo não o pode exercer em afronta à finalidade econômica ou social dele, ou contrariando o princípio da boa-​fé ou os bons costumes. Não importa, na caracterização do uso abusivo do direito, a deliberação de malfazer – animus nocendi. É suficiente determinar que, independentemente desta indagação subjetiva, abusa de seu direito aquele que leva o seu exercício ao extremo de convertê-​lo em prejuízo para outrem. O propósito de causar dano não requer apuração de intenção íntima do titular.

Induz-​se o abuso da circunstância de se servir dele o titular, excedendo manifestamente o seu fim econômico ou social, atentando contra a boa​-fé ou os bons costumes (Pereira, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil - v. I / Atual. Maria Celina Bodin de Moraes - 30 ed rev. atual. - Rio de Janeiro, Forense,​ ​p.​ ​537).

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Passo a analisar o seguinte, de que a destinação a ser dada é inerente ao direito​ ​de​ ​propriedade​ ​(usar,​ ​gozar​ ​e​ ​dispor).

Tal seria plenamente cabível na vigência do Código Civil de 1916, em que o direito à propriedade era absoluto, individualista, não cabendo a terceiros ou ao poder​ ​público​ ​questionar​ ​sua​ ​destinação.

Todavia, sob a égide da Constituição Federal de 1988 e do Código Civil de 2002, ambos vigentes quando da aquisição do imóvel pela ré, é inviável que qualquer pessoa, física ou jurídica, compre um bem para deixá-lo fechado, sem dar a​ ​destinação​ ​social​ ​que​ ​é​ ​de​ ​rigor.

A​ ​respeito,​ ​confira-se:

Processo: 5208437.98.2017.8.09.0143

Agravo Regimental em Apelação Cível. Ação anulatória de doação cumulada com cancelamento de registro de imóvel. Decisão monocrática que negou seguimento ao recurso apelatório, nos termos do artigo 557 do Código de Processo Civil. I - A decisão monocrática encontra-se de acordo com a jurisprudência dominante deste Tribunal e dos Tribunais Superiores, não cabendo a modificação do pronunciamento via recurso de agravo regimental, pois não foi comprovada a sua incorreção no plano material e, ainda, acertada a incidência da norma contida no artigo 557, caput, do CPC. II - Agravo retido.

Ausência de requerimento de apreciação nas contrarrazões da apelação. Não conhecimento. Não se conhece do agravo retido quando não requerida sua apreciação nas contrarrazões da apelação, conforme disposição do artigo 523, § 1º, do CPC. III - Doação. Inexecução do encargo. Direito do doador reaver o imóvel. Conforme disposto no artigo 555 do Código Civil, o donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação. Assim, o descumprimento do encargo estabelecido em Legislação Municipal de doação do imóvel público em relação à empresa donatária implica desconstituição do negócio jurídico e retorno do bem ao patrimônio público municipal. ​IV - Terceiro. Encargo não registrado na escritura do imóvel. Desconhecimento da origem do imóvel.

Não comprovação. Não há boa-fé na aquisição de imóvel em questão por terceiro, quando comprovado nos autos que a adquirente do imóvel doado sabia que se tratava de bem, cuja origem era pública, e que fora doado à empresa requerida com a finalidade de atender as necessidades sociais da municipalidade para implementação de distrito industrial. V - Ônus sucumbenciais. Manutenção. Tendo em vista que nada foi acolhido em seu apelo, mantendo-se incólume os termos da sentença, hei por bem manter os ônus sucumbenciais conforme fixado. VI - Ausência de Elemento Novo.

Desprovimento. Não trazendo a recorrente nenhum elemento novo capaz de sustentar a pleiteada reconsideração da decisão fustigada, deve ser desprovido o agravo regimental. Agravo Regimental conhecido e desprovido. Decisão monocrática mantida (sem grifo no original) - (TJGO, APELACAO CIVEL 51282-14.2007.8.09.0032, Rel. DES. CARLOS ALBERTO FRANÇA, 2A CAMARA​ ​CIVEL,​ ​julgado​ ​em​ ​18/11/2014,​ ​DJe​ ​1679​ ​de​ ​27/11/2014).

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Além disso, resta incontroverso o fato de que houve doação com encargo por​ ​parte​ ​da​ ​Prefeitura​ ​de​ ​São​ ​Miguel​ ​do​ ​Araguaia.

O encargo referia-se à construção e funcionamento do frigorífico. O Município, autorizado pela Câmara dos Vereadores, despendeu dinheiro público, advindo do orçamento municipal, com o exclusivo escopo de adquirir um​ ​terreno​ ​para​ ​doá-lo​ ​a​ ​pessoa​ ​jurídica​ ​de​ ​direito​ ​privado​ ​com​ ​tal​ ​finalidade.

Por motivos estranhos a estes autos, houve modificação da lei que estipulou a cláusula de reversão pouco tempo antes da primeira alienação do imóvel.​ ​Mas​ ​tal​ ​não​ ​é​ ​relevante​ ​na​ ​apreciação​ ​desta​ ​medida​ ​liminar.

A ré/adquirente não pode alegar desconhecimento do encargo, pois este consta​ ​da​ ​própria​ ​certidão​ ​de​ ​matrícula​ ​do​ ​imóvel.​ ​Nesse​ ​sentido:

Processo: 5208437.98.2017.8.09.0143

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Valor: R$ 1.000.000.000,00 | Classificador: Ação Civil Pública ( L.E. ) SÃO MIGUEL DO ARAGUAIA - VARA DAS FAZENDAS PÚBLICAS Usuário: Leandro Silva - Data: 11/09/2017 09:30:58

A doação compreendia dois encargos: construção e funcionamento do frigorífico. Ainda que não fosse exigível que este se desse por décadas a fio, é razoável que o fosse por período superior a 7 ou 8 anos, que foi o tempo aproximado​ ​de​ ​funcionamento​ ​até​ ​seu​ ​fechamento.

A doação com encargo é contrato bilateral, no qual ambas as partes assumem obrigações. A donatária não é obrigada a figurar em tal condição, mas, ao assumi-la,​ ​tem​ ​o​ ​dever​ ​de​ ​honrá-la.

Tal obrigação, a meu sentir, transmite-se aos adquirentes do bem, uma vez que registrada na própria matrícula do imóvel, não podendo quem quer que seja alegar desconhecimento, ainda mais uma pessoa jurídica de grande porte que nele aporta​ ​R$​ ​20.000.000,00​ ​(vinte​ ​milhões​ ​de​ ​reais).

Além disso, conforme acima reconhecido, houve parceria entre a ré e SMA Frigorífico, empresa que recebeu astronômicos R$ 4.000.000,00 (quatro milhões de reais) da fazenda pública Estadual a título de crédito de ICMS, incentivo​ ​fiscal​ ​destinado​ ​à​ ​reabertura​ ​do​ ​estabelecimento,​ ​que​ ​jamais​ ​se​ ​deu.

Resta claro que houve grande fomento estatal à iniciativa privada com a finalidade de construir, manter e operar um frigorífico abatedouro em São Miguel do Araguaia, que permaneceu ativo por poucos anos e, mesmo após​ ​fechado,​ ​continuou​ ​recebendo​ ​incentivo​ ​do​ ​Estado.

A ré comprou o imóvel sem qualquer intenção de colocá-lo em funcionamento. Sequer indica na sua contestação que teria interesse em abri-lo em data​ ​futura​ ​eventual.

Assevera que o momento econômico por qual o país passa não é propício à operação deste frigorífico. Mas não há sequer menção de que após o término da crise​ ​econômica​ ​haverá​ ​tal​ ​interesse.

Aliás, por ocasião da aquisição do empreendimento por parte da ré não havia grave crise econômica, que somente eclodiu após as eleições do ano seguinte.

Assim sendo, desnecessário, nesta fase processual, apreciar as alegações relativas às supostas infrações à ordem econômica praticadas pela ré, sendo que os fundamentos acima declinados são suficientes à verificação do primeiro​ ​requisito​ ​necessário​ ​à​ ​concessão​ ​da​ ​tutela​ ​de​ ​urgência.

O segundo requisito, perigo de dano (​periculum in mora​), também está presente.

O ato omissivo se perpetua no tempo e apenas sua interrupção pode sanar o problema relativo aos danos causados pelo não funcionamento do frigorífico abatedouro.

Incontroversa a alegação expendida na inicial de que o empreendimento geraria 300 empregos diretos e 1200 indiretos, o que provocaria grande evolução na economia​ ​local.

Processo: 5208437.98.2017.8.09.0143

Observo constar da inicial pedido de desconsideração da personalidade jurídica​ ​da​ ​ré.

Não verifico tenha a autora apontado a presença dos pressupostos legais contidos no artigo 50 do Código Civil, quais sejam, abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio da finalidade ou da confusão patrimonial, de modo que, neste momento processual, deixo de instaurar o incidente previsto nos artigos 133 e seguintes​ ​do​ ​Código​ ​de​ ​Processo​ ​Civil.

Passo a apreciar o pedido de denunciação da lide formulado em contestação.

De rigor seu desacolhimento, pois não se enquadra a presente demanda nas​ ​hipóteses​ ​contidas​ ​nos​ ​incisos​ ​do​ ​artigo​ ​125​ ​do​ ​Código​ ​de​ ​Processo​ ​Civil.

Além disso, é vedada a denunciação da lide com a finalidade exclusiva de se​ ​eximir​ ​de​ ​sua​ ​responsabilidade​ ​e​ ​transferi-la​ ​a​ ​terceiro.​ ​ ​A​ ​respeito: PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. SEGURO DE VIDA E INVALIDEZ. INTERMEDIADOR. LEGITIMIDADE PASSIVA. POSSIBILIDADE. DENUNCIAÇÃO. LIDE. ATRIBUIÇÃO. RESPONSABILIDADE. TERCEIRO. INADMISSIBILIDADE.​ ​IMPROVIMENTO. I. O agente que intermedeia a contratação de seguro é parte legítima para figurar na ação de cobrança da indenização securitária se, com seu comportamento,​ ​faz​ ​crer​ ​ao​ ​contratante​ ​que​ ​é​ ​responsável​ ​pela​ ​cobertura.

II. É inadmissível a denunciação da lide, com fundamento no artigo 70, III, do Código de Processo Civil, se busca o denunciante eximir-se da responsabilidade pelo​ ​fato​ ​e​ ​atribuí-la​ ​a​ ​terceiro.

III. Recurso especial conhecido em parte e desprovido. (REsp 1041037/DF, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 02/09/2010,​ ​DJe​ ​17/09/2010).

Ante o exposto, concedo tutela antecipada para determinar à ré JBS S/A que reabra, no prazo de 45 (quarenta e cinco) dias, o frigorífico

Tribunal de Justiça do Estado de Goiás Documento Assinado e Publicado Digitalmente em 10/09/2017 17:33:29 Assinado por RONNY ANDRE WACHTEL Validação pelo código: 106465507489, no endereço: https://projudi.tjgo.jus.br/PendenciaPublica

Valor: R$ 1.000.000.000,00 | Classificador: Ação Civil Pública ( L.E. ) SÃO MIGUEL DO ARAGUAIA - VARA DAS FAZENDAS PÚBLICAS Usuário: Leandro Silva - Data: 11/09/2017 09:30:58

Ademais, a desnecessidade de transportar centenas de milhares de bovinos até Mozarlândia para o abate reduziria a poluição atmosférica que o gás carbônico dos caminhões provoca e seria benéfica aos próprios animais, que deixariam​ ​de​ ​ter​ ​que​ ​percorrer​ ​180​ ​quilômetros​ ​para​ ​seu​ ​abate.

O custo do transporte entre São Miguel do Araguaia e Mozarlândia, caso não suportado pela ré, deixaria de ser transferido aos produtores e aos consumidores, o que contribuiria para aumentar os ganhos daqueles e reduzir os gastos​ ​destes.

Presentes, portanto, os pressupostos necessários à concessão da tutela de​ ​urgência.

Processo: 5208437.98.2017.8.09.0143

Intimem-se.

São​ ​Miguel​ ​do​ ​Araguaia,​ ​10​ ​de​ ​setembro​ ​de​ ​2017.

Ronny​ ​Andre​ ​Wachtel Juiz​ ​Substituto Documento​ ​assinado​ ​digitalmente

Tribunal de Justiça do Estado de Goiás Documento Assinado e Publicado Digitalmente em 10/09/2017 17:33:29 Assinado por RONNY ANDRE WACHTEL Validação pelo código: 106465507489, no endereço: https://projudi.tjgo.jus.br/PendenciaPublica

Valor: R$ 1.000.000.000,00 | Classificador: Ação Civil Pública ( L.E. ) SÃO MIGUEL DO ARAGUAIA - VARA DAS FAZENDAS PÚBLICAS Usuário: Leandro Silva - Data: 11/09/2017 09:30:58

abatedouro objeto da presente demanda, operando em sua plena capacidade, sob pena de multa de R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais) pelo descumprimento, a ser imputada à ré no 46º (quadragésimo sexto) dia, além de multa diária de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), a incidir a partir do 47º (quadragésimo sétimo dia). Todos os valores arrecadados a tal título serão revertidos​ ​em​ ​favor​ ​do​ ​fundo​ ​previsto​ ​no​ ​artigo​ ​13​ ​da​ ​Lei​ ​7.347/85.