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À luz da matriz filosófica que Kierkgaard (1813-1855) delineou a partir de uma postura deliberadamente existencialista, podemos afirmar que, na realidade, escolher uma coisa é, obrigatoriamente, renunciar a outra. No fim de contas, para o autor, esse é, em si mesmo, um ato que exprime a liberdade de que dispomos enquanto seres humanos, atuando no quadro de um estado ético – de realização de si mesmo – que, situado a meio caminho entre dois outros – o estado estético e o estado religioso – com eles se conjuga, compondo a estrutura tripartida da existência
O paradoxo em que imerge a questão relativa à escolha coloca-nos face a uma interrogação: de que modo somos condicionados de forma a optar por algo, isto é, quais as razões que explicam que, nesse processo de afirmação da nossa existência real e concreta, consideremos que certas coisas possam ser dispensadas em favor de outras?
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Por outro lado, a mesma questão lança-nos para outro debate, nomeadamente o de saber em que medida a nossa escolha interfere com as restantes opções em jogo e/ou se não está também condicionada por estas, à partida.
Ao invés de ditar uma qualquer sentença, concentremo-nos na História, a qual, como se sabe, pode ser um valioso guia para a compreensão de fenómenos de variadíssima ordem, como os económicos.
Em pleno século XIX, numa altura em que a Inglaterra vedava a importação de cereais através de um conjunto de diplomas designado por Corn Laws (em vigor entre 1815 e 1846), o economista David Ricardo (1772-1823) constatou, ao contrário dos restantes analistas da época, que eram os preços crescentes dos cereais, devido a uma procura em alta, que explicavam a subida do valor das rendas das terras. De facto, face ao aumento da população e à consequente necessidade de obter resultados produtivos mais expressivos à custa da exploração de terras menos férteis, os produtores das terras mais férteis tinham a oportunidade de valorizar as suas propriedades (dada a impossibilidade do aumento da oferta, porquanto a terra é um fator de produção tendencialmente finito), reclamando para si aquilo que Ricardo acabaria por designar na sua Teoria (1817) de renda diferencial (sendo o diferencial aquilo que era introduzido de cada vez que as necessidades da população reclamavam um aumento da produção)
Ora, suponha-se que (pela via dos resultados do processo produtivo) uma terra A produz 150 alqueires, uma terra B produz 125 alqueires e finalmente uma terra C produz 100 alqueires Podemos verificar que o proprietário de A não está em condições de receber uma renda diferencial quando não há outra terra a ser explorada. Ao ser explorada uma segunda terra, cuja produção se cifra em menos 25 alqueires do que a sua, este passa a poder pedir uma renda de 25 Já no momento em que se passe a explorar uma terceira terra, com uma produção de 100 alqueires, a renda que o proprietário de A passa a poder reclamar é de 50 – a diferença entre a capacidade produtiva da sua e da terra C Chega-se, assim, à explicação para o aumento crescente do preço das rendas.
Lembrando a questão mencionada no início do nosso texto, o facto é que a teoria exposta é igualmente pertinente quando, ao invés de se procurar apenas a razão pela qual um proprietário de uma terra fértil poderia reclamar para si um diferencial, situação analisada quer olhemos a uma explicação pela via dos custos (crescentes) ou pela via dos resultados produtivos (decrescentes), olhamos a um outro elemento que se apresenta como fundamental e assaz original. A saber, a situação de indiferença que se geraria no momento de se fazer uma escolha Assim, pensando no exemplo do dono da terra B, este poderia arrendar a terra ao proprietário de A e produzir 150 alqueires – pagando 25 de renda; ou, naturalmente, poderia explorar a sua própria terra, obtendo um resultado de 125 alqueires. Em qualquer dos casos, ser-lhe-ia indiferente optar por uma ou outra via, pois o resultado final seria idêntico. Afinal de contas, e contrariando inevitavelmente Kierkgaard, escolher não implicaria, neste caso, renunciar a uma coisa, mas confirmar que o peso que Sísifo iria transportar seria irremediavelmente idêntico quer enveredasse por uma ou outra via A visão macroeconómica que, como sabemos,encontra raízes não só no pensamento dos fisiocratas, mas também no pensamento mercantilista, na Teoria Quantitativa da Moeda, na Lei de Say, nas teorias do ciclo de negócios, no reequilíbrio automático da balança de pagamentos, e se densifica posteriormente (já em pleno século XX) com os grandes agregados Keynesianos da despesa, da produção e do rendimento, autoriza-nos a ser ainda mais holísticos, generalizando aquilo que são pontos de vista puramente económicos a outras realidades ainda mais difíceis de auscultar do que a própria economia; essa, pelo menos, terá desenvolvido os seus próprios instrumentos de medida, ainda que imperfeitos (veja-se o debate em torno do “Beyond GDP”)
As circunstâncias deste encontro músico-legal não serão relevantes para o exercício de abstração que se pretende realizar, pois trata-se de pensar até que ponto a sociedade musical europeia à época de David Ricardo [pense-se na chamada “Geração de 1810” e em autores como Mendelssohn (1809-1847), Schumann (1810-1856), Chopin (1810-1849) e Liszt (1811-1886), inseridos no movimento do Romantismo] poderia julgar da utilidade da aplicação da respetiva teoria económica a um universo tão particular.
Partindo de coordenadas distintas das que conduziram a nossa análise puramente económica, poderíamos desde logo assumir que, neste contexto, o fator de produção terra corresponde não à terra em si, mas antes à genialidade de cada compositor Tal como a terra, a genialidade é tendencialmente finita e não sem quanto concentrada no tempo e no espaço (relembrando a mencionada “Geração de 1810”). Ainda assim, consideremos para o efeito três grandes mentes musicais dessa era, classificando-as por ordem decrescente de genialidade de forma assumidamente subjetiva, mas objetivamente selecionadas em linha com a forma musical que servirá de objeto à nossa análise (certamente, seremos julgados em sede própria por tamanho atrevimento) - Chopin, Schumann e Liszt
Desconsiderando os eventuais problemas legais que pudessem advir da utilização, ainda que a título de pagamento, de material musical pertencente a outro que não o próprio compositor que assina a obra, afastaremos esse problema do horizonte da análise - uma espécie híbrida da sobejamente conhecida condição ceteris paribus.
Suponhamos que Chopin cria uma sonata para piano (a primeira de duas foi realmente composta em 1838) numa altura em que esta forma musical ainda não está suficientemente implantada no meio musical, não sendo por isso objeto de uma procura por parte dos ouvintes que justifique que haja outros compositores a introduzir-se neste domínio da composição. Neste caso, a genialidade do compositor, por um lado, assim como as necessidades existentes, por outro, não justificam que outros compositores, menos geniais, se imiscuam na produção de obras desta índole
No entanto, a verdade é que o sucesso que vai premiando as atuações de Chopin – arrecadando 150 notas por concerto – acaba por se repercutir em termos da aceitação desta forma musical; de tal forma que o público reclama por mais sonatas É, pois, chegado o momento de entrar outro protagonista em jogo – Schumann. Este, menos genial, tem a possibilidade de contar exclusivamente com a qualidade dos seus motivos composicionais e produzir uma obra que lhe dará 125 notas por concerto ou, recorrendo aos materiais composicionais de Chopin, produzir uma sonata que lhe dará seguramente direito a 150 notas, mas das quais terá de abdicar 25 por conta da renda diferencial que o primeiro está agora em condições de reclamar Aqui está a mencionada situação de indiferença que analisámos aquando de uma visão em torno do fator de produção terra.
Finalmente, os dois compositores podem levar o sucesso da forma musical a patamares que justifiquem, em função do aumento da procura, o recurso a um terceiro (menos) génio –Liszt. Nesse caso, o húngaro sabe que pela sua própria pena poderá criar uma sonata que lhe dará seguramente 100 notas por concerto Porém, a questão é saber se, face ao diferencial gerado na relação com cada um dos outros (mais) génios, está disposto a produzir com a qualidade de Chopin, entregando-lhe, todavia, 50, ou mesmo se não se importaria de pagar 25 notas a Schumann (certamente radiante com esta possibilidade de cobrar uma renda) em troca das suas ideias. Em qualquer dos casos, chegamos uma vez mais à situação de indiferença identificada por Ricardo
Findo este processo, permitimo-nos indagar acerca do facto de o próprio Ricardo, após receber a indicação de que se estaria a aplicar a Teoria por si criada sem o seu consentimento, viesse, ele próprio, reclamar uma renda (não diferencial) enquanto manager dos três geniais artistas…
Este raciocínio de especulação poderá, sem dúvida alguma, apontar para diferentes conclusões Talvez por isso, é relevante fazê-lo desde logo através desta versão iniciática, encorajando assim a possibilidade futura de o estender a domínios ainda mais inusitados. Seria a única hipótese de, também nós, termos a ténue esperança de estar em condições de reclamar uma renda diferencial
De facto, fica patente a ideia de que todas as vias são admissíveis quando nos atrevemos a problematizar determinada questão envolvendo diferentes áreas científicas. Justamente pelo facto de estas comungarem de uma matriz comum - a sua natureza social e humana, poderemos sempre envolver a pesquisa ousando um exercício de interpelação pelo qual questionamos umas e outra acerca das suas próprias atividades escolhas
Ao Direito, no âmbito de de jure condendo, caberá sempre a tarefa de enquadrar, sob um ponto de vista legal, as posições jurídicas nascidas ao abrigo desta e de outras problematizações
José Miguel Amaral, 3º Ano da Licenciatura em Direito.