
7 minute read
|HeForShe Coimbra
A situação das pessoas transgénero no Sistema Prisional português
Começando por dar a conhecer o Movimento HeForShe Coimbra: O HeForShe é um movimento solidário internacional que foi criado pela ONU Mulheres em 2014, com o objetivo de incentivar aos homens e meninos a que aliancem ao movimento feminista e à emancipação das mulheres e meninas. Hoje, tem como foco a luta incessante pela igualdade de género, numa perspetiva interseccional, consciencializando a população para a sua importância, bem como relacionando-a com outros temas dos Direitos Humanos. Assim, o HeForShe Coimbra corresponde ao núcleo regional do movimento com enfoque na “Cidade dos Estudantes” e um pouco por toda a zona centro, contando já com uma série de ações de sensibilização, debates e formações
Advertisement
Desde já, importa desconstruir a ideia tradicional de igualdade de género. Seguindo-se por uma perspetiva interseccional e acompanhando as evoluções sociais, o HeForShe considera a igualdade de género no seu conceito amplo, ou seja, a igualdade entre todos, incluindo aqui as mulheres e homens cisgénero1, pessoas transgénero2 e não-binárias3 e não apenas considerando a perspetiva clássica de igualdade género entre mulheres e homens.
No passado dia 28 de novembro de 2022, o HeForShe Coimbra realizou um debate no sentido de compreender a situação das pessoas transgénero no sistema prisional português. Este contou com especialistas de 3 áreas: Dr. Eduardo Figueiredo, mestre em Direito Constitucional e com pós-graduação em Direitos Humanos, sendo investigador no Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; Dra Maria Jorge Ferro, psicóloga clínica que já trabalhou junto de reclusos na Penitenciária de Coimbra; Dr. Hermínio Barradas, Presidente da Associação Sindical de Chefias do Corpo de Chefias da Guarda Prisional
Com o contributo destes especialistas, abordámos a temática em 3 perspetivas diferentes Em primeiro lugar, contámos com a intervenção do Dr. Eduardo Figueiredo que nos apresentou o atual elenco normativo que protege a autodeterminação da identidade de género4, bem como o regime jurídico aplicável às pessoas transgénero nos estabelecimentos prisionais em Portugal. Seguiu-se a Dr. Maria Jorge a explicar o estado de vulnerabilidade psicológica em que muitas pessoas transgénero se encontram e que se agrava significativamente quando não é respeitada a sua identidade de género, potenciando disforia de género5, entre outras condições Terminaram-se as intervenções iniciais com o contributo do Dr. Hermínio Barradas que, enquanto Chefia da Guarda Prisional, veio dar a conhecer a verdadeira realidade das pessoas transgénero dentro do sistema prisional, a aplicabilidade da lei que as deveria proteger e os desafios que os profissionais das forças de segurança encontram face à inclusão e tratamentos adequados destas pessoas. Aproveitando as conclusões retiradas do evento supramencionado passarei, de forma breve e expositiva, a abordar a situação das pessoas transgénero no sistema prisional português Portugal corresponde a um dos países com mais avanços legais relativamente a esta temática, mas, ainda assim, o ordenamento jurídico mostra-se ineficaz e insuficiente em algumas áreas
A 7 de agosto de 2018 (Lei n.º 38/2018) estabeleceu-se no ordenamento jurídico português o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género e à proteção das características sexuais de cada pessoa Esta lei veio agilizar o processo de alteração de género e nome próprio no registo civil, mediante requerimento, sendo que anteriormente era exigida uma avaliação por uma equipa clínica multidisciplinar (hoje, para intervenções cirúrgicas, ainda se exige o aval da Ordem dos Médicos) Este diploma inclui a proibição de discriminação e o reconhecimento jurídico da identidade de género, bem como garantias e medidas de proteção em diversos âmbitos. Previu-se o desenvolvimento de medidas de prevenção e combate à discriminação, mecanismos de deteção e intervenção em situações de risco, condições adequadas de proteção e formação para docentes de demais profissionais do sistema educativo em questões relacionadas com identidade de género, expressão de género e características sexuais. Embora nesta lei se estabeleça que cada pessoa deve ser respeitada e tratada de acordo com a sua identidade de género (independentemente das suas caraterísticas sexuais primárias ou secundárias) percebemos neste debate, através da exposição do Dr. Hermínio Barradas, que isto nem sempre acontece, havendo conhecimento de que existem pessoas transgénero que estão inseridas em estabelecimentos prisionais opostos ao género com que se identificam.
Quanto a isto, para além de não ser respeitado o direito da autodeterminação de género destas pessoas, a sua condição física e mental torna-se vulnerável, aumentando a probabilidade de estarem sujeitas a violência física, verbal e sexual. A inserção das pessoas transgénero no sistema prisional contradizendo a sua identidade de género, não só leva a que as suas vidas estejam em risco, bem como aumenta a possibilidade de que estas venham a desenvolver perturbação mentais, nomeadamente, de disforia de género, ansiedade, depressão, entre outras.
A par disto, também são vários os desafios que se colocam à plena aplicabilidade do direito à autodeterminação de género. Podemos, em primeiro lugar, identificar um obstáculo relativamente à revista pessoal por desnudamento dos reclusos, na medida em que, frequentemente os profissionais responsáveis se recusam a realizar esta função quando se trate de pessoas transgénero que não tenham realizado as cirurgias de autodeterminação de género Esta recusa da revista por desnudamento está associada à discriminação das pessoas transgénero, em especial, das que decidem não realizar as cirurgias de afirmação de género, sendo que, mais facilmente são respeitadas as pessoas que se apresentam de uma forma mais normativa (com todas as cirurgias de afirmação realizadas e expressando-se de acordo com os estereótipos de género impostos socialmente).
O desafio mais relevante identificado pelo Chefia Hermínio Barradas foi a falta de informação dos profissionais do sistema prisional sobre a temática, sendo que no momento inicial de formação à sua profissão esta perspetiva não é abordada, nem os trabalhadores recebem formações ao longo da carreira que acompanhem a evolução social. O Dr. Hermínio referiu que a maioria do corpo da guarda prisional se encontra na faixa etária dos 45-65 anos, sem nunca ter algum tipo de formação sobre temáticas de género, resultando num dos maiores entraves à inclusão das pessoas transgénero no sistema e plena aplicabilidade do regime jurídico
Uma vez que a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais apresenta os dados acerca dos reclusos descorando a sua identidade de género, o Presidente da Associação Sindical de Chefias do Corpo de Chefias da Guarda Prisional veio esclarecer que são poucas as pessoas transgénero no sistema prisional (são consideradas as pessoas que alteraram a sua identidade de género nos seus documentos legais), mas isso não significa que se deva descorar a inclusão destas numa das áreas fundamental de organização social cujo o objetivo deveria ser a reabilitação e reinserção social, a par de todas as outras esferas da sociedade
No art.12º da Lei n.º 38/2018 estabeleceu-se que o Estado deve garantir adoção de medidas no sistema educativo que promovam o exercício do direito à autodeterminação de identidade e expressão de género e à proteção das características sexuais. No entanto, não se implementou medidas educativas no sistema escolar obrigatório com o objetivo de educar os mais jovens para a temática Além disto, tanto no ensino obrigatório, como no ensino superior há a falta de formação dos docentes e não docentes, não permitindo uma verdadeira prevenção da discriminação e inclusão das pessoas transgénero como estabeleceu o texto da lei
Ademais, é de notar que o facto de os sistemas prisionais estarem estruturados com base no sexo biológico (e não na identidade de género), aumenta o índice de discriminação e violência contra as pessoas transgénero, bem como invisibiliza/descora a existência das pessoas não-binárias e pessoas intersexo6, que por falta de regulamentação legal, são incluídas em prisões conforme o seu sexo biológico definido à nascença e/ou colocadas em isolamento Além disto, apenas as pessoas com nacionalidade portuguesa são abrangidas pela Lei n.º 38/2018, pelo que as pessoas transgénero estrangeiras e residentes em Portugal não serão legalmente tratadas consoante a sua identidade de género.
O art 2º/ 1 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade diz-nos que “A execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade visa a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a proteção de bens jurídicos e a defesa da sociedade.”; como poderá o sistema prisional promover uma verdadeira reinserção do agente quando a sua identidade de género não é respeitada?
Relembramos que o HeForShe considera a educação dos mais jovens como um dos pilares fundamentais para alcançar a igualdade de género. Deste modo, o HeForShe Coimbra vem apelar à consciencialização para as temáticas de desigualdade de género e incentivar à educação de todos, desde o ensino básico obrigatório, passando pelo ensino superior, até à formação durante a carreira. Todos os dias e em todas as profissões estão presentes as relações interpessoais, pelo que os Direitos Humanos e as problemáticas sociais devem ser transversais às diversas áreas de ensino e de atividade.
Legendas
1 - Pessoa cuja identidade de género corresponde ao sexo lhe foi atribuído à nascença;
2 - Pessoa cuja identidade de género não corresponde ao sexo que lhe foi atribuído à nascença;
3 - Pessoas cuja identidade de género não corresponde ao sexo que lhe foi atribuído à nascença, nem se identifica com nenhum dos géneros binários; não se identificam exclusivamente com um género;
4 - Profunda experiência de género interna e individual, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído à nascença e que pode ou não estar associada à expressão de género da pessoa;
5 - Sentimento de sofrimento, mal-estar e desconforto psicológico persistente que resulta da incongruência entre a identidade de género da pessoa e o seu sexo biológico, as suas características primárias e secundárias e o papel de género que lhe é socialmente expectável (a transexualidade e a disforia de género nem sempre coexistem);

6 - Pessoas que nascem com características sexuais (incluindo os órgãos e glândulas sexuais e o padrão cromossómico) que não se enquadram nas noções binárias tradicionais de corpo masculino ou feminino. Em certos casos, as características de uma pessoa intersexo são visíveis à nascença, no entanto, noutras não se manifestam até à puberdade Por vezes pode nem sequer haver aparência física, mas sim apenas hormonal
Nota de relevo acerca de uma reforma prisional, com reforço na formação contínua dos profissionais:
O relatório “Para uma reforma do sistema prisional O caso da aplicação do Estatuto do Corpo da Guarda Prisional” (2021) de um estudo realizado no âmbito do Observatório Permanente da Justiça do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, por solicitação da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. O objeto central do estudo consistiu, na análise das condições socioprofissionais e da aplicação do Estatuto do Corpo da Guarda Prisional, considerando a conflitualidade sociolaboral subjacente às reivindicações daquele grupo profissional As problemáticas em análise incluem questões que carecem, por um lado, de uma caracterização apenas possível através das abordagens metodológicas quantitativas, por permitirem retratos mais amplos e representativos alicerçados em informações e variáveis analisadas mediante procedimentos estatísticos e, por outro lado, de abordagens qualitativas que se afiguram particularmente adequadas à compreensão da realidade sociojurídica em estudo