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LIGA PIEUC
'O Abuso do Direito na Dupla Proteção Intelectual das Tatuagens'
Pela Fundadora da Liga, Alice Scalfone.
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Em Portugal, as tatuagens são legalmente reconhecidas como obras passíveis de proteção intelectual, como previsto pelo artigo 2°, n ° 1 do Decreto-Lei n ° 63/85, de 14 de março (Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos) Além de ser uma forma popular de adorno ou mesmo de manifestação religiosa, existem tatuagens que são mundialmente conhecidas e, automaticamente, associadas a pessoas públicas de grande alcance midiático, como a tatuagem “Piauí” de Whindersson Nunes, comediante brasileiro, feita em seu abdômen como uma homenagem ao local onde nasceu e, também, como paródia à tatuagem “California” do cantor Adam Levine, vocalista da banda Maroon 5.
Para que tenhamos uma tatuagem devidamente protegida por direitos autorais, devemos perceber que a obra em questão deve apresentar uma série de características, dentre elas, a originalidade. No caso das tatuagens, este é um requisito particularmente difícil de ser verificado, especialmente com a disseminação de imagens em plataformas como o Instagram e o Pinterest. Contudo, esta característica, que é comum em diversos ordenamentos jurídicos, já foi confirmada como imprescindível em diversos casos internacionais. Trazemos à luz o caso da primeira arte indígena licenciada para realização de tatuagens pela The Australian Copyright Agency, de autoria de Chris Black, também conhecido como Kojak Kojak é responsável pela criação de diversas pinturas corporais indígenas chamadas jilamara, que se caracterizam por suas composições de cores e pelo importante background cultural. Com este licenciamento das tatuagens de Chris Black, o artista provou que seus desenhos não configuravam uma cópia substancial de outro trabalho artístico, sendo então uma criação intelectual protegida pela Lei de Direito de Autor australiana.
Nos últimos anos, a levantou-se muito a questão sobre o regime de proteção das tatuagens – já que não estão expressamente previstas em nossas Leis referentes às diversas modalidades de proteção intelectual – e sobre a determinação de seu autor ou titular de direitos Em 2005, na Inglaterra, David e Victoria Beckham foram alvos de um possível processo de teor intelectual após uma ação de marketing que continha a reprodução de suas tatuagens. Na época, o tatuador da família entendia ser o Autor das obras – conforme os artigos 11º e 27º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos, o a autor é o “criador intelectual da obra” –, tendo em vista que não só ele foi o profissional que realizou as tatuagens, mas também foi quem criou os desenhos ou, em alguns casos, realizou importantes alterações no que foi trazido como inspiração pelo casal Beckham.
Discutiu-se muito se este tatuador poderia ser considerado sozinho o Autor da obra ou, nos casos em que realizou alterações nos desenhos trazidos por David e Victoria Beckham, se poderia ser considerado coautor (em nossa legislação, os artigos 16º e 17º do Decreto-Lei n ° 63/85, de 14 de março sobre Obra feita em colaboração assumem especial relevo nesta temática)
Caso considerado autor ou co-autor, seu consentimento seria especialmente relevante para a publicação desta ação de marketing realizada pelo casal.
Contudo, o que queremos discutir neste artigo de opinião não é apenas o regime das tatuagens enquanto criações artísticas, consequentemente, protegidas por Direitos de Autor, mas também quando estas criações se apresentam também como marcas, sendo possível protegê-las a partir de um outro regime completamente diferente do primeiro. Faz-se necessário, portanto, esclarecer que para ser registrada enquanto marca em Portugal, o signo deve: não ser igual ou semelhante a marca anteriormente registrada; permitir distinguir, de modo claro e preciso, o produto ou serviço objeto de proteção; e não existir qualquer exceção que impeça o registro desta marca, conforme os artigos 208º e 209º o Decreto-Lei nº 110/2018, de 10 de dezembro, que transpôs as Diretivas (EU) 2015/2435 e (EU) 2016/943. Aqui, trazemos relevo para os conflitos no seio da proteção intelectual das tatuagens, mas pode acontecer no âmbito de diversas obras mencionadas no rol do art 2º, nº 1, do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos e nos artigos subsequentes
Um grande exemplo real internacionalmente reconhecido caso da tatuagem de Mike Tyson O desenho tribal de Mike Tyson foi símbolo do filme “The Hangover 2” por conta da reprodução de design e posição em um dos personagens da trama, interpretado pelo ator Ed Helms. O desenho da tatuagem havia sido registrado pelo tatuador de Tyson, Victor Whitmill, e foi utilizado pela empresa Warner Bros, sem a sua autorização. A tatuagem foi associada ao filme de tal forma que os produtos de merchandising continham tatuagens temporárias exatamente como a de Mike Tyson, que fez participação no primeiro filme da Trilogia. Mais uma vez, o desenho pessoal de uma pessoa pública foi assimilado pelo público como uma marca distintiva do produto, ou seja, da trilogia de filmes The Hangover Com o avanço nos estudos sobre propriedade intelectual e o entendimento amplo sobre as obras por ele protegidas, por vezes surgem novas discussões que atualizam o modo de tratamento de cada objeto No caso apresentado, há um conflito entre a tatuagem de pessoas públicas como obra artística protegida por direitos de autor e, também, sua proteção como marca. Ambas as modalidades possuem regimes diferentes e com aspetos as vezes incompatíveis entre si, como no caso da obrigatoriedade de registro para marcas e sua dispensa no caso dos direitos de autor.
Apesar da possibilidade de optar pela dupla proteção, a discussão doutrinal ainda não encontrou assento As doutrinas europeias encontram concordância no que se refere à cumulação de regimes (KILMAR, 2014, p. 14) e não acreditam na interferência de seu caráter como obra artística em sua esfera como aplicação industrial ou comercial. Sob outra perspetiva, há uma corrente que acredita na inconstitucionalidade da dupla tutela – seria possível o tutor beneficiar-se indevidamente dos regimes solicitados para a proteção, como o alongamento do tempo de proteção de uma obra (KILMAR, 2014, p 1516).
Sem embargo da relativamente limitada jurisprudência em relação a essa dicotomia abuso de direito e dupla proteção, é possível verificar aspetos notáveis que enquadram obras artísticas de tatuagem como, também, uma marca. A presença do seu reconhecimento social é um requisito imprescindível para que aquela obra que, a princípio, era acoberta por somente uma proteção intelectual, seja então posteriormente reconhecida por outras modalidades de proteção. Seja a tatuagem de Mike Tyson ou as tatuagens de David e Victoria Beckham, esses são trabalhos que inicialmente não tinham qualquer a intenção de popularização como marca; porém, com o recognição atribuída, preenchem todos os requisitos para essa segunda proteção.
Consoante às teorias europeias, ainda que com ressalvas para a possibilidade da máfé de certos autores, é necessário reconhecer a dupla proteção dessas obras, principalmente quando é um processo que se dá de forma natural e impulsionada pela coletividade. A intersecção entre esses tipos de tutela são cada vez mais comuns e sua recusa é infrutífera