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ORWELL E SUA VIAGEM AOS SEIOS DE DUÍLIA

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Roupa nova

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Maria retorna à cidade mineira de Pouso Triste, em busca da mulher que um dia o encantara para sempre:

A procissão subia a ladeira, o canto místico perdia-se no céu de estrelas. De repente, o séquito parou para que as virgens avançassem, e na penumbra de uma árvore, ela dá com o olhar dele fixo em seu colo, parece que teve pena e, com simplicidade, abrindo a blusa, lhe disse: — Quer ver? – Ele quase morre de êxtase. Pálidos ambos, ela ainda repete: — Quer ver mais? – E mostra-lhe o outro seio branco, branco... E fechou calmamente a blusa. E prosseguiu cantando...

É assustador o que 24 anos podem fazer a uma mulher. Vinte e quatro anos apenas, e a moça que a gente conheceu, com a pele alva como leite, a boca vermelha e o cabelo quase dourado, se transformara nessa bruaca de ombros largos, tropeçando com seus sapatos de saltos desgastados. (...) Coisas horrendas haviam acontecido com seus quadris. Quanto à cintura, sumira. Ela não passava de um cilindro irregular, como uma saca de farinha.

Poucas listas de não agraciados com um prêmio reúnem tantos escritores que o mereciam quanto a dos que não ganharam o Nobel de Literatura: Tolstói, Kafka, Proust, Virginia Woolf, James Joyce, Drummond, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Borges, Cortázar e George Orwell, entre muitos outros. Nascido em 1903, o autor dos clássicos A revolução dos bichos e 1984 não chegou aos 47 anos, o suficiente para escrever livros que marcaram o século XX, como Na pior em Paris e Londres, Dias na Birmânia e o que acabo de ler, Um pouco de ar, por favor!

Entre tantas qualidades de Orwell, impressiona sua maestria na construção de personagens e ambientes, com o humor agudo e leve que lhe é próprio. Veja-se Porteous, por exemplo, professor de escola pública aposentado:

É um solteirão, claro. Não dá para imaginar um tipo assim casado. Mora sozinho, com seus livros e o cachimbo e tem uma mulher que limpa sua casa. É um sujeito letrado, entende de grego e latim, poesias e coisas do gênero. (...) Ele acha que o mundo moderno – e, do seu ponto de vista, o mundo moderno abrange os últimos dois mil anos – simplesmente não deveria ter acontecido.

A descrição do lugar em que vive é cinematográfica, pela riqueza de elementos vistos como se por uma câmera:

Ele me fez sentar na velha poltrona de couro ao lado da lareira e me serviu uísque com água. Nunca vi sua sala sem que estivesse envolta numa nuvem de fumaça de cachimbo. O teto é quase preto. É um aposento pequeno e, salvo pela porta, pela janela e pelo espaço aci- ma da lareira, as paredes são cheias de livros do teto ao chão. Sobre a lareira está tudo que seria de se esperar. Uma fileira de velhos cachimbos de madeira, todos imundos, algumas moedas gregas de prata, um pote de tabaco com o emblema da sua universidade gravado, e um pequeno abajur de barro que segundo ele foi achado numa escavação de alguma montanha na Sicília.

E, novamente, o humor, alusivo à Vitória de Samotrácia: “Na parede acima, há fotos de estátuas gregas, sendo que a do meio, grande, mostra uma mulher com asas e sem cabeça que parece estar prestes a pegar um ônibus. Lembro como Porteous ficou chocado na primeira vez que a vi, quando, na minha ignorância, lhe perguntei por que não lhe haviam posto uma cabeça”.

O narrador é George Bowling, que vive entre o passado de combatente na Primeira Grande Guerra e o medo de uma nova conflagração em futuro próximo, prenunciada pelo voo dos bombardeiros britânicos Avro Lancaster, a cruzar os céus da Inglaterra. Georgie leva o tempo a recordar as pescarias da infância em Lower Binfield, e dá um depoimento sobre livros que vale pelo romance inteiro:

Eu devia ter 10 ou 11 anos quando comecei a ler – por vontade própria, quero dizer. Nessa idade é como descobrir um mundo novo. Leio bastante até hoje. Na verdade, é rara a semana em que não termine um ou dois romances. Sou o que se pode chamar de típico rato de biblioteca (...) Em 1918, aos 25 anos, embarquei numa espécie de orgia em relação à leitura, que alterou de certa forma meu jeito de ver a vida. Nada, porém, se compara àqueles primeiros anos em que de repente se descobre que é possível abrir um semanário barato e mergulhar de cabeça em covis de ladrões e alcovas de ópio chinesas, em ilhas polinésias e nas florestas do Brasil.

Um dia, algumas libras a mais no bolso lhe dão a ideia de voltar à terra em que fora menino, para emergir do cotidiano pobre em que sente sufocar-se, coming up for air, título do romance em inglês, “como as grandes tartarugas marinhas que vêm à tona nadando, põem o nariz de fora e enchem os pulmões com uma grande talagada antes de afundarem de novo entre as algas e os polvos”. Antes vendedor de clipes e de fitas para máquina de escrever, agora empregado em uma administradora de seguros, parece empreender a “Viagem aos seios de Duília”, conto primoroso de Aníbal Machado. Nela, o aposentado José dIreçÃO geral: César Santos dIretOr de redaçÃO: César Santos gereNte adMINIStratIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: Alvanir Carlos

Encontra uma velha, viúva, dentes cariados, aparentava mais do que os 60 anos que tinha, professora da escola em que a chamavam Dona Dudu: “José Maria pousou o olhar no colo murcho, local do memorável acontecimento. Aquilo que ali estava poderia ser a mãe de Duília, da Duília que ele trazia na memória, jamais a própria.”

Assim também Georgie, em Um pouco de ar, por favor! Chega a Lower Binfield e encontra Elsie, com quem fora para a cama, na lojinha de doces e tabacos de que era dona com o marido:

Nas duas histórias, a visão machista, preconceituosa com que ontem, e hoje ainda, tantos homens condenam as mulheres por deixar de ser jovens. José Maria tem a pele do pescoço e as mãos enrugadas; George é gordo, a metade superior do corpo em forma de barril – e reclamam do preço que o tempo cobrara a Duília e a Elsie... A ambos falta um espelho em que pudessem mirar os escombros da própria ruína. Tem razão o narrador do romance de Orwell:

Chega dessa coisa de volta ao passado. De que adianta tentar revisitar os cenários da infância? Eles não existem. Um pouco de ar, por favor! Mas não existe ar nenhum. O lixão dentro do qual estamos chega até a estratosfera.

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