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Cantar pela Liberdade
Por Victoria Nogueira
Os manifestantes gritavam por democracia em frente à Universidade de Direito da Universidade de São Paulo, no Largo de São Francisco, centro da capital paulista. Era agosto de 2022. Jovens, estudantes ou não, dividiam o espaço com trabalhadores e idosos que, imersos em seus círculos de amizade, retomavam memórias da juventude – muitas ligadas ao período da ditadura militar. No local, em 1977, brasileiros foram convocados para a leitura da Carta pela Democracia, conduzida pelo professor Goffredo Telles Júnior.
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Desta vez, eu também estava lá, dispersa na multidão. A chuva tomou conta daquela manhã de quinta-feira, mas não o suficiente para roubar dos indignados o desejo incessante por mudança. Ao contrário, minutos antes do início da leitura do documento, o Sol despontou sobre a torre dos prédios e, ali mesmo no aglomerado de gente, ouvi um rapaz dizer em alto e bom som: “Olha só como Deus é maravilhoso!”
Na sacada da faculdade centenária, representantes ligados aos movimentos de luta discursavam um por um, pedindo respeito às urnas eletrônicas. Era um momento que, a exemplo do passado obscuro, adotava narrativas autoritárias e antidemocráticas. Uma das lideranças que engatou um dos discursos também lembrou da importância da cultura brasileira, alvo de desmontes governamentais. Cultura esta que, há exatos 55 anos, abriu as cortinas do palco para o jovem Caetano Veloso no Festival de Música Popular, realizado em 1967.
Natural de Santo Amaro, na Bahia, o filho da Dona Canô e do Seu José Teles Veloso fez, em 1967, o Teatro Record cantarolar com euforia, e em pleno regime de opressão, a canção “Alegria, Alegria”. Aos 25 anos, ele já esboçava o sorriso farto, até então acompanhado dos cabelos longos, castanhos escuros e encaracolados.
Em 2022, muitos dos jovens presentes no Largo de São Francisco deviam ter a mesma idade de Caetano no ano do festival. De fato, pode ser que uma parcela dos novos brasileiros não esteja sintonizada em totalidade à obra do baiano. Ainda assim, um desejo em comum é capaz de unir ambas as gerações, seja do presente ou do passado: liberdade.
Na comemoração do aniversário de seus 80 anos, as redes sociais foram bombardeadas por cumprimentos e exaltações ao artista. Na imprensa, um caderno de cultura ligado a um jornal de grande circulação aproveitou o momento para publicar uma reportagem especial – que ganhou a capa do periódico paulistano. O artigo destacava que Veloso estava “mais à esquerda como nunca”. Mas, afinal, como não estar diante desta situação? Não, senhor presidente, precisamos investir em bibliotecas e não em clubes de tiros. Queremos carne no prato e não ossos retirados do lixo. Somos uma sociedade laica e, sobretudo, um Estado Democrático de Direito. E a cultura é sim, fundamental.
Caetano, assim como Chico Buarque e Gilberto Gil, talvez tenha traduzido em melodias harmônicas o “Brasil Brasileiro”. De “Sampa” a “São João, Xangô Menino”. De “Lua de São Jorge” a “Milagre do Povo”. O “Caê”, como foi apelidado pela irmã Maria Bethânia em “Mano Caetano”, encarou o Brasil como um objeto de inspiração em períodos de apreensão e esperança. O país é, no fim das contas, o verdadeiro protagonista de sua prosa e, ouso dizer, poesia. Caetano Veloso se tornou símbolo de resistência durante a ditadura militar
Agora, a figura de Caetano se torna ainda mais necessária. A arte é um instrumento de revolução e questionamento e, mesmo que certos homens tentem desmontá-la e destruí-la a qualquer custo, ela não cede, mas sim, renasce em novas formas de expressão. Vale mencionar que governos não são para sempre, porém ainda lembramos com carinho de Elis Regina, Tom Jobim, Cazuza e Marília Mendonça. E, por que não Paulo Gustavo, cuja alegria foi vencida pela negligência, frases e atitudes desprovidas de humanidade?
Volto à memória do Largo de São Francisco, onde gerações separadas por décadas de vida se encontravam aos pés do edifício histórico. Juntos, fechamos as ruas e gritamos palavras de ordem. Distribuímos e recebemos adesivos com substantivos de protesto. Posamos para fotos com o intuito de registrar que estávamos presentes. “Presente”, aliás, também se transformaria em verbo para lembrar Dom, Bruno e Marielle, vítimas do caos estimulado pelo Estado.
Após a leitura da carta, mas antes do encerramento oficial do ato, artistas ganharam um telão num vídeo em que reiteravam o texto e o compromisso na defesa da democracia. Salve Fernanda Montenegro, Djavan, Milton Nascimento, Lázaro Ramos! Caetano, que foi punido no passado com as penas do exílio, estava lá. E foi aplaudido por um grupo de pessoas que acompanhavam atentamente cada trecho lido.
Celebrar Caetano é celebrar a cultura brasileira e, igualmente, o Brasil em sua complexidade de povos, costumes e crenças. Governos podem estar fadados a entrar para história por suas atuações notórias ou vergonhosas. E os que tiram da cultura, da saúde, da ciência e educação só podem ser classificados com a segunda opção. Estamos de olho, Brasília!
Viva Caetano Veloso e todas as formas de arte construídas de Sul ao Norte deste país que, iludido com uma promessa de futuro, se tornou uma nação maltratada. Vai melhorar. Enquanto não, lutamos, gritamos, cantamos pelas ruas e avenidas. Não vão nos calar – sempre haverá outro dia. O nosso, sabemos, será em outubro. Até lá, Brasil!

Faculdade de Direito da USP – leitura da Carta pela Democracia
© Victoria Nogueira