Contraponto 131 - EDIÇÃO ABRIL/MAIO

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Política

O abandono da população de rua e o descaso com seus direitos básicos Diante da pandemia, o aumento do número de pessoas em situação de rua escancara a negligência social e política em São Paulo

© Reprodução: Fábio Vieira/Estadão

Por Guilherme Nazareth, Malu Araujo e Yasmin Solon

Abril/Maio 2022

albuergue que tem aqui. Um cara matou o outro lá dentro, então eu prefiro ficar aqui”. Todos os entrevistados afirmaram se sentirem mais acolhidos por iniciativas privadas, entidades religiosas e organiza­ ções não governamentais (ONGs) do que pelas do poder público. As causas que os levaram às ruas foram desemprego, perda de renda durante a pandemia, conflitos fa­ miliares e dependência química. Dentro desse cenário, o Movimento Na­ cional da População de Rua – MNPR, criado por volta de 2001, foi um marco primordial para discutir projetos e políticas públicas que trabalhassem em cima das reais neces­ sidades enfrentadas pela população de rua. Em entrevista concedida ao Contraponto, o antropólogo Tomás Melo explica que “quando ocorre o ataque na praça da Sé, surge a necessidade de um movimento com maior corpo para trazer pautas encampa­ das não por outras organizações, mas pelos próprios agentes e sujeitos moradores de rua, para criação de uma agenda pública”. © Reprodução: Yasmin Solon

A

pandemia refletiu em vários seg­ mentos da sociedade, principal­ mente, no socioeconômico. Segun­ do o censo divulgado pela prefeitura de São Paulo, em janeiro deste ano, 31.884 pessoas estão vivendo em situação de rua, além do crescimento de moradias improvi­ sadas e do aumento da população feminina e infantil. Embora, o perfil majoritário é de homens, pretos ou pardos, de meia idade, naturais de outros estados e alfabetizados. A fim de minimizar essa situação, a pre­ feitura criou novos centros de acolhida em pontos críticos, como na Mooca, e centros especiais, que são direcionados aos idosos, às mulheres, à comunidade LGBTQIA+ e aos catadores. Houve, nesses centros, um aumento de 80% da ocupação das vagas depois da pandemia. Esses locais prome­ tem conforto para dormir, alimentação completa, capacitação profissional e têm como princípio receber moradores de rua encaminhados de locais próximos. Entretanto, segundo alguns entrevis­ tados na região do Jabaquara, a realidade desses centros é controversa. Marcos de Antônio Araújo, 47, ao ser questionado sobre as condições, respondeu: “Péssimo, péssimo, péssimo. Tem comida, televisão, mas tudo que você usa no corpo, no dia se­ guinte, está cheio de bola, piolho, muqui­ rana. E ainda disseram que era um centro modelo. Que modelo é esse?”. Já César Augusto Dias comentou: “A prefeitura é só de fachada. Uma vez, eu liguei pro 156, era 20h. Foram me bus­ car às 02h. Me levaram do Jabaquara pro Brás. Cheguei lá, não tinha comida, nada, só era pra deitar e dormir. Pra deitar e dor­ mir eu fico na rua.Fico inseguro com esse

Atualmente, no Brasil, existem po­ líticas públicas que, por meio do MNPR, estruturaram a pauta sobre questões fundamentais para os moradores de rua, como o Centro POP (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e o CadastroÚnico. “A grande virada é quando essas pessoas co­ meçam a entrar na arena pública, dizendo: ‘Olha, vocês aí que são domiciliados e pen­ sam políticas públicas para a gente, vocês não sabem nossas reais necessidades. Vo­ cês precisam escutar para que essas po­ líticas sejam efetivas, para que consigam entender nossas particularidades e o que a gente precisa’”, completa o antropólogo. Um dos problemas enfrentados pela população de rua é a falta de ações de mes­ mo sentido entre as lideranças dos cargos públicos. Tomás ressalta que “enquanto tem uma pessoa pensando em uma po­ lítica humanizada, do outro lado há um governador com outra perspectiva, que “atropela tudo o que estava sendo feito.” Para o antropólogo, o ponto para pen­ sar a atuação do governo nesses anos de melhorias e entraves é que “há experiên­ cias que são extremamente interessantes e políticas que são extremamente violado­ ras e tudo isso está acontecendo ao mes­ mo tempo. Existem várias disputas, entre vários setores e interesses”. Frente a esse fenômeno social que vem aumentando, a população pode exercer papel fundamental para reverter essa si­ tuação. Para o especilista mesmo que não seja agradável para ninguém ver outros em situação de rua, as pessoas se acostu­ maram, naturalizaram, ao passo que pre­ senciam essas cenas desde quando eram crianças. Diante dessa questão, Melo afir­ ma que “a gente precisa combater essa cul­ tura, de modo a desnaturalizar essa ideia, de forma que isso cause incômodo a todos e que se torne também a responsabilidade de todos resolver essa questão”. Soma-se a isso o pensamento enrai­ zado na população do “cada um por si”, ou seja, que é dever único do cidadão garan­ tir sua moradia. “Não se trata e nunca se tratou de uma questão de recursos. Trata­ -se de uma mentalidade de que o acesso à moradia é responsabilidade de cada um”, afirmou Tomás, que também conclui que a alimentação, manutenção do emprego e da família seriam melhor organizados pe­ los próprios moradores de rua.

Maria Pereira da Silva, 76, foi uma das entrevistadas pelo CP

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